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PRIMEIRO MILAGRE – A IRONIA PROMETIDA

Toda a obra de Dario Fo, iniciada no começo dos anos de 1950, está
calcada na sátira política e social. Ele é uma das vozes mais pertinentes contra
os sistemas opressores e corruptos que se apossam dos governos e lá ficam a
custo de mentiras, negociatas e jogadas escusas. Ficam a qualquer custo, ainda
que o preço seja a marginalização do humano, a instauração do inumano. Por
isso, Dario Fo se tornou um impertinente, uma pedra no sapato das agigantadas
estruturas de aprisionamento.
Trata-se de uma dessas vozes artísticas que se faz cada vez mais
necessária de se ouvir e ver. Mesmo canônico, laureado com o Prêmio Nobel de
Literatura em 1997, Dario Fo nunca se encaixou nos protótipos e estereótipos
dos escritores reclusos ou distanciados. Engajar-se, comprometer-se, dizer e
dizer-se o tempo todo era a sua grande característica. Teatral por essência, ele
sempre fez esboços de suas tramas na pintura, depois apresentava suas ideias
no palco e só depois desse processo é que escrevia. Entendia a escritura como
um consequência da vida, da existência, não o contrário.
Talvez por isso, seu teatro tenha uma carga tão forte de improviso,
coloquialidade, inventividade que fazem do humor de Dario Fo uma linguagem
muito específica. Dario Fo cria muito sobre os mitos, as lendas, as histórias
populares e religiosas. As fundações do que somos é o espelho de suas
indagações sobre o que nos tornamos. Esse e o caso de O Primeiro Milagre,
texto-roteiro no qual ele faz uma releitura do nascimento de Jesus Cristo e do
seu primeiro milagre, a partir de um evangelho apócrifo de Mateus.
Foi Primeiro Milagre, montagem do Grupo Risco de Teatro, que fez a
abertura da Mostra Local, no Festival Nacional de Teatro Toni Cunha. A
proposta do grupo, para além da fábula, é a de evidenciar as questões urgentes e
presentes nas sombras de nossos dias. E quais seriam essas questões? No final
da sinopse, o Grupo responde: “Primeiro Milagre vai além de elucidar uma
história milenar, ele trata de temas que se mantém fortes até os dias de hoje:
racismo, miscigenação, ego e a falta de habilidade das pessoas em serem
humanas.” Ressalte-se que ficamos na dúvida quanto à miscigenação nessa lista.
A miscigenação seria um problema como os outros elementos? Não estaria o
grupo querendo, no caso, se referir à xenofobia? De qualquer forma, não nos
parece que a miscigenação tenha sido um dos temas abordados por Dario Fo
nessa obra.
Formado por um coletivo jovem, a inquietação move os experimentos do
Grupo Risco. No entanto, em Primeiro Milagre, encontramos uma emulação
com o texto. Uma quase divergência com a estética de Dario Fo, que nunca
poupou a sociedade de suas cruezas, revelando-as da forma mais despudorada,
porque é na bufonaria, na destruição das estruturas opressoras e no
questionamento das instituições mantenedoras das voz dominante em que se
assenta o seu verbo e a sua ação. Primeiro Milagre é uma dura crítica à
construção do imaginário cristão e, também, de suas fabulações. É uma ficção
que tem por objetivo intervir na realidade de uma ficção que se solidifica e se
perpetua mundo afora. Dario Fo é um italiano que sabe muito bem das
perversões santificadas pelo catolicismo raso e defensor de uma sociedade
segregada, opressora e machista. Por isso, não há piedade e muito menos
lirismo em sua proposição.
A montagem do Grupo Risco apresenta um caminho intervalar, um
caminho que se desencontra, em muita medida, com a proposta de Dario Fo. E
por quê? Em primeiro lugar, o riso que se apresenta não se aproxima da acidez e
da crítica que Fo imprime em seu texto, a opção foi por organizar o trabalho a
partir de um riso caricato, um riso fácil mesmo, que não nos deixa aquele sabor
de desespero e de destruição que é comum ao bufão. Isso fica evidente na reação
do riso expresso pelo público, um riso dilatado e suprimido de agruras. O
grotesco sequer se apresenta. Há um riso afrouxado, calcado num realismo
exagerado, algo típico da comédia comum, o que acarreta num esvaziamento da
força do texto e, por consequência, da atuação de Rodolfo Lemos.
Embora ator de muitos recursos e com possibilidades de adentrar
efetivamente na cruezas fraturadas de Fo, a direção do espetáculo se mostra
titubeante com as intenções do texto. Existe um lirismo no espetáculo
distanciado da sua força expressiva originária. Não há espaço para compaixão e
lirismo no que a dramaturgia traz. Aí surgem perguntas: no que exatamente o
espetáculo toca? O que está a criticar? Qual o seu propósito? O trabalho não se
arrisca na seara de destruição inerente a um bufão, que nada respeita. O
lirismo, entoado pela música que inicia e termina a partitura cênica de Primeiro
Milagre entra em conflito com a proposição da obra.
Soma-se a isso momentos delicados, e são delicados justamente porque o
bufão não entra em cena. Tais como a ideia de um José, com sotaque
nordestino, e com uma feição que afirma o preconceito alcunhado no senso
comum, isto é, da preguiça e indolência daquela gente. É preciso que a ironia
prometida aconteça, para que a cena em que o negro é afrontado e humilhado
não deixe dúvidas ao espectador que se trata de uma crítica mordaz ao
preconceito, não uma possível afirmação dele. Com isso não queremos dizer que
a intenção de Grupo Risco é a de afirmar preconceitos, mas que a promessa de
combatê-los, ou não se efetiva plenamente ou deixa margem para o pensamento
dúbio sobre questões tão afloradas na atualidade (vide os recentes debates em
torno da obra cinematográfica Vazante de Daniela Thomas).
Sim, Primeiro Milagre atravessa o preconceito e o bullying que Jesus
sofre, mas esse não é o único ponto-âncora da obra. Há uma discussão, que a
montagem escolheu por não acentuar, que é a sátira explicita de um dos mitos
fundadores da fé ocidental. Num momento de agigantamento de instituições
religiosas que se apoderam da fé alheia com discursos fascistas e com um intuito
único de ampliar as desigualdades sociais e mercadológico, não jogar luz sobre a
questão e ficar ancorado na experiência de infância de Jesus faz com que todas
as tramas de autoridade, de assédio, de abuso de poder e suas variações sejam
quase que suprimidas. E, por isso, a ironia aterradora prometida, não se realiza
na cena, embora tenhamos que destacar o trabalho de atuação empreendido por
Rodolfo Lemos.
FICHA TÉCNICA

Direção: Claudia Sachs


Atuação: Rodolfo Lemos
Sonoplastia: Natália Pereira e Rodolfo Lemos
Figurino: Rafael Orsi de Melo
Iluminação: O grupo
Produção: Grupo Risco de Teatro

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