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TEORIA DA

LITERATURA I

''REVISITADA''
Magaly Trindade Gonçalves
Zina C. Bellodi
Prefácio
Ben dito Nunes

A principal tese implícita a este ensaio é a pluralidade da


Teoria da Literatura. Estamos diante do conceito de uma
disciplina desdobrável no correr do tempo, como o índice já
nos mostra; não há senão várias Teorias da Literatura. Além
disso, essas teorias estão conectadas com uma certa prática e
não existem sem ela. E, mais ainda, como veremos a seguir,
a chamada Teoria da Literatura tem natureza semelhante a
um paradoxo lógico.
Antes conhecimento interpretativo que ciência, antes
interpretação que explicação, antes compreensão de um
objeto, que o constitui ao ser historicamente pensado, a
Teoria da Literatura dimensiona conceptualmente a exis-
tência do literário. Mas essa existência só toma corpo por
meio da prática de leitura. Literatura rima com leitura. E
por mais que varie a natureza da matéria do ato de ler, seja
visual ou tátil, como a silente decifração Braille e a capta-
ção horizontal articuladora das palavras no espaço linear
ela página, seja ainda o luminoso e vertical desfile das li-
nhas numa tela de computador, é esse mesmo ato que con-
fe re existência ao literário.
Livro e tela não rimam, exceto no que tange à vida
mporal de ambos, compartida pela própria Literatura. A

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1•I l t1 I. I ·r·:tlu r·a, não é separável do tempo, como
1111 11111 11 1 1 d • :1 111 •ncc Teoria da Literatura "revisitada ",
•I t\ I 'I 1 ti 'I 'r·i 11 la I onçalves e Zina C. Bellodi, escrito,
j 111 11 lc 1 in ·!inação de uma época recamada por tantas
I 1111 ,I, 11 0 passado e no presente, e que passará para os ou- Introdução
Ir 1. l:l lll que a puderem ler, o ensinamento básico da
hi.·lü r·i i da de do literário.
onseqüentemente, a Teoria da Literatura é inseparável
I · sua H istória, do mesmo modo que uma tal História une,
d maneira indestrinçável, as obras e suas críticas, num pro- A arte, objeto de indagações desde os pri~eiros gran-
ce so de acolhida ou recepção por parte dos leitores, o qual, des pensadores gregos, tem intrigado a h~mamdade cons-
por sua vez, remonta a um mais amplo confronto entre tra- tantemente. Discute-se sua natureza, multas vezes em con-:
dição oral- de canto ou narrativa, com os seus ritmos de fronto com a da ciência e da Filosofia. A razão parece estar
elocução e participação coletiva- e a pauta privada da escri- no fato de que a arte, de alguma forma, suscita a ques~ão
ta, individualmente executada por autores e interpretada do conhecimento, como acontece com as outras duas, am-
por leitores. E aí teremos uma dialética extensiva que une e da que cada uma siga uma rota que lhe é específica.
separa autor, obra e leitor em distintos níveis, individual e Não é de espantar que Luigi Pareyson, p~r exempl~,
social, no balanço conflitivo e conciliador de uma só Histó- assente sua teoria básica nas três funções espeCificas da LI-
ria, possibilitando momentos de criação e crítica, de cons- te ratura- um" conhecer " , um (( expnmu
. . '" e um ''fazer " 1 · o
trução e desconstrução teóricas do que foi criado. ponto de convergência entre a arte, a Literatura inclusive, e
É uma tal dialética que permite "revisitações" conceptu- outras formas do pensamento humano começa provavel-
ais da Teoria da Literatura como a presente, e que nelas pos- mente na questão do conhecimento. Aristóteles,. no ~apítu­
sibilita o surto de uma lógica semelhante à do paradoxo, l IV da Poética, relaciona a Literatura com a mzmests, mas,
qual seja, o fato de que o teorizador da Literatura é, ao mes- I go em seguida, estabelece esta :rzim_esis como ~~ process.o
mo tempo, o seu executor prático, aquele que só pode pen- I conhecimento. Ele afirma pnmeuo que a at1v1dade ml-
sá-la conceptualmente, enquanto também a produz como rn ética corresponde a uma tendência instintiva do homem e
escrita singular enquadrável num gênero literário. É o para- qu , exatamente por isso, é uma atividade prazerosa:
doxo do enquadramento do teórico pelo prático, do genéri- (... )é o q ue acontece na experiência: nós contem-
co pelo individual singularizado, único. plamos com prazer as imagens mais :x~tas daquelas
mesmas coisas que olhamos com repugnanoa, por exem-
Belém, julho de 2004

1. 1uigi Pareyson em 196 6 fala da obra com o: ~m " ex primi~', um "conhecer"


n 11111 " fc z r" em sua obra Os problemas da estettca, tradu çao. de M arr a H e l e~
1111 N ry arcez, São Paulo, Martins Fontes, 1984. [O orrgmal: I Problem1
dt •II'<·~ L •ti ~~ Mi lano, 1966 ]

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I p io, [as representações de] animais ferozes e [d e] cadá-
veres. Causa é que o aprender não só muito apraz aos
filósofos, mas também, igualmente, aos demais ho-
À primeira vista, essa colocação está apenas a deslocar a
11'1 da Filosofia e, mais ainda, da ciência, em termos de
onhecimento, o que pode sugerir um juízo de valor. Ocor-
mens, se bem que menos participem dele. Efetivamen-
te, ta l é o motivo por que se deleitam perante as ima- 1· •, entretanto, que, exatamente por ser o terceiro termo
gens: olhando-as, aprendem e disco rrem sobre o que n ·s a cadeia de conhecimento, pelo menos em aparência, a
seja cada uma delas, [e dirão], por exe mplo, "este é tal " . lt'CC tem a seu alcance potencialidades que lhe permitem
Porque, se suceder que algu ém não tenha visto o origi -
1tingir fatos que fogem ao âmbito dos outros termos .
nal, nenhum prazer lhe advirá da imagem, como imita-
da, mas tão-somente da execução, da cor ou qualquer O tipo de relação que se estabelece entre o artista e a
outra causa da mesma espécie 2 •
·xperiência é, assim, particular, pois "( ... ) o seu trabalho
Observa-se que, desde o pensamento grego, pensa-se ·specífico não é de investigar lacunas do saber ne~ o de
na arte, de alguma forma, em relação com o conhecimen- I ·monstrar verdades objetivas, mas de explorar cnadora-
to. Em seu texto- "Ciência, Filosofia e Arte", Pedro Lyra m ·nte todas as potencialidades expressivas do seu objeto
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parte da ciência como aquela que"( ... ) se pretende a forma . .. )" • Pode-se ainda entender a especificidade da ativida-
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de conhecimento por excelência ( ... )" , passa pela Filosofia 1 • artística, levando-se em conta a faculdade humana que
que"( ... ) não se pretende o saber, mas apenas uma paixão lheé mais significativa: "É que, enquanto o cientista traba-
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pelo saber ( ... )" a sede do saber por si mesma, sem a preo- 1h::t basicamente com a experimentação e o filósofo com a
cupação em comprovar uma teoria, caminhando para a ·s peculação, o artista usa basicamente a imaginação: o seu
arte que"( ... ) não se propõe como um conhecimento, mas , azer e um cnar . . .)"7.
/' 1 • (

apenas como um fazer (tecne == técnica, em grego), uma


Tudo isto já suscita problemas que são específicos da
prática, uma atividade criativa que apenas implica um co-
5 I:j losofia da Arte, na medida em que coloca um dos fatores
nhecimento sobre o objeto desse fazer" •
h:\ icos que determinam a produção do artista, no seu as-
p ·cto de forma de conhecimento, o que traz à baila uma
· ~ ri e de questões:
2. Ari stóteles- Poética, tradução, prefácio, introdução, comentário e apêndi-
ce de Eudoro de Souza, Porto Alegre, Globo, 1966, Capítulo IV, p. 71. Gri fo Qual a relação entre Arte e Realidade? Pode-se fa-
nosso . Esta tradução também foi publicada pela Imprensa Naci onal- Casa da lar num co nhecimento específico, alca nçado só por in-
Moeda, Série Universitária, Clássicos de Filosofia, e em 2003 estava em sua term édio da Arte, em oposição ao conhecimento obje-
7ª edição . t ivo d a ciência e da filosofi a? Qual o nexo existe nte
Indicamos, também, as seguintes traduções: Arte retórica e arte poética, ent:e a atividade artística e os diferentes valores, prin-
Introdu ção e notas de Jea n Voilquin e Jean Capelle, tradução de Antônio Pin-
cipalm ente os morais e os reli giosos? .o .e qu e man eir.a
to de Carvalho, São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1964 e A poética clássi-
ca : Aristóteles, Horácio, Longino, Introdução por Roberto de O liveira Bran- essa at ividad e se relaciona co m a atrv rd ade produti-
dão, tradução de Jai me Bruna, São Paulo, Cultrix/ EDUSP, 1981. va, so b o aspecto da t écni ca? Quais são, fi~al~ente,
3. Pedro Lyra - "Ciência, Filosofia e Arte" in Sonia Sa lomão Kh éde (coord.)- as co nexões da Arte co m a sociedade, a hrsto rr a e a
Os contrapontos da Literatura - Arte, Ciência e Filosofi a, Petrópo lis, Vozes,
1984, p.11.
4. Pedro Lyra- O.C., p. 13 . lt. l't•dro Lyra - O.C., p. 15.
5. Pedro Lyra - O .C., p. 15. 1. l'( •dro Lyra- O .C. , p. 15-1 6.

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cultura? Eis os mais relevantes prob lemas da Fil osofia 1 ·pr duzidas estejam relacionadas às práticas ligadas à ma-
da Arte (. .. )8 . l' ia. egundo se supõe, nossos ancestrais pré-históricos pin-
A arte não se resume ao seu aspecto cognitivo, já que l:lv:un essas figuras acreditando que, dessa forma, adqui-
seu efeito mais notável relaciona-se à produção de um pra- ri·un uma espécie de poder sobre as representações. Pin-
zer. Esta junção do aspecto cognitivo com o prazeroso é o tando animais poderiam assumir, sobre eles, poder e, con-
que transforma a arte numa atividade também lúdica, e é ,· ' lÜentemente, caçá-los com sucesso.
por meio do prazer lúdico que se define a especificidade do O fato de os primitivos provavelmente pintarem para
conhecimento na arte. Tudo isto ocorre porque, na arte, 11
:1prisionar" alguma coisa (captar alguma coisa), portanto,
tudo se funde numa forma específica de lidar com o pro- to m sentido estritamente utilitário, não nos impede de
blema humano. É este aspecto que unifica idéia e prazer na imaginar a possibilidade de o gesto estar também respon-
obra, reunidos num processo de humanização de toda nossa d •ndo a uma necessidade artística, de criação. Também
experiência. É curioso que um dos grandes ensaios do Pro- p >d mos supor que o homem primitivo contasse histórias,
fessor Antonio Candido esteja voltado exatamente para o woduzisse narrativa oral, o que ocorre hoje, ainda, com
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problema do papel humanizador da arte • Como diz Pedro grupos culturalmente primitivos, embora isto seja cada vez
Lyra"( ... ) a obra de arte se origina de um problema huma- mais raro. O índio brasileiro, por exemplo, pode não es-
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no e se destina à humanização do universo" • J' ·ver, mas conta histórias. Estes dois casos, de pintura e
Se acompanharmos o processo de evolução do ho- I · Literatura oral, podem ter tido relação com práticas re-
mem, partindo dos vestígios pré-históricos até nossos dias, ligi as ou mágicas. Os relatos orais incluíam uma cosmo-
perceberemos um caminhar contínuo, um constante pro- go nia que se tentava transmitir de geração para geração.
cesso de mutação, desde formas primitivas de pintura As pinturas "capturavam" animais. Eis, contudo, a grande
até os requintes do Pós-Modernismo. pt tão que se nos apresenta: seria essa motivação utilitá-
f'Í, único fator que levava a tais criações? Ou existiria ne-
É extremamente instigante a questão da manifestação
lns a resposta a necessidades outras da natureza huma-
estética nos primórdios da humanidade. Uma das coisas
11 :1 em que delas o homem tivesse clara consciência? Po-
que vêm à mente em relação a isso são as primeiras formas
1 ·mos perfeitamente imaginar que o impulso artístico já
visíveis (documentadas) do que consideramos atividade
· i tisse então.
artística, já na Pré-história. A primeira idéia que normal-
mente se apresenta é das pinturas primitivas de animais em Em determinado período histórico (por volta do sécu-
cavernas do Sul da Europa. Imagina-se que as figuras ali lo VI a.C.) os gregos intensificaram seu questionamento
t l:t natureza, do mundo e do homem. Foi quando os pri-
ll l ·i r s filósofos (físicos) tentaram explicar o real a partir
U. 13 nedito Nunes -Introdução à Filosofia da Arte, São Paulo, Ática, 1989, p. 16. t lt· suas possíveis origens. Começaram, assim, os primeiros
li . ccl ., Ed itora Buriti, em colaboração com a USP, s/d]
•1 . f. An tonio Cand ido - "Direitos humanos e Literatura " in Direitos h uma-
p,t :1 11 I estudos científicos, certamente estimulados pela
til 11 , .. ,', o Pil ulo, Brasil iense, 1989, p. 108-126. llri os idade instintiva do homem pelos processos que pre-
IO, I',H iro l yt'<l - . ., p. 18.

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sidem a natureza. São as primeiras tentativas, afinal, de vi- mo tempo em que, em outras obras, procura penetrar os
sualizar e explicitar todos os fenômenos que nos cercam. mistérios da natureza, dentro das possibilidades que a épo-
Com os sofistas, no século V a.C., apesar das críticas a lhe proporcionava. Seu trabalho, portanto, foi científi-
que marcaram seu trabalho, surgem as primeiras conside- ·o, mas também voltado para os problemas de estética.
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rações que, pelo seu caráter reflexivo, indicam a Filosofia. É assim que o Professor Benedito Nunes coloca a
Com Sócrates (470-399 a.C.) começam a ser intensa- ques tão do surgimento da ciência e da arte, uma preocupa-
mente estabelecidas as questões morais, políticas e sociais. da com a natureza do real, a outra instigada a representá-lo
E é Sócrates quem, em função de todas as outras preocupa- , ob as mais diversas formas, mas numa atividade que é es-
ções, voltado para todos os assuntos humanos, coloca sis- l'l' ncialmente de criação, e não mera reprodução, pelo me-
li s para Aristóteles. O questionamento da natureza da
tematicamente a questão da arte. É o que o leva, também,
a questionar o valor da Literatura, principalmente na sua :Ir-te parece, assim, algo posterior às primeiras colocações
relação com o mundo visível, o mundo das idéias e os valo- i ·ntíficas e, ao longo dos séculos, ele não terá, pelo menos
res morais. tté o Romantismo, um desenvolvimento homogêneo.

Platão (428 ou 427-348 ou 347 a.C.), n'A República, O que caracteriza a idéia que Aristóteles tem da arte, da
coloca em cena a discussão, presidida por Sócrates, sobre l.iteratura, e que o distingue da posição socrático-platônica,
questões básicas, principalmente a relação entre a arte e o nã é uma simples questão de aceitar ou condenar a mani-
real. Nessa obra, a arte é "condenada" porque seu papel é re- ( •s tação estética. É fundamental observarmos que Platão
produzir o real, e este é, já de si, uma cópia (imperfeita) do · loca suas idéias sobre a arte em função de toda sua Filoso-
mundo das idéias. A questão platônica, entretanto, não é lh e, principalmente, como conseqüência de sua específica
I · ria metafísica. Se o mundo real é, já de si, cópia imperfei-
tão simples como pode parecer, e o importante é que, na
própria condenação da arte está o reconhecimento de sua t:l das verdades essenciais, a arte, ao .imitá-lo, está dupla-

relação com o real, mesmo que este seja em si considerado mente afastada do reino das idéias e duplamente desvirtua-
<la. O que distingue Aristóteles é que sua Poética é uma obra
distante das verdades essenciais, como exprime bem o mito
da caverna. A condenação platônica é evidente no caso das v< ltada especificamente para as condições da criação literá-
1 ia, independentemente de considerações metafísicas:
artes plásticas, mas estende-se à "poesia", quando esta se
compraz em repetir elementos da experiência real, quando Esse admirável pensador moderno que é Aristóteles
(pe lo menos enquanto crítico literário ou como teoriza-
se torna, em seus termos, cópia da cópia, pois o real nada
dor da Literatura) foi, tanto quanto sabemos, o ún ico
mais é que imitação imperfeita do mundo das idéias. dos Antigos a ter encarado a criação estética na sua pró-
pria realização, no seu próprio "corpo", o que nem é
Assim, a curiosidade pelo real (ciência) e a questão de
decerto para estranhar no fi lósofo para o qual "A coisa
representá-la (arte) manifestam-se muito próximas, sendo concreta individual não é sombra, aparência, mas uma
esta segunda colocada sob interdição moral na obra de Pla-
tão . Aristóteles (384-322 a.C.), com a Poética, restaura os
direitos da arte e seu papel na experiência do real, ao mes- 11 . 13 n d ito Nunes- O.C., nota 8.

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realidade primária". [S .H. Butcher, Aristotle 's Th eory
la, mbora sua discussão se encaminhe para o terceiro,
of Po etry and fine Art, 4th. ed., 1951, 162.] E por isso
mesmo Platão, o platonismo e o neoplatoni smo rese r- :ll ravés da
conceituação do papel catártico da obra. A idéia
varam-se o exclusivo da reflexão sobre o Belo em si, e do emissor também aparece na Poética.
pelos séculos afora assim havia de ser. Note-se até qu e a
noção ma is discutida e discutível da Poética , a de mime- As questões relativas à natureza do literário, a partir de
sis, é de responsabilidade platônica, [Idem, p. 160] e 1\ ristóteles, reaparecem ao longo dos tempos, intensifican-
talvez seja lícito pensar que isso, só por si, explique as lo-se particularmente nos séculos XIX e XX. E ao longo
dificuldades duma aplicação do termo que não parece I >s tempos a ênfase nas teorias literárias foi-se colocando
de harmonia com a idéia básica da Poética, a qual, em-
bora designada como mimesis, se exprime em passa- ' 111 um ou outro ponto da tríade, enfatizando o papel do
gens deste teor: "pelas precedentes considerações se r·iador, a natureza do texto ou o efeito no leitor-especta-
manifesta qu e não é ofício do poeta narrar o que rea l- dor. A outra tríade que permeia os estudos literários é
mente acontece; é, sim, o de representar o que pod e ria 13
1 lll la detectada por Luigi Pareyson quando vislumbra
acontecer, quer dizer: o que é possível, ve rossímil e ne-
cessariamente. Com efeito, não diferem o historiador e 11:1 Literatura um "conhecer", um "fazer", um "exprimir".
o poeta, por escreverem em verso ou prosa (... ) - dife-
rem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e
outro as que poderiam suceder. Por isso, a poesia é
mais filosófica e mais elevada do que a História, pois re-
que este texto pretende é focalizar, ainda que breve-
fere aquela principalmente universal , e esta o particu- ''' ·nte, alguns momentos nessa discussão sobre a natureza
lar" [Po ética, trad. Eudoro de Sousa, Lisboa, Guimarães, lo literário, visualizando também, de maneira bastante su-
p. 82-3]1 2 • irHa, o que acontecia, em uma ou outra época, no campo
Claro está que a mimesis, tal qual a coloca Aristóteles, l,t riação literária.
nada tem a ver com a idéia de simplesmente cópia imitativa, P de-se questionar a validade de um livro de Teoria da
como séculos depois foi interpretado. Trata-se de uma idéia l,il •ratura que comece na Grécia Antiga para vir até nossos
onde está implícito o trabalho de criação de algo novo. li IS. A verdade é que novos livros teóricos são constan-
A obra de Aristóteles foi um ponto fundamental na 1 •m ·nte lançados e, no entanto, os estudiosos freqüente-
discussão da Literatura, com relances de outras artes, isto til ·rue se sentem instigados a criar mais um. Porque se é

porque na sua Poética estão, pelo menos em germe, as ·n lade que os mais diversos aspectos da criação literária já
questões básicas que envolvem a Teoria Literária. Se pen- ln1 :11n contemplados em obras diversas, também é verdade
sarmos na famosa tríade de emissor-mensagem-recep- 111 • s u essencial "mistério" permanece ainda hoje. E é o
tor, observamos que Aristóteles concentrou-se na segun- I, I 1 Ic a Literatura (como a arte em geral) continuar ainda
1 111 110 um campo aberto a novas perspectivas que justifi-
·- ----- '1' · o nümero de obras como esta nossa. Não por imagi-
12. Adolfo Casais Monteiro- Estrutura e autenticidade como problemas da te- II111110S que encontramos uma resposta nova e definitiva
oria e da crítica literárias, São Pau lo, 1968 (Edi ção polico pi ada), p. 12-3. Em
1984 foi publi cado em Portuga l, Estrutura e autenticidade na teoria e na críti-
ca literária pela Imprensa Nacional -Casa da Moeda, Estudos Gerais, Série
Universitária, p. 18-9. I I I 11lgl 1 >;~r ys n - O .C. , nota 1.

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para a ques tão, mas apenas no impulso de, pelo menos,
tentar uma explicitação daquilo que nos sugere a atividade
literária.
Percorreremos assim, neste texto, um caminho longo e
certamente bastante trilhado, sem a pretensão de atingir a
I
resposta última a um grande questionamento, mas apenas
pelo estímulo que nos vem do amor à obra literária e do Conceito e divisão da Teoria da Literatura
convívio, já longo, que com ela vamos mantendo, e pela
crença, ainda, na possibilidade de passar aos leitores (prin-
cipalmente os possíveis alunos) o apreço e o interesse que
proporciona o contato com o objeto literário.
A formulação de uma Teoria, em qualquer campo do
O estudo da Literatura não é uma atividade direciona- sabe r, inclui necessariamente duas atividades: uma empíri-
da para um único objetivo. Isto porque o fenômeno literá- ·a e uma especificamente teórica. A Teoria da Literatura
rio envolve uma série de questões que vão desde sua visão pressupõe um estudo de obras particulares e, do levanta-
teórica, sua filosofia, passando pelo terreno dos procedi- m ·mo de dados resultante, uma formulação de caráter
mentos críticos, dos quais a História conheceu inúme- L • rico, basicamente para estabelecer aquilo que constitui
ras modalidades, caminhando para o fundo histórico das 11 ·specificidade do fenômeno literário. O caminho as-
obras e para as condições que cercam a criação (desde so- ' i m sugerido corresponde, na verdade, àquilo que fez, por
ciais até psicológicas). Isto é apenas uma amostra não inte- t' •mplo, Aristóteles, cujas reflexões (na Poética) resulta-
gral das pesquisas que o estudo literário impõe. i" m do conhecimento de obras particulares, disponíveis
•m sua época. Esta colocação, no caso de Aristóteles, des-
lll •nte qualquer sentido puramente normativo (autoritá-
ri ) da Teoria. Além disso, ela traz à baila uma discussão
· u1ar so b re o pro bl ema d o " umversa
. 1" e d o "partiCu
. 1ar ,
nos es tudos literários. Será legítima uma atividade genera-
li:t.n nte (uma teoria) num campo onde cada exemplo indi-
idual é inegavelmente único, irredutível? Uma obra lite-
1, l'ia ligna do nome é certamente única, individual, e esta
,1 11 111a afirmação básica na Teoria da Literatura. R. Wellek
· 1\. Warren, reafirmando este fato inconteste, acrescen-
lllll que tudo que existe em nossa experiência, de alguma
lc11111a, é único. Como exemplo mostra como nenhum
"111n ntc de lixo" é repetição dentro de uma série. Uma obra

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estará mais claramente marcada pela unicidade. Em con- o, com verdadeiro estatuto ontológico, enquanto outros
trapartida, as unidades vocabulares na obra literária são, propõem um estudo histórico como essencial.
essencialmente, "gerais". É assim que aparecem os dois as-
Os Estudos Literários, na verdade, incluem tanto os
pectos, o " gera1" e o (( parucu
. 1ar "1 4 .
trabalhos de Crítica quanto os estudos de História e os de
Esta última assertiva está ligada a uma longa discussão, Teoria. Os trabalhos sobre Literatura tenderão mais a um
a partir de Platão e Aristóteles (lembremos, deste, a afirma- desses aspectos. Aristóteles, por exemplo, é primordial-
ção de que a poesia é mais filosófica do que a História, por- mente um teórico, Sainte-Beuve (1804-1869) produziu
que mais universal). Do Romantismo até nossos dias, acen- basicamente estudos críticos, enquanto Arnold Hauser
15
tua-se, contudo, o fato de a obra ser essencialmente "parti- foi, mais do que tudo, historiador da Literatura • Teoria,
cular", uma realidade, por assim dizer, concreta. Será isto Crítica e História dificilmente poderiam ser imaginadas
um desmentido ao caráter geral das obras? Aqui, como em como esferas radicalmente fechadas. A Poética de Aristóte-
tantas outras situações, trata-se de uma distinção não in- les, uma teoria por excelência, contém juízos críticos de-
gênua que possa conciliar fatos aparentemente antagô- clarados. A posição crítica de Sainte-Beuve implica uma
nicos. A obra é individual. Admite-se que seja até única posição teórica. O "social" que A. Hauser coloca no título
(mas tudo, como se vê na citação acima, num certo sen- de sua obra ( The Social History of Art) envolve também
tido, é único). Isto não exclui, entretanto, que ela seja uma posição teórica. A Teoria da Literatura tem, nas suas
também geral: marcada pela individualidade, ela apresen- raízes, ainda que implícitas, a Crítica e a História; a Crítica
ta, ao mesmo tempo, traços que são comuns a outras Literária se exerce a partir de um arcabouço teórico e de
obras, exatamente o que nos permite defini-la como Lite- uma visão histórica; a História da Literatura não pode
ratura. Como esta é uma manifestação humana, de caráter prescindir dos estudos teóricos e críticos.
cultural, e que se realiza ao longo da História, as conclu-
Toda formulação teórica deve ser resultado da análise
sões teóricas podem, em parte ao menos, valer-se de um es-
de obras individuais e da maneira como elas se modificam
tudo diacrônico. Se o corpus utilizado por Aristóteles reco-
ao longo do tempo. Tornando-se como exemplo a Poética
bre um período de poucos séculos, lembremo-nos que era
de Aristóteles, parece evidente que as considerações teóri-
disto que ele dispunha.
cas, através das quais o filósofo tenta explicitar a nature-
Há divergências entre os estudiosos da Literatura. Para za específica da Literatura (mimesis poética), são o resulta-
alguns, a especificidade do literário deve ser apreendida a do de uma profunda reflexão crítica em torno de grandes
partir da obra, desvinculada de qualquer contexto históri- obras. Isto significa que ele procedeu a uma verificação em-
pírica, analisando textos literários, para deduzir um concei-
·------
14. Renê Wel lek e Austin Warren - "Literatura e estudo da Literatura" in Teo-
ria da Literatura, tradução de José Palia e Carmo, Lisboa, Europa-Am érica, 15. Leia-se por exemplo, de Arnold Hauser- Th e social History of Art, Lo n-
1962, p. 22. [0 original Theoryo fliterature, Nova York, Harcourt, 1949] . [Re- clon, Routledge and Kega n Paul, 1951 . [Há tradução para o espanho l de A.
centemente surgiu a tradu ção de Luís Carlos Borges, São Paulo, Martins Fon- Tovar y F.P. Varas-Reys, História social de la Literatura y e/ Arte, 2 vol., Ma-
tes, 2003] drid, Cuadarrama, 1964]

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I to de Literatura fundamentado. Já não lhe são estranhas,
além disso, as preocupações com o aspecto histórico, pois
rios de maneira sistematizada, pois as primeiras poéticas
apresentavam critérios para a apreciação das obras existen-
faz referência a procedimentos característicos de autores tes e, em certa medida, um corpo de idéias subjacentes à
mais antigos. riação literária.
Se existe já na Antigüidade a interpenetração dos cam- As poéticas clássicas, além disso, consideravam, via de
pos teórico, crítico e histórico, mais clara é ela nos estudos regra, as obras literárias indiferentes às fronteiras lingüísti-
feitos a partir do século XIX. as e políticas. As teorias românticas foram as que primeiro
A ausência de senso crítico é maléfica para qualquer se preocuparam com as Literaturas nacionais, de maneira
historiador, e isto ocorre claramente em algumas Histórias intensa. Elas eram ainda, normativas, na medida em que
da Literatura. Em "Literatura, Crítica e História", Casais qualificavam como grande a obra que correspondia ao seu
16
Monteiro (1908-1972) chama a atenção para o perigo ideário, isto é, aquela que se manifestava ou como expres-
que corre um historiador da Literatura carente de senso ão da alma de um povo, ou como expressão de experiên-
crítico e de uma formação filosófica geral, o qual acaba por ias altamente subjetivas. Claro está que isto não define as
reduzir seu trabalho a uma simples coleção de fatos mais teorias românticas em sua totalidade, mas apenas uma de
18
ou menos ordenados, incapaz de traduzir uma atividade suas linhas privilegiadas •
reflexiva que possa mostrar um sentido na sucessão de au- O século XIX presenciou, ainda, concepções positivis-
tores e movimentos. tas da Literatura, pelas quais a obra era entendida de um
O trabalho do crítico, por sua vez, pressupõe um arca- ponto de vista determinista. Isso significa que a Literatura
bouço de conceitos teóricos. Se críticos há que se sentem alar- era encarada como produto de forças históricas, sendo, as-
mados diante de seu trabalho, isto se deve, em parte, ao fato sim, um fenômeno estudado do ponto de vista genético,
de existirem hoje tantas teorias estéticas que eles se sentem in- isto é, a partir de sua origem. Nessas concepções a atenção
seguros no estabelecimento de parâmetros valorativos. Num maior era dada não exatamente ao produto literário per se,
outro artigo, "Legitimidade teórica" 17 , Casais Monteiro che- mas àqueles índices nele contidos que permitissem levar
ga a exprimir a idéia de que, se tantas estéticas existem, talvez aos elementos causais porventura existentes em sua ori-
isto se deva ao fato de que não existe nenhuma. gem. Isto não significou necessariamente um desprezo pela
obra em si, mas antes um conceito específico da Literatura,
A preocupação do homem em conceituar a Literatura segundo o qual ela parecia perfeitamente explicável pelo
é muito anterior ao estabelecimento dos Estudos Literá- ontexto histórico, entendendo-se este como algo que in-
luía também as experiências de vida do autor. Esta con-
epção teórica implicava, obviamente, uma visão da obra
16. Cf. Adolfo Casais Mo nte iro - "Lite ratura, Crítica e Histó ria" in Cade rn os
como "documento".
d e Teo ri a e Críti ca Literári a, n. 12, núme ro espe cial, Artigos de Adolfo Casais
Monteiro publicados no Suple mento Lite rário de O Estado de S. Paulo, UNESP/
Ara raqu a ra, 1983, p. 79/80.
1 7. Ado lfo Casa is Monte iro - "Legitimi da de teó rica" in O. C., p. 6 75 . 18. Estes e o utros asp ectos serão aqui ap rese ntados o portunamente.

24 25
O que complica grandemente os estudos da Teoria da •rn onsonância com uma visão crítica. Os estudos de His-
Literatura é o fato de a Literatura utilizar como seu mate- t<'> ria da Literatura podem ser desenvolvidos em várias li-
rial um instrumento que não lhe é específico: a palavra. É nhas. Podem, por exemplo, realizar-se como História das
claro que, em certo sentido, o uso das cores e do desenho I ,i te raturas nacionais, como História de períodos e de mo-
também não é específico da pintura. O que ocorre é que o virnentos, ou como História dos gêneros. Uma vez que,
material da Literatura, seu meio de expressão, é extrema- 11 0 estudos literários, Teoria, Crítica e História tendem
mente desgastado por usos não artísticos. O que se pode n rmalmente a uma interligação estrita, torna-se difícil
dizer é que a linguagem da obra literária tem um caráter l rabalhar com a História da literatura como um campo in-
diferente da utilizada em outras atividades. Trata-se do
d ·pendente, que obedeceria apenas a postulados de natu-
fato de que a palavra, na Literatura, não se reduz ao aspec- r za diacrônica. A verdade é que a natureza do literário,
to puramente sígnico, já que é tomada por um valor que objeto específico desta História, tira-lhe qualquer preten-
19
tem enquanto "coisa" • Assim, na Literatura, a linguagem
são a autonomia, o que, de certa forma, também ocorre
é, por um lado, matéria carregada do peso cultural de um m outras Histórias. No caso da Literatura, entretanto, o
grupo lingüístico, mas é também o material tornado novo
problema é mais sério. Se pretendêssemos uma História da
pelo autor, através de um uso específico.
Literatura desvinculada da Teoria e da Crítica, podería-
Uma concepção de Literatura, reflexão teórica, envol- mos, por exemplo, estabelecer uma ordem que explicasse
ve, de uma forma ou outra, o exercício crítico, a partir de uma obra determinada como derivação de outra anterior;
determinados procedimentos. A visão que um estudioso o mesmo processo poderia ser usado para explicar movi-
da Literatura dela tem estará de acordo com sua maneira mentos. De uma colocação assim rígida ficaria excluída
específica de analisar obras individuais, a qual, por sua vez, qualquer consideração teórica ou crítica. Na prática, con-
está ligada a determinadas concepções da natureza do li- tudo, essa tentativa de lidar com o fato literário como se ele
terário. Faces da mesma realidade, em relação de mútua (e fosse totalmente verificável, e desprovido de qualquer peso
natural) dependência, Teoria e crítica representam, na me- valorativo, não se pode concretizar a não ser com graves sa-
lhor das hipóteses, momentos diferentes dentro de um pro- rifícios científicos. Pois não há fatos literários totalmente
20
cesso integral, incluído num só campo do saber. É assim neutros , já que a simples atribuição de um determinado
que os estudos literários compreendem um aspecto essen- espaço a uma obra em relação a outras denota, mais que
cialmente teórico e um aspecto crítico; Teoria e Crítica são em outros campos, uma visão crítica e uma posição teóri-
partes dos Estudos Literários. a: o viés ideológico, tão sensível numa História política, é
Estes incluem, ainda, a História da Literatura, e tam- substituído, aqui, por uma posição pessoal do estudo, por
bém esta será vista de acordo com uma concepção teórica, mais teoricamente fundamentada que ela seja. Há, ainda,
o fato de que esta posição pessoal pode atuar de maneira
------ inconsciente, o que também ocorre nas outras Histórias;
19. Cf. , e ntre outros, jea n-Pau l Sa rtre - Qu 'est-ce que la Littérature ?, N.R .F.,
a ll irna rd, 1948. [Há tradução para o portugu ês, Situações 11, d e Rui Má ri o
.o nça lves, Lisboa, Europa-Arné ria, 19681
20. Cf. Re né W e lle k e Austin Warre n - O .C., p. 49, nota 14.
26
27
contudo é, no caso da Literatura, não só procedimento 1111, Es tudos Literários, vanos aspectos: Crítica teonca,
inevitável, mas eventualmente desejável. Diríamos que o ;, fti a que analisa a atividade de um ponto de vista histó-
viés teórico-crítico fica legitimado, deixando de ser pro- 11 o, rítica da Crítica. Cada uma das linhas incluídas nos
priamente viés para surgir como o embasamento necessá- • !li los literários não é capaz, por si só, de levar a um co-
rio a conferir ordem e princípio no encaminhamento ao li h · imento satisfatório da Literatura. Na verdade elas vi-
material de estudo. V ·m de um continuo intercâmbio, e é este intercâmbio
A interligação Teoria, Critica e História aparece, as- 111 · pode conceder aos Estudos Literários bases sólidas e
sim, como fato benéfico, se pensarmos na visão teóri- 1 I'SJ ectivas amplas.
co-critica como ordenadora da História. Há, às vezes, a importante nos Estudos Literários e nos estudos so-
suspeita até de que a História da Literatura, enquanto His- l r • Estética do século XX é, no geral, pelo menos nos tra-
tória, seria impossível e mesmo descartável, já que as famo- I :dhos mais conscientes, uma preocupação em estabelecer
sas leis de causa e efeito, presentes na História política, se- t ·s1ecificidade da arte e da Literatura. Casais Monteiro
riam, na Literatura, contrariadas, principalmente se o es- 21
110 artigo "A Literatura e a História" comenta o que diz a
tudioso encara a obra ontologicamente. Mesmo numa vi- ·ss respeito Gaetan Picon em seu livro O escritor e sua
são da obra não radicalmente ontológica, o determinismo, wmbri 2 • Picon aponta o fato de que as obras de arte per-
a idéia de relativa irreversibilidade, tudo que constitui a manecem próximas de nós, enquanto ~cam distantes os
História política é negado na História da Literatura. Em riadores e o mundo em que surgiram. E claro que a obra
vista disto, poder-se-ia colocar em dúvida sua validade, I • arte tem uma relação com sua época, mas essa relação
mas, por outro lado, ao estudo de fatos, sejam quais forem, 1 de constituir nela o elemento de obscuridade. Isto não
desenrolados ao longo do tempo, impõe a nossa mente ·ignifica negar a História nem afirmar que uma forma ar-
uma necessidade de ordem cronológica, além de ordem ! fstica nada tem a ver com o mundo em que surge. O que
e~. outros níve_is. A Literatura transcende limitações espa- .1 ntece é que a obra de arte, de certa forma, denuncia o
ciais e temporais, mas seu estudo impõe considerações des- mundo do qual se origina, atingindo-nos, contudo, de
se tipo, ainda que num primeiro momento. Desta forma, uma forma direta, específica, porque sua linguagem é mais
o viés teórico-critico é o fator não de deturpação ideológi- luradoura que a das outras formas de cultura. A visão his-
ca, na História da Literatura, mas o que tem condições de t6 rica de Gaetan Picon, segundo Casais Monteiro, afirma
preservar o respeito à natureza do literário. a ·specificidade da arte sem que isto signifique uma reação
Assim como a História da Literatura pode ser desen- ·o ntra a História. Isto implica uma visão não mecanicista
volvida em várias linhas, a Teoria, dentro dos Estudos Li- l:1 H istória, uma visão que não concebe o homem como
terários, pode realizar-se em diferentes modalidades: Teo-
ria dos princípios, critérios da criação, Teoria das correntes
teóricas surgidas no decorrer da História, Teoria da crítica, :l l./\dolfo Casais Monteiro- "A Literatura e a História" in Cadernos de Teo-
''•' ' Críti ca Literária, O.C. , p. 603-6, nota 16.
Teoria como abstração. A Crítica também pode assumir, 22 . aetan Picon -O escritor e sua sombra, tradução de Antonio Lázaro de
/\lrn ida Prado, São Paulo, Nacion ai/EDUSP, 1970.

28 29
I simples elemento da História. É uma visão que afirma o
valor humano subjacente a qualquer obra artística, o que
acaba por significar um enriquecimento da História.
Os Estudos Literários, assim como os Estudos da Arte
em geral, ~sbarram, necessariamente, em outros campos li
do conhecimento. O próprio caráter cultural da atividade ' .
literária impele seu estudioso a refletir, por exemplo, sobre Conceito de Literatura
a História, sobre a Filosofia, e sobre outros campos dosa-
ber. Recorrer a outros campos do saber não significa, ne- -------~
cessariamente, para o estudioso da Literatura, negar a es-
pecificidade desta. A preocupação histórica não leva obri-
gatoriamente o estudioso da Literatura a circunscrever sua Qualquer discussão sobre a função da Literatura está
investigação de uma obra do passado à "intenção do au- ·videntemente mesclada com o problema do conceito de
tor" . O significado de uma obra literária não corresponde I .iteratura. A preocupação em explicitar o que seja Litera-
à intenção do criador, pois ela tem vida própria, e seu sen- tura é quase tão antiga quanto a cultura ocidental,~ apare-
tido pode ser acrescido à medida que é avaliada por leitores ., em todas as épocas sob as formas mais variadas. E curio-
de diferentes épocas. Para nós, que vivemos o século XXI, .~ , por exemplo, que grandes sistemas filosóficos tendam
restringir a obra às intenções que presidiram à criação exi- li ÍStematicamente a voltar seu interesse para o "mistério da
giria de nós uma leitura como se fôssemos contemporâ- Literatura". É curioso também que, muitas vezes, o con-
neos do autor. Evidentemente, não podemos ter uma no- ito de Literatura seja discutido em termos de julgamen-
ção exata do significado que teria Hamlet, por exemplo, t , a tal ponto que freqüentemente ela aparece como ex-
para o público da época shakespeareana. Se pudéssemos, 1 ressão humana condenada ou absolvida.
entretanto, fazer coincidir nossa leitura de Hamlet com a
do P.úblico elizabethano, isto resultaria em relativo empo- To da discussão em torno da natureza do literário co-
brecimento. Estaríamos deixando de lado os vários signifi- meça na Grécia, e isto se justifica na medida em que foi lá
cados que as gerações posteriores a Shakespeare encontra- que surgiram as primeiras obras-primas que permanece-
ram na obra. Estaríamos, ainda, impossibilitando uma in- rnm, em termos do mundo ocidental. O que primeiro nos
terpretação que, sendo nova, não seja equivocada. ·hama atenção é que, entre essas primeiras obras, estão
ai u mas das maiores que o homem conheceu, e isto vem
Tudo isto não significa negar o contexto histórico da
·o nfirmar o fato de que na Literatura não existe o progres-
obra, aquele em que ela aparece e aquele que ela reflete.
.·o tal qual se conhece na ciência e na tecnologia, como
Trata-se, antes, de ver a obra literária numa perspectiva
t:tm bém não há obsolescência. Na verdade, os gregos pro-
histórica sem, entretanto, reduzi-la ao seu contexto histó-
luz iram duas das maiores epopéias, e, no teatro, só foram
rico. É ver a obra literária em sua temporalidade inevitável
talvez igualados na era elisabetana por Shakespeare. Pode-
e, ao mesmo tempo, em sua perenidade específica.
damos dizer que a Literatura Ocidental nasce já grandiosa
30
31
e experimenta, ao longo dos séculos, períodos de grandeza 11, isto é, já se manifesta, desde os primórdios, em ohras j,a-
e de mediocridade. lllais superadas. Aristóteles, encaFado com toda isenção, é
, urp reendente,. porque nel'e encontFamos aúnudes e posi-
Se bem atentarmos para a Literatura grega, veremos .> que surgiriam em épocas posteriores, e continuariam
que suas grandes produções, como não poderia deixar de
, urgindo', sempre com ar de novidades absolutas ..
ser, atingem um mundo que nos pareceria hoje limitado.
São, entretanto, de uma riqueza tal que, desde a Antigüi- D ifícit seria negar que a posição teórica cJie Aristóteles.é
dade até nossos dias, são permanentemente revistas e cada lu ndamentalmente imanentista, privílegrando a v~são· in-
século pôde ler nelas obras sempre novas. Até mesmo a 1d nseca da obra, com pouca atenção aos fàtos:extrínsecos..
ciência voltou-se para a Literatura helênica num momento 1•. assim, por exemplo,, que sua discussão giTaem torno da
de esmiuçar o que se considerou o complexo básico da hu- ·onstrução (estrutura) da ohra, com pouca refeuênc:i:a ao>
manidade. Mas não é só um nome-Édipo-que Sófocles riador. O que fascina Aristóteles é a maneira como a obra.
fornece ao conhecimento humano, nem é apenas o mode- parte da realidade, não para repetí-la (imitá-la:), mas para
lo de uma questão psicológica. Sófocles produz uma obra r 'I resentá-la (ou reconstruí-ta). Insistiu-se durante sécu-
de estrutura modelar, isto é, de composição com caráter los na teoria da imitação, mas se preferirmos enten:cier a
estético, abordando uma situação humana insólita e que, mimesis como representação, ftca bem clara a attral'idade
no entanto, toca a todos nós. O que surpreende é o apare- 'I( texto da Poética:.
cimento de uma obra tal nos primórdios da Literatura co- É verdade <l!inda que Aristóteles:dedica grande atenção
nhecida, dentro de um teatro que só seria talvez igualado
.t un fato· que se refere, em princípio,. não à mensag~m,
no Renascimento inglês. Nas obras gregas o homem se vê
111. a seu receptor. Trata-se da tão decantada catarse. Lnde-
em profundidade, e nelas ele pode encontrar, em germe,
P ·ndentemente da especificidade do termo, com sua ênfa-
alguns fatos que só a ciência do século XX viria a teorizar.
. no processo de purgação, temos de admitir que wdat
A verdade é que as obras gregas trazem em seu bojo valores
grande obra produz efeitos no leitor, podendo everrtual-
e mensagens que só o tempo iria continuamente revelar
ltl ·nte traduzir-se num processo de liberação emccional
(sem os esgotar), elementos que iriam esclarecer (iluminar)
que importa, entretanto·, é a teoria: do· efeito:, tal qual f~,i
a realidade de épocas posteriores, haja vista sua atualidade
1 ·tomada no século XX pela Esté'tica da Recepção. Po.rs,.
na época de hoje.
1:1nto esta como a catarse aristotélica partem do estudo do
Este pequeno exemplo acima, que é apenas uma eclo- 1 • to e a ele se atêm em todas as suas considerações. Pod'e-
são dentro da fenomenal dramaturgia grega, seria motivo 111 1s dizer que a Estética da: Recepção conseguiu ir além cl'e
de discussão para todas as épocas e, mais ainda, juntamen- Ari tó teles nesse mergulho-textual para busca do efeito.
te com as outras produções, forneceu ao primeiro grande
teórico - Aristóteles - a matéria básica para a primeira C urioso·é que j.á houvera, entre os gregos, :1lguém com
grande reflexão sobre o literário. inv jávd cabedal f1losófrco e,. como· sabemos,. a:manlie da
I ,ir ·ratma:. Mas:este nãu escreveu nenhuma: poêüca, já que
Com Aristóteles ocorre algo curioso e que lembra um •m sua: v~são· a Literatma deveria seJ: b-anrda· do mt.mdo,.
pouco o mistério pelo qual a Literatura parece nascer pron-
3i3~
32
porque ela representa (imita) uma realidade que, para ele, .ti nda que alguns de seus traços estruturais advenham de
é, já de si, uma cópia imperfeita de um mundo ideal. A llomero. A tragédia latina, claramente escrita para ser lida,
condenação platônica nasce exatamente dessa visão da Li- não é um grande sucesso de palco. Mais felizes foram, sem
teratura como "cópia da cópia", portanto algo duplamente Iüvida, na comédia, onde produziram exemplares dignos
afastado da verdadeira realidade, isto é, a do mundo ideal. de cotejo com os gregos. Na lírica também os latinos nada
A civilização latina foi o próximo grande momento d ·ixaram a desejar- bastariam as odes de Horácio para
na História da cultura. Roma, diferentemente dos gre- justificar a afirmativa. Mesmo quando não fo~am total-
gos, afirmou-se prioritariamente enquanto poder militar, mente originais, os latinos demonstraram capaetdade para
transformando boa parte da Europa, sem contar parte da julgar e preservar, mesmo que em cópia, valores culturais.
África e Ásia, em grande império. A conquista romana, en- Horácio foi também um homem preocupado com a
tretanto, não se limitava a uma questão meramente políti- ·onceituação da Literatura, do que resultou uma poética-
ca, pois sua atitude geral era levar para Roma não só rique- f:jJístola aos Pisõe/ 3 • A teoria hora~iana, diferentem;r:te da
zas materiais, mas também valores culturais. Foi o que :tristotélica, é declarada e excessivamente pragmauca, o
ocorreu, particularmente, na conquista da Grécia. Todo o que se justifica, até certo ponto, se lembrarmos que se diri-
manancial helênico, que de outra forma poderia ficar per- gia a jovens num caráter de instrução. A Poética de Aristó-
dido, foi literalmente transportado para Roma, inclusive 1 ·lcs provavelmente foi escrita, entre outras coisas, com fi-
através de mestres gregos levados para o centro do Império nalidade de ensino a seus discípulos. Esta, no entanto, su-
Romano, em cujas famílias abastadas seu ensino come- P ·ra limites estritamente pedagógicos, na medida em que
çou a transformar um povo, em certo sentido ainda rude, pa.rte dos traços construtivos de cada obra para entender o
numa grande civilização. Se bem atentarmos para a Histó- qu e a faz grande. Claro está que, provavelmente, em al-
ria dos latinos observaremos que as suas grandes constru- P,ll ns momentos, a Poética aristotélica também resvala no
ções culturais são, em grande parte, inspiradas pelos gre-
pragmático, mas de forma menos sensível.
gos, quando não se reduzem a simples imitações.
As considerações de Horácio não se igualam às de Aris-
Não significa isto negar qualquer originalidade às pro-
1{neles na questão da profundidade. Constituem, entre-
duções latinas. Na verdade, houve campos em que os lati-
tanto, um exemplar teórico respeitável.
nos foram não só originais, mas verdadeiros pioneiros da
humanidade. Cita-se geralmente o Direito Romano como Longino, a seu tempo, discorre sobre a arte literária
exemplo disso e, sem dúvida, este representou um ponto 1'1 1n dando suas considerações basicamente na Teoria do su-
máximo de realização, mas, em outros campos, também
Roma passou à frente de outros povos. Conseguiram reali-
zações tecnológicas que ainda surpreendem- citemos so-
-----
' :1. 1 lorácio- A poética cláss ica: Aristóteles, Horácio, Longino, de Jaime Bru-
111 1, ." .io IJaulo, Cultrix, 198 1. . , . .
mente os aquedutos e as pontes, em que tanto brilharam. l11clil ',1m os ainda as tradu ções : Dante Trin gali -A Arte poét1 ca de Horaoo (bl -
IIII Hi'l t•), São Paul o, Musa, 1993 e Horác io- Arte poétic_a, .introdução_, trad_u-
Podemos dizer que Roma produziu uma épica de exce- 1 , 1 ~ 1 <' ·o m entário de R.M. Rosado Fernand es, Textos Class1cos, Coleçao Bil1 n-
lente qualidade- a Eneida é certamente uma grande obra, )\1 to, I i ·b a, Clássica .

34 35
blime. E, ao longo dos tempos, outros g-randes teóricos de
Literatura foram surgindo.
O impulso para a reflexão teórica sobre a Literatura
pode ser entendido como uma profunda necessidade hu-
mana de explicitar algo que se apresenta carregado de valo-
III
res ..A busca em torno das questões teóricas que envolvem a
Literatura corresponde a uma necessidade básica do ser
( conceito de Literatura na Antigüidade
humano, como impulso para explicitar a natureza daquilo
que o toca profundamente, porque algo que diz respeito :à
·s ua própria natureza.
Fica claro, quando se estuda a Literatura e as posições Platão
teóricas ao lon,go dos séculos, que se trata de uma atividade
necessária, com inegáveis funções na experiência humana. Na República25 Platão ·discorre sobre os princípios ,ge-
A Literatura, .sem dúvida, desde seus primórdios, é uma 1,1is de uma socied.ade boa e as medidas que podem levar a

.resposta a impulsos extremamente humanos .e ·que só nela , · ideal. Di:scuiindlo ta•l a:ssunto, Platão é incidentalmen-
podem ser satisfeitos. Talvez a melhor maneira de expri- 11 I ·vado a fazer uma ·con:certuação ·e um )u1zo da poesia
mir esta realidade esteja na .colocação de Luigi Pareyson, (qu<.: se pode entender, .e m termos modernos, ·como signi-
quando vê na Literatura, entre outras ·coisas, uma forma de lu ando Litera'tUíf2. .em geral}.
conhecimento, diferente do ·que ocorre com a ciência e N o Livro II ·da República S.ócrates fala :sobre a manei-
com a Filosofia, mas tão imprescindível quanto elas no 111 orno deve ser .educado o bom cl.dadã:o, insistindo em
percurso da nossa espécie. Claro está que i:sto não esgota o q11 ·as histórias contadas aos educandos devem ser_ sempre
problema da função da Literatura. Esta existe por força de 1 diflcantes, jamais sugerindo idéias enôneas. Parundo do
variadas questões, até mesmo para responder a uma neces- 1i ncípio de que as ·coisas existentes aqui são cópias imper-
1
s'i dade íntima do homem, como se constata na colocação 11·itas das ·que ·existem no mu.ncil,e> das idéias, Sócrates esta-
extremamente feliz de A-dolfo Casais Monteiro:: "( ....)Há, I rkce que Edame>s mão ,com as :coisas reais.' m~s com se~~
em certos homens, uma inevitável, uma ineludível .v ontade im tlacros defeituosos. Acrma ,que o carp1nteuo constrcn
1 já de si, im;i;taçã:o (da idéia ,de cama. Se u~ pi~t~r coloca
.obscura de criar; porque ninguém é artista só por querer
" 1o: ·e., preCiso
. ter ae
J
o ser, 24 . 1 m quadro a p'in:tura .de t1tn o'bjetode ·está t;~photamente
:se-
l.t't,t: ndo cópia de uma cópia. Assim, ·a :poesia, 'Sendo, ·e m

- ----
Jiat ão - A repú'b'lica. !lr.itrodução e notas de :R:obert.Baccou, tradmçãG> de J
" I ' ' . ,.. d 'L'
24. AdolfoCasais .Monteiro- "A arte é, não serve" .in Depés 'fincados na 'terra., 1 dli n ~b urg, 2. ·ecl. , <Clássicos ..Ga:mier, :São !P.aéU:Io,, O.if.usã0 <Europe1a · o . 1v.m,
Lisboa, 'Inqu érito, 1940, :P· 27.. 11) / (2 vdls.), 'uiv.ros ilil, !U:I,, K

36 TI
parte, uma imitação de seres e ações de nosso mundo visí- 11 11 los pela poesia no Estado Ideal. Para ele, um verdadei-
vel, é também imitação de imitação. A atividade imitativa 111 ll'ti ta, que realmente soubesse o que estava imitando,
da poesia nasce do lado irracional da natureza humana, .I v ·ria ter seu interesse voltado para coisas reais, e não se
tendo assim origem espúrea, na visão do Filósofo. 1 1t' O ·uparia em deixar obras belas, mas antes em levar uma

Sócrates vai mais além em sua acusação quando diz que 1l.1 tão digna que pudesse merecer encômios entre os pós-

é nos tormentos e na lamentação, na dor e no irracio- ' os, legando, assim, exemplos edificantes.
nal que a poesia encontra seu objeto preferido de imita- Iâ. em Platão aparece aquela tão conhecida preocupa-
ção, pois um temperamento sábio e calmo, sendo mais ou ~~ n mos possíveis efeitos da Literatura, numa discussão
menos homogêneo, não se presta muito à imitação e, se qtt • :1 aba por enredar a expressão literária com a moral. A
imitado, não comove o público de um teatro, por exem- I ·ussão tornou-se secular, partindo sempre da afirmação
plo. Para Sócrates isto acontece porque as pessoas, em ge- '11 1 la negação da autonomia do literário.
ral, estão muito longe do ideal de sabedoria e calma e, por-
Em resumo, a objeção platônica à poesia parte de um
tanto, preferem ver no palco pessoas apaixonadas, vítimas
· to epistemológico, a partir de uma teoria específi.-
de impulsos irracionais.
1 lo conhecimento. Se as únicas realidades verdadeiras
Em conseqüência de tudo isso, o poeta tenderá a ex- n as idéias, das quais os seres individuais são imitações,
plorar o temperamento apaixonado e explosivo, o qual, 1 .me, sendo imitação deles, está duplamente distante da
além de se prestar melhor à imitação, é também o que mais 1'1' ladeira realidade. Não teria ocorrido a Platão que a arte,
pode comover o público. 1 mia que partindo de objetos reais, pudesse ser uma for-

Para Sócrates, o poeta geralmente introduz na alma do 111:1 de acesso ao objeto ideal. A outra objeção platônica re-

homem um elemento maléfico, porque estimula o irracio- I •r· ·- e ao fato de a imitação poética não se preocupar,
nalismo e o desprezo pela verdade. A acusação de Sócrates mp re e especificamente, em melhorar os homens, forne-
apresenta três aspectos. O primeiro refere-se ao caráter in- 1'11 lo-lhes uma via de conhecimento e exemplos edifican-
trinsecamente "desprezível" da poesia enquanto imitação 1 •s, que pudessem levar ao aprimoramento moral. O artis-

em segunda mão. Em segundo lugar, a imitação poética 1 t ignora a natureza e a utilização das coisas. Por outro

torna-se desprezível na medida em que tende a selecionar l1 lo, a imitação artística usa o lado "inferior" das faculda-
como seu assunto tudo aquilo que contraria os princípios dt·s humanas, e quando ela se dirige ao público é essa parte
de calma e sabedoria (as personagens teatrais são apaixona- 1111' Tior que ela procura estimular. Basicamente a poesia é
das). Em terceiro lugar vem o problema do efeito da imita- pr'< luto de um conhecimento falho, emprega as faculda-
ção poética. Esta ou é totalmente inútil ou, o que ocorreria ' ks inferiores da alma humana e estimula exatamente o
na maioria dos casos, tem um efeito maléfico. q11 · há de "desprezível" no espírito do público.

Sócrates chega até a admitir a excelência de Homero É claro que Platão, às vezes, não se manifesta tão taxati-
(séc. VI a.C.?), mas conclui que os hinos aos deuses e o elo- V;I m nte contra a poesia, mas seu juízo tende a ser essenci-
gio aos homens famosos são os únicos materiais a serem ,tl m ' nte negativo. Admite, às vezes, que o poeta pode ser

38 39
inspirado por um dom divino flont 6 ~ mas aimda assim de ssa forma, .aornpreendem0s 'hoje que a grande ·o bra
Eerá apemas uma opinião e' nã'o um conl!:reómemcto absolüto' ll' lll mpre, .ao fim .e ao caho, uma nota positiva, talvez se
da verdade. Platão advoga a lil'ecessid'<Id'e· de 0b-servar a' Flr.ll-· dt I nnos de hdo posições niiTistas Tadicais. Compreen-
tureza para se chegar à; verdade, nw.m serrtiidb estrita:menne' tlt m s também ·q ue aohrade arte pode ser a grande forma
ciemifico,. sem admitir que a Liteliatma tambérn: é·, entme rlt :t sso a uma série de verdades disfarçadas no mundo
outras coisas, uma forma de· conhecimento·. 11 .ti , talvez porque não as consigamos ver corretamente, o
Platão. aparentemente não estava l·evando em conta. a 'I'' · podemos fazer na arte.
possibilidade de a representação d'e um atu monstruoso,,
. por exemplo, levar a um c;:ouneci:mento de sua natureza, Aristóteles
além de ter um potencial' benéfico ou até terapêutico. Em
27
primeiro lugar, este efeito tornow.-s.e um lagar comum de'- A Poética de Aristóteles traz uma nova visão da Litera-
po~s de Freud (1'856-1939} e Já Úc;:ara claro· .n.o próprio, llll"a (poesia) e acaba por responder às objeções platônicas.
Anstóteles .. Ocorre que. a. atividade que constrói um todo, 1 istóteles examina detidamente a natureza e os traços dis-

com sentido, de compensação d'o; mal 0u simples vitória !Ínlivos da Literatura imaginativa, acabando por provar
do bem, transmite não a: mensa:g~m do irracional' caóticu,, q11 · ela é verdadeira, séria e útil, em contraposição a Pla-
mas da ordem restabelecida. no p1'anm moraJ'. Lembremos. 1.10, que a considerava, via de regra, falsa, trivial e maléfica.
que Bruno Betellh<úm (1~);(03-19'90'} defend'e as versões: Aris tóteles também parte da idéia de imitação, mas amplia
o rigim:ais. dos.CO'n:tos de f:l:das,, p:o rqucc. nelas existe o túunfOi ,. s conceito de uma forma diferente da platônica. Partia-
à~ ordem .e da Justiça como' memsag~m fl:rml, ainda que efes; tio das obras artísticas em geral, ele define a natureza da
seJam fu.as.rcame.Flte vio1'e ntos.. 110 ·sia como sendo uma imitação específica de fatos e pes-

• ~ '~ oas através da palavra, diferente, por exemplo, da pintura,


, Em · · ..1: Jiugar,
. · . seguiU<UOJ ·· se· Imag~:ro:armos
·: ·· que. a "··unuaça:<:>·
da arte não é a mccra: c6;p,ia! dh real! (c(;n;JIO: ficaria imp11r<cito:
'I'' · imita através de traços e cores. O que é importante na
c Iis ussão aristotélica é a preocupação descritiva e não nor-
" ,. l'·es)';, ]>'Ouemos
em A rrstote .JI
su:w·o r q\lll'e: da o tra:'LJ!Spôe 0 u
lllativa, na medida em que se volta para uma definição do
transcende, uma outra; entidade que~ em não sen,-
, _, crixndaJ . 111 ' a Literatura é e não aquilo que ela deveria ser. Tal dis-
d:o o. reat,. pou'e~, exatamente por isso;. a:umini-fo, d'e u:ma:
ussão, entretanto, exprime, implicitamente, uma idéia de
forma que seria: im]p.0 ssfvd JP<IlEaJ a si:mp;Ees: (:6:pia. É assim! 11rtlor da Literatura através de sua função.
que o.bservamos: o· ser htllman0,,, a todo I:nornento•,. em snaJs,
mais· diversas manifestações, mas; dítiiáirnente cllFegamo 8. <li Ao especificar a imitação artística, Aristóteles deixa en-
ter dele uma imagem· não lí);Eo,fÉul:d;r e.fo.r te COJ11l'IO' at que no& 11 ·v r que não se trata de cópia ou, no caso da imitação
tra>nsmiEe a obra de: artre.. poética, de transcrição fiel de acontecimentos. O relato
clas coisas tal qual ocorreram, diz o Filósofo, compete ao
·------- llist riador e não ao poeta:
26d !.eia:-se lon, por exemplo) em. trad'ução, d'e Carl0s Alberto• Nur.1es;, íbR' irm
Oia.logos fLfl,. Universidade Fed'eraf db Pará, l9'8'!D~ p. 2:2'T-2'3:9'. 7. Aristó te les - Poética, O.C, nota 2.

40 41
(. .. ) não é ofício de poeta narrar o que aconteceu·
uanto ao objeto da imitação, Aristóteles distingue en-
é: sim, o de representar o que poderia acontecer, que~
d1ze_r: o que é possível segundo verossimi lhança e a ne- 11 • os gêneros que imitam homens mais elevados do que o
cessidade. Com efeito, não diferem o historiador e o 1 orn um, tragédia e epopéia, atribuindo à comédia a tarefa
poeta, po_r escreverem verso ou prosa (. .. ) diferem, sim, ri · imirar homens de estatura menos elevada que o comum.
em que d1z um as coisa~ que sucederam, e outro as que
poderram suceder. Por 1sso a poesia é algo de mais filo- que parece, entretanto, é que a distinção feita por
só~ic~ e mais sério do que a História, pois refere aquela r·i tó teles não se confunde com conceitos morais, embora
prrncrpalmente o universal, e esta o particu lar2a.
11rn a personagem trágica possa ser mais elevada em termos
Esta possibilidade de lidar com o que poderia ter ocorri- 1) ·i ais e éticos. Desvencilha o conceito de imitação poéti-

do é, de certa forma, uma visão profética do aspecto virtual .1 le confusos princípios morais, restaurando a dignidade
da arte, da virtualidade como traço essencial da Literatura, tl.t Literatura e sua relativa autonomia.
por exemplo_ Fala-se hoje muito em realidade virtual, mas
A resposta de Aristóteles às objeções platônicas não se
a expressão é, às vezes, malbaratada por rotular meras irre-
levâncias ou simples absurdos. r ·s tringe a isso. Para a tragédia, pelo menos, há uma consi-
rl ·ração sobre possíveis efeitos. E a ela Aristóteles atribui a
Tudo isto é o que confere à poesia (Literatura) uma r.tpacidade de produzir um efeito poderoso e benéfico no
universalidade específica, maior que a do tratado de Histó- 1H'rblico: a catarse. Assim, contemplando os percalços de fi-
ria, cabendo assim a ela um caráter filosófico. Ao atribuir à gtrras apaixonadas, levadas ao paroxismo da dor e da vio-
obra literária um caráter essencialmente filosófico, sem en- 1 ' ' ia, o público não é incitado ao irracionalismo das pai-
tr~t~nto confundi-la com Filosofia, Aristóteles parece ad- , ·s desenfreadas. Pelo contrário, ele é posto a salvo dope-
mitir que ela, como peça artística, é também, à sua manei- tig das paixões, porque seus impulsos violentos são pur-
ra, uma forma de conhecimento, e um conhecimento que l't·' los na contemplação do espetáculo. A tragédia, assim,
n~o se re~uz ao meramente factual, mas que alcança o âm- 1 ·tn seu efeito liberador no público. A contemplação de ce-
buo da Filosofia. Se a Literatura é, assim, uma expressão ll :tS violentamente apaixonadas, portanto, pode não esti-
co~ caráter filosófico, deduz-se que está respondida a pri- llltr hr comportamentos irracionais mas, pelo contrário,
meua objeção platônica. Isto fica bem claro quando Aris- l11n ionar como um antídoto aos impulsos violentos que,
tóteles diz que a poesia se preocupa com o universal, não 1 orno bem entrevia Aristóteles, existem na natureza huma-
se restringindo ao meramente particular, embora tenda a ll :l , mesmo quando encobertos.
partir deste.
orno primeiro estudo sério da arte literária sua Poéti-
~ discus_são de Aristóteles estende-se aos modos pelos "t/ 1\ Ll citou, ao longo dos tempos, uma longa e famosa celeu-
qua1s se realiza a imitação poética, distinguindo assim imi- lll :t. Esta surgiu por uma série de contingências. Em pri-
tação direta, através de atores (teatro), da imitação indireta, 111 ·i ro lugar vêm as dificuldades de compreensão a partir
pela mediação narrativa (epopéia). d · liferentes traduções, às vezes decalcadas em diferentes
------ llt :t nuscritos. A Poética, tal qual a lemos hoje, é uma obra
28. Aristóte les- Poética, tradução de Eudoro de Sousa, O.C. , p. 78, nota 2. 11 · )mpleta à qual faltam partes fundamentais. A própria

42 43
Um dos elementos que Aristóteles coloca constante:-
concepção do dr:lm:l, desafortunadamente, como bem ex-
plorou U mberto Eco (em O nome da Rosa} chegou até nós. 111cnte como fundamental na obra literária é a unidade,.
apenas em parte - já q,ue·se perdeu o texto' referente à co-- ·ntendida esta como um princípio integrador que confere
o
me'd'ta29 . cunoso, entretanto·, é que as grandes discussões·
o
,
1
la um caráter orgânico. A preocupação de Aristóteles.
rom a unidade reflete.sempre a idéia de que a obra deve ser
e as grandes críticas surgem a propósito daquilo que Aris-
tóteles teorizou e que temos à mão. Discorre-se até' hoj;e m rodo integrado, o que vale dizer uma estrutur~. Fal_an-
sobre a teoria da trag~dia, às vezes até com crítica ao Fi}á:-
11
do, por exemplo, das obras homéricas, de enfau~a a m:-
sofo, enquanto as. reflexões sobre a comédia são relativa- p rtância da unidade, concluindo que uma nar~au:a poe"
1i a deve ser um todo completo, e nela todos os me1dentes
mente parcas3D . I sto s1gm'fi1ca que o ponto de p:lrtida de:
o

qualquer discussão teórica acaba sendo o texto aristotélico·,. levem estar de tal forma conectados que qualquer modift-
na verdade sua definíção de trag~día: ·ação ou retirada de um deles destrua o tod~. A in~istência
· m que o Filósofo coloca o problema de mtegndade da
É pois a tragédia imitação· d'e tuna ação de caráter
elevado, completa· e de certa. exter<1são,_em lir:1guagem
obra, através de uma unidade interna rigidamente obser-
ornamentada e mm as vár ias espécies de ornamer1tos vada, implica sua visão como estrutura, isto é, como um
distribuídas pelas diversas partes [do drama], [imitação
1
do estritamente relacional. Pode-se lembrar que essa
que se efetua1>não por narratíva, mas.med iante atores, e i léia seria depois desenvolvida por várias correntes teóri-
que, suscitando o "ter~or e a piedade 1', tem por efe ito-a o 32
purificação dessas emoçõesn. ·a d a L1teratura .
O fato de ser uma imitação feita por atores indica que A relação da obra com a realidade, como se pode de-
um dos fatores constitutivos da tragédia é o espetáculo cê- preender, não é de mera cópia. Sendo efa de caráter uni-
nico, _mas o filósofo deixa bem claro que este~ embora seja versal e filosófico, deduz-se que ela implica um processo
e~oe1onante, é de certa forma dispens-ável, porque a tragé-
!c transcendência da realidade. Com Aristóteles coloca-se
dla pode provocar seus _efeitos próprios mesmo sem repre- ·l::tramente o papel do poeta em termos não de mero copia-
sentação e sem atores. E por isso que se pode ler o texto de lo r, mas de criador de uma entidade autônoma, que é a
uma peça de teatro. obra, uma entidade que tem unidade e qualidade formal
próprias e que gera o seu próprio mundo. A arte aparec~,
as im, como uma forma específica de exploração da reah-
29. s_ahemos_q~e a Poética incluía um estudo sobre a comédia, porque a· isto- lade e, portanto, em última análise, com~ uma form~ ~e
o propno Anstoteles. faz referência Ma Arte Retórica: "( ... ) mas sobre o que ·o nhecimento de eficácia, já que propore1ona uma v1sao
pro~oca o nso damos as definições úteis na Arte poética ". A edição aqui uti li--
zad-a traz uma nota de rodapé, enfatizando esta perda. Tra~a-se de Aristóte- da co ndição humana que não poderia ser expressa por ou-
les, Arte retórica,.Artepoética, tr.adução·deAntonio Pinto de Carvalho, p. 77,
nota 2'.
3?' É interessante lembrar, entretanto, que no que nos resta da Poética, Aris-
---- --
12. e deixarmos de lado preconce itos modernosos, que costumam ~ti~ar
to~e l es faz referências, às vezes, bastante claras, à comédia, à narrativa épica 1\ri -;tóteles no ro l dos obsoletos, podemos pe rceb er que sua obstmada 1de1~
e aPoes1aem ge;aL Ele o f~z, muitas vezes, no sentido de co nfrontar cada gê- L unidade e da organicidade das partes, como fundamenta is para a ob.ra, e
1 1
nelo com a traged1a e, ass1m, esclarecer melhor sua natureza. , preocupação estruturali sta muito anterior ao mov1me nto qu e levou
11111 1
31. Aristóteles- Poética, tradução ele Eudoro de Sousa, O. C., p. 74, nota 2. I"•SC' nome.

45
44
A retórica de Aristóteles
l'l'? , 111 nif ·sca . . s elo saber. Isto tudo acontece porque a
1.. 1L •ra
u ra, ao contrário ela História, que relata o ocorrido, A propósito de outros trabalhos de Aristóteles, 3de apli-
v. Ica- · · 'para o que poderia ter ocorrido", propiciando as- cação extremamente atual, lembremos A Arte Retórici , trans-
Sim uma exploração específica e profunda ela realidade, já
ferindo-se a idéia de persuasão puramente judiciária para a
~ue transcende o seu aspecto factual e, no plano elas virtua-
inescapável persuasão que qualquer obra deve ter, sob o ris-
hdacles, amplia os limites ela experiência humana. Mas se
co de não ser lida. Os estudos de retórica foram, por exem-
ao poeta não cabe descrever o fato real ela História, ca-
plo, magnificamente utilizados na pesquisa do romance, 34
be-lhe, entretanto, a obrigação ela verossimilhança. Isto é entre outros, por Wayne C. Booth, The Rhetoric ofFiction •
expresso na fórmula aristotélica segundo a qual é preferível
o Impossível crível ao possível que não convence. Poderíamos dizer que o tratado de Retórica de Aristó-
teles deveria sempre ser lido também como complementa-
ção de sua Poética. Na verdade, desde a Antigüidade, auto-
res houve que se dedicaram a compreender a arte literária
O con_ceito ele catarse, por outro lado, restaura a digni-
servindo-se, sempre que necessário, dos elementos estuda-
dade da Literatura. A tragédia, como obra literária, produz
dos na Retórica. Não é mera casualidade o fato de Wayne
a s_atisfação "benéfica" que propicia a contemplação ela
C. Booth, teórico ainda hoje extremamente atual da fic-
umd.acle estrutural. Ela produz, assim, conhecimento (a
ção, ter escolhido a Retórica para o título de sua obra, além
poesia tem um caráter filosófico), satisfação estética (pela de utilizá-la, mesmo sem o declarar, em inúmeras discus-
contemplação da unidade estrutural), e, ainda, um efeito sões sobre a natureza essencial da narrativa. Na obra de
salutar no corpo e na mente do espectador (pela catarse). Booth o elemento retórico permeia a narrativa, ainda que
Alguns outros conceitos considerados modernos já autor utilize os mais diversos esquemas para dele fugir. A
aparecem embrionariamente na obra de Aristóteles. Um voz retórica aparece, por exemplo, e logo de saída, pela
caso curioso ocorre quando ele fala do papel do poeta na presença de um narrador, que, às vezes, tentando disfarçar
ep"op~ia. Ele elogia Homero porque este tem plena cons- sua voz, acaba por denunciar sua presença e até a presença
Ciencta de seu próprio papel na narrativa épica, mantendo descarada do autor. Também não é meramente casual que,
a necessária impessoalidade. Para Aristóteles, o poeta, na ntre suas inúmeras "novidades", Roland Barthes tenha
, . A . 35
1 roduzi d o um texto so b re a Retonca nnga .
:~opéia, deve diz_er o mínimo possível em seu próprio nome,
p que, ao falar dtretamente, ele quebra o processo da "imi-
tação". Pode-se perfeitamente transferir tais palavras para
------
33. Ari stóteles -Arte retórica in Arte retórica e Arte poética, Tradução de
um e:tudo do papel do narrador no romance, por exem- t\1 to nio Pinto de Carvalho , nota 2.
:14. Wayne C. Booth- Th e rh etoric of fiction, The University of C~ icago Pr s .'
plo. E preciso ter-se em mente, contudo, que as considera- 1')(i 1. [Há tradu ção para o português de Maria Teresa H. Gue rreirO, A r tón-
ções de Aristóteles estão limitadas pelo corpus literário de ( \ 1 da ficção, Lisboa, Arcád ia, 19801

que dispunha. :l5. Roland Barthes- "A retórica antiga" in Jean Cohen et ali i, P squi a d r '-
tôrica, coleção Novas Perspectivas e m Comunicação/1O, P tróp li s, V z s,
11 75 , p. 147s .

46 47
A preocupação com a Retórica aparecera na Antigüi- la ciência. A Retórica é necessâ:áa nas situações que .com-
dade, já com Platão, quando, após a atuação de Tísias ,e I ortam duas soluções contrárias, :exercendo-se, por~an;o,
no campo da opinião, não .se podendo .esquecer a ·extsten-
C~r~, dase i~punhacomo obje:o ~e estudo: P!~tão, no
Gorgzas e Fedr:o , ressalta as excelenctas da Dtaleuca, en- ·ia de uma opinião contrária à do orador.
quanto condena o estudo e o exercício da Retórica, consi- A Retórica é, assim, algo essenCialmente bom e útíl, e
derada esta como instrumento perigoso a ser utilizado pe- Aristóteles parece estar respondendo a Platão .q uando ar-
los oportunistas, na conquista do sucesso fácil, e como re- rumenta que ela não pode se~ culpada do ,m.au us~ que
curso .a ser utilizado pelos desonestos para contrariar a jus- dela se venha a fazer. Ele admlte que a Retonca pode ser
tiça. A discussão sobre a Retórica continuaria, na Antigüi- usada injustamente e causar danos, mas.isto também .a con-
dade, por Aristóteles, Cícero e Quintiliano. tece com todos os bens, à exceção da virtude.
Aristóteles, como já vimos, na sua Arte Retórica (século Sua natureza essencial é a capacidade de discernir, de
um contexto geral, aquilo que possa persuadi/ • A p.ers~­
7
IV a.C.) concretiza um estudo abrangente do assunto, des-
de sua conceituação até os elementos que entram em jogo asão resulta da adução de provas, que podem ser de dms
no seu exercício. Para ele, a Retórica é uma arte que tem tipos: aquelas que não dependem da arte do or:d~r e q~e
uma certa analogia com a Dialética. O exercício da Retóri- são pré-existentes ao discurso, e aquelas que .sao forneci-
ca é algo que as pessoas fazem mais ou menos instintiva- das pela arte do orador, por seus. próprios mews, ~elo seu
mente, pelo hábito, sendo um fator primordial na comu- discurso . As primeiras (a que hoJe chamamos extnnsec;;;}
nicação humana. A Retórica de Aristóteles é uma sistemati- são os testemunhos, as confissões "obtidas pela tonu:a . '
zação de alguns princípios, resultantes de uma investiga- as convenções escritas e outras. Mesmo existindo mde-
ção teórica das causas que levam o exercício da Retórica a pendentemente da arte do orador, estas provas devem s~r
ter êxito nas relações entre os homens. Trata-se de uma usadas de forma inteligente, a fim de que produzam o efet-
arte no sentido de que se parte da observação de seu fun- to desejado.
cionamento para uma formulação dos princípios que po-
Estas constituem, na verdade, o âmago dos procedi-
dem levá-la ao sucesso.
mentos retóricos, uma vez que dependem da arte do ora-
A Retórica, para Aristóteles, é útil porque sua finalida- dor e da maneira como ele manipula seu público. ~ode
de é conduzir à verdade e à justiça. É necessária porque dá fazê-lo a partir de sua própria credibilidade (provas éucas),
ao homem meios de levar determinadas pessoas a toma- u despertando no público reações favoráveis (provas pa-
rem decisões corretas. É assim que o homem pode levar os téticas), ou simplesmente procurando trazer provas por
juízes, num processo, a proferirem uma sentença verdadei-
ramente justa, num campo em que não entram as provas
~. ~ : s: e: s =-Arte retórica in Arte retórica e Arte poética , trad ução de
Anto ni o Pinto de Carvalho, O .C. , p. 22, nota 2. , .
36. Platão - Córgias o u A oratória, tradução de Jaime Bruna, São Pa ulo, Difu-
são Euro péia do Livro, 1970 ; Fedro , in Platão- Diálogos 1- Rio de Janeiro,
:w. Nos te rmos de Aristóteles, 0 que correspo nde às práticas inte rrogato nas
Ed ições de O uro, 1971. cl ;:~ é poca.

48 49
determinados procedimentos no discurso, a começar pelo ·ture alguns oradores que se reúnem durante três dias na
uso da capacidade persuasiva que a própria linguagem lhe ·asa de campo de Crassus em Tusculum. A forma do diá-
fornece, quando bem trabalhada. Estas últimas colocam a logo segue o modelo platônico, e o cenário dos encontros
Retórica muito próxima à Dialética.
I ·m bra o ambiente poético de Fedro. O De Oratore é uma
A Dialética utiliza o silogismo (dedução) e a indução. r 'ação às escolas de Retórica da época, onde só se ensinava
A Retórica utiliza também o processo dedutivo, mas atra- um conjunto de regras, na tentativa de "fabricar" oradores
vés de um silogismo específico, o silogismo retórico ou en- através de receitas. Cícero considera que o orador não deve
timema; utiliza ainda a dedução através do exemplo. O en- s T apenas um indivíduo de posse de um arsenal puramen-
timema é construído através de premissas que são confor- 1 • técnico. O orador deve ter um conhecimento geral sóli-
mes com a opinião, a partir do senso comum. Ele parte de 1 da natureza humana, da Filosofia, do direito. Isto não
fatos sobre os quais cabe deliberação, pois premissas total- .~ i gnifica que o orador deva ser um perito em cada assunto,
mente evidentes como que carecem de demonstração. Se mas antes alguém que tenha noções básicas sobre questões
uma das premissas do entimema for algo já conhecido ela I' néricas e condições para compreender um assunto novo,
pode ser omitida, daí o entimema aparecer, às vezes, como s ·m ser nele especialista. Observe-se que, do ponto de vista
silogismo incompleto. p dagógico, Cícero está manifestando uma preocupação
que é comum entre educadores de hoje, para os quais um
preparo geral sólido do aluno, em sua educação básica, é
A preocupação com a Retórica continuou na Antigüida- l"undamental para que ele exerça corretamente qualquer
de e, na verdade percorreu o Neoclassicismo, chegando a in- 1 rofissão que venha a escolher.
teressar um ícone da modernidade como Roland Barthes39•
O orador, para Cícero, embora aborde casos particula-
Em Roma, Cícero (séc. I a.C.) foi quem estabeleceu 1·s, deve ser capaz de chegar a princípios gerais, a preceitos
uma das grandes sistematizações da Retórica, o que se I · ordem universal, e até mesmo ao terreno filosófico.
compreende se se pensar que toda a sua vida política foi di-
Nos diálogos do De Oratore, que segundo Cícero che-
tada por sua atividade oratória. Seus textos fundamentais
sobre a Retórica são: Orator, Brutus e De Oratore. A siste- J•,a ram até ele através de informações (já que são anteriores
,1 ·lc), Crassus e seus amigos discutem o estatuto do orador
matização mais completa está no De Oratore, concebido
1 o mo homem que participa da formação dos estados e do
quando Cícero, com 25 anos de sucesso, ocupava o primei-
di r ~ito. Isto significa que o orador deve ter um conheci-
ro lugar entre os oradores. O livro é em forma de diálogo
lll ·tu o razoável de diferentes assuntos, tendo ainda uma

------ 1 .q acidade de elocução que lhe permita falar melhor de um


39. Entre nós há, por exe mp lo, alguns estudiosos qu e vo lta m seu inte resse à 11. su nro que seu especialista. Como bons latinos que eram,
Re tóri ca . Destaca mos: Da nte Tringali, Introdução à retórica, a retórica como
011 amigos, no diálogo, estabelecem a prioridade do conhe-
crítica literária, São Pa ulo, Duas Cidades, 1988; Massa ud Mo isés, Literatura:
Mundo e form a, São Pa ulo, Cu ltrix, Edusp, 1982 ; Rob e rto O. Brandão, Tradi- 1 imcnto do Direito na formação do orador.
ção sempre nova, São Pau lo, Ática, 19 76.

50 51
40
Quintitíano·, com Instituições arat6rias (século I) , pro- como a do "efeito" d'e Edgar Alfan Poe, das idéias.simbolis:-
duz também um tratado de Retórica .. Suas discussões par-· tas, e da própria Teoria da Recepção. Claro está que nin-
tem, no geral, de Aristóteles e Cícero. Sua preocupação guém pensaria em coletar regras para procedimentos que
maior é com a compos-ição do discurso, e nele temos uma manipulem apenas o 1ei:tor na Li:teratura. No entanto, a
discussão mais minuciosa dos recursos que podem embe- mensagem literária tem um emissor que se dirige a um re~
lezá-lo. Fala de qualidades gerais como a. facilidade, a sim- ceptor e, por menos que disso o auto r se dê conta, a preo~
plicidade e a elegância. Pa:ra ele, entretanto, a eloqüênci'a cupação em ser '~recebido" e até" aceito" está indusa em seu
não depende apenas dessas qualidades gerais. O orador, trabalho. Pode-se dizer isso·, por exemplo, de um autor ex-
para ser eloqüente, precisa falar com ornamento. Resulta:. tremamente difícil de ser compreendido como·James Joyce.
daí uma discussão do "ornatus". Este deve sugerir um esti- O mesmo·se pode falar do teatro do absurdo do séculn XX..
lo viril, forte e natural. Quintiliano fala da importância. Não nos cabe aqui a tarefa de fornecer modelos de com-
que tem a escolha das palavras. Admite que os romanos posição·, já que este texto não se destina a formar escritore~,
criaram palavras. novas por composição e derivação . Na es- ainda que se tenha: a pretensão de colaborar na formação d?·
colha das pafavras a preocupação, entretanto, não deve ser crítico. A Retórica, entretanto, é rica em modelos que servi-
apenas. semântica, pois o. som (como diríamos hoj.e,. um rão tanto na composição como na formação do j.uízo crítico·.
elemento do sig,nificante) é fundamentaL A escolha voca-
Pode parecer estranho colocar aqui uma discussão so-
bular deve também obedecer ao critério· da eufonia.
bre diferentes tratados de Retórica quando, páginas atrás"
No estudo da eloqüência Quintilian0 detém-se no es- discorríamos sobre duas visões do fiterárin, as de Platão e
tudo da metáfora,. da sinédoque, da metonímia, da alego- de Aristótdes, no primeiro sob a forma de observações su-
ria, da ironia, do hipérbato, da hipérbole.. Tudo isto, para cintas e, no segundo, com um tratado propriamenteycom
Quintiliano, são tropas que não se confundem com figu- uma Poética. Ocorre que esta inserção da Retórica pareceu
ras. Divide as figuras em: fíguras de pensamento e fi- necessária porque as relações dela com a Poética, com a
guras de palavras. Entre as primeiras estão a interroga- T eoáa Literária,.são inegáveis. Autores houve que se volta-
ção, a exclamação, él' prosopopéia. Entre as figuras de pala- ram mais para a Retórica, outros para a Poética, mas não
vras Quintiliano· menciona a reduplicação, a sinonímia,. significa isto que sejam domínios completamente, ~stra-·
elipse, assfndeto e outros. nhos um ao outro. Voltamos agora ao estudo das Poeucas .
Poderia parecer estranho um estudo da Retórica num
trabalho sobre Teoria da Literatura. Não nos esqueçamos, Horácio
entretanto, que há um discurso literário que não é neutro, e
cuja carga persuasiva torna-se indiscutível depois de teorias A Ars Poetica de Horácio é o nome que se agregou à
41
Epístola ad Pisones • Nela encontram-se os pontos básicos

40. Quintil iano - Instituições oratórias, tradu ção em linguage m portuguesa ------
por j erônimo Soares Barbosa, 2· v. , São Pau lo, Cultura, 1944. 41. Horácio- O.C., nota 23.

52 53
que marcarão a Teoria da Literatura no período clássico, Estas observações são diversas de outras posições do
no Medieval e no Neoclassicismo (principalmente através Jassicismo, como a teoria da imitação, mas podem servir
de Boileau). Em Horácio o valor máximo é a perfeição, en- para completá-las. Por outro lado, a Poética ~e Horácio
tendida esta como o equilíbrio supremo. Em linhas gerais, 1 ·m um aspecto claramente didático na medida em q~e
isto apresenta o típico pragmatismo romano, evidente em l'Xprime os procedimentos, a disciplina, as regras da cna-
frases da Arte Poética que se tornaram sua marca funda- ~·ão para aqueles que nasceram com o talento.
mental: espírito rígido que tanta influência teria em épo- Horácio preocupa-se também com características, como
cas posteriores. Estas características já apareciam em obras liunidade. É verdade que ele associa a unidade a certas re-
anteriores de Horácio (poemas, sátiras, epístolas), mas é na pras de harmonia, que ~ão permitiriam, por exemplo, a ex-
Arte Poética que assumem sua forma definitiva. 1 ressão do fantástico. E o que acontece quando ele fala de
um quadro onde houvesse uma cabeça humana, um pesco-
O que se nota na expressão de Horácio é a preocupa- 42
ço de cavalo e membros de outros animais • Independen-
ção quase obsessiva com exatidão. Sentimos claramente
l ·mente de ser isto absurdo ou não, admitamos que, leva-
sua atividade incansável no sentido de chegar à expressão
la a extremos, essa colocação impede qualquer expressão do
correta e precisa. Isto é extremamente interessante porque
Emtástico, do teatro absurdista, por exemplo.
outros autores do classicismo, mais tarde, irão enfatizar a
imitação de expressões consideradas perfeitas e não o tra- Para que o autor consiga o ideal artístico (para Horácio
balho de construir a perfeição no momento criador. Isto "útil e agradável") ele precisa não só observar certas re-
tem a ver com a visão da obra literária como uma constru- >Tas de composição, trabalhando com afinco, mas tam-
ção, resultado de um "fazer", o que caracteriza posições bém procurar ouvir opiniões críticas. É preciso também
modernas como o Formalismo Russo, o New Criticism e o ue não se deixe levar por uma primeira impressão de mo-
1
Estruturalismo. mento. Melhor é que deixe sua composição guardada por
algum tempo, para então a ela voltar, quando estará mais
Este fator trabalho difere tanto da mera imitação quan-
habilitado a decidir o que a obra vale.
to da velha teoria da inspiração. Na verdade, sabemos nós,
toda obra reflete a Literatura que lhe é anterior, mas isto A idéia de "útil e agradável" indica que Horácio atri-
não significa a cópia. Toda obra depende de condições, de buía à Literatura o papel de provocar efeitos que dev~­
um momento especial, talvez, mas isto não se confunde riam ser benéficos. E isto só seria possível numa composi-
com a magia da pura inspiração. ção agradável que conquistasse o leitor.

Quando Horácio deixa claro que, para haver criação,


Longino e a teoria do sublime
são necessários "talento e arte", confirma-se sua relação,
em parte, pelo menos, com posições modernas. Falar do Para Longino, há dois aspectos que tornam po~síve.l a
talento significa admitir que o poeta é um ser com apti- Literatura: a natureza e a arte. Significa que, em pnmeuo
dões especiais e que, por assim dizer, nasce poeta. Falar em
arte significa reconhecer que a obra é resultado de um tra-
balho engenhoso, d e um "fazer" específico.
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42. Horácio -Me poética, tradução R.M. Rosado Fernandes, O.C., p. 51, nota 23.

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i}ugar., necessário é 'que ,o :indl.ivfd.wG> itenih a talento naturall
;para que uma ohra surja. Isto, ,eutretanto, não ,é suficiente.
O talento nauuai nada :produzirá se não houver .o ·e:x;erckio
·artístico, o aspecto de trab.alho, algo <[Ue .compreende{~
domínio de certas técnicas, .a capacidade adquirida, pelo
exercício, de manipu;lar os recursos .da 'linguagem, ,co".isas
que, ·.e ntre 'o:ut:ras, dependem de um aprendizado. [)ida-
mos que .o indiv:í duo pode nascer poeta mas terá ainda de
se fazer poeta, ou seu talento nunca .despontará.
Para Longino o propó.sito do autor é atingir o ·stib1ime,
·e ntendido este não •como sensação momentânea, mas an-
tes como aspecto que permeia a obra toda e que não tem
seu efeito jamais desgastado.
Quando, pois, urna passagem, escutada muitas ve-
zes por um 'homem sensato e versado em Literatura,
não dispôe.a.sua alma a sentimentos .elevados, nem dei-
xa no se.u pensamento matéria para reflexões além do
que dizem as palavras, e, bem examinada sem interrup-
ção, perde em apreço, já não haverá um verdadeiro su-
blime, pois dura apenas o tempo em que é ouv.ida. Ver-
dadeiramente grande é o texto com muita matéria para
reflexão, de árdua ou, antes, impossível resistência e
forte lembrança, difícil de apagar4 3.
Em nossos dias, diríamos que essa qualidade é a do tex-
to que admite um número infinito de leituras em dois sen-
tidos: primeiro porque não se desgasta e, depois, porque
cada leitura revelará sempre aspectos novos.

43. Longino ou Dionísio- Do sublime in Poética clássica, tradução de Jaime


Bruna, O.C., p. 76-7, nota 23.

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