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10/07/2017 Aula 2 – 18/01/1995 – O solo nômade da filosofia: uma imagem do pensamento

Claudio Ulpiano

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Aula 2 – 18/01/1995 – O solo nômade da


loso a: uma imagem do pensamento
CLAUDIO ULPIANO
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AULAS TRANSCRITAS
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AULA 2 – 18/01/1995 – O SOLO NÔMADE DA FILOSOFIA: UMA IMAGEM DO
PENSAMENTO

Aula 2 – 18/01/1995 – O solo nômade da loso a: uma imagem do


pensamento

capa-grande-
aventura

[Temas abordados nesta aula são aprofundados nos capítulos 1


(Implicar – Explicar); 2 (O Extra-Ser e a Similitude); 3 (A Zeroidade); 4
(Diferença, Alteridade, Mutiplicidade); 5 (A Fuga do Aristotelismo); 6 (Do
Universal ao Singular); 7 (Cisão Causal); 8 (As Singularidades Nômades); 9 (A
Imagem Moral e a Liberdade); 11 (Conceitos); 12 (De Sade a Nietzsche); 13
(Arte e Forças); 14 (Literatura); 15 (Ecceidade e Espinosa, o mais Poderoso dos
Deleuzianos); 19 (Leibniz II); 20 (Linha Reta do Tempo) do livro "Gilles
Deleuze: A Grande Aventura do Pensamento", de Claudio Ulpiano. Para pedir
o livro, escreva para: webulpiano@gmail.com]

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"O pensamento - isso não precisa ser só em


mim; pode ser em qualquer estudante de loso a:
pode ser em todos nós - sempre que nós nos
depararmos com alguma coisa com a qual nós nos
agenciamos, nós temos que - nesse agenciamento -
fazer a renovação daquele pensamento. Ou seja: a
grandeza do espírito, o poder do espírito, o poder
do pensamento - é exatamente a prática dessa
renovação."

Há, nas faculdades de loso a, uma disciplina que se chama História da


Filoso a e o professor de loso a é - na verdade - um historiador da loso a.
O que comumente um professor de loso a faz - é pegar as obras
consideradas losó cas e reproduzi-las em seu discurso: representá-las, retomá-
las - geralmente com comentários. Classicamente, é isso o que o professor de
loso a faz! Se ele fala sobre Platão, ele expõe, por exemplo, o problema do Timeu
- a demiurgia, as formas, a matéria louca - e recobre o discurso platônico, fazendo
algum comentário, às vezes pouco inteligente - porque ele concorda ou não
concorda com aquilo.
Mas essa posição não é a minha posição!
- Por quê?
Porque minha associação losó ca é com Gilles Deleuze, que como todo
lósofo, pelo menos como todo historiador de loso a, fala sobre os outros
lósofos, ou seja: sobre aqueles que são considerados lósofos. Há na obra de
Deleuze, por exemplo, um livro sobre Espinosa; um livro sobre Nietzsche; outro,
sobre Hume... mas Deleuze não é um historiador clássico da loso a, ou melhor:
o trabalho dele não é recobrir o que os outros lósofos disseram, não é repetir o
que os outros lósofos disseram, nem tampouco comentar sobre o que os outros
lósofos teriam falado. Num trabalho sobre Espinosa, por exemplo, chamado
Espinosa e o problema da expressão, Deleuze vai se ligar à noção de expressão - que
está dentro da obra de Espinosa, mas não tem um valor conceitual como teria, por
exemplo, a noção de substância na obra de Aristóteles.
O conceito de expressão - e a partir daqui eu vou tentar mostrar isso - não é
para ser explicado ou comentado - porque o Espinosa não nos diz o que é o
conceito de expressão. O conceito de expressão no Espinosa é uma prática - é o
exercício losó co propriamente espinosista. Então, Deleuze, ao invés de
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comentar ou reproduzir Espinosa, viaja nesse conceito de expressão, ou seja, não é


uma loso a sobre Espinosa: é uma loso a com Espinosa. (Eu vou melhorar para
vocês!)

Um homem de teatro e de
cinema chamado Carmelo Bene é o responsável - junto com outros - pelo que se
chama vagamente de teatro moderno. (Que nada tem a ver com o que está
acontecendo no Rio de Janeiro - porque não existe [esse tipo de teatro] no Rio de
Janeiro!)
Nesse teatro, o Carmelo Bene pega uma peça como Romeu e Julieta do
Shakespeare - por exemplo - e faz uma prática excepcionalmente original - que é
amputar determinados personagens [da peça original]. Em Romeu e Julieta, por
exemplo, ele amputa, ele retira o Romeu. Eu não sei se vocês se lembram: o
Mercúcio tem uma vida muito breve em Romeu e Julieta - ele morre, na peça, salvo
equívoco, pela espada de Teobaldo, exatamente porque Romeu se intrometeu...
(Atenção, que começa a aparecer a questão:) No momento em que Carmelo Bene
faz isso, ele liberta as virtualidades de Mercúcio.
- Em que sentido?
Passando do Teatro para a vida... - pra prática das nossas vidas - haveria
sobre qualquer um de nós determinados exercícios de poder que impediriam que
nós efetuássemos uma série de virtualidades nossas. Isso que eu estou chamando
de "virtualidade" é alguma coisa que, por exemplo, não aparece na obra de

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Espinosa, ou seja: você não encontra as virtualidades de Espinosa na obra dele.


Mas se você utilizar - na loso a - o processo que Carmelo Bene utilizou no
teatro... ou seja, digamos: você decepa alguma coisa dentro da obra do Espinosa,
e aí uma virtualidade do Espinosa se libera.
Então, a loso a do Deleuze não recobre, não representa - ela diz o que
Espinosa não disse! Então, seria uma maneira toda original de fazer loso a: seria
uma loso a das núpcias, dos matrimônios, dos agenciamentos, em que o
historiador - no caso Deleuze - ao invés de falar sobre aquilo que o lósofo falou -
o que de modo nenhum ele faria! - ele se associa com o lósofo e - os dois - fazem
uma viagem recriando Espinosa.
Então, é esse o meu modelo, é assim que eu trabalho, ou seja, eu não recubro
de maneira nenhuma o lósofo: eu não faço isso! O que eu procuro, é encontrar
nele aquilo com que eu possa fazer o meu processo. Um lósofo de língua inglesa
do séc. XVIII, chamado Hume, por exemplo, introduz, no campo da loso a, a
categoria de crença. Essa categoria - de crença - faz desabar toda a tradição da
loso a! Mas Hume, em momento nenhum, explica o que é a crença. Ele não
explica - ele faz uma viagem com essa noção. Então: se eu for falar de Hume, eu
vou ser um companheiro dele nessa viagem sobre a crença.
Aluna: E você também faz isso com o Deleuze?
Claudio: Exatamente - é isso que eu estou dizendo!
Aluna: Com o próprio Deleuze?!
Claudio: Com o próprio Deleuze!...Se eu não zesse isso com o Deleuze, eu
não estaria sendo deleuzeano - porque eu estaria re-cobrindo aquilo que o
Deleuze diz.
Então, evidentemente eu já notei que vocês compreenderam a di culdade
extremada do que é isso... e o porquê de, no começo desta aula, eu ter dito:
"Aparentemente eu vou expor para vocês o meu método!" - mas, de forma
nenhuma, é um método que eu estarei expondo. Eu vou colocar outra categoria.
Eu estarei, no começo desta aula, produzindo - sempre com os objetivos das aulas
[que se seguirão], o que na obra do Deleuze vai-se chamar imagem do
pensamento - ideia que vocês não encontrarão, de maneira nenhuma, em outro
lósofo.
O que eu tenho que fazer agora? Agora - necessariamente - por ser um
componente fundamental da minha exposição, eu tenho que levá-los a
compreender o que vem a ser Imagem do Pensamento. (Então vamos lá:)
Em todas as loso as - Platão, Hegel, Aristóteles, Kant - não importa qual o
lósofo, todos eles colocam o pensamento como uma atividade positiva que busca
um alvo: alcançar alguma coisa. No Platão, por exemplo:
- Qual é o grande alvo da loso a do Platão?

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Encontrar a verdade! Então, o pensamento se equipa para encontrar o


objetivo dessa loso a. Que no caso especí co de Platão seria - encontrar a
verdade.
Mas, em todas as loso as - e aqui vocês vão car um pouco surpresos! -
existe o que se chama o negativo do pensamento. Todas as loso as marcam o que
seria o negativo do pensamento. Por exemplo: eu disse que o Platão tem como
objetivo encontrar a verdade. Então, o Platão tem como objetivo: como prática
a rmativa - a busca da verdade. E, para ele, o negativo do pensamento...
- O que quer dizer o negativo do pensamento?
O negativo do pensamento é exatamente aquilo que atordoa o pensamento;
aquilo que confunde a prática do pensamento - que, no caso de Platão e
Aristóteles - é o erro, o falso. Para esses pensadores, o pensamento tem um
exercício e esse exercício - [ao se processar] - de repente se defronta com uma
espécie de névoa - a névoa do falso.
Se eu abandonar esses pensadores e for, por exemplo, para o Espinosa, é
claro que a questão do Espinosa - da mesma maneira que em Platão e Aristóteles
- é fazer o pensamento funcionar e encontrar os seus objetivos. Mas, da mesma
maneira que neles apareceu o negativo e esse negativo era o falso, em Espinosa o
grande negativo é a ignorância e a superstição. (Então vejam o que eu disse:)
O que eu estou colocando é alguma coisa de muito novo: que para o
entendimento de uma prática losó ca, importa a compreensão do negativo do
pensamento. Então, o negativo do pensamento para Platão é o erro. E num
confronto que ele faz com os so stas, ele vai provar que o erro existe - o que lhe
permite gerar o seu negativo - o erro.
Agora, se vocês forem estudar Nietzsche, por exemplo, Nietzsche tem um
negativo. Mas o negativo dele não é o erro - é a tolice.
Então, o que eu disse para vocês, é que essa noção de "negativo do
pensamento" tem tanta importância como a noção de "positividade do
pensamento". Em função da ameaça do negativo...
- O que é que o negativo ameaça? Ameaça o pensamento! O falso ameaça a
verdade; a ignorância ameaça o pensamento. A ignorância ameaçar o pensamento
é muito fácil de ver! Então, em função dessas ameaças, que os negativos
produzem sobre a sua prática de pensamento, os lósofos criam o que se chama
método.
- O que é o método?
O método é para enfraquecer, afastar o perigo do negativo.
Aluna: E o positivo em Espinosa e em Nietzsche também é a verdade?
Claudio: Eu vou mostrar! (Certo?)
Então, aqui termina essa fase, eu acho que foi bem compreendido... O
lósofo está sempre com aquela questão - que é afastar o negativo do pensamento.
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Por exemplo: em Kant - o negativo é a ilusão; então Kant vai passar sua obra
toda tentando afastar os poderes da ilusão.
Mas eu estou citando o Aristóteles e o Espinosa. No Aristóteles, o negativo é
o falso. No Espinosa, o negativo é a ignorância... Eu não vou nem dizer a
superstição, porque eu posso dizer que a superstição é uma conseqüência da
ignorância. (Certo?) Então, de um lado o falso e de outro lado a ignorância.
- O que eles fazem?
Ambos constroem um método - com o objetivo único e exclusivo de afastar os
poderes do negativo. O Aristóteles, por exemplo, coloca a existência de duas
práticas, digamos, do saber: duas práticas cientí cas - que ele chama de loso a
teórica e de loso a prática.
Na loso a teórica - que é a prática da física, a prática da matemática - diz
Aristóteles que o grande problema é que o verdadeiro - que é o objetivo que ele
quer alcançar - está ameaçado pelo falso. Na loso a prática - a política, a
economia, a moral - é onde ele diz que o bem se encontra ameaçado pelo mal.
Então, na loso a prática, na hora em que o político, o economista ou o moralista
praticassem o bem, poderiam ser tomados pelo mal - porque o mal se
transvestiria de bem, assim como o falso se transveste de verdade. Então, ele
constrói um método com o objetivo - no caso de Aristóteles - de afastar o falso e
afastar o mal.
Espinosa, para quem o negativo é a ignorância, constrói um método - que ele
chama de formal e re exivo (vejam como ca claro!) - com o objetivo único de
fortalecer o poder do entendimento: levar o poder do entendimento a sua mais
alta potência.
- Por quê?
Porque quanto mais potente for o entendimento, menos o poder da
ignorância. Então, essa posição espinosista é uma posição grave, uma posição
trágica, porque ela já colocou a grande questão - a fragilidade da subjetividade
humana, a imensa fragilidade da subjetividade humana; ou numa linguagem mais
espinosista - a imensa fragilidade da consciência. A consciência é frágil, confusa,
ou melhor: a consciência: esta ignorante. Esta ignorante - a consciência - segundo
Espinosa, seria a causa de todo o sofrimento da humanidade.
Todo o mal da humanidade estaria - exatamente - na consciência, com a sua
ignorância - [e a sua incapacidade] de compreender os movimentos da natureza.
Porque a consciência não compreende os movimentos da natureza - o regime
existencial dela é sempre o mesmo: recompensa e punição. Ou seja: ela busca ser
recompensada - quando cumpre o seu papel com perfeição; e teme ser punida.
A consciência não é um órgão constituído para entender - ela é um órgão
constituído para obedecer; e a obediência é a fábrica da ignorância. Porque um

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espírito livre - e é exatamente este o objetivo do Espinosa: a produção de um


espírito livre! - tem que se confrontar fundamentalmente com a consciência.
Porque a consciência ou, como diz Espinosa, Adão - ao ouvir de Deus a frase -
"Não coma desse fruto, porque se você comer desse fruto você vai se envenenar",
Adão, o ignorante, comeu do fruto, se envenenou e pensou que Deus havia lhe
dado uma ordem - e que ele não tinha cumprido a ordem de Deus. Ao acreditar ter
"desobedecido" a "ordem de Deus" - comendo o fruto; logo, não aceitando a ordem
de Deus - teve cólica.
Mas, diz Espinosa, não foi nada disso: Deus não deu uma ordem a Adão - ele
disse a Adão o funcionamento e o entendimento da natureza. Adão não entendeu...
porque Adão funciona pela consciência - e a consciência é impotente para
compreender o funcionamento da natureza. Então, nós, adâmicos: os ignorantes!
Daí, o que eu estou falando é algo muito sério - nós estamos praticamente
"na porta" do século XXI, (não é?); na porta das maiores revoluções que já
aconteceram neste planeta - revoluções que vão do computador à música
eletrônica; que vão ao corpo do homem: aos códigos genéticos, às relações da
biologia molecular. Esses acontecimentos não são capazes de ser compreendidos
pela consciência - por isso a grande questão do Espinosa é - dar potência ao
pensamento, aumentar a potência do pensamento. E ele funda um método que se
chama formal e re exivo - um método que pega o pensamento e - constantemente
- o estimula a aumentar a sua potência de entendimento. Ou seja: o que Espinosa
está acabando de nos dizer é que o homem pode - não é; mas pode - ser livre e
existir sob o regime do entendimento. Mas o homem é adâmico e vive sob o regime
da obediência e da recompensa e da punição. A grande questão do Espinosa seria
produzir um homem livre!
Então, isso que eu inicialmente chamei de método - não é um método: é uma
Imagem do Pensamento. Ou seja: o que distingue um lósofo do outro - por
exemplo: o que distingue o Platão do Kant; ou Hegel de Berkeley - é que cada
lósofo produz a sua própria imagem do pensamento. Então, cada lósofo
compreende o pensamento como alguma coisa que vai utilizar. E vocês vão
veri car a diferença assim brutal, quando você estuda Platão e quando você
estuda Nietzsche... e, ao mesmo tempo, a incrível semelhança - porque ambos
estão construindo imagens do pensamento que começam [de uma maneira] e
depois... derivam.
Então, essa idéia de Imagem do Pensamento - que eu coloquei para vocês - é
o fundamento, o constituinte do Deleuze. Deleuze produz uma nova imagem do
pensamento.
- Qual?
Deleuze não recobre os lósofos; ele não representa os lósofos sobre os
quais ele fala. O que ele faz é dizer aquilo que o lósofo - sobre o qual ele está
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falando - não disse!


É isso!
Então, quando Deleuze estuda Bergson - e apresenta uma obra sobre
Bergson; quando estuda Nietzsche - e apresenta uma obra sobre o Nietzsche;
quando estuda Espinosa - e apresenta uma obra sobre Espinosa - nós tomamos
um susto! Porque vemos um Espinosa, um Hume, um Nietzsche que nós não
encontramos em outros historiadores da loso a. Nós não encontramos de
maneira nenhuma - ao ponto de Adão, o ignorante, dizer:
- Mas o que é isso? Ele está dizendo o que o lósofo não disse?
Sim! Ele não precisa reproduzir o lósofo. Porque não teria nenhum valor -
nenhum valor para o pensamento - se a única prática que nós pudéssemos fazer
quando nós nos conjugamos com um lósofo fosse reproduzir o que ele disse. A
história da loso a já teria nascido morta - e sem o menor sentido!
Então, o pensamento - isso não precisa ser só em mim; pode ser em qualquer
estudante de loso a: pode ser em todos nós - sempre que nós nos depararmos
com alguma coisa com a qual nós nos agenciamos, nós temos que - nesse
agenciamento - fazer a renovação daquele pensamento. Ou seja: a grandeza do
espírito, o poder do espírito, o poder do pensamento - é exatamente a prática dessa
renovação.
E aqui eu coloquei esta noção que se chama - Imagem do Pensamento.
(Certo?) Eu vou voltar a isso na próxima aula. Vocês então já sabem que existiria -
eu vou clarear mais! - existiria uma imagem chamada imagem clássica e
dogmática do pensamento. Essa imagem clássica e dogmática do pensamento é
exatamente a imagem do pensamento que Platão introduziu na história.
Platão introduz uma imagem do pensamento em que o pensamento quer e
ama o verdadeiro, e detesta o falso ou o erro; e em que o pensamento - por sua boa
natureza - não para de buscar a verdade. Quando nós encontramos a imagem do
pensamento... (Olhem que chocante, hein?) Quando nós encontramos a imagem
de pensamento de um esquizofrênico - o Artaud. Quando a gente utiliza uma
linguagem de clínica - esquizofrênica... a gente tem que funcionar de duas
maneiras: porque existe um esquizofrênico psicossocial - uma esquizofrenia
produzida pelo próprio capitalismo; e existe a esquizofrenia do pensamento. O
Artaud era ao mesmo tempo esquizofrênico do campo social e esquizofrênico do
pensamento. Então, [a questão d]o pensamento do Artaud - ele dizia: "Eu não
consigo pensar, eu não consigo pensar" - e daí vinha seu grande sofrimento.
- Por que ele não conseguia pensar?
Porque o pensamento não pensa por boa vontade, nem por boa natureza; o
pensamento só pensa - se for forçado a pensar. É preciso forçá-lo a pensar -
motivo pelo qual, na aula anterior, eu disse que o corpo força o pensamento a
pensar - e o pensamento vai pensar o corpo. (Certo?)
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Então, esse estranho " lósofo", que eu acabei de citar - o Artaud. Seria um
choque, dentro de todas as universidades do planeta, chamá-lo de lósofo! Mas,
sem dúvida nenhuma, um grande pensador - o maior pensador: que compreendeu
exatamente o que seria o pensamento. O pensamento é como se fosse um ser num
sono hipnótico: ele não quer fazer nada - é preciso forçá-lo. E aí - quando ele é
forçado - ele vem pensar.
Proust e também Espinosa - eles dizem que o pensamento só pensa em razão
do acaso dos encontros. Então, um determinado tipo de encontro pode forçar o
pensamento a pensar. Se nós voltarmos a Platão, nós vamos encontrar coisas
platônicas assustadoras - de tão bonitas! Porque há um momento da obra de
Platão - isso é na República - Livro 10, em que ele diz - exatamente - o que
Artaud vai dizer 2.300 anos depois. Ele diz que o pensamento - só pensa - se for
forçado a pensar. E Platão vai e diz: "o que força o pensamento a pensar é a
contradição". Então, sempre que um homem estiver no mundo - e não se deparar
com a contradição - ele não pensa! Ou seja, o homem ca submetido ao que se
chama doxa - à opinião, à variação das suas opiniões. Ele só pensa, segundo
Platão, na hora que ele se depara com a contradição; por exemplo: quando ele
nota que esse dedo daqui [Claudio mostra o dedo indicador] é menor do que este
[mostra o dedo médio] e maior que este [mostra o polegar]. Logo, este dedo [o
indicador] é ao mesmo tempo maior e menor - isso é uma contradição. Este dedo
que está aqui força Platão a pensar.
- Para que ele vai pensar?
Para - dessa contradição do maior e do menor - construir a sua Teoria das
Essências, a sua Teoria das Idéias e fazer com que a contradição desapareça - e o
apaziguamento volte ao seio dos homens.
Então - na verdade - o que Platão quer é que o pensamento apazigue os
temores e os sustos da humanidade. O que, por exemplo, Deleuze - numa linha
nietzschiana - colocaria, é que não; nada disso! - o pensamento não busca
apaziguamento; o que ele busca é exatamente a conquista, a criação e a invenção.
Então, quando o pensamento começa a funcionar, os seus objetivos não são
jamais satisfazer os interesses humanos de acordo e de paz. O que o pensamento
faz é um mergulho - às vezes sem volta - no caos. É tolice, ignorância completa,
dizer que o caos é o maior inimigo do pensamento. O caos é inteiramente a m ao
pensamento. Eles se complementam, fazem uma a nidade. A questão aqui é que
o pensamento só pensa quando ele é forçado a pensar e o que ele pensa é o caos.
A matéria do pensamento é o caos.

[virada de ta]

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O maior adversário do pensamento é a opinião - porque a opinião é variável e


a questão dela nunca é aumentar a potência do pensamento. O método
aristotélico se origina...
- Qual o método do Aristóteles? O método demonstrativo!
O método do Aristóteles é afastar os perigos do falso - e conduzir o pensador
à verdade. O método dele chama-se método demonstrativo e dentro de seus
objetivos - evidentemente - ele obteve todos os êxitos. Então, a partir de agora, eu
coloco que existiria uma imagem clássica do pensamento - cujo modelo é Platão -
que seria simultaneamente chamada de imagem dogmática do pensamento; e uma
série de imagens do pensamento que correm permanentemente o risco de serem
destruídas pela sua matéria - o caos. (Certo?)

Essa foi uma introdução básica para a nossa compreensão - pelo menos para
sabermos o que eu estou fazendo!... O que eu estou fazendo de diferente é porque
eu caminho numa imagem do pensamento que não é a imagem clássica... e -
exatamente porque não é a imagem clássica - permite-me compreender que
quando Godard e Cassavetes fazem um lme; ou quando o Egon Schiele e Bacon
pintam um quadro; ou quando Boulez faz uma música; e assim por diante... -
todas essas práticas são literalmente práticas de pensamento. Ou seja: a arte, a
loso a e a ciência só trabalham pensando - são três práticas em que o
pensamento estaria inteiramente presente. Vocês já sentiram, vocês já sabem as
di culdades que eu terei para sustentar isso. A a rmação que eu z agora foi que
loso a, arte - principalmente arte, porque geralmente é muito confundida!...
[frase incompleta]

Pierre Boulez, Structures I & II (Kontarsky/Kontarsky)


Ae Ithj

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Quando um artista produz a sua obra - Pollock: que sobe em cima de uma
tela e começa a respingar tintas nessa tela - produz um pensamento. E eu vou
mostrar [essa questão] para vocês e vocês vão entendê-la no percurso da aula.

Agora, eu abandono essa exposição ainda numa tecnologia - tecnologia de


aula. Abandono essa exposição... - e passo para um confronto: um confronto,
cujo território é o pensamento do Deleuze. É como se - no pensamento do
Deleuze - dois adversários se confrontassem! Esses dois lósofos que eu vou
colocar - e confrontar - chamam-se Bergson e Husserl. Husserl é alemão; Bergson
é francês. Eles nasceram mais ou menos na mesma época - por volta de 1860 -
não sei precisar: por ali! E morreram mais ou menos na mesma época - o Bergson
em 1941; o Husserl em 1939-40 - não sei exatamente.
Então, quando esses dois lósofos - ambos realmente lósofos - começaram
a produzir as suas loso as - e aqui a gente precisa compreender isso - o lósofo
é forçado a produzir a sua loso a pelo próprio pensamento. O pensamento se
sente forçado a pensar! Mas há também uma pressão do campo social. Uma
pressão do campo social - que produz uma ressonância. Eu não estou dizendo que
o lósofo é determinado pelo campo social - isso é uma idiotia! Ele não é
determinado pelo campo social coisíssima nenhuma! Mas, o campo social pode
pressioná-lo. Pressioná-lo - e não "produzir" o pensamento dele - é diferente!

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Então, no m do século XIX e no princípio do século XX uma questão muito


forte atravessava a loso a e a ciência: uma questão muito poderosa! E, agora,
vocês vão me permitir usar uma linguagem apropriada para esse momento, para
esses dois lósofos. Pode ser uma linguagem que dê uma pequena complicação
para vocês. Então, antes de eu começar a falar, eu vou colocar para vocês que a
palavra - qualquer palavra - traz nela uma ambiguidade essencial. Ou uma
equivocidade essencial. Então, às vezes, a gente usa uma palavra procurando uma
corrente de sentido - e às vezes a gente usa a mesma palavra numa outra corrente
de sentido. Então, o que aconteceu foi que, no m do século XIX, no começo do
XX havia uma questão pressionando os pensadores - que era a distância entre a
consciência e o mundo. A consciência como o órgão, como o instrumento
principal do pensador. E ela, a consciência, com a função de pensar o mundo que
estaria a sua frente. Então, a consciência de um lado - o mundo do outro.
O que acontecia naquele momento é que havia um abismo; uma separação
radical; uma separação imensa - entre a consciência e o mundo. A consciência
não conseguia atingir o mundo, e por isso - ela batia fotogra as do mundo. Não
estou exagerando! Então a consciência seria uma grande fotógrafa, reproduziria o
mundo: re-produziria o mundo - mas não seria capaz de mergulhar dentro dele.
Essa questão pressionou Bergson e Husserl: eles foram imensamente
pressionados por essa questão.
- Então, o que ambos vão querer fazer?
Aproximar a consciência do mundo.
Para car mais claro, eu vou mudar a palavra mundo para coisa.
Então, no momento em que Bergson e Husserl aparecem, a consciência e a
coisa - a consciência e esta mesa - estão separadas por um imenso abismo.
Forçando a consciência a produzir o que se chama - representações.
As representações são um fenômeno especulativo. Um fenômeno especular.
Um fenômeno de espelho. Ela representa - mas não penetra naquilo.
Husserl vai dar o seu grito de guerra; e Bergson vai dar o seu grito de guerra.
- Qual é a questão deles?
A aproximação [entre a] consciência [e as] coisas.
Husserl vai e diz: a consciência é sempre consciência de alguma coisa. Na tese
dele, ele já começou a aproximar a consciência das coisas. Então, a de nição de
consciência para o Husserl - de nição de nitiva e invariável é: "a consciência é
sempre consciência de alguma coisa".
E o Bergson, que tem a mesma questão, ou seja: aproximar a consciência das
coisas, diz: "a consciência é alguma coisa".
Então, nós temos essas duas linhas brotando... iluminando o princípio do
século XX. Uma linha que diz: a consciência é consciência de alguma coisa - e a
outra que diz: a consciência é alguma coisa.
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Husserl funda sua teoria da consciência através de uma propriedade, de uma


categoria que tem sua origem basicamente na Idade Média; depois ressoa no
século XIX - com um lósofo chamado Franz Brentano; e depois vai repercutir no
Husserl - que é a categoria de intencionalidade.
- O que quer dizer intencionalidade? O que Husserl quer dizer com
intencionalidade?
Ele quer dizer que a consciência é um ser relativo. Não é que a consciência
seja relativa hoje - e daqui a pouco não seja mais. Ele quer dizer que a essência da
consciência é a relação - e a relação com as coisas. Então, a consciência seria algo
que nunca estaria fechado em si mesmo; a consciência estaria sempre debruçada
em cima das coisas - por isso - consciência de alguma coisa. E esse princípio que o
Husserl vai colocar... - o princípio, a essência - chama-se intencionalidade.
Então, Husserl vai montar a doutrina da intencionalidade para sustentar sua
tese de que a consciência é uma abertura para o mundo.
Bergson não diz isso! Pressionado pela mesma questão - sem que se possa
a rmar que um conheceu a obra do outro. Se isso ocorreu, um não deu
importância para o outro: No máximo - se..., talvez..., existe o Bergson na
França...existe o Husserl na Alemanha..., (não é?)
Aluno: Isso parece a sincronicidade!...
Claudio: Isso que está acontecendo deles dizerem a mesma coisa? Alguma
coisa assim como o "espírito da época" - não se pode dizer assim? É! Mais na
frente eu vou mostrar para vocês uma categoria que eu vou chamar de ressonância
- que vai dar exatamente nessa questão que você colocou. É como se - numa
determinada época - ressoassem problemas semelhantes. É isso que permite
nascer - por exemplo - uma escola de pintura - a barroca - com as mesmas
questões: os pintores variam - mas mantêm as questões essenciais. Como no
Renascimento, e assim por diante...
Então, o Bergson não fala consciência de alguma coisa. Ele fala - a
consciência é alguma coisa. Bom. Vamos agora entrar nesses dois lósofos: dar
conta deles! Porque eu tenho a impressão que se nós dermos conta deles - desses
dois lósofos - eu me fortaleço mais no encadeamento das nossas aulas.
O Husserl faz a seguinte a rmação: (Atenção! - porque o solo losó co é um
solo escorregadio: às vezes a gente pensa que ouviu alguma coisa - mas não ouviu!
Ou deixa alguma coisa passar, que a gente não veri ca - não ouve! (Entendeu?) Ele
é um solo que escapa da gente! Eu posso dizer que o solo da loso a - isso traria
uma contrariedade para o Platão - é um solo móvel, um solo nômade, é como se
fosse um deserto, é como se fosse uma geleira, é como se fosse um mar - ele está
sempre em movimento! É um solo que está sempre em movimento, então você
tem que estar sempre refazendo seus campos conceituais. (Não sei se vocês
entenderam bem aqui). É como se o lósofo estivesse condenado à insônia
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permanente para refazer as suas práticas de conceituação - porque o solo não


para de se mover.
Então, o Husserl vai explicar o que ele chama de coisa. Coisa - para o Husserl
- é todo o universo. Então, o mundo, o universo, a coisa - para ele - é um negrume
absoluto! São as trevas. Este universo são trevas: as trevas mais absolutas!
E a consciência chega neste universo para iluminá-lo. Ela seria como um jato
de luz de uma lanterna, que viria iluminar a escuridão, a inércia escura das coisas.
Mas vejam bem: se o universo para o Husserl é trevas e a consciência é luz... -
Qual é a conclusão que se chega nesse solo escorregadio?
É que a consciência não é produto do universo; porque - se ele fosse produto
do universo - ela teria que ser escura, trevas!
Então, nessa loso a, a consciência não é produto deste universo. Isso que
eu acabei de mostrar para vocês é que o Husserl colocou a consciência num plano
de transcendência. Transcendência semelhante às essências platônicas! Porque a
gente não sabe de onde vem essa consciência. Talvez tenha tido a necessidade de
um Deus para fabricá-la - porque a consciência é luz e o universo é trevas!
- De onde vem, a nal, a consciência intencional - foco de luz do Husserl?
De outro lado, Bergson diz: - "O universo é luz, é linha de luz, é iluminura,
são raios permanentes em velocidade in nita de luz. E nesse universo de luz -
dentro desse universo de luz - aparecerá a consciência. Então, para o Bergson, a
consciência pressupõe o que se chama um plano de imanência.
- O que é um plano de imanência?
A consciência não é dual ao mundo. Ela está dentro dele - ela emerge dessas
luzes. Por isso, a consciência do Bergson e a consciência do Husserl têm uma
semelhança - porque a consciência do Husserl projeta luz; a consciência do
Bergson é luz. É luz! Mas acontece que a consciência do Bergson - que é luz - não
tem que iluminar mundo nenhum - porque o mundo é a própria luz. Então, nesse
universo do Bergson, tudo aquilo que existir é necessariamente iluminado;
enquanto que no universo do Husserl a única coisa que é iluminada é a
consciência.
Então, nós nos defrontamos com dois lósofos que trariam a mesma questão
- eles estariam pressionados pela mesma questão - a questão de explicar o que
seria a relação do pensamento com o mundo e o Bergson lança - eu estou
mudando a palavra consciência pela palavra pensamento! - o Bergson lança o
pensamento para dentro da luz. Chama-se "Plano de Imanência". Enquanto que o
Husserl coloca a consciência fora do Universo. Logo: existe um princípio de
transcendência na obra do Husserl.
Essa questão do princípio de transcendência eu não vou perseguir hoje, não.
Mas eu vou mostrar para vocês os três grandes princípios de transcendência que

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acontecem na loso a ocidental. E Deleuze diz: - "A transcendência é o maior


veneno do pensamento."
Então, o que eu estou dizendo do Husserl, eu acho que deu para
compreender com facilidade, porque a consciência husserliana não emerge
daquele plano de trevas - ela está separada dele. Enquanto que, para o Bergson, a
consciência vai emergir do plano de luz. Então, aqui, agora, é fácil: tornou-se
fácil... O Husserl, para explicar a consciência, produz um universo negro - de
trevas! E a consciência seria um rastro transcendente que jogaria luz dentro
daquele universo. Bergson coloca o universo de luz - e vai jogar a consciência ali
dentro. Vamos ver como:
Há, no pensamento jurídico, duas expressões bastante poderosas. Uma se
chama "de direito" e outra se chama "de fato" - que é mais ou menos o seguinte:
você dizer que algo existe de direito, e algo existe de fato.
- Qual seria a diferença fundamental?
Esse algo que existe de direito, mas não existe de fato - seria uma virtualidade;
enquanto que o que existe de fato - é real e atual.
A diferença de "de fato" e "de direito" - vamos dizer - é que este objeto existe
de fato. Ele, então, tem uma existência concreta, real e atual. E aquilo que existe
de direito não tem propriamente uma existência - é uma potência existencial; uma
virtualidade. Virtualidade é mais do que nada. A virtualidade é alguma coisa que já
está inscrita ali, mas - por algum motivo - não pode se tornar de fato.
Bergson diz que esta natureza nas suas origens - a palavra origem aqui pesa
um pouco! - é luz. Só luz! E a consciência já está dentro dela; mas não de fato - de
direito. Quando Bergson constrói o que eu chamei de Plano de Imanência, ele está
falando que este universo é constituído de luz - e a luz tem uma velocidade in nita.
Então, é a luz - numa velocidade in nita! Mas ele vai dar... - neste momento, eu
não vou explicar os motivos, senão nós faríamos um deslize muito grande... Ele
vai colocar luz - e matéria, imagem e movimento como sinônimos. São sinônimos!
Então, movimento, luz, matéria e imagem - são sinônimos; mas isso eu não vou
explicar hoje, (tá?)
Então, a gente já sabe de uma coisa: que nesse universo do Bergson nada
repousa; tudo está em movimento - e em movimento in nito!
E agora eu abandono, sobretudo, a noção de matéria - e passo para a noção
de imagem.
Ou seja: o universo do Bergson é um universo em que as imagens atravessam
umas às outras em velocidade in nita, pela eternidade afora. Elas não param de
atravessar umas às outras. E cada imagem dessas é um bloco de luz.
Então, vejam bem: um bloco de luz... e uma imagem, que também é um
bloco de luz. Esse bloco de luz atravessa o outro: não para; ele atravessa! Então,
as imagens do Bergson não têm o poder de reter ou deter as outras imagens - todas
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elas são translúcidas, no sentido de que são transparentes, são atravessadas. É


como se as imagens do Bergson fossem "fotógrafos frustrados" que batessem a
fotogra a - mas ela não se efetuasse, (certo?) Ou seja: cada imagem dessas recebe
a outra imagem; mas não é capaz de detê-la. Porque todas as imagens do mundo
bergsoniano - desse Plano de Imanência dele - são imagens translúcidas. Então -
por serem translúcidas - não detêm as outras; mas - por serem translúcidas - são
atravessadas pelas outras. E isso é o princípio da consciência. O princípio da
consciência - é ser penetrada por imagens!
Mas, como nesse plano de imanência do Bergson, as imagens são penetradas
[umas] pelas outras - esse é o princípio da consciência: as imagens entrarem em
nosso interior: naquelas imagens que estão ali. É esse o princípio dela! Mas
acontece que - quando a consciência recebe uma imagem - ela tem que deter
aquela imagem. No plano de imanência do Bergson, isso não pode acontecer -
porque todas as imagens são translúcidas. E sendo translúcidas, ao serem
penetradas pelas imagens, não as detêm - daí o nome consciência de direito. Ou
seja, exatamente como é uma consciência, ela recebe as imagens, mas não é
capaz de detê-las.
Aluno: Uma pessoa normal [inaudível] poder deter!...
Claudio: Poder deter: exatamente! Aí ca muito nítido que no Plano de
Imanência do Bergson as imagens são da consciência, porque elas recebem [essas
imagens], mas não [as] detêm. Por isso, elas são consciência DE DIREITO. Melhor
explicado: diz o Bergson - "O universo é esse processo de luz in nita. Mas, num
determinado momento desse universo - que é luz, matéria e imagem, (certo?) -
conforme eu falei para vocês, vão nascer os corpos, vão nascer as ações e vão
nascer as qualidades. Por isso, usarmos substantivo, verbo e adjetivo. Ou seja:
naquele Plano de Imanência - que era só luz - não havia corpos. Para que os
corpos apareçam - diz o Bergson - é necessário que [nesse universo de] luz, nessa
matéria uente, nesse turbilhão universal aconteça um pequeno resfriamento.
(Esse, que nos causa gripe (não é?) - pelo menos em mim!)
Então, é quando surge esse resfriamento - diz o Bergson - que os seres vivos
vão aparecer; e os seres vivos vão ser marcados por uma coisa de uma
originalidade excepcional - pela consciência de fato. E a consciência de fato do
Bergson, à diferença da consciência do Husserl, que é uma projeção de luz - é
uma tela de cinema: é um écran!
A função do écran é deter a luz. E, portanto, a consciência torna-se uma tela
que detém a luz que [chega], ou seja, a consciência do Bergson tem a capacidade
de cortar um pedaço do uxo in nito das luzes. E é exatamente com esse pedaço
que ela lida. Ou, melhor explicado: cada espécie que existe no Universo - a mosca,
o cachorro - cada uma delas recorta essa luz de uma maneira que lhe é própria -
chama-se mundo próprio. Ou seja: se entrar aqui uma barata, por exemplo - essa
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barata vai recortar a luz do universo de maneira diferente daquela que nós
recortamos. Então, para o Bergson, a consciência de fato é aquela que recebe luz,
mas ao invés dessa luz transpassá-la, a consciência detém essa luz.
Então, para o Bergson, a consciência de direito antecipa a consciência de fato.
E, para ele, não é necessário procurar a explicação do nascimento da consciência
numa transcendência qualquer, como fez o Husserl.
- De onde Husserl tirou a consciência?
Sem dúvida nenhuma, de Deus - como sempre!
Bergson não necessita de Deus para produzir a sua consciência. Mas, no
momento em que aparecem os corpos, no momento em que a vida se instala aqui
neste planeta - e a vida é singular: de uma singularidade imensa! -
imediatamente, ou seja: junto com ela nasce o écran - que detém a luz. Todo ser
vivo tem esse écran, essa capacidade de reter a luz que lhe interessa.

[ nal de ta]

O resto, o in nito de luz do universo, o indivíduo não apreende. Ele


apreende um pequeno ponto: recorta um pequeno ponto - como um
enquadramento em cinema. Ele enquadra e recorta aquilo - e para o resto da luz
ele é translúcido. O resto da luz ele não apreende. Isso se chama percepção.
Bergson nos mostra nitidamente que a percepção é necessariamente utilitária.
Ela está permanentemente a serviço daquele ser vivo. A percepção tem uma
existência única e exclusiva, interessada, utilitária, a serviço daquele ser!
- Por quê?
Porque a percepção é uma tela! A percepção apreende um determinado
movimento e - ao apreender esse movimento - ela vai ter que devolver movimento
para o universo.
- O que quer dizer "devolver movimento para o universo"?
Uma ameba se defronta com o movimento de elementos químicos, que ela
apreende pela percepção - e a ação da ameba é capturar esses elementos
químicos. Ou, então, a ameba apreende pela percepção a presença de um
predador - não sei qual é o predador da ameba! - e a ação é dar no pé: fugir! É
importante que vocês saibam que a ameba - um protozoário - na hora em que vai
capturar os alimentos, produz o que se chama "pseudópodes" - ela produz um
conjunto de órgãos que funciona apenas naquele momento da captura dos
alimentos; e depois desaparece.
- O que quer dizer isso?
Todo ser vivo tem um esquema dentro dele, chamado - esquema sensório-
motor. O esquema sensório-motor é necessário e participa de todo e qualquer ser
vivo. Antes do nascimento do vivo, os movimentos são ininterruptos e em

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velocidade in nita. Quando o ser vivo aparece, logo, quando aparece o esquema
sensório-motor, ele é constituído de três elementos, ou melhor: três imagens, ou
melhor: três luzes a percepção - que tem a capacidade de apreender os
movimentos que vêm de fora; a reação ou a ação - que responde àquilo com que a
percepção entrou em contato. A ação é uma espécie de prolongamento da
percepção, que apreende o que vem de fora. E entre a percepção e a ação nasce
um suntuoso elemento - o vivo! Nasce o que o Bergson chama de um pequeno
intervalo.
Se fôssemos compreender no sujeito humano - esse pequeno intervalo seria o
cérebro.
Que é o quê, exatamente? Que é o vivo - quando apreende o mundo que vem
de fora, os movimentos que vêm de fora; essa apreensão dos movimentos que
vêm de fora não se prolonga imediatamente na reação - passam pelo pequeno
intervalo. E o pequeno intervalo - que se fôssemos nós, poderia ser o cérebro -
tem como função decidir qual o movimento de resposta que vai ser dado. Por isso,
esse pequeno intervalo produz o que não havia no primeiro sistema de imagens
(que eu expliquei para vocês) - que se chama hesitação. A vida introduz a
hesitação! Não é dúvida, hein? - é hesitação. Ela hesita [sobre] qual caminho
seguir - por isso, a vida vai trazer uma ralentação do movimento. Ralentar o
movimento.

Rodolphe Burger - Cheval-Mouvement


Chaine Vidéo Rodolphe Burger

A vida introduz dentro do universo o movimento ralentado - exatamente


porque essa hesitação do pequeno intervalo faz com que as respostas dadas pela
reação - que podem ser múltiplas - escolha [apenas] uma. Isso é o que se chama -
usando a antropologia - a tragédia do homem, porque o sonho do vivo é agir
dentro de todos os seus possíveis. Vamos dizer que nós recebemos o movimento
de fora e temos 50 mil possibilidades de resposta a esse movimento - nós damos
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uma só; e 49.999 cam perdidas e sonhadas por nós. Talvez - seja essa a causa das
nossas angústias!...

[intervalo para o café]

É evidente que eu sei a di culdade da exposição que eu z - eu sei que [o que


eu falei] é muito difícil! Nessa exposição difícil, que eu z, - sem a menor
preocupação -, eu a rmei que o nascimento do vivo pressupõe o surgimento de
um pequeno intervalo. E que antes dele, do nascimento do vivo, esse pequeno
intervalo não existia. Então, eu posso dizer para vocês, com a maior facilidade,
que o Bergson constrói na obra dele dois sistemas de imagens. (Vamos usar
"falsamente", não é? Bergson não usaria assim!)
No primeiro sistema de imagens não há intervalo. No segundo sistema de
imagens, há intervalo. Então, para Bergson, o primeiro sistema de imagem é
acentrado e de direções in nitas - esse é o primeiro sistema. Ele é acentrado - ele
não tem centro e tem múltiplas direções.
O segundo sistema - onde emergiu o intervalo - aparece um centro de
indeterminação. Esse centro de indeterminação é o vivo. Ele é um centro hesitante;
e, como ele é hesitante, ele é um centro de indeterminação.
Então eu vou fazer isso: eu vou manter a idéia de que o Bergson construiu
dois sistemas de imagens. O que eu peço para vocês é para associarem, ao
primeiro sistema de imagens, a noção de acentrado; e ao segundo sistema de
imagens, a noção de centros indeterminados.
- Ficou bem assim?
Centros indeterminados e acentrado.
Ao primeiro sistema - acentrado e de múltiplas direções - eu chamarei, de
um modo musical - de espaço liso; de um modo histórico - de espaço nômade; de
uma maneira ainda mais musical - de tempo não pulsado.
Ao outro sistema - onde está o intervalo e onde aparecem os centros de
indeterminação - eu vou chamar de espaço estriado, tempo pulsado e espaço
sedentário.
E assim, nós poderemos comparar o primeiro sistema de imagens ao imenso
oceano, ao imenso deserto - que não têm centros e têm múltiplas direções.
Então, é exatamente isso que vai fundamentar minha aula para vocês. É um
momento em que eu tenho que me garantir de que aquilo que eu estou dizendo
está sendo compreendido.
Bergson constrói dois sistemas de imagens - num deles, coloca um intervalo;
no outro, não! No primeiro, não há intervalo. E não há consciência de fato - só há
de direito. No segundo, há consciência de fato.

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Na verdade, esses dois sistemas são um só. O segundo sistema é um sub


conjunto, num imenso conjunto - pra mostrar para vocês que não há dualismo no
pensamento bergsoniano. Então, nós teríamos de um lado, o pequeno intervalo -
que faz uma modi cação no movimento; e de outro lado, o acentramento. Eu
também posso chamar o primeiro sistema de imagem do Bergson de caos. E ai,
mostrar para vocês que o caos não é propriamente desordem. O que eu estou
chamando de caos é apenas velocidade in nita. (Mas agora, a partir disso que eu
expliquei para vocês, eu começo a sentir necessidade de avolumar, de aumentar a
potência do que eu estou dizendo.)
Esse primeiro sistema de imagem do Bergson - que eu identi quei ao caos -
eu o chamei de caos, em virtude de que, nele, tudo [está em] velocidade in nita e
tudo está misturado - como se houvesse uma mistura de tudo com tudo. Nada se
distingue, nada ressalta: é uma mistura total dos componentes desse primeiro
sistema de imagens. Isso daí me possibilita uma investida no neo-platonismo -
que nos trará uma maior potência de entendimento. Exatamente a proposta do
Espinosa: sempre aumentar a potência do entendimento!
Os neo-platônicos, à diferença do pensamento religioso, davam à idéia de
eternidade uma noção completamente original - porque o pensamento religioso,
quando fala de eternidade, diz que a eternidade é uma existência que se prolonga
pelo in nito afora e é aquilo onde não há mudança. Então, quando você ouve o
pensamento religioso falando de eternidade, ele vai nos dizer que na eternidade
as existências se prolongam ao in nito. Quem existir - existe in nitamente. E na
eternidade não haveria mudança.
A posição neoplatônica é que a eternidade é a mistura: é onde tudo está
misturado - nada está distinguido. (Eu acho que isso daqui vai dar um ponto de
partida muito poderoso pra nós...)
Para o neo-platônico, na eternidade não existe tempo. Na eternidade o
tempo não existe! (Atenção para o que eu vou dizer!) Ele, o tempo, não existe
atualmente.
- O que quer dizer atualmente?
[Claudio faz um gesto qualquer e diz:]
Olhem a minha mão: eu faço este gesto - esse gesto se atualizou! [Claudio
vai modi cando os gestos...] Mas eu poderia fazer este aqui, este aqui, este [outro]
aqui... uma in nitude de gestos... Então, um se atualiza - e os outros são virtuais.
Então, para os neo-platônicos o tempo é uma virtualidade na eternidade.
Como? Ele é virtual porque na eternidade, as dimensões do tempo ainda não se
distinguem - elas estão misturadas. Os latinos aproveitaram isso e deram à noção
de eternidade o nome de complicatio.
- O que é complicatio?

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Complicatio quer dizer que tudo que está na eternidade está complicado, co-
implicado: eles se co-implicam, mas não se distinguem, não se ressaltam. Ou
seja: na eternidade há tempo - mas tempo virtual. Porque não há ainda essa
distinção, por exemplo - em passado, presente e futuro - que é nossa! Lá, na
eternidade, [todas essas dimensões] estão inteiramente misturadas. Então, é essa
a noção que o neoplatônico nos dá de eternidade. Fazendo essa noção crescer,
depois, com a noção de complicatio - aquilo que é eterno é inteiramente
complicado. E isso não é difícil de entender. Ainda é neoplatônico:
Nós, os vivos, não paramos de mergulhar na eternidade. No sono, quando
nós dormimos, nós mergulhamos na eternidade. No sono - não é no sonho! No
sono, tudo perde a nitidez: tudo se mistura. Por isso os amantes do cinema noir -
e eu estou vendo uma daqui! - não se surpreendem quando Humphey Bogard leva
uma coronhada na cabeça, e ao acordar diz: "onde estou"? Porque ele perdeu toda
a referência. Na eternidade, no caos - que é o complicatio - o que não existe é
referência, não há ponto de referência.
Este momento é um momento provavelmente sublime - como se diz sublime
em Kant (na frente eu vou explicar a vocês o que é...) - para se explicar o
nascimento do tempo. Ou seja: tornar o tempo atual, porque na eternidade o
tempo é virtual.
Tornar o tempo atual é distinguir as suas dimensões. Então, vejam o que eu
vou dizer:
É falso nós pensarmos que as únicas dimensões que o tempo tem são
passado, presente e futuro. Não! Passado, presente e futuro são as maneiras como
o tempo se distinguiu para nós. Como essas dimensões se tornaram distintas -
como elas foram arrancadas da eternidade. Por exemplo: se vocês acompanharem
de um lado a obra de Proust (e eu vou mostrar) - a obra literária de Proust; e se,
de outro lado, vocês acompanharem a obra cinematográ ca do Visconti, vocês
vão encontrar dimensões de tempo que não existem nessa noção de tempo que
nós temos - porque a nossa subjetividade materializada só pensa em termos de
passado, presente e futuro.
Vocês encontram no Visconti uma noção de tempo muito clara, que ele
chama de - "tarde demais". Mas não é só isso! No Proust, vocês vão encontrar uma
dimensão do tempo que ele chama de "tempo redescoberto". Então, quando nós
zermos esse procedimento - que é o procedimento mais grave da nossa aula; que
eu falei que seria sempre uma aula de pensamento, corpo e tempo - quando nós
formos mergulhar na eternidade pra de lá arrancar o tempo, quem faz essa prática
é necessariamente o artista. É necessariamente o pensamento. Só o pensamento
pode mergulhar no caos e arrancar de lá as dimensões que nele estão misturadas.
Por isso vocês encontram no cinema do Visconti, ou no cinema do
Antonioni, ou no cinema do Cassavetes, ou no cinema do Godard, vocês
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encontram distinções de tempo inteiramente originais. O tempo pressupõe o


pensamento. Sem o pensamento - o tempo está virtual nesse caos que se chama
eternidade.
Neste instante, eu vou-me servir de um pensador de língua inglesa do século
XVIII - Hume, escocês - para fazer determinadas passagens, dentro de certos
limites: eu vou conter o meu discurso!
- O que eu quero dizer com conter?
É que se eu não zer uma contenção no meu discurso, ele se esparrama. Ele
se esparrama numa velocidade ilimitada - ao ponto de se tornar o primeiro
sistema de imagens do Bergson. Eu tenho que fazer uma contenção no meu
discurso - da mesma forma que, com uma garrafa, nós contemos os uidos do
vinho. É a mesma coisa!
A nossa questão agora - já que eu levantei a ideia de eternidade - que eu
identi quei à complicatio; que eu levantei a ideia de Caos - que eu também
identi quei à eternidade... Vejam bem:
Caos igual à eternidade. Então, a produção do tempo se origina na eternidade.
Ou seja, é da eternidade que o tempo vai sair.
Momento terrível de difícil - que eu terei que fazer todos os trabalhos na
exposição da aula, para que haja a possibilidade de vocês compreenderem. Eu
usarei qualquer recurso: o meu objetivo é que vocês compreendam. Nós não
temos muito tempo, nós temos que seguir, eu disse isso para vocês: que a aula
que eu dou é ralentada, ela é lenta - mas entre as aulas a velocidade é absoluta.
Entre as aulas é uma velocidade bergsoniana!
- O que eu quero dizer com isso?
É que de uma aula para outra eu já passo de uma velocidade assustadora e
isso então me leva, me força a dar a vocês os meios de entender os procedimentos
que irão aparecer. Muito bem!
A ideia de eternidade vai car fácil - ao ser identi cada a complicatio e a
caos; ou seja, a eternidade é onde tudo está misturado. Usem a expressão co-
implicado: tudo se co-implica. É a melhor expressão! para vocês compreenderem
o que vier em seguida.
Mas, se eu explico a eternidade, eu tenho que necessariamente explicar o
nascimento do Tempo. Se eu falo em eternidade; se eu tenho a ousadia de nessa
loso a tocar na eternidade, falar sobre a eternidade, de imediato eu tenho que
falar sobre o que é o nascimento do tempo. Então eu vou usar essa noção de
eternidade - já de nitiva - complicatio/co- implicação. E quando eu introduzir - e
eu estou introduzindo! - a noção de nascimento do tempo, eu vou lançar a
categoria chamada contemplação, que inicialmente não resolve nada, mas agora o
nosso procedimento é desenlaçado (como Aristóteles coloca na lógica dele).

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10/07/2017 Aula 2 – 18/01/1995 – O solo nômade da filosofia: uma imagem do pensamento

Nós vamos pensar a eternidade, vamos pensar a contemplação, vamos


pensar o tempo, mas não vamos enlaçá-los, porque se quisermos enlaçá-los, nós -
literalmente - "dançamos". (Certo?) Vamos pegar cada conceito isolado...
Evidentemente isso é arbitrário, porque eles nunca estão assim. Mas é o
pedagógico: é a Paidéia; é o meio pelo qual nós vamos chegar ao entendimento.
Então, vocês vejam que é diferente a prática do pensamento e a prática do
estudo, da prática da pedagogia. O pensamento tem que fazer voltas; retornos;
"outra volta do parafuso" - tipo Henry James; pra poder dar conta do que ele está
produzindo.
Noção de eternidade, complicatio e caos: tudo está misturado. Exemplo
siológico: o sono. No sono - nós estamos na eternidade. (Eu não disse no sonho.
A questão do surrealista é o sonho. A eternidade não é questão do surrealista!) E,
do outro lado, a noção de contemplação!
Essa noção de contemplação se origina na Grécia, nos lósofos pré-
socráticos. Existe até uma anedota irritante - pra nós que estudamos loso a: que
[ao andar], olhando para o céu, Tales de Mileto meteu o pé numa poça d'água.
Isso é o lósofo: aquele que se desterritorializa!
Então, a noção de contemplação se origina em duas linhas: numa linha
cientí ca ou para-cientí ca; e numa linha religiosa.
A linha cientí ca ou para-cientí ca é o lósofo pré-socrático - que costuma
contemplar o céu para falar sobre eclipses, movimentos de meteoros, movimentos
de estrelas. .. Então, ele introduz na sua prática existencial o processo de
contemplação - o que não deixa de ser uma coisa fantástica - porque os homens são
musculares, alimentares, orgânicos: eles vivem correndo pra comer não sei o quê,
(não é?)
E aqui os pré-socráticos produziram um corpo... um tipo de corpo do "ideal
do Kelvin Klein": um corpo anoréxico, bem anoréxico - para poder contemplar com
alegria. E eles contemplavam as estrelas: é a primeira contemplação.
A segunda contemplação é religiosa. Vocês podem ver que a palavra
contemplação já dá conta disso: é templária, (não é?): é templo. É a contemplação
das estátuas religiosas - quando não se faz outra coisa senão se embebedar das
visões que se tem daqueles objetos tidos como religiosos.
Essas duas contemplações se juntaram na alma do Platão, e na junção dessas
duas contemplações, o Platão produziu a terceira contemplação - que é a
contemplação propriamente losó ca.
- O que é a contemplação propriamente losó ca?
Segundo Platão, o homem é um ser dotado de alma; e a alma é constituída
de três partes: uma parte é a sensualidade; a outra é a virtude; e a terceira é a
razão. Esta terceira parte da alma - a razão - é a parte propriamente imortal. E a
razão é contemplativa. Onde Platão vai utilizar uma expressão muito bonita -
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10/07/2017 Aula 2 – 18/01/1995 – O solo nômade da filosofia: uma imagem do pensamento

Platão era lindíssimo! - que essa [parte da] alma - a razão - tem um olhar noético:
ela contempla as essências. Ou seja: a contemplação das essências - para Platão -
é a obtenção da verdade. Mas isso não pode ser feito pelo corpo, por isso pode-se
dizer que Platão é um lósofo que pede a morte.
Aluno: Da outra vez você falou que a razão é o pensamento a serviço do
orgânico.
Claudio: Logo, Platão é um pensador a serviço do orgânico! É! A conclusão é
essa! E é isso que eu estou dizendo!
Aluno: A razão se baseia no conhecimento e na moral!
Claudio: E na moral! Ela se baseia no conhecimento e na moral. E toda essa
colocação que o Platão está fazendo, ao distinguir a alma em três partes - colocar
a razão como a parte superior da alma e dar à razão uma imortalidade; e dizer que
a razão tem um olhar - que não é um olhar da sensibilidade, mas um olhar
noético, o olhar da alma, o olhar espiritual; e que esse olhar contempla as
essências; e que as essências são invisíveis ao olhar físico, mas visíveis ao olhar
espiritual - ele está constituindo toda uma teoria do conhecimento. Ele está
construindo uma ontologia e toda uma teoria do conhecimento - inteiramente
orgânica.
Essas três posições da contemplação platônica vão aparecer no mundo
plotiniano: no mundo neoplatônico. Mas o mundo neoplatônico - aqui acontece
uma coisa lindíssima, de uma beleza!... Porque a natureza é feita de uxos - uxos
que não param de percorrer e se entrecruzar - algumas vezes poderosos, algumas
vezes enfraquecidos. Lá - na época do Plotino - percorria um uxo do animismo.
É a mesma coisa que eu dizer para vocês que num determinado instante um
estranho uxo - chamado uxo da evolução - percorria este planeta. De outro
lado, outro estranho uxo - chamado uxo da cognição - percorria o planeta.
Quando os dois se encontraram - nasceu a vida. Quer dizer: a vida é muito melhor
explicada por uxos do que por átomos!
Então, lá no Plotino, percorria o uxo do animismo e do Platão vinha o uxo
da contemplação. Esses dois uxos se encontram. E o Plotino diz "contemplação
animista". Tudo o que existe na natureza contempla - é quase um pensamento
leibniziano. A natureza é constituída de pequenos pontos, pequenos pontos
luminosos, olhares - que ao contemplar produzem modi cações.
- Em quem?
Neles próprios!
Então, o que importa aqui não é nem mesmo - o que é o sonho de qualquer
professor - embelezar ou tornar sedu... [...]

[Fim de ta]

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10/07/2017 Aula 2 – 18/01/1995 – O solo nômade da filosofia: uma imagem do pensamento

[...] compreenda essa passagem de dois uxos: o uxo da contemplação e o


uxo do animismo.
Animismo quer dizer que tudo o que existe tem uma animação própria. (Um
rochedo, a lama, a água). O animismo é muito próximo do vitalismo do Bergson.
Tudo é impregnado de vida. Essa noção de animismo é o componente mais
poderoso da biologia moderna, da biologia molecular, pois elas vão constituir aí
todo o seu campo de saber.

 4 de dezembro de 2016
 animismo, Antonin Artaud, Aristóteles, Baruch Espinosa, Carmelo Bene, Curso de Verão:
Filoso a e Arte, David Hume, Edmund Husserl, Egon Schiele, Francis Bacon, Friedrich
Nietzsche, Henri Bergson, Henry James, História da Filoso a, Humphey Bogard, Imagem do
Pensamento, Immanuel Kant, Jean-Luc Godard, John Cassavetes, Luchino Visconti, Marcel
Proust, Método Formal e Re exivo, Michelangelo Antonioni, Neo-platonismo, Pierre Boulez,
Platão, Plotino, Timeu, William Shakespeare

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2 Responses

1.

Fui aluno do Cláudio no seu último curso na Uerj. Eu estava começando na loso a.
Recentemente defendi minha tese falando de “Caosmofagia”. E agora, “ouvir” o
Cláudio falar do caos como eternidade, como virtualidade, como tempo ilimitado,
velocidades in nitas que são capturadas é encontrar pontos de ressonância do
pensamento… reverberações do pensamento dele em mim.

Márcio Sales
7 de abril de 2013
Responder
2.

Gostaria de saber mais sobre essa interpretação losó ca e como posso fazer essa
comparação de forma simpli cada para os alunos compreenderem melhor.

Tereza Maria
15 de maio de 2013
Responder

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