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Olinda e José

Eu os vejo pouco. Não devia. Olinda e José compõem um destes cernes


amorosos raros. São idosos. Ele padece de uma cegueira recente, ela
aparenta ter saúde, apesar o olhar frágil, do andar vagaroso, talvez aprendido
com ele. Neles, o pacto romântico do amor eterno parece ter se cumprido.
Talvez, neles, já não haja mais amor dentro do conceito moderno,
terreno, ligeiro dos nossos dias, ou o amor tenha se cristalizado em outra
essência. Alquimia mesmo. Chumbo em ouro. Vida em poesia. Tudo neles
demonstra uma necessidade do ser-junto, uma simbiose que ultrapassa os
limites da carne, do tempo, do cotidiano e se fixa, etérea, para além da
cegueira, muito mais triste do que a que atingiu José, a cegueira vasta e
agressiva dos incapazes de silenciar e olhar.
Eu os vejo pouco. Não devia. Eles reforçam meu encantamento pelo
humano. Refazem o caminho de minha fé perdida. A fé que tive no próprio
humano e em seu Criador. Eles amaciam os cantos, as quinas por onde
passam a alma e a poesia. Talvez se os visse mais poderia amaciar-me
também. Talvez pudesse salvar minha alma das topadas e dos chutes que
ando dando ultimamente.
Da última vez que os vi, estavam numa igreja. Era domingo, quase
chovia. Um vento frio entrava pela porta lateral. Eles vieram iluminados, lentos,
quentes até, e sentaram à minha frente. Ela o guiava. Se guiava nele. Por
perto, ajudando, um filho, uma neta, gente que os vê todos os dias.
Acostumados, talvez até incomodados pelo sofrimento não esperado na
velhice.
Sentaram-se e aguardaram começar a liturgia. Do meu distanciamento
de observador e também do alto das ilusões que carrego, me pareceu que
Olinda e José não sofrem, não comiseram-se diante das agruras. Ao contrário,
quanto mais o mundo lhes pesa nas costas, mais parecem se elevar. Ela mais
do que ele. O fato de ser mulher, de enxergar ainda, de abnegar-se mais um
pouco ao marido a torna superior, imantada de uma candura inequívoca.
Lá no altar, o padre falava de renúncia, de entrega, de abandonar-se
para seguir os caminhos do Cristo. Pouco ouvi, pois sentados na minha frente
estavam Olinda e José. Maiores que as palavras do padre, que a igreja recém
inaugurada, que as pompas da liturgia católica. Olinda e José, silenciosos,
amorosos, oravam.
A missa acabou. Eu cumprimentei Olinda de longe, mas não tive
coragem de falar com José. Sou homem fraco diante do que me comove. Não
consigo naturalidade diante daquilo que me provoca o olhar, que sentencia
meu futuro.
Percebi mais uma vez que a vida escorrega, areia, pelas mãos e não
posso conter, o não posso segurar e entender. Apenas seguir e seguir,
palmilhando as possibilidades e escolhas. Passará um bom tempo até que eu
veja Olinda e José novamente. Sei que novamente terei um choque de
delicadeza. Apesar do treino, meu olhar ainda desacostuma-se um pouco
diante da beleza.

Rubens da Cunha

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