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ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do nordeste e outras artes. 5. Ed.

São
Paulo: Cortez, 2011.

Sertão dos profetas, dos peregrinos, dos cavaleiros andantes, defensores da honra das
donzelas, dos duelos mortais. Sertão das bandeiras, das insígnias e dos brasões, das lanças e
mastros, das armaduras pobres de couro. Sertão em que todos são iguais diante de Deus, o
que não significa reivindicar o mesmo aqui na vida terrena, condenada a ser sempre
imperfeita, por ser “provação”, mas em que a igualdade divina permite manter a esperança e a
resignação diante das condições mais adversas. O nordeste de ariano luta contra o
mundanismo, aceita a imperfeição das instituições terrenas e não acredita na criação de um
novo mundo. É um espaço e um povo em busca de misericórdia (pag. 188-189).

Para Ariano, foi a “civilização do couro” e não a “civilização do açúcar” que gestou a nossa
identidade nacional, a nossa personalidade. Fazer uma genealogia deste espaço, de suas
famílias, de seus sonhos, de suas loucuras, aventuras e desventuras, era traçar a própria
genealogia do país e da região (p. 190).

Para ele, não se trata de virar pelo avesso a configuração imagética discursiva do Nordeste,
elaborada pelos tradicionalistas, como o farão os romancistas que tem mais preocupação
social, mas também não negar completamente as imagens de miséria e injustiças que
povoavam o sertão. Seu sertão é inferno, é purgatório, mas também é paraíso de riachos,
açudes e pomares. Terra espinhenta, parda, pobre e pedregosa, mas também lugar de brisas,
luares, pássaros. Uma visão que não seria nem de esquerda nem de direita, mas uma terceira
visão, “a visão divina”, sagrada, “católico-sertaneja”, em eu bem e mal convivem substituindo
as visões que se colocam em um destes polos.

É este sentimento de desterritorialização que a arte social vem combater. Ela deveria ter
necessariamente uma postura crítica diante do dilaceramento da realidade, denunciando uma
postura crítica diante do dilaceramento da realidade, denunciando a falta de totalidade,
devendo fugir da mera diversão e postulando um novo significado para a vida, na qual o
choque e o espanto não tivessem lugar. O obscuro da existência, do inconsciente, do irracional
deveria dar lugar à plena luz, à clareza absoluta. [...] O realismo em arte vai desde a simples
imitação dos gestos humanos e das práticas sociais até a reprodução seletiva do que parece
mais característico em uma pessoa, uma época, um espaço, a busca do típico, do modelo da
vida social. O artista escolhe os perfis relevantes do “original”, os caracteres que falem da
essência da situação representada, para transformá-la em figuras fixas. Ele toma a mimese
como serva do referente e a arte como um reflexo da realidade. A arte se torna um discurso
ético do que estético; torna-se parte de uma pedagogia política para a formação de
“subjetividades revolucionárias” (p. 214).

O máximo que se concede de alteração na forma “natural” são as provindas do estilo do artista
e de sua época, devendo a forma ser o desenho da estrutura profunda ou ideal da natureza
dos homens a arte deve participar da criação de uma consciência universal que busca
transformar o homem, este ser empírico-transcendental. Cada obra de arte deve fazer parte
da formação dessa consciência. O particular está contido num universal que lhe dá sentido. A
arte deve não só representar o real, mas explicá-lo, descobrindo o processo social que o
determina. Deve ser uma arte presa aos limites da verdade, da consciência, do real, da
revolução, da política, deve ser um conhecimento submetido a fins éticos previamente
traçados. A arte será tomada como reflexo de uma psicologia social e não como reflexo de um
indivíduo. Esta psicologia, por sua vez, seria determinada pelo estado das forças produtivas.
Para Lukács, a arte faria parte daquilo que chamamos o estilo de vida de uma época, isto é,
uma concepção de mundo e a ação sobre ele (p.216).

São regularidades discursivas que se cristalizaram como características expressivas, típicas,


essenciais da região. Como diz Graciliano Ramos, dificilmente se pode pintar um verão
nordestino em que os ramos não estejam pretos e as cacimbas vazias. O Nordeste não existe
sem a seca e esta é atributo particular deste espaço. O Nordeste não é verossímil sem
coronéis, sem cangaceiros, sem jagunços ou santos. O Nordeste é uma criação imagético-
discursiva cristalizada, formada por tropos que se tornam obrigatórios, que impõem ao ver e
ao falar dele certos limites. Mesmo quando as estratégias que orientam os discursos e as obras
de arte são politicamente diferenciadas e até antagônicas, elas lidarão com as mesmas
mitologias, apenas colocando-as em outra economia discursiva. (p. 217)

Quando se toma objeto Nordeste como tema de um trabalho, seja acadêmico, seja artístico,
este não é um objeto neutro. Ele já traz em si imagens e enunciados que foram fruto de várias
estratégias de poder que se cruzaram; de várias convenções que estão dadas, de uma
ordenação consagrada historicamente. São configurações possíveis dentro daquele universo;
são tipos e estereótipos construídos como essenciais. Um espaço povoado por personagens
que, como mitos, vencem o tempo que decreta o seu fim e, quase sempre, só ao não existirem
mais concretamente, passam a ser mitológicos, permanecem como enigmas que se insinuam
nas narrativas que os tomam como objetos, que se esgueiram nas fímbrias dos textos e
imagens; como perguntas que não querem calar; como problemas que teimam em ser
expostos, como chagas que periodicamente voltam a sangrar e requerem novo remédio, nova
explicação, para o apaziguamento das consciências e a paz da razão (p. 218).

O mito não está, no entanto, obrigatoriamente contra a história. Ele tanto pode ser usado para
submeter a um passado que se quer manter vivo, tornando o presente continuidade de um
lado passado que se constrói, como foi o caso dos mitos tecidos pelos tradicionalistas, como
pode ser usado para valorizar uma descontinuidade entre o presente e o passado. Quando o
mito se humaniza, se encarna na história, faz a história possível; torna a utopia material (p.
218).

O Nordeste é sempre o espaço típico ou mitológico, em que a história parece suspensa,


dormindo, precisando ser despertada. Espaço que lembra o deserto. Espaço indefinido,
indeterminável, a ser conquistado. É um território ainda não marcado de forma permanente e
organizada pelo poder. O Nordeste do Sertão, do vazio, onde qualquer pegada humana é
fugidia, porque o vento a leva, apaga-a. Região por onde se perambula, por onde passa o
homem nômade a pé ou a cavalo. Homem sem rosto, sem identidade, apenas mais um
retirante. A terra do nada. Neste discurso, pois há toda uma preocupação em enclausurar este
espaço, em dar-lhe um sentido, um rosto, um significado. Há uma preocupação de marca-lo
com sonhos e ações humanas, de sedentarizar os homens, para construir uma nova sociedade
e uma nova cultura (p, 225).

As cidades quando são assaltadas por um bando de cavaleiros, imagem-clichê nos filmes sobre
o cangaço, por exemplo, simboliza a invasão do poder rural sobre o espaço urbano. Invasão
barbara, que fala do medo que sente o citadino daquele que vem do mato (p.226).

Ambos (Graciliano Ramos e João Cabral de Melo Neto, grifo nosso) trabalham a linguagem
para alcançar uma adequação desta ao objeto que é tematizado: o Nordeste. Eles buscam uma
linguagem que seja radicada na terra, que não seja uma trégua ou fuga da realidade, mas sua
expressão contundente. O Nordeste, mais do que ser dito pela linguagem, seria uma forma de
falar, de dizer, de ver, de organizar o pensamento; seria o espaço da não-metáfora, da dicção
em preto e branco, do não florido; seria um canto a palo seco (p. 282). – relacionar com a
busca por uma fotografia participante, o desafio da luz tropical, as fotografias mais poéticas, as
menos poéticos e tal.

A linguagem, para Cabral, deve imitar e não encobrir a realidade; portanto, a crítica da
realidade passa necessariamente pela crítica da linguagem, que busca no núcleo expressivo, do
osso da linguagem, esqueleto que sustém a realidade. Denotar o Nordeste só forma, “espaço
ao meio dia, claro”, espaço da carência e da vida parca e repetitiva, é o que pretendem as
quadras quadradas de sua poesia. A sua forma de composição partirá desta imagem do
Nordeste, do seco, do deserto. É do “deserto da folha de papel” que ele parte para fazer
brotar o seu vivo poema: este Nordeste duro se transmuta no “mineral da folha de papel”,
“folha branca”, onde o esforço organizativo do poeta faz surgir o “verso nítido e preciso”, seco,
agudo, cortante, anguloso. O poema surge como um pomar cultivado pelo poeta, no deserto
da folha de papel; ele surge como uma poesia rala, não como uma poesia profunda. A
paisagem eu Cabral inventa para o Nordeste, resumida na aridez, é transmutada em símbolo
do universo poético cabralino e de sua técnica de composição (p. 282).

A crítica da linguagem como representação do real avança com João Cabral no sentido de
percebê-la como constituinte da realidade, como orientada por demandas de poder e pelos
embates das forças da sociedade. Ele não consegue, no entanto, romper totalmente com a
mímeses da representação e com o realismo, porque toda a sua crítica da linguagem, toda a
sua desconfiança da palavra, ainda se pautam na busca de uma linguagem mais adequada à
realidade; uma linguagem capaz de fazer ver mais claramente o objeto do seu discurso. [...]
Sua postura artesanal e construtiva busca ainda a imitação da forma e não sua invenção. [...]
Assim, existiria um Nordeste real, fora da linguagem, e o que quer é buscar a forma correta de
expressá-lo, de torna-lo claro, cristalino, de trazê-lo em sua verdade. O próprio Nordeste
forneceria o ensinamento de como fazê-lo, educando pela pedra, expondo a sua forma seca e
não fluvial. (282-283).

O Naturalismo em Aronovich:

O fato de nos parecer importante justificar as fontes de luz nos cenários, não significa que
sejamos fervorosos adeptos do naturalismo. Mas partir de uma concepção realista da luz, para
em seguida acrescentar-lhe os toques necessários, as pinceladas, me parece ser uma boa base.
Diríamos que os toques e as pinceladas em questão destruiriam em parte o naturalismo “real”,
transformando-o talvez neste naturalismo “mágico”, tão caro ao continente latino-americano.
(ARONOVICH, 2011, p. 67).

(ainda sobre cabral de melo neto, grifo nosso) Se quer ferir o leitor com uma mensagem
contundente, a forma também deve sê-lo. O Nordeste é conteúdo e forma que ferem, que
cortam, que perfuram, que doem e que fazem sangrar. É ferida exposta na carne da nação (p.
283).

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