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F ilme de Amor: quase-cinema; quase vídeo

F ilme de Amor: quase-cinema; quase vídeo

C láudio da Costa

P
or volta do início dos anos 70, Allain como a expansão para fora dos seus limites. Os
Kaprow teria batido o martelo em relação artistas já não mais se interessavam pelas idéias
à tradição da pintura ao falar sobre Pollock: de Greenberg relativas à especificidade dos
“Ele realizou pinturas magníficas. Mas meios e dos sentidos a eles ligados. Buscavam,
também destruiu a pintura”. Kaprow diria ao contrário, expandir o meio. O próprio
que o espectador de Pollock precisava ser um Kaprow em uma entrevista a Jeanne Siegel ex-
acrobata, “oscilando entre uma identificação plica como chegou ao happening. Ele diz que
com o corpo e as mãos que lançavam a tinta e um desenvolvimento simples se deu na passa-
estavam dentro da tela, e uma submissão às mar- gem da colagem à imensa assemblage que se
cas objetivas, deixando-se envolver e assaltar por adensava e crescia a ponto de preencher toda
elas”. O espectador, esse que faz parte do mun- uma sala. Então as pessoas tinham que se mo-
do externo à pintura, entrava na tela para expe- ver para experimentar aquilo a que já não se
rimenta-la, participava com seu próprio corpo podia mais chamar de objeto. Com isso,
no interior do quadro. Assim resumia, Kaprow: Kaprow perceberia que o observador se tornava
“O artista, o espectador, e o mundo exterior, um componente da obra, sabendo ou não. Tra-
interrelacionam-se plenamente aqui”. As bordas balhando com mais flexibilidade os componen-
do quadro que determinavam os limites entre o tes, Kaprow buscava cada vez mais imprimir
mundo do artista e o mundo do espectador ha- maior atividade participativa ao observador
viam sido ultrapassadas. A essa modalidade es- (Siegel, 1992, p. 167).
tranha de pintura que Pollock havia iniciado No Brasil, Os bichos de Lygia Clark pro-
com suas “quase-pinturas” provocava uma revo- vocaram a reflexão do não-objeto e uma infle-
lução que tinha duas alternativas aos jovens ar- xão na noção mesma de obra de arte: a partir
tistas: ou continuar no caminho das quase pin- desses trabalhos o espectador deixaria seu lugar
turas ou deixar totalmente de pintar (Kaprow, de mero observador-contemplador e se tornaria
1999, p. 124-31). um observador-participador. Por outro lado, a
Nos anos 70, começava-se a descobrir que obra passaria a perder seu status de objeto estéti-
as exigências do meio são tão necessárias à arte co a ser contemplado. Hélio Oiticica produziria

Cláudio da Costa é professor do Instituto de Artes da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ)
e coordenador do Curso de Cinema da Universidade Estácio de Sá.

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os textos que teorizariam e nomeariam esse do espaço real do espectador, já não mais inte-
novo espectador, definindo-o como aquele que ressava ao nosso mundo. A imagem deixa de ser
entra no interior das obras e que agora se torna- aquilo que remete a algo existente anteriormen-
riam ambientes (Tropicália e Ninhos). Em 1973, te e fora dela. Entre o mundo da imagem e o
Hélio Oiticica inaugurava um conceito que mundo real – espaço de quem a olha – não há
muito se assemelhava àquele de Kaprow, mas mais esse limite tão claro, pois o imaginário e o
que dizia respeito às suas experiências com os real são instâncias em constante troca. A ima-
ambientes audiovisuais que começava criar, gem não é, portanto, aquilo a que se pode ver
como Neyrótica e os Quase cinema, Block-experi- mantendo-se uma certa distância. A imagem é
ments in Cosmococa. Oiticica tentava dissolver a algo que produz em si mesma uma diferença
importância da narração ao mesmo tempo que radical. Nela reina a oscilação e a incerteza. A
problematizava a imagem como signo de algu- imagem, assim entendida, exigirá outra atitude
ma coisa que existe antes dela, sua referência. do espectador, não mais mera contemplação,
Composto de 80 slides com marcação de tem- mas antes participação em sua própria flutua-
po e trilha sonora, Neyrótica, o primeiro desses ção. O participador é aquele que pratica o mo-
trabalhos de criação audiovisual, prévia das sé- vimento oscilatório da imagem na imagem e
ries Cosmococas, produz experiências-limite na não mais pode se ver distante, distanciado e pro-
disjunção entre imagem e som, mas fundamen- tegido daquele espaço flutuante e incerto.
talmente, na relação do espectador com a obra. Nas Cosmococcas, várias imagens projeta-
das e uma trilha sonora com interferências de rá-
“Não narração é não discurso dio e barulhos diversos produziam um distancia-
Não fotografia “artística” mento interno à própria imagem, primeiro entre
Não ‘audiovisual’: trilha de som o som e a imagem, mas também no interior de
É continuidade pontuada de cada um desses meios. O espectador no centro
interferência gravada do rádio q é dessas projeções devia não somente escolher para
juntada à seqüência projetada de slides onde olhar, ou o que ouvir, mas inventar senti-
de modo acidental e não como dos para as imagens e sons ainda que deslizantes
sublinhamento da mesma e escorregadios. Participar não era mover-ser no
– é play-invenção” (Canongia, 1981, p. 22-3). interior do ambiente, mas deixar-se ser movido
pelo movimento oscilatório da imagem e, então,
O que Oiticica sugeria com esses ambien- inventar-se outro ao experimentar o sentido sem-
tes é que o cinema, o campo da imagem-movi- pre flutuante da imagem. Essa era a base do con-
mento, já não poderia mais sobreviver seguindo ceito de quase-cinema de Oiticica.
a tradição das técnicas narrativas que privile- Esses novos territórios que Oiticica inven-
giam o entrecho, uma situação e uma ação que tava e que ultrapassavam os limites do cinema
a modifique. Nessa tradição, o espectador exis- precisariam de um novo nome. Começaram
tia num mundo externo ao mundo da obra, sendo chamados de arte ambiente, ambientes
com o qual ele se mantinha distanciado para audiovisuais e hoje são mais conhecidos como
poder ver. Então “ver” era manter-se à distân- instalações. Os ambientes mostraram que a ima-
cia. Era preciso que o cinema descobrisse novas gem-movimento não necessita da tela e da pro-
formas do ver. jeção única como suporte. Ela pode aparecer de
Era preciso mudar a recepção do cinema vários modos, ainda mais hoje com as novas
e o modo de ver. A experiência coletiva de es- tecnologias digitais e do vídeo. Mas na época
pectadores sentados com seus olhares direcio- em que Oiticica estava inventado esses ambien-
nados a uma imagem em movimento distancia- tes expandidos, o cinema no Rio de Janeiro
da, projetada por um único projetor, separada ampliava seus limites, mesmo que dentro do

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campo do “cinema”, com todo seu aparato que A imagem ela própria começava a oscilar, sair
incluía a sala escura e os espectadores voltados do prumo, deixar o tripé e fazer notar a câmera
para uma tela única. Os cineastas Júlio Bressane a construir histórias, personagens, espaço e tem-
e Rogério Sganzerla, ainda que mantendo-se no pos heterodoxos. As situações pareciam cheias
interior do território “cinema”, ultrapassavam de buracos, desconexas. As ações e as situações
seus limites. Essa experiência cinematográfica é em que se encontravam os personagens iam se
que deveria ser chamada de quase-cinema. tornando cada vez mais rarefeitas (Família do
Como dizia Kaprow em relação à pintura, esses barulho). A câmera que deixava o tripé buscava
cineastas traziam o espectador para dentro da sua própria independência em relação ao per-
tela, tornando indiscerníveis o mundo do artis- sonagem. As trocas entre a câmera que produ-
ta e o mundo do espectador, cada um invadin- zia a imagem e a realidade que se imaginava
do o território do outro. Esse cinema já não é eram aparentes ao espectador – uma vez que a
cinema, mas ainda não é outra coisa, como uma câmera deixava perceber seu trabalho de capta-
instalação. Ele só pode ser entendido como o ção aos olhos do espectador e os cortes da mon-
quase-cinema que muitos artistas dos anos 70 tagem eram cheios de saltos e descontinuidades.
tentaram produzir (Canongia, 1981). Esse ci- Tudo aparente, porém opaco. A reversibilidade
nema já não mais se pergunta o que é o cinema, entre narradores diversos – multiplicidade de
pois ultrapassa o limite do cinema sendo, para- vozes narrativas – fazia a subjetividade deslizar
doxalmente, ainda cinema. (Bandido da luz vermelha). A imagem-movi-
A expansão dos territórios levaria o cine- mento perdia então a raiz que a matinha no in-
ma contemporâneo brasileiro a descobrir o pro- terior da tradição do cinema. Ela buscava fugir
blema da arte. Na época do Cinema Marginal a e se conectar com outros campos. A imagem-
imagem-oscilação marcaria aquela produção.1 movimento descobriu as ruas da cidade, a cul-
A oscilação impedia que o espectador identifi- tura urbana, a história em quadrinho, as ima-
casse o que via, impossibilitando a significação gens-clichês em seu complô contra o cinema
da imagem. Os sentidos se multiplicavam e flu- (Copacabana me engana). O cinema já não era
tuavam em contínua mudança, impedindo que mais cinema sendo ainda cinema. Esse parado-
o espectador se reconhecesse – como identi- xo perturbava o espectador que se via então
dade, sujeito, atividade – naquele mundo em obrigado a constituir pontes entre as imagens
devir. Já naqueles anos o cinema ensinava o es- desconectadas, organizar o caos, inventar senti-
pectador que a participação dele era fundamen- dos, criar o filme que não parecia pronto, mas
tal na invenção da obra. Inventar, porém, não que o atingia assim mesmo, violentamente. O
seria mais produzir algo novo, negando o que espectador se via obrigado a ver algo que jamais
estava diante dele. Inventar seria agora produ- vira; descobria a vida, como algo que flutua e se
zir uma dobra na imagem, desdobra-la. dispersa, mas que não se pode ver com os olhos
As histórias, num mesmo filme, se multi- do cotidiano. O cinema se tornava quase-cine-
plicavam e se permeavam. Os narradores tam- ma ao tocar essa vida.
bém se tornavam vozes múltiplas. Os filmes A noção de filme mudava radicalmente.
buscavam histórias que não pareciam sair do Agora não bastava questionar a narrativa tradi-
prólogo. Pareciam repetir e recomeçar; repetir cional como teria feito o Cinema Novo. Já não
o recomeço. Muitas vezes esse recomeço era ex- era suficiente perguntar o que é o cinema. Tra-
tremamente violento (O anjo nasceu e Câncer). tava-se de perguntar o que é a Arte. Qual a rea-

1 Ver o conceito de imagem-oscilação em Costa, 2000.

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lidade mesma da obra cinematográfica senão ser Depois retornam às suas vidas cotidianas: o ra-
ou não ser arte? Onde a obra se realiza? Ela se paz corta cabelos, uma das moças faz unhas e a
realiza na tela no momento da projeção? Qual outra é ascensorista do mesmo prédio do salão
o papel do espectador? Bastava que ele olhasse em que os outros dois amigos trabalham.
uma realidade diante dele ou era preciso que ele Mas o filme só pode ser contado assim
mesmo a realizasse? O que significaria realizar a em um parágrafo porque todos os buracos, os
imagem que flutua? Era preciso inventar a rea- vazios, os caminhos que se bifurcam foram pre-
lidade que insistia em se desfazer diante do es- enchidos, ou melhor, eliminados. A diversida-
pectador; era necessário produzir uma dobra de de desvios que o filme faz pela literatura, pelo
naquela imagem desviante para que ela se fizesse cinema, pelas artes é muito grande e o entrecho
real. Mas tornar uma imagem real era fazer uma fica distendido por esses intervalos. Os perso-
imagem que por sua vez era também fugidia. nagens lêem textos de literatura enquanto seus
Com toda essa mudança que ocorria no corpos buscam as posturas do corpo equivalente
cinema dos anos 70 – o desenraizamento da ima- ao que lêem. O filme se pergunta o que há entre
gem-movimento de sua própria tradição e a von- a literatura e a performance, entre a literatura e
tade de buscar novos territórios –, a tendência o cinema, entre o cinema e a pintura. Bressane
seria que o cinema encontrasse questões mais ge- afirma no jornal de lançamento (maio de 2004):
rais que envolviam as artes, a literatura, a músi-
ca. A pergunta “o que é arte” passa a surgir no “Filme de amor é sobre duas coisas: intervalos
meio cinematográfico. Ela se tornava mais urgen- e sobrevivência. O intervalo é o que está en-
te do que a pergunta “o que é o cinema”. Filme tre as imagens. A sobrevivência fala das pes-
de amor, o trabalho mais recente de Júlio Bres- soas movidas por um impulso inconsciente,
sane expressa toda essa transformação, com uma um desejo de recriar a existência para poder
diferença: agora o que ocorre é uma transmissão sentir aquilo que é duro demais para sentir-
da ruptura e do desvio. E já há uma história da se, isto é, o sentimento de amor.”
ruptura que só pode ela mesma ser desviante. No
movimento de sair do cinema e descobrir a ques- O espectador não pode facilmente seguir
tão “o que é e o que não é arte”, o cinema se uma história. Há que se colocar nos intervalos
descobre quase-cinema, porque ele é também para poder ver isso que é estranho ou terrível
performance, pintura, teatro, poesia sonora. Fil- demais. Assim o espectador-participador deve
me de amor é, fundamentalmente, labirinto. fazer e refazer caminhos propostos pelo filme
Pode-se considerar que Filme de amor te- para uma recepção mais sofisticada. Mas essa
nha mesmo uma história, um entrecho, que tor- participação não significa uma leitura mental,
na o filme até acessível a um público menos não envolve propriamente raciocínios lógicos.
inventivo. Duas mulheres e um rapaz, os três Diante de todo esse labirinto, diante de todos
de classe média baixa, vindos de diferentes lu- esse desvios que passam pelo Renascimento com
gares da cidade do Rio de Janeiro – uma das o retorno às Três Graças de Boticelli, a pintura
moças usa o trem como transporte e o rapaz tra- moderna de Balthus e as performances corporais
fega em um ônibus –, se dirigem a um sobrado e sonoras contemporâneas, o espectador torna-
no centro da cidade, todos com um saco plásti- se também um sobrevivente como os persona-
co de supermercado na mão. Neste sobrado, os gens do filme. O espectador é continuamente
três se embriagam, usam drogas, fazem leituras interpelado, convocado a participar antes como
de trechos de clássicos da literatura como Moby uma testemunha a quem se endereça, a quem
Dick. Os três se encontram para um final de se- se passa um testemunho. Ele não é apenas o juiz
mana dedicado à imaginação e às experiências a quem se pede que determine o que é arte e o
do desejo, dos prazeres do corpo e do espírito. que não é. Ele é o testemunho de uma potên-

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cia. Filme de amor passa ao espectador o teste- to. O filme ele mesmo pede para ser inventado,
munho da possibilidade da arte contemporânea desdobrado, construído com os elementos da-
diante da história da arte desde o Renascimen- dos. Por outro lado, Filme de amor impede as
to. O espectador não olha como quem contem- conexões determinantes do raciocínio e exige
pla uma realidade (arte da representação). Tam- que o espectador se torne um sobrevivente tes-
pouco participa (arte política). Ele é testemunha temunho, como os personagens. O filme ele
porque pode ver algo ao lado de outro, através mesmo é antes a sombra de um filme que ainda
do olhar de outro, sendo ele mesmo. não foi feito. O que ele apresenta é o intervalo
Os jogos que os personagens se propõem onde o filme se encontra, um espaço virtual no
são eles mesmos estranhos ao olhar comum, isto qual o espectador precisa se colocar, ser também
é, ao olhar que deseja ver à distância para co- testemunho e sobreviver para desdobrar, recriar.
municar o que viu. Mas a convocação ao teste- O espectador, participador e testemunho, terá
munho propõe uma comunidade de troca. O de inventar o filme, que é apenas um prólo-
espectador se perde ao buscar a situação narra- go,uma proposta ao espectador que não pode
tiva. Ele esquece sua localização, seu espaço de mais ser apenas juiz. Ele agora fará parte da mes-
espectador e entra nos jogos propostos, se sente ma comunidade que o artista-cineasta: a comu-
embriagado, fascinado. As imagens o enganam, nidade dos visionários, esses que podem ver algo
desviando –o por diversos caminhos muitas ve- estranho demais para a vida cotidiano.
zes não identificados. É preciso fazer conexões, É nesse sentido que Filme de amor coloca
imaginar, buscar saídas. As pistas para as cone- a questão da arte contemporânea: a obra como
xões e para os caminhos que os sentidos tomam desdobramento de um mundo possível; o artis-
vêem de mundos externos ao cinema. Não es- ta aquele que produz dobras em um mundo
tão efetuadas, de fato, uma vez que são pistas. possível; o espectador, simultaneamente, parti-
São jogos propostos pela instância narradora. cipador e testemunha. O artista não produz sig-
Afinal, qual a relação entre o tema das Três gra- nificações, mas valores que estão em devir. Júlio
ças com a baleia Mobi Dick? Para que essas tran- Bressane desdobra Balthus, Mobi Dick, a mú-
sições se realizem é preciso que elas sejam pro- sica barulho dos dadaístas, o seu próprio cine-
duzidas pelo espectador. É preciso que o espec- ma e principalmente o mito das Três Graças.
tador produza as dobras, pois o filme é antes a Esse é o movimento principal do Filme de amor:
proposição de um filme. Inventar Filme de Amor apropriar-se de alguma obra ou movimento da
é fazer leituras possíveis na passagem com a li- história da arte para desdobrá-los, indicar leitu-
teratura, com as artes plásticas, com o teatro. É ras, produzir valores que não passam de infle-
entrar num dos desvios convocados pelos tre- xões que exigem outras leituras.
chos literários lidos, pelo som de um outro fil- Esse sentido de obra já estava implícito
me, pelas posturas dos corpos que remetem à nos ready-mades de Duchamp. A obra não é o
história da pintura, pela sonoridade que nos leva objeto que o espectador encontra diante de si,
à música dadaísta de barulho, à poesia sonora. mas o desdobramento que é preciso produzir. É
O espectador oscila entre o participador – quan- verdade que o desdobramento produzido por
do age mentalmente para produzir as conexões Duchamp e exigido ao espectador é antes de
e realizar o filme – e o testemunho visionário – qualquer coisa um julgamento estético: “é arte”
quando cai nos intervalos e desvios do labirin- ou “não é arte”.2 Mas um ready-made não é

2 Thierry de Duve coloca esse problema de uma nova modalidade de julgamento estético, “isto é arte”
ou “Isto não é arte”, numa releitura de Kant após os ready-mades de Duchamtp. De Duve também

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apenas algo que foi deslocado de um espaço não mas ver na sombra deixada pela luz, ver na au-
artístico para o lugar da arte. Um ready-made sência mesma da luz. Ele diz continuamente que
não só expõe a instituição e seus agenciamentos, a imagem no cinema é sombra e mais uma vez
ele indica a noção da obra como desdobramen- ele repete no jornal de lançamento do filme:
to. Fazer a leitura de um ready-made como ob-
jeto estético é perder o sentido daquele objeto, “O que conta é o movimento da luz. O que
pois o sentido está fora dele ainda que nele per- age dramaticamente em cena é a luz, que ao
sista. O sentido está na borda do objeto, por distribuir sombras pelo cenário nos revela algo
isso ele deve ser desdobrado. Deve-se encontrar essencial do personagem e do instrumento
novos limites para o objeto. Mas dobrar não é sensível que nos fala desse personagem: a sua
efetuar a realidade de um objeto como se pu- condição de sombra.”
déssemos ser sua causa. Dobrar é antes permitir
que o efeito se produza. Não se pode entender É claro que Bressane fala aqui sobre um
um ready-made de Duchamp por suas formas aspecto do cinema que sempre deu muita im-
sensíveis, é preciso ser captado por seu efeito. portância: o cinema como música da luz. O que
O efeito é o julgamento estético, uma decisão é fundamental no cinema para Júlio Bressane é
tomada pelo espectador, que já não é mais afir- a imagem-luz. A luz é a ordem primeira do ci-
ma “isto é belo” ou “não é belo”. A obra é esse nema, ela é a ordem mesma do movimento.
efeito. O efeito é o conceito de arte provocado Mas as imagens só aparecem sob a condição de
pela presença do objeto. O que importa para ser sombra. O cinema para Júlio Bressane nada
Duchamp é a leitura produzida, o desdobra- tem a ver com uma realidade pré-existente. A
mento efetuado pelo observador na relação com imagem não é de modo algum isso que vem
o objeto. É nesse sentido que ele afirma a indi- depois da realidade. Ela é ao contrário, o que
ferença diante do objeto. Ele dizia que o que o vem primeiro, mas primeiro como sombra da
atraía na escolha de um ready-made não era um luz. E a luz é movimento, traço, trajeto para
interesse plástico ou visual, mas a indiferença fora, desvio. A realidade da imagem é, portan-
estética que permitia a produção de uma idéia, to, o engano, sua potência para o erro. A ima-
um conceito de arte (Siegel, 1992). gem no cinema de Bressane é um fantasma er-
A obra para Bressane, como a de rante, sempre incapaz de se fixar. Ela erra pelas
Duchamp, também não é mais um produto es- diversas dimensões da cultura e da arte: a litera-
tético, mas a sombra, o fantasma de um mun- tura, a pintura, o teatro, a música, o barulho, as
do virtual que o próprio filme busca. Mas a ope- posturas do corpo, a performance, etc. Ela pare-
ração de Bressane se diferencia já daquela de ce estar em todos os lugares que são espaços
Duchamp, pois não passa apenas pelo julga- quaisquer da arte e da cultura, da memória e do
mento de um objeto que pode se tornar arte desejo.
deslocando-o para um lugar de arte. Sua opera- O mito das Três Graças é central no fil-
ção é antes essa da sobrevivência, do desejo de me de Bressane, afinal, o amor é esse sentimen-
recriar a existência para que se possa perceber to que é preciso testemunhar mais que conhe-
algo que não se pode perceber com os olhos do cer. O amor passa pelo desejo; diz respeito ao
cotidiano. É aí que o espectador passa da parti- corpo e à carne. Duas cenas do filme dão a me-
cipação à testemunha. Ver não é mais ver na luz, dida da importância do desejo e do afeto, do

repensa o espectador como testemunha, esse que não é mais apenas juiz, mas aquele a quem se endereça
algo que é indizível (cf. Ferreira, 1998). Gilles Deleuze também coloca o problema do espectador como
testemunho em Francis Bacon, lógica da sensação.

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corpo e da carne. Enquanto Hilda, uma das per- montagem como experiência artístico-cinema-
sonagens femininas, lê ao telefone uma passa- tográfica passa pela ordem afetiva, como potên-
gem literária que descreve gestos sensuais e pos- cia que encarna um pensamento que flutua.
turas sexuais, Gaspar vai repetindo o que ouve A importância e centralidade do tema do
ao lado de Hilda; “Apalpa minha cona, mete o amor estão indicadas no próprio título. Mas o
dedo lá dentro para ver o que operava e não sa- amor é o assunto que conjuga os outros interes-
bendo o que mais fazer, pôs-se a passear pelo ses do filme. Todos os temas, mesmo o amor,
quarto”, diz a personagem feminina. Matilda aparecem como alguma coisa a que se está ro-
está do outro lado da sala com outro telefone deando, se acercando, que já se conhece e ainda
no ouvido, escutando as descrições da amiga não se conhece. Isso não significa que Bressane
que continua sua leitura apimentada, vendo-a não tenha pesquisado o suficiente seu objeto. É
refazer as posturas indicadas no texto. que esse objeto não pode ser determinado pelo
filme, senão ele é automaticamente perdido. A
“Então obrigou-me a pôr-me em posição primeira sensação que o espectador tem é que o
numa cadeira e ajoelhou-se diante de mim, e filme não diz algo muito importante ou especi-
a pomada fez com que entrasse um pouco al sobre as Três Graças ou sobre o amor, uma
mais. Levantou-me e obrigou-me a pôr-me vez que ele não pode determinar isso que se diz
de gatas em cima do leito. E tendo-se nova- e o que se mostra. É como se ele visse no escuro
mente esfregado com a pomada...” e ouvisse por entre ruídos. Com isso o filme
produz afetos múltiplos e errantes sobre o tema.
O desejo é experimentado como todas as O filme começa com três figuras à beira mar,
possibilidades do corpo, suas posturas libidino- duas mulheres e um homem. São imagens que
sas, suas atitudes pornográficas. Bressane apro- já investigam as posturas e atitudes do corpo:
veita para utilizar, como já teria feito em outros de pé contra o céu e contra um morro, deitados
filmes como Tabu, algumas imagens de filmes sobre a pedra à beira mar; os pés de uma mu-
pornográficos antigos. A carne também não é lher que caminha sobre as águas. Segundo con-
algo metafórico, mas o afeto encarnado. A car- ta a mitologia, Afrodite – para os gregos ou
ne remete à experiência da imagem na pintura, Vênus, para os latinos – nasceu da espuma do
ao encarnado na imagem. E Filme de amor bus- mar perto de Chipre. Assim o filme, desde o
ca essa experiência da carne, com as texturas das início, se coloca como que à espreita para que
paredes e a utilização da cor e do preto e branco esse acontecimento possa se efetuar ali com
na fotografia. O corpo aparece nos gestos, nas aqueles personagens. O filme busca, cerca, cir-
posturas e atitudes do corpo, enquanto que a cunda, gira em torno desse acontecimento que
carne aparece como ordens do afeto, texturas e ele mesmo espera mais que determina ou relata
cores. Mas aqui o afeto é qualidade. Há uma e do qual o espectador será testemunha.
outra ordem do afeto e da carne cuja experiên- Essa seqüência da praia não é de fato a
cia é pura potência: a montagem. A montagem primeira. Antes dela há uma outra em que a
afetiva desfaz a ordem espacial do imóvel onde equipe da produção é mostrada em cenário in-
os três personagens experimentam seus desejos terior e em preto e branco que tem a função de
inconscientes, seus afetos incomuns, seus pen- aludir ao fazer artístico, ou melhor, à compe-
samentos impensados. A montagem apresenta tência exterior que é a instância narradora. A
um espaço que é pura potência e um tempo que narração do Filme de Amor, porém, não conta
é virtual, pois o presente parece se desatualizar uma história, ela narra o processo de ir e vir, a
nos textos lidos, nas posturas vividas como no sucessão dos estados e mudanças, o curso dos
momento em que os três personagens começam retornos e desvios desse acontecimento que é o
a levitar e flutuar pelo espaço do sobrado. A Amor. Em um texto importante de Maurice

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Blanchot, “Falar não é ver”, o escritor francês todos os sentidos poderão ser remetidos a essa
parece descrever esse movimento da busca e dos instância formadora e responsável pelo discur-
desvios que encontramos no filme de Júlio so. Mostrar a equipe é antes afirmar que o des-
Bressane: vio é necessário ao discurso para que ele não seja
mero dispositivo de afirmação do poder e do
“Encontrar, buscar, girar, ir em volta: sim, são padrão. Assim funciona a placa “popular” que
palavras indicando movimentos, mas sempre se pode ver do lado de fora do prédio para onde
circulares. Como se o sentido da busca fosse os três personagens se dirigem no início do fil-
necessariamente um giro. Encontrar inscreve- me. Esse letreiro indica essa vontade de ultrapas-
se nesta grande “abóboda” celeste que nos deu sar a borda, tocar o limite do outro, para se colo-
os primeiros modelos do movediço imóvel. car ao seu lado, junto ao outro. Já não se trata
Encontrar é buscar em relação ao centro, que mais de falar pelo outro, mas de colocar-se junto
é ele próprio inencontrável” (Blanchot, 2001). àquele que lhe é estranho e descobrir tudo aqui-
lo que não se tem para que se possa se outro.
Esse é o sentido de mostrar a equipe fil-
mando: mostrar que eles estão nessa busca do “Então esse é o novo equilíbrio, o novo valor
filme. Mas buscar o tema ou o filme não é dizer desse triângulo, dessa trindade: que uma das
“está aqui”, não é determinar um espaço e um graças possa ser uma graça masculina, o que
tempo em que algo acontece. É antes abrir to- quebraria, no momento do nascimento dele,
dos os espaços e todos os tempos, criar interva- o encanto. Justamente, devido ao que faltava
los onde se possa passar muitos tempos, do de- ao masculino e que você podia acrescentar à
sejo e da memória, do futuro e do passado. mulher que não existia naquele. Existia a vi-
Nesses vários desvios do tema central há são do masculino sobre como deveria ser o
um interesse que é indicado por um letreiro so- feminino. Então a própria Três Graças é uma
bre um muro: “Mulher!”. Como entender um visão masculina, mas hoje se impôs a essa, se
homem entre duas mulheres quando o tema é impôs pelo menos a mim, a compreensão
o mito das Três graças? O homem aqui já não é desses valores e desse equilíbrio queira você
o padrão, o que não significa dizer que ele é ou não, porque o equilíbrio vai existir antes
homosexual, como as mulheres chegam a cogi- de você, porque é uma trindade. O valor
tar no filme. O homem é esse estado de mu- masculino, agora o valor masculino, com essa
danças experimentado pelo filme em direção à masculinidade transformada.”3
mulher. A equipe do filme mostrada no início é
dirigida por um homem, e fazer um filme que A fala popular do filme é antes o limite
reinvente as Três Graças é refazer o mito dessa de uma fala culta. É uma fala culta que gagueja.
trindade onde uma das três seja uma figura mas- Não há mais propriamente diálogos ou conver-
culina. Já não é mais uma visão do feminino sas no filme. Há falas indiretas livres4. São todas
representada por um homem, mas a visão do falas em que há sempre um outro, seja Augusto
feminino como aquilo que falta ao homem para dos Anjos ou o historiador da arte Aby Warbur.
ser homem. Mostrar a equipe não é somente A fala encontrou aquilo que lhe faltava para que
para dizer que esse é um discurso masculino e pudesse ser culta, se colocou ao lado do homem

3 Júlio Bressane, em entrevista não publicada dada ao autor deste artigo.


4 Gilles Deleuze aponta para esse problema, a fala do cinema se transforma e se torna discurso indireto
livre. Cf. Deleuze, 1990.

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popular e tornou-se estranha, misteriosa, múl- dão. Abaixo da cintura nós somos sem visão.
tipla. Filme de amor não é culto nem popular. Abaixo da cintura nós somos sem visão. É
Se ler trechos de Mobi Dick é considerado cul- fácil ver, por que cada homem mata aquilo
to, o que dizer da ação de fritar bifes e ovos em que ama. Conhecer uma coisa viva é matá-la.
ferro quente? A linha que separa a cultura letra- É preciso matar a coisa, para conhecê-la sa-
da da não letrada, em Filme de amor, o masculi- tisfatoriamente. Por essa razão, a consciência
no do feminino, a arte da não arte é o tema do desejante, o espírito, é um vampiro.”
filme. O limite que aparece e desaparece sem
que notemos é precisamente o que afirma o fil- A câmera que vê Matilda é uma câmera
me, a flutuação e o engano como valores. alta. Quando Matilda termina sua fala, a câmera
O problema do limite não se resume ao desce, gira e mostra Gaspar e Hilda de pé, um
gênero artístico, sexual ou social. Afinal o que de costas para o outro, ambos de cabeça para
nos faz ser humano? Qual a condição para que baixo. É uma câmera-morcego. No início da fala
sejamos humanos? O filme faz referência a mui- a câmera alta não tem subjetividade diegética,
tos animais: o rinoceronte, o crocodilo, o jaca- isto é, não é o olhar subjetivo de nenhum per-
ré, a baleia (Moby Dick), o cavalo (a estátua do sonagem. Poderíamos dizer que é objetiva, em-
cavaleiro em seu cavalo no final do filme), o bora isso signifique o ponto de vista de uma
gato que jamais aparece e o morcego. Qual po- subjetividade que é o da instância narrativa.
deria ser assim o interesse do filme em relação Ainda que a câmera se faça notar, esse ponto de
aos animais? E onde está esse gato do qual ou- vista alto é aceito sem problemas pelo especta-
vimos os miados, mas que, como a personagem dor, uma vez que a personagem tem seu olhar
Hilda, não vemos? Hilda procura o gato, deixa direcionado para a lua sobre a qual fala. Há mo-
o leite em sua vasilha, o leite desaparece, mas tivação diegética para tal posicionamento de câ-
nunca o vemos. É claro que cada um desses ani- mera. O espectador então aceita o ponto de vis-
mais surge em contextos distintos no filme. O ta como índice da existência da lua acima do
morcego surge quando Matilda fala da lua, uma olhar da personagem e para a qual ela olha. No
imagem que remete ao olhar do morcego. entanto, assim que Matilda termina seu discur-
Nessa altura do filme, os três personagens so dizendo a palavra “vampiro”, a câmera pare-
já haviam bebido, fumado, cheirado algum va- ce tomar vida ou mesmo dar vida a outra subje-
por inebriante de um lenço, e entrado em con- tividade no interior da cena que já não é a do
versas sobre a beleza e também a lua. “Entre a narrador-câmera. Agora esse narrador parece ad-
lua e cada um de nós existe um fluxo, um movi- quirir uma vida não humana, uma vida vampi-
mento de força, de vida. A vida de cada um de resca. É o cinema contemporâneo desejando fa-
nós depende da lua”, diz a personagem Matilda. lar não mais com metáforas ou alegorias. Esse
Ela continua, agora olhando para o alto onde cinema quer concretizar novas subjetividades:
se situa a câmera: esse que conta ou inventa seus personagens se
inventa a si próprio ao inventá-los. A subjetivi-
“E a lua depende de cada um de nós. Mas de dade em Filme de amor é fundamentalmente
que maneira, cada um de nós depende da lua? dupla, ou melhor, a percepção é indireta livre e
A lua é a mãe da escuridão. Ela é a pista, o produz um novo homem, formado por aquilo
indício, para a escuridão ativa. E nós, abaixo que lhe falta para ser homem: seu devir mulher,
da cintura, nós temos o nosso ser na escuri- seu devir animal.5

5 A tese de uma subjetiva indireta livre é incialmente proposta por Pasolini em Empirismo Hererje, par-
tindo de Mikhail Baktin (Pasolini, 1982). No Brasil, essa discussão foi recolocada por Ismail Xavier,

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A instância narrativa então aparece crian- de um ponto de vista contemporâneo; é trans-


do seus personagens e ao mesmo tempo se mitir essas obras com o olhar da ruptura. Assim
criando. A criação não é mais algo misterioso, trabalha Bressane em Filme de Amor, dobrando
pois o “fazer fílmico” tornou-se transparente ao e desdobrando autores, pintores, músicos, agen-
espectador? O problema deve ser colocado de ciando-os todos em uma grande comunidade la-
modo diferente. Bressane coloca na boca de seus biríntica, uma rede de sentidos que se produ-
personagens frases de poetas e filósofos. Há ci- zem entre diversos meios, entre diversos artistas,
tações lidas diretamente de livros e outras apro- filósofos e historiadores da arte.
priações que não são indicadas como citações. Em vários de seus textos, Bressane insiste
A certa altura do filme, Gaspar diz: na noção de “tradução intersemiótica”, como
transposição de uma linguagem para outra. Essa
“Escuto. E vejo. O que é que eu vejo? Eu vejo noção se transforma, toma novos nomes, se
Recife. Ponte Buarque de Macedo. complexifica. Em seu livro Alguns trata dessas
Eu, indo em direção à casa do Agra. passagens entre meios em quase todo os artigos.
Assombrado com a minha sombra magra, No texto “Vieira e sua sombra”, diz:
Pensava no Destino e tinha medo!
Lembro-me bem. A ponte era comprida. “E a tradução? E os Sermões-cinema?
Minha sombra enorme enchia a ponte.” Lembremos que em Vieira a imagem e o pen-
samento encontram em um mesmo plano.
Aqui Bressane colocou na boca de seu Em sua vegetação de significações diversas
personagem Gaspar algumas palavras do poe- desdobramos assim a imensa sombra do Ser-
ma “As cimas do Destino”. O poema de Au- mões. Desdobramentos que nos permitem
gusto dos Anjos começa com o verso aqui ini- mapear o signo Vieira, para depois, e a partir
ciado com a palavra “Recife”. Os dois últimos daí, criar a imagem ou uma imagem que de
versos que Gaspar fala não dão continuidade, alguma maneira nos remeta ao universo dos
no poema original, à primeira estrofe como Sermões e espelhe alguma coisa de sua linha-
aqui. Esses dois versos iniciam a terceira estrofe gem, de sua forma, de sua beleza.
no poema de Augusto dos Anjos. Bressane, ines- 1. Sermões-Música
crupulosamente, se serve das palavras do poeta, 2. Sermões-Pintura
mas recorta e recompões o poema, além de não 3. Sermões-Cinema” (Bressane, 1996).
identificar o poeta, ainda que o homenageie. O
trabalho da recepção como o da criação identi- As noções de obra e de criação para Bres-
ficando ou não tal colagem, é fundamentalmen- sane são bastante particulares. A criação não diz
te desdobramento. Mas desdobrar não é sim- respeito à produção de algo absolutamente
plesmente citar ou apropriar-se de obras ou novo, mas algo que pode ser desdobrado. Nesse
partes de obras. Desdobrar é inventar essas obras sentido, a obra é uma sombra e o que ela cria é

que pensa o problema do dialogismo de Baktin e Pasolini e o aproxima ao monólogo interiror proposto
por Eisenstein. Xavier rejeita, entretanto, o autor no lugar da enunciação do discurso dialógico para subs-
tituí-lo pelo narrador interno ao próprio discurso (Xavier, 1993). Deleuze propõe uma diferenciação en-
tre o monólogo interior como sendo uma ordem proveniente de um sujeito, mesmo que inconsciente, e a
subjetiva indireta livre, uma percepção dialógica em que estão envolvidas duas subjetividades (Deleuze,
1985). André Parente voltou ao tema em seu livro Narrativa e Modernidade e desenvolve a tese deleuziana
de que o monólogo interior foi substituído pela subjetiva indireta livre no cinema moderno, com a dife-
rença de que ele aceita a narrativização como um processo inerente à imagem (Parente, 2000, p. 56-83).

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uma relação com alguma obra anterior, um des- som do mar no início, seguido dos barulhos do
dobramento que “espelhe alguma coisa de sua trem. Mas há duas cenas especialmente interes-
linhagem, de sua forma, de sua beleza”. Bressane santes nesse sentido, verdadeiros ready-mades so-
procede com as obras da cultura e história da noros. Em uma dessas cenas, Gaspar, vestido
arte de modo semelhante com que Duchamp com um avental branco e um turbante na cabe-
procedia com os objetos do cotidiano. Bressane ça, segurando uma vassoura, vai até Matilda que
retira esses objetos que parecem envelhecidos e está no sofá. Ela acorda e vê o homem diante
empoeirados pela cultura que os valorizou, mas dela que lhe dá a vassoura. Ela pega o objeto e
não pode mais perceber seu valor, sua diferença começa a varrer o chão sonoramente e, numa
artístico-poética. Bressane dobra esses objetos coreografia, dança e rebola de calcinha. Um pou-
para dar-lhes novo valor. Mas esse valor não é co mais à frente no filme ouviremos um diálogo
uma significação. Esse valor é antes um vazio a bastante estranho e erótico, originalmente de O
ser produzido, um intervalo a ser criado, uma rei do baralho, do próprio Bressane. E quando
dobra a ser constituída. As palavras de Augusto termina o diálogo, ouvimos o latido de um cão
dos Anjos não são explicadas. Ao contrário, são (no som inserido, a mulher e o homem termi-
mantidas vagas, tornadas novamente misterio- nam falando de cachorro), logo, um motor de
sas, como a sombra magra do poeta que cami- um aeroplano e um estranho som retirado de
nha à casa do Agra, casa funerária de Recife. cordas de algum instrumento. É Hilda que reti-
Porque Gaspar fala essas palavras? Qual a rela- ra essas sonoridades estranhas de uma viola, pu-
ção dele com Recife? Por que fala na morte, no xando as corda e torcendo as chaves de afinação.
destino de todo homem no momento em que O filme termina com imagens de casais
experimenta os limites da vida? populares nas ruas do Rio de Janeiro. Mas dizer
Importante é notar que a noção de ci- que o filme termina é mais um engano em que
nema mudou. O cinema não mais coloca seu nos coloca Julio Bressane. A projeção termina,
personagem a fazer alguma coisa diante de uma mas o filme é interminável. Antropofagicamen-
situação de dificuldade. O cinema produz rela- te, Bressane devora a cultura trans-nacional e
ções com outros meios, outros territórios e nes- dobra a História da arte desde o Renascimento,
sas passagens descobre a vida e a morte, a arte e passando pelos modernos para chegar à contem-
a não arte. É produzindo esse tipo de relação poraneidade nas artes. Nessa história cheia de
transmediadora com Herman Melville – autor intervalos e desvios, Julio Bressane aponta para
de Mobi Dick – que Bressane encontra o cine- um novo caminho, um último desdobramento
ma de John Houston e a arte sem gênero da per- de Duchamp,que já estava implícito nas expe-
formance-instalação. O tema do mar volta com riências de Hélio Oiticica e Ligia Clark. Não
a leitura do clássico de Melville na voz de Hilda, basta que o espectador seja juiz, é preciso que
que menciona os três arpoadores e a caçada da ele seja também testemunha de um aconteci-
baleia. Hilda termina por afirmar que Mobi mento e que produza com o artista uma comu-
Dick é a ‘condenação da América do norte”. A nidade. Essa é a potência da arte contemporâ-
câmera se movimenta para a direita e mostra a nea: produzir territórios em que se agenciam
baleia branca formada pelo lenço preso à porta interesses, em que se criam coletivos. Uma co-
de um armário e atado ao corpo de Matilda. munidade, porém, onde não se comungam as
Hilda continua sua fala em língua inglesa e logo mesmas idéias, onde não se comunica algo de-
ouvimos o som de voz masculina de uma cena terminado, mas uma comunidade com a qual
do filme de John Houston. se testemunha a experiência do desvio e do en-
Mas se há performances, há também poe- gano. É o cinema se tornando um quase-vídeo,
sias sonoras. A trilha toda poderia ser entendida o que Bressane já havia mostrado em Nietzsche
como um longo poema sonoro. A começar pelo em Turin..

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Referências bibliográficas

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