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O MERECIMENTO

Eu merecia conhecer certas pessoas. Algumas eu vi de relance, outras apenas


tiveram a existência inventada por algum escritor, tem aquelas que são famosas e as que já
morreram.
Na primeira vez que andei de Metrô em São Paulo, quem conduzia aquela cobra-
cega metálica era uma mulher. Eu merecia conhecê-la, saber como é atravessar os dias
debaixo da terra, tendo a metrópole sobre a cabeça e a constância da paisagem nos olhos:
um túnel escuro e reto, as estações, pequenos oásis de luz artificial, e às vezes, uma passada
por sobre a terra. Queria muito saber o que ama esta mulher? Ou como ela explica aos
filhos a muita ausência do sol na sua rotina?
O piloto do avião que deixa um rastro de fumaça no céu é outro que eu merecia
conhecer. Fico intrigado com aquele risco branco no azul. Existe naquele momento um
homem escrevendo e sendo a liberdade. Será que ele sabe disso? Um homem solitário no
cérebro de uma máquina, distanciado da superfície rasa das coisas, manchando as manhãs e
as tardes com sua escrita efêmera. Aquele avião e seu piloto, quase invisíveis de tão
distantes, me afagam de viagens.
Eu também merecia conhecer Abel, personagem do romance “Avalovara” de
Osman Lins. Este homem inventado precisava ser real, transitar entre nós, tal a força de
sua busca e a entrega amorosa a que se submeteu. Outros inventados que poderiam ser reais
e presentes no meu círculo de amizade são: GH, de quem não sei nem o nome, Hillé, a
Obscena Senhora D e o sempre cortante Brás Cubas.
Tem aqueles que “a indesejada das gentes” já seqüestrou para seu estômago: um dos
figurantes do “Encouraçado Potemkin”, um amigo qualquer de Dante, uma escrava
fugitiva, meu bisavô. Pessoas que viveram antes de mim, eu merecia conhecê-las para além
da tirania do tempo.
Eu merecia conhecer Leila Pinheiro. Saber como foi ouvir pela primeira vez
“Cata-vento e Girassol”. Saber de seu maravilhamento quando as notas se soltaram do
violão, quando as palavras arquitetaram-se no sentimento e ela percebeu que poderia gerar
na garganta o insuperável. Dividir com ela a alegria que esta canção me dá. É sempre um
resgate, um salvamento preciso. Ainda hoje, quando começo a esquecer o que é a beleza,
ouço Leila, ouço “Cata-vento e Girassol” e retorno ao humano que sou.
Na verdade, eu merecia era conhecer os seis bilhões de pessoas que andam por aí.
Cada uma carregando seu universo, suas vertentes de lágrimas e felicidade, seus humores,
fomes, risos expostos. Uns augúrios, outros dinheiro. Uns vendavais de violência, outros
árvore e fruto. Uns tanto, outros mais.

Rubens da Cunha: Escritor – Autor de “Campo Avesso”

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