Você está na página 1de 1

O Corpo da Gratido

Qual o corpo da gratido? Pode ser um lobo em dia de caa profcua, um banho
de chuva que nos presenteia de infncia a memria e a pele.
A gratido, se vista por velhos, pode ser o domingo de visita dos netos, se vista
por crianas, pode ser o co, o pssaro, o inseto privado de asas.
A gratido, s vezes, se veste de vermelho e alivia mulheres culpadas, ou se veste
de verde, camufla-se de rvore, calada, carro outras vezes, quando jovens
aconchegam instintos madrugada adentro.
Em uns, pode ser o sorriso, noutros um toque nas costas, mos estendidas, hstia
e orao. Tem aqueles que percebem a gratido nas crneas, no corao ou
fgado: nos transplantes superiores morte.
A gratido tambm gosta de ser um rio despoludo, aprecia sobremaneira ser uma
floresta intacta, distanciada dos machados. Dizem, que de segunda sexta, ela
um peixe-boi e nos finais de semana descansa dentro do sol.
Os poetas sabem muito do corpo da gratido: conhecem-na letra por letra.
Msicos tambm, afinal, ela um violoncelo descobrindo Mozart.
Est inteira nas ruas e pode ser vista por toda a gente: o mendigo de culos
escuros; a cega falando ao nada sou deficiente, preciso de sua ajuda; o torneiro
mecnico com olhos cansados; o homem do cachorro-quente que erra no troco; a
vendedora de flores, que a cada no recebido dos motoristas, agradece sem
nenhum pudor a pequena rejeio, deixando que todos vejam sua falta de dentes;
o malabarista distrado que no percebe o sinal abrir e continua seu trabalho de
corporificar o equilbrio; a mulher e seus filhos rpidos demais, anda devagar
menino!. A gratido a voz da me.
Quando todos dormem, vigia os hospitais, as praas pblicas, as fbricas, os
insones, os morcegos e outros bichos da noite. A gratido a noite. Quanto todos
acordam, est nos necrotrios, cemitrios, lembrando o destino de cada
respirao.
Tem dias que gosta de ser abstrata: um novo amor contornando a boca do homem
abandonado; uma esperana, magra, mas bonita, que aquece a semi-nudez da
prostituta; uma certeza de vitria, de ausncia de lgrima; uma alegria ancestral
que retornou pra ficar. Em outros momentos se faz avessa: cime, dio, irritao
contnua. A gratido um poo de contrrios.
Por vezes ela uma inutilidade feita apenas para agentar o peso do mundo: um
poema perdido entre os cadernos; flores nos beirais das casas; fotografias;
palavras ditas em segredo; banhos de mar; salto de pra-quedas; alpinismo.
Assim, a gratido o Everest. O dedo de Deus.
Rubens da Cunha: escritor integrante do Grupo de poetas Zaragata. Autor do
livro de poemas Campo Avesso.

Você também pode gostar