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SÃO PAULO
2018
Vicente de Paula Brasileiro Filho
1. INTRODUÇÃO
Para esse texto, a escolha dos artistas se deu por uma aproximação óbvia: as obras de
Oswaldo Goeldi e Iberê Camargo são sombrias, seja pela paleta de cores de cada um deles,
seja pelos temas. Já foram feitas várias aproximações entre esses dois artistas, tanto pelo que
acabou de ser descrito, como pela classificação dos dois como artistas com “traços
expressionistas”. Sabe-se também que os dois foram próximos quando Iberê se mudou de
Porto Alegre para estudar no Rio de Janeiro. É tentador, portanto, escrever esse texto baseado
nessas classificações, aproximações e biografias. Será feito um esforço, porém, para que a
análise se atenha ao que as duas obras mostram em sua bidimensionalidade, recorrendo ao
“exterior” da pintura/gravura somente quando elas se referirem a ele.
A princípio, os dois trabalhos serão descritos. Posteriormente, e a partir dessa
descrição, serão traçadas as aproximações entre os dois trabalhos escolhidos, tendo como guia
uma discussão sobre o expressionismo, o (um) conceito de autorretrato e o (um) conceito de
modernidade na arte brasileira.
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Esta pintura de Iberê Camargo retrata um possível momento de sua intimidade em seu
fazer artístico: um ambiente que parece ser um ateliê, com objetos próprios desse ambiente
(podemos ver parte de um cavalete à esquerda, e um tubo de tinta e pincel à direita), bem
como o que parece ser uma escultura de figura humana fixada em um bloco que, pela forma e
cor, lembra um tijolo. A figura ganha destaque no quadro por sua posição central na pintura,
pelo uso de cores claras que contrastam com o fundo e pela forma como o artista contorna a
figura. Temos também duas linhas verticais que limitam o espaço da escultura, e a diagonal
formada pelo topo do cavalete aponta para ela, contribuindo para esse destaque.
A estrutura pictórica da obra é similar à da xilogravura de Goeldi descrita
anteriormente: o fundo é diluído em favor da figura, que se destaca pela construção do espaço
atrás dela e pelo contorno. É, portanto, uma estrutura do gênero retrato. No entanto, aqui não
há uma pessoa como tema. Para que essa afirmação tenha algum sentido, precisamos adotar
uma visão ampla de sujeito, como sendo, além de si próprio, do que é, também o que faz e
possuiu. Ao considerarmos que aqueles objetos provavelmente faziam parte do ateliê do
artista, e considerando que é uma cena do seu fazer artístico, podemos dizer então que a obra
é um retrato de si mesmo. Seria, portanto, um autorretrato, porém sem o “auto”: a referência
ao artista é feita através dos elementos materiais do pintor e não de suas feições. O artista está
ali, porém através de seus instrumentos de trabalho. Isso será discutido posteriormente.
2. EXPRESSIONISMOS
Na bibliografia a respeito dos dois artistas, eles são comumente enquadrados como
expressionistas. Alguns autores e críticos de arte brasileiros incorrem nesse rótulo, seja por
confundirem o Expressionismo (com inicial maiúscula), movimento europeu do início do
século XX, com o conceito de arte como expressão de uma vontade artística, seja pela
semelhança de poética, seja por um raciocínio historicista que necessita conectar nossos
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expoentes nas artes com os movimentos europeus. Esse raciocínio, apesar de parecer válido,
acaba por subjugar nossa produção à europeia ou americana.
Ronaldo Brito, ao escrever sobre Goeldi, afirma:
Apesar de ressaltar o modo como sua poética opera, acaba por reduzir o artista ao rótulo de
“expressionista” sem explicitar sobre qual expressionismo se trata. Cecília Cotrim, quando
aproxima as duas poéticas dos artistas, incorre nessa mesma redução ao afirmar que “em
ambos os artistas identificamos o esforço expressionista de uma abertura para o mundo [...]”
e, especificamente sobre Goeldi, que ele detém um “expressionismo minimal” (COTRIM,
1991). Sylvia Ribeiro Coutinho afirma, ao comparar o trabalho de Goeldi com o de Alfred
Kubin (ilustrador austríaco com o qual teve contato na Suíça na década de 1910): “[...] ao
contrário de Kubin, cujo expressionismo beira a zona surreal do pesadelo, o compromisso
predominante de Goeldi é com o mundo da vida, e não com o dos sonos atormentados pelo
medo de um mundo ameaçador” (RIBEIRO, 2014), situando erroneamente o artista brasileiro
no movimento europeu da década de 1900.
Não podemos enquadrar esses artistas no Expressionismo pela simples razão de
incorrermos em anacronismo. Giulio Carlo Argan deixa claro onde e quando essa vertente
artística ocorreu:
É evidente que o Expressionismo deixou sua marca na produção artística posterior. Argan
afirma haver o desejo de superação de uma arte nacionalista por parte dos expressionistas,
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“[...] para dar origem a uma arte historicamente europeia” (ARGAN, 1992). Esse
internacionalismo, aliado à própria questão da arte como
expressão humana universal, como “[...] ação que se cumpre e
que, obviamente, não se exerce sobre a natureza, mas sobre os
homens [...], ou seja, uma comunicação” (ARGAN, 2010), torna
tentadora a classificação de Goeldi e Iberê como artistas
expressionistas. Percebemos, ao compararmos uma xilogravura
de Max Pechstein, que integrou o movimento Die Brücke, à de
Goeldi, semelhanças na poética e no modo como aquele parece
Figura 1: Autorretrato com
enfrentar a madeira (figura 1). Entretanto, não podemos estender cachimbo, de Max Pechstein
Xilogravura sobre papel, 1921
o contexto cultural da época, pautado pela “[...] contradição 41,3cm x 30,8 cm
histórica entre clássico e romântico”, que o expressionismo tenta resolver de forma dialética
(ARGAN, 1992), aos artistas brasileiros, tampouco a qualquer outro que não tenha
participado deste momento histórico.
Além disso, é importante entender também o que seria o expressionismo (com inicial
minúscula). Wilhelm Worringer, em seu livro Abstraktion und Einfühlung (Abstração e
Empatia, 1908, sem tradução para o português), defende a tese de que “o gozo estético é um
gozo objetivado do eu” (WORRINGER, 2015, tradução nossa). Para ele, o homem se
projetaria no objeto estético como forma de se afastar de si mesmo, de se alienar. Essa
projeção teria dois polos: a projeção sentimental, uma forma de “[...] livrar-se do ser
individual”, que corresponderia à imitação da natureza, e a abstração, que seria “[...] um
impulso para se redimir [...] da contingência do humano em si [...]” (WORRINGER, 2015,
tradução nossa).
Separando a arte da estética como sendo duas áreas que, apesar de terem os mesmos
objetos de estudo, não são contíguas, e a partir dos escritos de Alois Riegl, historiador de arte
do final do século XIX, o autor afirma que a arte é, antes de mais nada, uma volição, uma
vontade de arte. Essa vontade seria imanente e tenderia tanto à imitação da natureza quanto à
abstração, o que dependeria do modo como o homem, nas diversas sociedades, se relaciona
com o mundo:
O homem primitivo, no ambiente hostil que o cercava, teria então um desejo de abstração
como forma de se alienar desse mundo. À medida que evolui o domínio humano desse
ambiente, esse desejo mudaria de polo. Porém, isso não explicaria a arte abstrata do século
XX. Entretanto, o próprio autor resolve essa questão ao afirmar:
Na história da arte brasileira, Oswaldo Goeldi, Lasar Segall e Iberê Camargo são
frequentemente associados ao expressionismo, ainda que sejam patentes as suas
particularidades poéticas. É claro que essa qualificação, como todas, comporta
muitos problemas. A rigor, só podemos reuni-los sob esse rótulo, se adotarmos uma
visão ampla de expressionismo, tomando-o como uma das vertentes da tendência
mais vasta de compreensão da arte como expressão. (SIQUEIRA, 2009)
Essa compreensão ampla da “arte como expressão” consegue o mesmo objetivo de situar as
duas obras fora do expressionismo, como movimento, e dentro dele como “[...] vontade de
expressão pessoal [...]” (SIQUEIRA, 2009).
Foi aqui visto que a discussão sobre o termo expressionismo se encaixa nas obras de
Goeldi e Iberê. Porém, na pintura aqui considerada, talvez ela passe um pouco à margem da
obra, dado que a poética do artista ainda não estava consolidada. Apesar disso, vemos nela
algumas características do autoretrato, que será discutido na próxima seção.
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Quando produziu Sem título, Iberê Camargo fazia parte do grupo Guignard, um
agrupamento de artistas que estudavam na escola de artes plásticas de Alberto da Veiga
Guignard, no Rio de Janeiro. Sua produção contemporânea a esses estudos denota influência
direta de Guignard em sua produção de retratos e autorretratos. Comparando os autorretratos
dos dois pintores (figuras 2 e 3), por exemplo, percebemos como semelhança o deslocamento
da figura em relação ao centro da tela, revelando a construção de um espaço no plano de
fundo ao mesmo tempo concreto (a coluna em Guignard, as árvores em Iberê) e onírico, bem
como a acentuação dos contornos, especialmente em suas vestes, e o que parece ser certa
diluição da tinta. Essa diluição contrasta com sua produção de pinturas de paisagem
contemporânea ao autorretrato, onde a tinta é utilizada com pouca ou nenhuma diluição, e
onde as pinceladas são bem marcadas.
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pintura, o modo como são pintados e a relação deles com a figura humana, no caso o retrato
do próprio pintor, também podem denotar metaforicamente esse modo de ver a si mesmo.
É nesse sentido, considerando que podem existir analogias entre o corpo do artista e os
objetos que ele pinta, que podemos considerar Sem título como um autorretrato sem o self.
Iberê recorre à escultura para exemplificar seu trabalho como pintor, porém escolhe um
esboço, uma escultura inacabada, como modelo. Pode parecer um contrassenso, já que, na
época, ele vivia no Rio de Janeiro, havia estudado na Escola Nacional de Belas Artes (ENBA)
e tinha à sua disposição, por exemplo, o Museu Nacional de Belas Artes e seu acervo. Ao
mesmo tempo, podemos inferir que Iberê não olhou nenhuma escultura em particular,
particularmente nesse contexto acadêmico, para pintar aquela, dada sua conhecida aversão ao
ensino formal (abandonou os estudos na ENBA por não concordar com a metodologia do
ensino). Essa “escolha” poderia refletir um artista que se assume ainda em formação, em
esboço, procurando consolidar sua poética e linguagem particulares.
Para que o argumento faça sentido, entretanto, recorreremos à comparação entre a obra
em questão e o autorretrato do artista (figura 3). Neste, chama a atenção o fato de Iberê deixar
sua figura incompleta, não pintando o braço e antebraço direito (que se localizariam no canto
inferior esquerdo do quadro), apesar de pintar-se em camisa de mangas curtas. Naquele, a
escultura pintada também não possui o braço direito completo. Talvez seja alguma influência
da estatuária clássica, mas a analogia é, apesar de superficial, direta. Em suma, é como se o
artista projetasse a si mesmo nesse item específico, estando “[...] inteiro naquilo que seria seu
objeto” (DUARTE, 2007).
Até então, nesse texto foi tratado da questão da expressão, com certo foco em Goeldi,
e do autorretrato, com foco em Iberê. Na próxima seção, será aprofundado o estudo das
semelhanças entre as duas obras.
4. APROXIMAÇÕES MODERNAS
Já foi discutido nesse texto que as duas obras em questão de Oswaldo Goeldi e Iberê
Camargo possuem semelhanças no tocante à estrutura de retrato que as duas possuem. Uma
outra semelhança seria com relação ao uso de linhas para demarcar áreas, sejam linhas
brancas da madeira desbastada sem tinta ao redor da silhueta em Goeldi, sejam contornos
escuros ao redor da estátua e de sua base em Iberê.
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marcada, com contornos bem definidos e certa representação realista, e o fundo, geometrizado
que, apesar de tentar demarcar algo como uma porta ou janela ao final de um corredor, não
indica ou representa um lugar em si. A sua figura, porém, ainda possui traços realistas. Na
pintura de Iberê, vemos o mesmo com relação à demarcação de superfícies por linhas escuras,
na escultura e em sua base. Na base em si, os detalhes parecem seguir um procedimento
similar aos grafismos de Dufy. Figura e fundo também são desconectadas uma do outro, e a
pincelada visível aparece em algumas áreas, em especial acima à direita e na perna da
escultura. Portanto, por essas características, e apesar das diferenças de poética e meio
expressivo que os dois artistas utilizavam, podemos dizer que Goeldi e Iberê (da década de
1940) são representativos do que o modernismo brasileiro via com bons olhos.
Referências Bibliográficas
ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna: do iluminismo aos movimentos contemporâneos. São
Paulo: Companhia das letras, 1992. 709 p.
BRITO, Ronaldo. Goeldi: o brilho da sombra. In: Novos Estudos. n. 19. São Paulo: CEBRAP,
1987, p. 73-78.
CHIARELLI, Tadeu. Um modernismo que veio depois: Arte no Brasil – primeira metade do
século XX. São Paulo: Alameda, 2012. 296 p.
CLARK, Timothy James. Grotesco David com a bochecha inchada: Um ensaio sobre o auto-
retrato. In: _____. Modernismos. Organizado por Sonia Salzstein. São Paulo: Cosac & Naify,
2007. 365 p.
COTRIM, Cecília. Goeldi e Iberê: romantismo e atualidade. In: Gávea. Rio de Janeiro, PUC-
Rio, n. 9, 1991, p. 38-47.
DUARTE, Paulo Sérgio. A solidão da grande arte. In: SALZSTEIN, Sonia (Org.). Diálogos
com Iberê Camargo. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. 205 p.
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SALZSTEIN, SÔNIA. Anos 60: um marco na obra de Iberê Camargo. In: _____ (Org.).
Diálogos com Iberê Camargo. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. 205 p.
SIQUEIRA, Vera Beatriz. Cálculo da Expressão: Oswaldo Goeldi, Lasar Segall, Iberê
Camargo. Porto Alegre: Fundação Iberê Camargo, 2009. 160 p.
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