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Monólogo da Sombras - a peça-espelho

Escrevo pra te dizer que, depois de mais de dois anos, voltei ao teatro.
Aquela sensação de reencontrar um lugar muito conhecido, íntimo, que
nunca tinha saído de mim, melhor, eu nunca tinha saído dele. Vivemos
tempos de ausência e de medo da presença, por isso, retornar foi um ato de
coragem e de paixão. E retornei para ver uma peça chamada Monólogo da
Sombras, no Teatro Castro Alves. Esse teatro é um complexo cultural gigante,
capaz de colocar vários eventos ao mesmo tempo e era isso que estava
acontecendo no domingo à noite. Na sala principal, o Balé Castro Alves com
o espetáculo Viramundo em homenagem aos 80 anos de Gilberto Gil. Na
Concha Acústica, espaço aberto para shows, Lulu Santos animava uma
plateia lotada e na Sala do Coro, não mais que 50 pessoas estavam ali para
ter aquela experiência íntima, solidária, com ele, o Teatro. Apesar do
gigantismo barulhento dos outros eventos à minha volta, foi de silêncio e
ternura esse meu retorno.
Monologo das Sombras é uma produção da Território Sirius Teatro,
companhia que tem 22 anos de história e está aqui em Salvador fazendo e
vivendo a arte teatral nesses perrengues e alegrias que conhecemos bem. A
peça transita em complexos conceitos contemporâneos: escrita de si,
autoficção, escrevivência. Fabio Vidal, autor, diretor e ator parte de sua
biografia para refletir sobre os processos de doença e cura, vida e morte,
desespero e esperança e, sobretudo, o terrível encontro que devemos ter
com as sombras que nos habitam. Há luto na peça, mas não há tristeza,
porque o pessoal da Território Sirius também estava tendo seu encontro
íntimo com o Teatro e Fábio estava tendo seu encontro íntimo consigo
mesmo, com suas sombras e conosco, sombras na plateia.
No começo dos anos de 1990, quando tinha em torno de vinte anos, Fábio foi
diagnosticado com a Síndrome de Guillain-Barré (SGB). Trata-se de uma
síndrome rara que ataca o sistema neurológico. Vamos acompanhando o
processo de formação do jovem artista, até que ele para no hospital sem
saber o que tem. A doença se agrava, há uma experiência de quase morte (a
sombra! a sombra!), depois o diagnóstico, a lenta recuperação e a sequelas
que ficaram no corpo fizeram com que Fábio não apenas renascesse, mas se
fizesse outro. Se tornasse o ator flexível e vasto que é. Fábio retoma essa
história, 30 anos depois, a partir do recente falecimento de seu pai. A história
dos hospitais, dos medos, dos ditos e não ditos se repete por outro viés. A
partir desses momentos, o que temos é uma biografia marcada pela
superação, pelo entendimento dos limites ou deslimites do corpo, pelo
acesso àquela tão julgada percepção extra-sensorial que temos, mas dizem
alguns doutos que não temos. Fabio nos leva por essa visita, enquanto
enfrenta seu fantasma-sombra e expõe os fantasmas-sombra da saúde
pública, das violências de uma metrópole, do medo de não ser mais o
mesmo, melhor, o medo de se tornar outro por causa das sequelas. Tudo se
mistura numa encenação documental que comporta teatro de sombras,
filmagem e transmissão ao vivo, posições de Yoga, conversa, delírio,
metalinguagem e a ironia (informada logo no início) de que ele sabe como
começar esse monólogo, mas não sabe como terminá-lo.
Não é fácil mesmo terminar esse monólogo das sombras, porque é um
dessas peças-espelho. Busco essa imagem, inspirado na água-viva Clarice
Lispector, que dizia que o espelho não é uma coisa criada e sim uma coisa
nascida, que é o espaço mais fundo que existe e é algo que nunca se quebra,
porque um pedaço mínimo de espelho é o espelho todo. Monólogo das
sombras é assim: nascido e não criado. É um espelho porque nos coloca na
frente de nós mesmos, nos faz olhar nos olhos, nos faz aceitar ou rejeitar a
Santosha, palavra em sânscrito para contentamento. Nos faz ver em Fábio,
em seu pai e mãe, em suas irmãs e amigos o que somos, o que podemos ser,
o que desejamos trazer à tona ou esquecer. Nos faz ir ao teatro ter um
encontro íntimo com a dor, a doença, mas também com seu contrário: a
cura.
É provável que lá fora, Lulu Santos, tenha cantado aquele seu sucesso
chamado, justamente de A cura: “Existirá, em todo porto se hasteará / a
velha bandeira da vida. / Acenderá, todo farol iluminará / uma ponta de
esperança. / E se virá, será quando menos se esperar, de onde ninguém
imagina / demolirá toda certeza vã / não sobrará pedra sobre pedra.” Ali,
naqueles escuros sombrios da Sala do Coro, eu soube que a velha bandeira
da vida havia sido estendida e sombra, luz, espelho, medo, morte, vida e
Vidal tinham acontecido. Já não era um monólogo, era um diálogo, mais:
uma conversa, como há muito não se tinha.
Te escrevo para contar isso e saber de teus encontros por aí.

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