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Ave a cantora ave

Eu vi os olhos de uma cantora que nada via e por isso tudo cantava. Ela voou pelos
palcos de minha cidade. Ave mesmo, como convém as cantoras. A seu lado, estava um
homem abraçado a um contrabaixo acústico. Aquele instrumento era um corpo de
madeira musical desenhando trilhas, notas, caminhos para os passos da cantora, que
valsava, chovia sobre a roseira, e nos cantava sobre uma tal de Beatriz, sobre outra
mulher de nome Lilly Brown, sobre uma rua ladrilhada com brilhantes e um leão menino
dourando-se ao sol, além dos olhos tristes da fita chorando no gravador. A cantora que
nada via dentro da visão-nada dos comuns, distribuía aos ouvintes o mundo íntimo de
Oxum, o mundo fraterno de São Francisco, a malandragem de um tal Kid Cavaquinho.
Eram todas da amizade da cantora e do homem com contrabaixo, que gentilmente
dividiram comigo.
Noutro momento o rosto agudo, a dor aguada de um encontro tardio e salvador
saiu da voz da cantora, desdobrou-se numa bailarina, que com gestos curtos, curvos,
contorcionistas, se esvaia em luz sobre o palco. Não posso esquecer que o homem e seu
contrabaixo musicavam a pele da cantora e da bailarina. Eram quase um sonho.
Perdoem-me se não me faço entender, se o fato de eu ter visto os olhos da cantora que
nada via e por isso tudo cantava, me perturbou a clareza, mas é que a clareza foi tanta e
a ausência de sombra corresponde sempre a uma noite de negrumes inauditos.
Pior, é esta noite em minhas palavras que de nada servem, que se atrapalha
m na tentativa de recontar, de reconduzir a vocês o que vi. Sigo por teimosia, porque me
adono da insistência de inserir seus olhares alheios nos olhos da cantora. Houve também
um momento em que outros homens e mulheres surgiram. Eram da raça do homem e seu
contrabaixo. Portavam instrumentos, flauta, clarinete, violão, pandeiro. Eles ajudavam o
homem a construir uma trilha de som para a cantora. Talvez por isso ela estivesse
descalça, para caminhar sobre as notas despejadas pelos músicos e sentir os fás, dós e
sóis adentrarem-lhe a pele. Penso que seja esta a linguagem das cantoras: o corpo todo
imiscuído nas notas musicais. Pelo menos das cantoras que não sabem caminhar nas
estradas mais seguras. Falo daquelas cantoras em que tudo é aparência, montanhas de
dinheiro, gritos, manipulação, daquelas cantoras festivas e ocas. Essa não, essa cantora
era um estatuto de carne e música. Ela era um estado de doçura, tal como aquele que diz
que é doce morrer no mar.
E assim foi. O tempo em que vi a cantora pode ser dividido em dois: o tempo de
fora, talvez uma hora e alguns minutos. O tempo de dentro de mim: talvez algumas
eternidades, em que eu também nada via porque tudo escutava. Queria que todos
estivessem lá, que todos soubessem o que reverberou em mim naquele tempo em que
sonhei, vaguei, atravessei instrumentos, sons, vozes, em que residi na visão da cantora
que nada via e por isso tudo cantava.

Rubens da Cunha

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