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HONESTO E NÃO ORDINÁRIO

Por Marco Vasques e Rubens da Cunha

A primeira noite do festival (sim, porque a abertura catastrófica de


“Viúva, porém honesta”, não conta) apresentou, na noite de domingo, no Teatro
Álvaro de Carvalho, “Portela, patrão. Mário, motorista”, peça do grupo A boa
companhia, de Campinas. Com mais de 20 anos de estrada o grupo trouxe ao
20º Festival Isnard Azevedo uma das suas criações coletivas, com criação,
direção e atuação de Daves Otani e Eduardo Osório.
A peça retrata a relação de Portela, um rico fazendeiro de Roraima e de
Mário, seu motorista. Um dos pontos principais dessa montagem é o texto
bastante político, que nos remete ao teatro engajado, muito forte nos anos de
1960. Apesar de alguns clichês, de algumas obviedades, o dito sobre o palco é
uma denúncia do sistema neo-liberal que nos achaca diariamente e que nos faz
peões nas mãos de uma minoria endinheirada.
A relação, ora conflituosa, ora cúmplice entre patrão e empregado é bem
desenvolvida, sobretudo nas inversões: em certos momentos o patrão bebe
demais e esquece seu poder, passa a ser um pândego; em outros o motorista faz
às vezes de recrutador de operários e como tal, também exerce seu poderzinho
sobre os demais, como se fosse o capataz nas fazendas, ou o encarregado nos
setores industriais: trata-se de um explorado que ganha algum poder de
exploração concedido pelos patrões.
“Portela, patrão. Mário, Motorista” é uma peça sincera sobre velhos
problemas: a exploração do trabalho pelo capital, a destruição da natureza, a
destituição da dignidade humana pelo dinheiro. Aliás, as relações de poder
permeiam toda a montagem, que poderia ganhar muito mais força se não se
alongasse tanto, se optasse por uma concisão mais aguda, mais ferina na sua
denúncia. Sua principal fragilidade reside justamente em se ancorar em excesso
na palavra e apresentar uma dramaturgia redundante que a cada cena chega e
saí ao mesmo ponto.
À parte algumas soluções cênicas interessantes, como a manipulação de
quatro bonecos figurantes, a transformação dos espectadores em operários e da
construção de uma montanha em cena, a peça peca pelo ritmo arrastado e pela
falta de uma iluminação mais contundente. Em alguns momentos, o grupo se
aproxima do humor físico, quase clownesco, em outros é a frase jocosa que
ganha força, sobretudo na releitura de algumas piadas e trocadilhos conhecidos
do público.
Construída a base uma atmosfera lúgubre e do humor negro, com um
cenário árido constituído por duas cadeiras, uma mesa, uma caixa de cachaça e
alguns troncos secos, percebe-se toda a clareza da proposta do trabalho, ou seja,
afora o apontado, o espetáculo atinge com alguma competência a proposta de
explorar cenicamente os conflitos sociais a que estamos expostos. Já na tarde
da segunda-feira, no Teatro Ademir Rosa, o espetáculo “Cocô de Passarinho”, da
Cia. Noz de Teatro, Dança e Animação, tratou de manter a sina da abertura do
festival e escancarar a fragilidade da curadoria do 20º Festival Isnard Azevedo,
apresentando um teatro muito longe do teatro, mas infelizmente, no teatro.

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