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ARGONAUTAS, MONUMENTAL E INCOMPLETO

artigo
ARGONAUTS, MONUMENTAL AND INCOMPLETE

Antonádia Borges*
Stella Z. Paterniani**
Gustavo Belisário***
Roberto Sobral****
Caio do Amaral Mader*****

O que fazer com um evento como esse? Por é, mudar a realidade para todes nós, inserir-
um lado, a brutalização em larga escala e, ao -nos na história singular que hoje vivemos.
final, a completa extinção dos Aruaques; e, Então, como abordá-lo? (WYNTER, 2000, p.
a partir de 1518, o trauma da Passagem do 191, tradução nossa1)
Meio para pessoas africanas escravizadas, a
epidemia de morte e os horrores de sua exis- Introdução: homenageando a incompletude
tência plantation-escrava quando chega- de Malinowski e dos Argonautas
vam à costa. Por outro, esse é o evento que
irá tornar possível nossa própria existência; Em razão do ente homenageado, efemé-
que irá fundar o mundo moderno como ele rides são ocasiões em que, aos pronuncia-

* Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: antonadia@
gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2403-8869.
** Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, PR, Brasil. Email: stella.paterniani@gmail.com. OR-
CID: https://orcid.org/0000-0003-0639-3186.
*** Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, SP, Brasil. Email: pp.belisario@gmail.com.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7059-2529.
**** Universidade de Brasília (UnB), Brasília, DF, Brasil. Email: joserobertosobral@gmail.com. ORCID: ht-
tps://orcid.org/0000-0003-4898-0450.
***** Universidade de Brasília (UnB), Brasília, DF, Brasil. Email: caiomader16@gmail.com. ORCID: https://
orcid.org/0000-0003-3344-9894.
1. No original: “What do you do with an event like that? On the one hand, the large-scale brutalization,
in the end, the total extinction of the Arawaks; from 1518 onwards, the middle passage trauma of the ens-

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mentos públicos, vincula-se um emaranha- se apresentou. Em consequência disso, não
do de responsabilidades: umas sutis, outras haveria outro caminho senão empreender
mais evidentes. Tomar parte na comemora- uma autoanálise, correndo o risco de os
ção de cem anos de Argonautas do Pacífi- feitos de Malinowski, o homenageado,
co Ocidental: um relato do empreendimento ficarem em segundo plano.
e da aventura dos nativos nos arquipélagos Nesta condição inelutável – falando des-
da Nova Guiné melanésia envolve, primei- de o lugar que ocupamos –, declaramos an-
ramente, compromisso com um espírito li- tecipadamente nosso interesse circunscrito,
sonjeiro, pois o que está em questão é a sen- no presente artigo, em imaginar essa obra li-
sibilidade para não desvirtuar o propósito vre de uma leitura, amiúde corriqueira, que
de um evento de homenagem. Ademais, a reduza ao papel de receituário metodoló-
uma obra tão extensivamente criticada, gico para o trabalho de campo, prescrito por
à altura de um século, jamais se depararia um pai fundador de disciplina. A propósito
com inédito ímpeto iconoclasta de nossa desta abordagem, que tende a esterilizar a
parte, caso nossa intenção fosse quebrar obra dos potenciais que queremos sublinhar,
esse primeiro protocolo. ensaiaremos uma hipótese sobre os efeitos
Há ainda dois importantes compromis- deletérios da reiterada leitura universitária
sos a se ter em mente. É preciso que nos- da parte introdutória da obra.
so testemunho tenha como foco sincero o Não ignoramos, como nos alerta Young
objeto de celebração, afinal, nada mais in- (2014, n.p., tradução nossa2), que “A [...] ‘In-
conveniente e desnecessário do que um ho- trodução’ (que tem sido traduzida como o
menageador que fale mais de si do que do livro do Gênesis da Bíblia do trabalhador de
homenageado. O segundo desafio é, ainda campo) contém 25 das mais influentes pági-
que de maneira sintética, deixar transpare- nas da história da antropologia social”. Pe-
cer conhecimento suficiente, em profundi- lo contrário, reiteramos que, nos momen-
dade e extensão, de uma obra tão difundida tos iniciáticos, a leitura e a releitura de tal
e comentada, para evitar, ao máximo, qual- parte da monografia reforçam dois constru-
quer parcialidade a seu respeito. tos basilares para a disciplina. Por um la-
Ao manifestar conhecimento dessa so- do, o ilhéu ideal. Por outro, o etnógrafo ide-
fisticada etiqueta, indicamos de antemão al, centro da Introdução, o qual, para tornar
nossa ciência de que falar de Argonautas sensível a persistência de certa distância, er-
desde a realidade da vida acadêmica brasi- gue uma tenda onde se crê abrigado ou até
leira, pelo menos desde a que conhecemos, mesmo acossado diante daqueles que pre-
pode acarretar constrangimentos. A since- tende estudar.
ridade do testemunho requer reconhecer a Espera-se, com a mimese do que é pre-
parcialidade de como essa obra para nós conizado na abertura da obra, que Argo-

laved Africans, the epidemic of death, the horrors of their slave plantation existence when they reached
the shore. Yet on the other, this is also the event that is going to make our own existence possible; it is
going to bring the modern world into being, is going to change reality for all of us, insert us into the sin-
gle history we now live. So how do you approach it?”
2. No original: “The [...] “Introduction” (which has been dubbed the Book of Genesis of the fieldworker’s
Bible) contains twenty-five of the most influential pages in the history of social anthropology.”

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nautas tenha um efeito, mesmo sobre aque- no que, nas traduções para o português da
les que não leiam a obra inteira3. Como fri- obra de Malinowski, foi chamado de “cam-
sa Weston (2018), entre outras, a “magia do pos de plantação”.
etnógrafo” se transmite como magia sim- Entendemos aqui a plantation como um
pática, e sua eficácia é demonstrada, em modo de existência, e de habitar, que se
termos de iniciação, quando, normalmen- alastra para além de plantações de mono-
te anos após essas primeiras aulas de in- cultura em latifúndios. No caso da Melané-
trodução à antropologia, somos interpela- sia, ela se alastra para a atividade extrati-
dos por outrem ou por nós mesmos, dizen- vista de mergulho para a obtenção de péro-
do, sem constrangimento: ah, você encon- las, para a indústria de pérolas e para a pro-
trou o seu Kula! dução acadêmica, – que conta a história do
Neste artigo, procuraremos reposicionar colonizador (settler), a história desde o pon-
a obra de Malinowski a partir de uma abor- to de vista dos invasores coloniais, a histó-
dagem distinta. Ao recorrer à alegoria do ria do massacre nativo.
monumento, em função da celebração dos Ao mesmo tempo, recusamos um enten-
cem anos deste livro, nos permitiremos dis- dimento acerca de uma suposta dominação
cutir a pertinência de se derrubar ou de se total da vida por uma composição-planta-
manter de pé o monumento a Malinowski na tion. Destacamos a composição-terra da
praça pública da antropologia. Nossa inten- existência dos ilhéus, observada por Mali-
ção é sugerir que as leituras de Malinowski nowski acerca do trabalho nas roças e na
para a formação de antropólogos nas insti- própria relação com as pérolas. Como ad-
tuições brasileiras que conhecemos, ao da- verte nosso autor, se há magia para se tra-
rem ênfase em passagens desencarnadas ou, balhar na roça ou para construir e lançar
para dizê-lo de outra forma, centradas na fi- ao mar uma canoa, também há magia pa-
gura do próprio etnógrafo, reencenam o es- ra mergulhar e encontrar ostras e pérolas, a
bulho colonial, ao ignorar o que, no tex- despeito do empreendimento colonial. Nos-
to, poderia retirá-lo de uma zona anódina, sa recusa da dominação da vida pela com-
uma zona supostamente ocupada por todas posição-plantation também se vincula à
as obras de caráter humanista, que falam ao proposição da brincadeira como aborda-
Homem, mas não à humanidade ou, como gem heurística (BELISÁRIO, 2021). Adiante,
desenvolveremos, que tomam o mapa pelo também desenvolveremos esta provocação:
território (WYNTER, 2006). e se Malinowski estivesse brincando? Quais
Para tanto, parece-nos incontornável re- as implicações para a antropologia em se le-
tomar um aspecto por vezes obliterado na var tão a sério a brincadeira?
apreciação de Argonautas como receituário: Tentaremos associar a defesa de uma
as ilhas Trobriand sob a colonização austra- perspectiva humanista diversa, que se en-
liana e inglesa, sua consequente composi- contra nas obras examinadas e a seguir
ção-plantation (BORGES, 2020) e, portanto, apresentadas, à defesa da etnografia pa-
a desumanização dos ilhéus que trabalham ra além de índices de diferença e para além

3. Ou que jamais a lerão, como se depreende dos inúmeros comentários feitos à Introdução, nos volumes
das bibliotecas públicas ou nas versões digitais do livro, disponíveis em dispositivos eletrônicos (como
Kindle, por exemplo), que vão minguando drasticamente ao longo do restante dos capítulos.

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de apreensões totalizantes que expurgam sagem. (PEIRANO, 1991, p.13, nota no origi-
a brincadeira da realidade. Com isso, que- nal suprimida).
remos, a um só tempo, marcar a figuração
monumental de Argonautas e celebrar sua De modo similar, lançamo-nos aqui ao
incompletude. Celebrá-la não é contraditó- desafio de revisitar o monumento que Ar-
rio porque a incompletude nada tem de pe- gonautas se tornou, sobretudo no ensino
jorativa. Ao contrário, tais objetivos se in- de antropologia, ao ser perpetuamente re-
serem num exercício de “reanálise”, como erguido como base metodológico-prescriti-
propõe Peirano (1991) em seu denso traba- va. Ao fazê-lo, buscaremos argumentar que
lho a respeito do material etnográfico pro- brincar com a rudeza de monumentos ou na
duzido por Victor Turner sobre os Ndembu. hostil homogeneidade da composição-plan-
Longe de qualquer pretensão corretiva, a re- tation nada tem a ver com negar a realida-
análise, assim proposta, almeja evidenciar de a partir do refúgio na fantasia, ou reduzir
justamente a riqueza do material etnográfi- o Outro e o desconhecido pela condescen-
co, o qual sempre abre margens a novas in- dência. Pode ser, na verdade, uma instigan-
terpretações, pois uma apreensão totalizan- te estratégia para resistir ao que se nos im-
te e arrematada da realidade se mostra in- põe como inevitável, àquilo que nos extir-
variavelmente irreal. pa das possibilidades de concretizar outros
Em suas palavras: futuros possíveis, que emergem não da to-
tal superação, mas da própria incompletu-
(...) diferente das outras ciências sociais, é de de projetos totalizantes no presente. As-
freqüente encontrar-se na antropologia ca- sim, destacamos a consequente obliteração,
sos de reanálises do material etnográfico re- devido ao insistente soerguimento de proje-
colhido por outros pesquisadores. Estas re- tos monumentais, de muitos outros destinos
análises parecem evidenciar alguns pontos: a que sua etnografia monumental ainda po-
primeiro, a riqueza do material oferecido por de nos conduzir.
um pesquisador, que sempre deixa resíduos
e pistas para uma interpretação alternativa; 1. A monumentalização de Malinowski em
segundo, que o refinamento das interpreta- certa-antropologia no Brasil
ções depende tanto da teoria quanto dos da-
dos um truísmo que, na antropologia, mos- O tipo de relação com os nossos monu-
tra de forma exemplar a tese weberiana da mentos nunca esteve tão em evidência co-
temporalidade e da circunstancialidade das mo nos tempos de derrubacionismo4. Há
explicações e sua perpétua renovação. Ao pouco, a estátua de bronze de Cecil Rho-
procurar reanalisar o material Ndembu co- des deixou lugar de destaque na Universi-
loco-me então conscientemente dentro da dade da Cidade do Cabo, sob intenso debate
tradição na qual ‘ler por cima dos ombros’, de repercussão internacional (NYAMNJOH,
não diretamente dos nativos, como em Ge- 2021; SHEPHERD, 2020; NEVES; MOU-
ertz, mas de um pesquisador, tem se tornado TINHO; SCHWARCZ, 2019). Há mais tem-
um desafio e, muitas vezes, um rito de pas- po, mas não tanto, a queda do muro de Ber-

4. No original, fallism: movimento que clama pela derrubada de monumentos feitos em homenagem a co-
lonizadores. Ver Frank e Ristic (2020).

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lim se fez acompanhar de Marx, Lenin e ou- lugar incontornável nas grades dos cursos
tros sendo derrubados em todo o território, de Ciências Sociais, assim como as lições so-
outrora cercado pela dita cortina de ferro bre o Kula, a confecção das canoas, os mwa-
(RISTIC, 2020). Televisionadas amplamen- li e soulava trocados e, mais enfaticamente,
te também foram as idas ao chão de monu- a importância do diário de campo, a interlo-
mentos islâmicos, levadas a cabo por ocu- cução imersiva com os nativos, a fim de pre-
pações do Ocidente norte-atlântico, em pa- encher com “carne e sangue” as construções
íses como o Iraque ou a Síria (HABERMAS, abstratas da cabeça do etnógrafo.
2003). Destino análogo tiveram as estátuas O centenário de Argonautas do Pacífico
de Confederados, Cristóvão Colombo e ou- Ocidental inaugura um mito evemerista, para
tros conquistadores, alvo de protestos, em usar uma expressão de George Stocking Ju-
diversas cidades americanas (MITCHELL, nior (1991). Além das míticas ilhas melané-
2020), em consonância com o movimento sias distantes no oceano e habitadas por seus
#BlackLivesMatter (FRYER et al., 2021). Em nativos trobriandeses, também o mito do et-
São Paulo, o Monumento às Bandeiras tem nógrafo é construído: um homem heroico
sido constantemente alvo de intervenções disposto a sair do seu continente, viver entre
(CYMBALISTA, 2020). Mais recentemen- os trobriandeses e voltar para contar o con-
te, dois casos envolvendo intervenções po- teúdo das crenças e práticas sociais daque-
líticas em monumentos ganharam notorie- les com quem conviveu (STOCKING JUNIOR,
dade. O primeiro, ocorrido no Canadá, con- 1991). Pelo exemplo monumentalista de Ma-
cerne à derrubada de estátuas das rainhas linowski, o etnógrafo é o sujeito que, com
Vitória e Elizabeth II, depois da descoberta certa magia, preenche “a lacuna entre pres-
de ossadas de crianças indígenas em loca- crições metodológicas específicas do trabalho
lidades onde funcionavam antigos interna- de campo e objetivos vagamente definidos do
tos administrados pela Igreja Católica e fi- conhecimento etnográfico” (STOCKING JU-
nanciados pelo governo. O segundo, nova- NIOR, 1991, p. 112, tradução nossa5).
mente na cidade de São Paulo, refere-se ao Malinowski como monumento na pra-
ateamento de fogo à estátua do bandeiran- ça pública da antropologia que conhe-
te Borba Gato, assassino e escravizador de cemos não é, por certo, Malinowski por
pessoas indígenas e negras durante a inte- inteiro, mas somente Certo-Malinowski
riorização da colonização no Brasil. (SOBRAL, 2018). Assim como Argonautas
Com as devidas proporções e projeções, é bem mais do que as notas metodológicas
não há dúvida de que um busto de Mali- da introdução, Malinowski tampouco se
nowski adorna largos e praças antropológi- resume à publicação de Argonautas. Não
cas no Brasil e alhures. Nas lousas e nas dis- há escapatória: mesmo o monumento eri-
cussões em sala de aula, vemos e ouvimos gido e cultuado de geração em geração de
com frequência que Malinowski é o pai da antropólogos, é parcial em sua aborda-
etnografia moderna. Isso rende ao ícone um gem canônica.

5. No original: “The gap between the specific methodological prescriptions of fieldwork and the vaguely
defined goals of ethnographic knowledge had thus to be filled by what Malinowski himself had called ‘the
ethnographer’s magic’” (1922, p. 6).

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Estamos falando, portanto, apenas de logia, com a programática leitura da Intro-
Certo-Malinowski, com atenção ao fato de dução de Argonautas? Como recuperar ana-
que “Certo-Malinowski é Malinowski, mas liticamente esse ritual que nos fornece um
nem tudo em Malinowski é certo” (SO- manual para a pesquisa etnográfica que, en-
BRAL, 2018, p. 13). O principal traço des- quanto antropólogos, aprendemos posterior-
sa figura heurística nos leva a assumirmos mente ser por excelência antimanualesca?
que a entrada principal de seu trabalho em Como lidar com essa referência que se con-
nosso meio não se dá pelo genuíno interes- solida ousando desbravar mares tidos como
se pelas minúcias etnográficas de sua obra, não navegáveis e povos tidos como não ci-
nem pelos povos ou região geográfica jun- vilizados e que, ao mesmo tempo, têm em
to aos quais fez trabalho de campo. Não se sua monumentalização o reposicionamento
buscam essas potencialidades de sua obra. das antinomias com as quais a antropologia
Busca-se, em primeiro lugar, a própria su- tem lidado desde a sua fundação?
jeição e controle das potencialidades do Para tratarmos dos dilemas de nossa re-
trabalho de campo, a partir do que Certo- lação com esse monumento, dois autores
-Malinowski passou a representar como re- são inspiradores para o nosso argumento. A
ceituário metodológico e padronização da primeira é Sylvia Wynter, ela mesma às vol-
experiência de campo. tas com compromissos tácitos de efeméride
A segunda qualidade, mera extensão destinada à conquista da América por Cris-
do anterior, é seu papel na profissionaliza- tóvão Colombo. O outro é Francis B. Nyam-
ção da figura do antropólogo. Certo-Mali- njoh, professor da mencionada Universida-
nowski situa-se na posição contraditória de de da Cidade do Cabo – atento interlocu-
fundador de algo que já existia antes de ele tor do que diziam tanto a ruidosa estátua
mesmo existir, como o próprio Malinowski de Rhodes, quanto seus mais ferrenhos opo-
afirma. Autores como Michel-Rolph Trou- sitores e detratores –, defensor da ideia de
illot (2016) e Talal Asad (2017) indicam que incompletude para o refinamento de nosso
a possibilidade de tal impostura (uma gêne- próprio entendimento do mundo.
se determinada ex post facto) relaciona-se à O adjetivo ruidoso vem a calhar, se-
dinâmica acadêmico-departamental britâni- gundo esse mesmo autor, porque se enga-
ca que, por subserviência colonial e dificul- na quem enxerga nos monumentos apenas
dades de se criar histórias alternativas, foi objetos passivos. Dirigem-se cotidianamen-
adotada como mito de origem, tanto lá co- te aos transeuntes, normalmente inaudí-
mo pelas bandas de cá. Se outras disciplinas veis. Começam, no geral, a causar proble-
escavam suas origens até chegar ao menos mas quando uma geração ou coletivo decla-
até o berço grego, a antropologia, como nos ra não suportar mais o que entende serem
alerta Mudimbe (2019), ao fundar-se moder- impropérios e maledicências e, menos ain-
na, oblitera até mesmo essa tênue conexão da, a subserviência respeitosa ou amedron-
da Europa com os continentes vizinhos. Ins- tada dos que os toleram. O tempo tem esses
taura-se na cesura, que instala a si e a noção efeitos e, com o passar dos anos, monumen-
de alteridade, concomitantemente. tos vão se tornando incômodos a céu aber-
Diante disso, o que fazer com esse mo- to. Inevitavelmente, erguer monumentos
numento, um Certo-Malinowski, que apren- sempre envolve consequências imprevisí-
demos nas aulas introdutórias de Antropo- veis. Na esteira crítica do derrubacionismo,

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seria mesmo o caso de se perguntar se al- para a data. O governo jamaicano começou
go erguido como “humano” teria alcançado um plano de escavar e restaurar a cidade de
a façanha de não se desbotar com as intem- Sevilla La Nueva: o primeiro assentamen-
péries do século. Conforme Wynter (2000), to europeu permanente na Jamaica, funda-
o Homem que representa Rhodes, Lenin ou do em 1509, que se tornaria a primeira ca-
Colombo ignora a verdadeira Humanidade. pital do país; em seguida, foi removida para
Mario Quintana, ciente disso ou de outros um lugar mais alto depois da conquista da
efeitos, pôde evitar tal embaraço ao senten- ilha pelos ingleses, em 1655, sendo soterra-
ciar que não queria tal tipo de homenagem. da sob os campos de cana-de-açúcar.
O poeta evitou imortalizar-se numa pra- Concluídos os trabalhos de escavação,
ça em sua cidade natal, pois, segundo ele, um problema de outra ordem surgiu: sabia-
“um engano em bronze é um engano eter- -se muito pouco sobre Sevilla La Nueva e
no” (CARVALHAL, 2005, p. 33). sobre a história da Jamaica pré-conquista
Como veremos, nem Wynter nem Nyam- inglesa. O governo jamaicano, então, solici-
njoh refutam o engano da conquista. No ta a Sylvia Wynter pesquisa documental no
entanto, ambos reconhecem, nesses Ho- Arquivo Geral das Índias, na Espanha, pa-
mens demiurgos do colonialismo, incom- ra elaborar um material formativo de ampla
pletudes que somente se anteveem se os ti- circulação. Essa pesquisa colocou um desa-
vermos sob observação. Nyamnjoh (2021) fio conceitual e analítico para Wynter. Por
e sua reflexão sobre a eliminação de Rho- um lado, a pesquisadora debruçou-se sobre
des de um campo de visão, nos levam a um o mundo jamaicano-espanhol-aruaque-a-
importante dilema: sobretudo em contextos fricano. Por outro, ela se perguntava, tam-
que almejam a pasteurização da vida citadi- bém motivada pelos debates políticos que
na, que tentam remover das vistas todo ti- ocorriam na Jamaica às vésperas de 1992: o
po de incômodo, como reagimos a um “en- que fazer com esse evento? O que fazer com
gano em bronze”? Ainda segundo esse au- a chegada de Colombo, esse evento que pro-
tor, nossa reação pode dizer mais a nosso move o genocídio indígena, o trauma da es-
respeito do que aos feitos do derrubado que, cravidão e os horrores da plantation; e que,
inadvertidamente, numa reviravolta sobre ao mesmo tempo, é o evento fundante que
nossa ação demolidora, pode ser reerguido possibilita a existência da Jamaica como ela
com mais força em outros púlpitos. é, do Caribe como ele é, esse evento que for-
É com essas referências em mente ma o mundo moderno e que forma a reali-
que passamos à próxima seção, tendo dade de todos nós? Como abordá-lo?
como objetivo refletir sobre a existência Diante da efeméride, Wynter quer ir
monumental de Argonautas do Pacífico Oci- além da celebração (da gloriosa conquis-
dental para a antropologia que conhecemos. ta de Colombo) e da perspectiva dissiden-
te (que aponta as inegáveis atrocidades in-
2. Cristóvão Colombo, mais um argonauta tra-humanas e interespécies). Ela ressalta do
evento (a conquista, ao lado de outros even-
Por ocasião dos 500 anos da chegada tos, como as teorias de Copérnico) a emer-
de Cristóvão Colombo nas Américas, diver- gência/constituição de um modo de enten-
sos países do Caribe, em meados dos anos dimento subjetivo. O código de produção de
1980, já começavam a especular projetos sentido do que seja vida e morte e do que

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institui gêneros de humanidade ganha sen- caravelas rumo a terras desconhecidas. Po-
tido político e analítico para Wynter, a par- rém, lá chegando, não reformulou o con-
tir da leitura que faz de Frantz Fanon acerca ceito que carregava de Homem, a partir do
da noção de sociogenia (FANON, 2008). Pa- encontro com as pessoas que existiam nas
ra Wynter (1995), é a partir daquele evento ‒ Américas. A terra onde desembarcou Co-
a Conquista ‒ que gradualmente se estabele- lombo ultrapassa em muito a representação
ceu o fato de sermos seres biológicos que só dela feita nos mapas desenhados e nas his-
podem experimentar a si mesmos pela me- tórias contadas posteriormente. O território
diação de máscaras específico-culturais. E, excede o mapa.
avançando, questiona-se o quanto desven- Em sua vida, o argonauta Colombo te-
dar essas máscaras inventadas na conquista ria ido “além da razão convencional de seu
se tornou a razão de ser e de se fundar das tempo”, ousando navegar por mares tidos
próprias disciplinas ditas de Humanidades. como não navegáveis, a partir da inspira-
Para uma Humanidade forjada, disciplinas ção que encontrava em figuras não menos
científicas à altura. intrépidas, como Marco Polo. Para os pro-
Em On How We Mistook The Map for pósitos de nosso artigo, fazemos aqui uma
the Territory, and Re-Imprisoned Oursel- pausa para pensar em Malinowski tam-
ves in Our Unbearable Wrongness of Being, bém como um sujeito que foi além do ra-
of Désêtre – Black Studies Toward the Hu- zoamento convencional de seu tempo, que
man Project (WYNTER, 2006), Wynter tra- se lançou no mundo tornando nossa exis-
ça uma genealogia e localiza geografica- tência na modernidade, enquanto antropó-
mente a evolução do conceito de Homem logos, possível. Em seu primeiro trabalho –
na Europa e de como este conceito se tor- The Family Among the Australian Aborigi-
nou sobrerrepresentado e se confundiu com nes, de 1913 –, Malinowski presta homena-
a própria noção de humanidade. Enquan- gem ao seu Marco Polo, James Frazer, indi-
to a polêmica interna à Europa Ocidental cando nele lacunas preenchidas por intelec-
entre uma concepção cristã de humanida- tuais de menor monta, como os não menos
de e uma perspectiva renascentista antro- inspiradores Spencer e Gillen.
pocêntrica se desenrolava, ocorreu a expan-
são colonial e o contato com outras noções No início desses estudos, o trabalho foi feito
de humanidade pelo mundo. O conceito de não por especialistas, que intentariam aplicar
Homem, no entanto, nunca produziu no- novos métodos a novos conjuntos de proble-
vas sínteses com tais noções de humanida- mas, mas por homens formados em outras
de. Pelo contrário, a ideia de Homem se im- áreas científicas, que não encaravam os fatos
pôs a elas e confundiu-se com o próprio fe- de frente, mas, sim, os abordavam de acor-
nômeno que quis representar. Na metáfora do com seus aspectos peculiares e frequente-
usada por Wynter (2006), pegou-se o mapa mente sob pontos de vista distanciados (...).
como território. Alguns dos pesquisadores de campo moder-
É nesse movimento de confundir mapa nos, que, para a felicidade de nossa ciência
e território que Wynter (2000, 2006) enten- são também notáveis intelectuais, conquista-
de que Colombo rompeu com as dicotomias ram um avanço considerável no método de
utilizadas na época entre mares navegáveis coleta de evidências (...). Assim, tanto nossas
e mares não navegáveis, ao se lançar nas concepções teóricas como nossos métodos de

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chegar aos fatos estão se aproximando ca- linowski a fazer alusão a etnógrafos anti-
da vez mais do primeiro postulado do estudo gos, experimentados (menciona missioná-
científico: a possibilidade de uma descrição rios e outros que o antecederam), negando
adequada dos fatos e de suas dependências de antemão essa póstuma alcunha: pai da
mútuas como existem hoje, nas sociedades etnografia. Ele não foi o primeiro etnógra-
primitivas existentes. Somente seguindo fo a pôr o pé nas firmes terras insulares de
esse tipo de conhecimento é que especula- domínio imperial habitadas por sociedades
ções subsequentes frutificariam (...). Somente primitivas. Talvez tenha sido o primeiro a
por meio de tal descrição é que podemos al- fazer uma viagem de transformação políti-
cançar uma definição correta e científica de co-epistêmica, como a promovida por Co-
uma dada instituição em uma dada socieda- lombo, que, por meio de seu método cientí-
de. (MALINOWSKI, 1913: iv; viii-i, p.9-10, fico, trouxe para toda a humanidade, “uma
ênfase e traduções nossas6). imagem científica e transculturalmente ve-
rificável da terra e de conceber o cosmos”
Seguindo a analogia, assim como Co- (WYNTER, 1995, p.17, tradução nossa7).
lombo “descobriu” a América, Malinowski De acordo com Wynter (1995), Colom-
“inventou” a etnografia. Ambos, nas pa- bo quis espalhar sua fé e também angariar
lavras de Wynter, teriam promovido um elementos para sustentar seu próprio status,
“grand design”. Se, ao descobrir terra ha- doravante distante de um mero cartógra-
bitável no além-mar, Colombo abriu a cai- fo e eventual mercador. Colombo, segundo
xa de pandora, promovendo uma “revo- Wynter, se lançara contra modelos escolás-
lução intelectual do humanismo”, Mali- ticos arbitrários. Seu mal-estar e sua atitu-
nowski talvez tenha feito algo similar ao de iconoclasta constituíram as sementes da
referendar a importância de sermos exaus- parcial perspectiva histórico-existencial eu-
tivos sobre as máscaras específico-cultu- ropeia, que se tornou, desde então, hegemô-
rais dessa humanidade. Máscaras que, ao nica. E, assim como a circum-navegação da
tempo que compõem uma humanidade costa ocidental africana servira de ensaio
“comum” para o humanismo eurocêntrico, para a conquista do Caribe, podemos pensar
fragmentam-na ao infinito. que a aproximação prévia de Malinowski ao
Lendo Argonautas, percebemos Ma- campo em Trobriand, por meio de incursões

6. No original: “In the early days of these studies work had been done not by specialists, who would try
to apply to a new set of problems new methods, but by men learned in other branches of science, who
looked at the facts, not full in the face, but from a peculiar and often remote standpoint [...]. Some of the
modern field workers, who happily for our science are at the same time distinguished scholars, have achie-
ved a considerable advance in the method of collecting evidence [...]. Thus both our theoretical concep-
tions and our methods of getting at the facts are certainly approaching more and more the first postulate
of scientific study: the possibility of an adequate description of facts and their mutual dependencies as
they exist now in living primitive societies. Only on a basis of such knowledge are further speculations
fruitful [...]. Only by such a description can we reach a correct and scientific definition of a given institu-
tion in a given society.”
7. No original: “a scientific and transculturally verifiable image of the earth and conception of the cosmos”.

Argonautas, monumental e incompleto 383


bibliográficas na Austrália antropológica, similarmente, ao ancorar nas ilhas Tro-
tenha servido a propósitos similares. briand, reforça a ideia de alteridade, tão ba-
Ao triangular nossa leitura de Argonau- silar na antropologia, e que atualiza os mo-
tas com a de Wynter sobre a chegada de Co- dos de conhecer o mundo orientado pela
lombo ao continente americano, cremos que nomeação e pelos desígnios coloniais.
seja importante frisar como tal história co- Se nos dirigirmos para um plano de in-
meça hoje, em 2022. O objeto sob análise é/ teligibilidade que não o do intervalo de al-
foi constituidor da nossa perspectiva. Argo- teridade determinado entre os índices de et-
nautas está no nosso olhar sobre ele, mas nógrafo ideal e ilhéu ideal, que outras leitu-
não está em toda a sua potencialidade. Nes- ras podemos fazer de Argonautas? Na ten-
te texto, nosso objetivo é enfatizar o que de tativa de escape a esse eixo, podemos am-
Argonautas e do próprio Malinowski não nos pliar o foco para as relações de trabalho já
foi legado, ou ao menos não de modo tão en- existentes dos ilhéus na plantation capita-
faticamente ressaltado, em rituais de reme- lista, incluindo as práticas de resistência e
moração contínuos que se repetem em cada invenção ao que se impunha com a con-
disciplina de Introdução à Antropologia. quista colonial. Refletir sobre as cumplici-
Imagine a leitora que Malinowski se pre- dades entre, por um lado, a antropologia
parava para ir à Melanésia8. Muniu-se das e o empreendimento plantation, sobretu-
teorias correntes de sua época: evolucio- do quando aquela reproduz, em consonân-
nistas, difusionistas, deterministas. Tal co- cia com esse último, rígidas demarcações
mo Colombo, que desafia o cristianismo vi- de espaço-tempo a nível epistemológico, é
gente que divide o mundo em mares nave- crucial para “descentramentos” que deses-
gáveis e não navegáveis, e terras habitá- tabilizem o estanque opositivo Eu univer-
veis e não habitáveis, Malinowski prepa- sal e Outro local, como cânone da produ-
ra sua bagagem e deixa sua casa, lançan- ção de conhecimento (PEREIRA, 2020). Por
do-se ao mar desconhecido. Em ambos os outro lado, buscamos também destacar a
casos, no entanto, a estabilidade das cara- cumplicidade possível entre uma antropo-
velas e do barco a vapor suplantou o ím- logia amadora (ou indisciplinada) e o mun-
peto do lançar-se ao desconhecido. A re- do quilombista das rotas de fuga, do sub-
flexão de Wynter (2006) é que, ao pisar no terrâneo–ou, no caso das ilhas Trobriand,
novo território, Colombo atualizou a mesma subaquático, como a atividade de mergulho
noção eurocêntrica de humanidade e de e sua não gerenciabilidade pela lógica co-
modos de conhecer o mundo, sem promover lonial-capitalista, tendo em vista que esta
sínteses com as noções de humanidade última cumplicidade aparece, não por aca-
presentes entre os habitantes da ilha recém- so, em notas de rodapé de Argonautas, co-
descoberta pelo europeu. Malinowski, mo mostraremos a seguir.

8. Aludimos aqui à célebre frase da Introdução: "Imagine-se o leitor sozinho, rodeado apenas de seu equi-
pamento, numa praia tropical próxima a uma aldeia nativa, vendo a lancha ou o barco que o trouxe afas-
tar-se no mar até desaparecer de vista (MALINOWSKI, 1984, p. 23)".

384 Rev. Pós Ciênc. Soc., São Luís, v.19, n.2, 375-398, mai/ago, 2022
3. As brincadeiras de um completo cavalheiro ra quem o carrega teria sido necessário pa-
ra Malinowski pensar os sistemas de trocas
Há um conto escrito por Robert Lou- trobriandeses.
is Stevenson em 1893, The Bottle Imp, ou
O demônio na garrafa, que conta a histó- O que o conto de Stevenson teria a oferecer
ria de Keawe, que descobre, numa de suas a Malinowski era obviamente menos o con-
andanças, uma garrafa, dentro de qual vive teúdo de sua descoberta que a capacidade de
um duende (ou demônio, como se lê na tra- vê-lo como um todo, como uma Gestalt, gra-
dução do texto para o português). O duen- ças a um salto imaginativo: a capacidade de
de/demônio era capaz de realizar todos os construí-lo, como Malinowski escreveu mais
desejos de quem possuísse a garrafa, o que tarde, “mais ou menos como o físico constrói
a tornava muito valiosa. Todavia, o duen- a sua teoria a partir dos dados experimen-
de/demônio havia lançado uma maldição tais”. (GINZBURG, 2000, p. 109).
à garrafa: para desfazer-se dela, seu dono
deveria vender o objeto valioso a um pre- Ao contrário do que a figura mítica e
ço menor do que fora comprado. Ainda: monumental nos sugere, esta inspiração en-
quem morresse em sua posse seria castiga- contrada numa história para crianças revela
do com a vida eterna no inferno. Keawe é um Malinowski brincante. Será mesmo pos-
um dos que toma para si o duende/demô- sível apostar nessa outra chave de entendi-
nio e a garrafa. Após realizar suas fantasias mento do autor?
e vontades, ele passa a garrafa adiante para Façamos nós o exercício de imaginar
um amigo, a um preço menor. Porém, apai- Malinowski e sua postura entre os trobrian-
xona-se e decide casar. Antes do casamen- deses, e como os antropólogos podem tam-
to, descobre que tem lepra, o que arruina- bém ter tomado o mapa pelo território ao
ria seus planos. Vai atrás da garrafa, e a en- formalizar o método etnográfico moderno.
contra na posse de um branco, com valor de Malinowski levou seis semanas para chegar
apenas dois centavos. Curado e casado, Ke- à Austrália. De lá, aportou na ilha Mailu em
awe fica deprimido e, junto com a esposa, 1914, anotando o que observava nos seus
empreende uma viagem por entre as ilhas diários de campo, em sua barraca ou nas re-
de colonização inglesa e francesa para ten- sidências de seus vizinhos brancos, ainda
tar vender a garrafa. Após idas e vindas do sem sistematizar isso num método. Depois
enredo, nos deparamos com o último cobi- Malinowski voltou à Austrália, onde traba-
çoso dono da garrafa que, ao tomar conhe- lhou num primeiro texto, que enviou à Eu-
cimento de seu destino final, opta por ir ao ropa. Em 1914, eclode a I Guerra Mundial
inferno de qualquer jeito, pois, para ele, a na Europa; como a Polônia fazia parte do
garrafa é sua melhor companhia. Império Austro-Húngaro nesse momento, o
O enredo acima descrito, além de po- seu retorno ao Reino Unido ficou prejudi-
der ser lido como um teorema sobre bruxa- cado. Na dificuldade de regresso imediato à
ria (CALAVIA SÁEZ, 2011), teria inspira- Europa e na impossibilidade de permanecer
do Malinowski a compor a trama de Argo- na Austrália, Malinowski vai às ilhas Tro-
nautas, imaginando o Kula da maneira co- briand em julho de 1915, retornando à Aus-
mo foi escrito (GINZBURG, 2000). O objeto trália em 1916. Ele somente conseguiu vol-
que incute uma exigência de circulação pa- tar à Inglaterra em 1921. Em 1922, defen-

Argonautas, monumental e incompleto 385


deu sua segunda tese de doutorado e publi- ções” (STOCKING JUNIOR, 1991). O epíteto
cou Argonautas do Pacífico Ocidental, o li- teria como origem o convite cantante que o
vro que revolucionou o método consagrado autor faria a bruxas e outras entidades para
na Antropologia. que beijassem suas partes íntimas: “Isso era
Essas idas e vindas acidentais, costumei- evidente mesmo depois de sua morte, quan-
ramente omitidas, dão um tom de impro- do ele ainda era lembrado como o ‘homem
viso e de bem menos rigor do que a insíg- das canções’ (HOGBIN, 1946) – sem dúvida,
nia de criador do método etnográfico mo- das vezes em que para espantar mulukwa-
derno deixa transparecer. A sistematiza- usi ou bruxas voadoras, ele cantava ‘bei-
ção posterior do caderno de campo, da rela- jem minha bunda’ com melodias de Wag-
ção nativo/etnógrafo e da descrição do Kula ner” (STOCKING JUNIOR, 1991, p.103, tra-
dão um ar de seriedade que tende a ignorar dução nossa9).
tais percalços e improvisos, ou mesmo sua A omissão dos chistes, dos improvisos
inspiração no conto de Stevenson–também e da inspiração de um conto para crianças
este um argonauta que navegou e viveu, co- não parece ser despropositada. Esses fatores
mo Malinowski, Nos Mares do Sul (STE- não combinam com a face monumental ou
VENSON, [1896] 2001). Foi durante sua es- heroica que a alcunha de pai da etnografia
tadia no Pacífico Sul que Stevenson escre- sugere. O tom jocoso de Roy Wagner (2009),
veu O demônio na garrafa. ao definir a etnografia, nos leva a imagi-
James Clifford (2011), por sua vez, apro- nar que ela sempre esteve distante de tal ri-
xima Malinowski de outro escritor, agora gidez: “É uma espécie de jogo, se quisermos
da metade do século XX: Joseph Conrad. O – um jogo de fingir que as ideias e conven-
próprio Malinowski reivindicava o posto de ções de outros povos são as mesmas (num
Conrad da antropologia (CLIFFORD, 2011). sentido mais ou menos geral) que as nossas
O procedimento de Clifford parte do fato de para ver o que acontece quando ‘jogamos
que ambos os autores – poloneses que escre- com’ nossos próprios conceitos por inter-
veram suas obras em línguas estrangeiras –, médio das vidas e ações dos outros” (WAG-
“estiveram às voltas com o cosmopolitismo NER, 2009, p. 57). Stevenson contou a Co-
e compuseram suas próprias versões ‘Sobre nan Doyle que os nativos que haviam lido
a verdade e a mentira em um sentido cultu- a história sobre o demônio/duende, quan-
ral’” (p. 97), e enfatiza o caráter heroico da do iam visitá-lo em Vailima, perguntavam-
etnografia de Malinowski–o que lhe conferi- -lhe: “Onde está a garrafa?” (RANKIN, 2010
ria certa vantagem sobre os amadores. [1987], p. 367).
Interessa-nos aqui enveredar na antro- A partir disso, podemos nos perguntar:
pologia amadora (SOBRAL, 2018) do Ma- e se Malinowski estivesse brincando? E se
linowski brincante, presente também nas estivesse tentando criar um jogo? No jo-
frestas da historiografia, quando o pai da go criado por Malinowski – e que todos
etnografia é relembrado num de seus títulos nós aprendemos a jogar –, ele teve de “fin-
menos conhecidos: o de “homem das can- gir” que aquilo que encontrou nas ilhas

9. No original: It was evident even after his death, when he was still remembered as “the man of songs”
(HOGBIN, 1946) doubtless from the times in order to frighten away mulukwausi, or flying witches, he sang
“kiss my ass” to melodies from Wagner.

386 Rev. Pós Ciênc. Soc., São Luís, v.19, n.2, 375-398, mai/ago, 2022
Trobriand pode ser comparável com ele- Confundir a brincadeira com a realida-
mentos da vida cotidiana na Inglaterra: os de é um processo comunicativo semelhan-
mwali e soulava e as joias da Coroa bri- te ao de confundir o mapa com o território.
tânica, o Kula e o encantamento de um Quando se brinca, é preciso ter consciência
duende de conto infantil. Nesse jogo, de- de que se está brincando, para poder cons-
pois de “estar lá” e conviver por um tem- cientemente discriminar os signos da reali-
po alongado com os nativos, pôde brincar dade (BATESON, 1972). O perigo de ignorar
com os conceitos de parentesco, magia, o frame “Isso é uma brincadeira” é o de le-
sexo, política, economia etc. var a brincadeira muito a sério ou de sofrer
O impudor de comparar o método et- de esquizofrenia e não discriminar o siste-
nográfico a uma brincadeira (BELISÁRIO, ma simbólico da realidade. O risco de levar
2016) algo tão incompleto e pouco produ- a etnografia muito a sério é não conseguir
tivo – tem consequências imprevisíveis: o discriminá-la da realidade que ela busca re-
que faríamos com todas as revistas de An- presentar. O humanismo radical de Sylvia
tropologia se descobríssemos que Mali- Wynter (PATERNIANI; BELISÁRIO; NAKEL,
nowski estava brincando? O que seria de 2022) nos sugere que é possível adotar a
todos os departamentos, instituições de postura de se lançar ao desconhecido pelos
pesquisa e financiamentos? Aqueles que le- mares tidos como não navegáveis, como fi-
varam a sério demais a brincadeira, podem zeram Colombo e Malinowski, sem confun-
se assustar ou mesmo desprezar essa hipó- dir essa experiência de representação do
tese. Podem bradar que não, que são pes- mundo com a realidade em si. Para isso, a
quisadores sérios, que o que se descobriu brincadeira não pode ser levada tão a sério,
com os “nativos” foi debatido entre os pa- sob o risco de não sabermos dela sair.
res e que a comparação e a analogia são Podemos ainda pensar que confundir a
caminhos incontornáveis para o entendi- brincadeira com a realidade se aproxima de
mento da alteridade. Aos que insistem em uma equivocada produção de comparação,
não se lembrar do caráter lúdico das etno- uma produção de comparação entre não
grafias, relembramos as palavras de Walter comparáveis que, ao fim e ao cabo, tornaria
Benjamin (2009): inviável a própria antropologia como com-
paração e tradução entre sistemas de pen-
O hábito entra na vida como brincadeira, e samento (STRATHERN, 2006). Marilyn Stra-
nele, mesmo em suas formas mais enrije- thern propõe os conceitos de divíduo e de
cidas, sobrevive até o final um restinho de socialidade, a partir da revisão da literatura
brincadeira. Formas petrificadas e irreconhe- produzida sobre a Melanésia, brincando com
cíveis de nossa primeira felicidade, de nos- os então arraigados conceitos de indivíduo e
so primeiro terror, eis o que são os hábitos. E sociedade e recusando a mescla entre o mo-
mesmo o pedante mais insípido brinca, sem do branco de habitar e entender o mundo e
o saber, de maneira pueril, não infantil, brin- as humanidades e os mundos possíveis, is-
ca ao máximo quando é pedante ao máximo. to é, recusando tomar o mapa pelo território.
Acontece apenas que ele não se lembrará Nesse sentido, a consolidação do méto-
de suas brincadeiras, somente para ele uma do etnográfico, que não discerne realidade
obra como essa permaneceria muda. (BEN- e brincadeira, seria ela mesma uma traição
JAMIN, 2009, p.102). à antropologia que aqui nos interessa: a an-

Argonautas, monumental e incompleto 387


tropologia open-ended, uma antropologia to e deslumbrante – com esses pedaços em-
sem garantias (HALL, 1984), comprometida prestados de outros. Na condição de com-
com a incompletude e com habitar e abra- pleto cavalheiro, a caveira seduz a jovem,
çar a bagunça (HARAWAY, 2016). Em cer- que não tarda em se decepcionar, reconhe-
to sentido, essa antropologia trairia inclusi- cendo seu infortúnio.
ve o pai fundador monumental, que insiste Ao aproximar a caveira de Cecil Rho-
nos não menosprezáveis, imponderáveis do des, Nyamnjoh (2021) aponta para dois ca-
cotidiano na feitura etnográfica. minhos férteis de reflexão. Por um lado, in-
A brincadeira, o jogo e os imponderá- dica o empréstimo (ou esbulho) como con-
veis apontam para uma incompletude na dição para a sua composição: logo, para o
obra de Malinowski e no fazer etnográfico. seu fascínio. Ele é tudo o que tomou de ou-
Sendo a etnografia um jogo de brincar com tros. De outra perspectiva, Nyamnjoh tam-
conceitos por intermédio da vida de outros, bém indica que, diante da condição que é a
ela necessariamente toma de empréstimo o incompletude, o deslumbre ante Rhodes se
que não é propriamente nosso. Entretanto, deve, em parte, ao efeito que essa coleção de
no lugar de reconhecer a incompletude da espólios produz em seu admirador. O herói
brincadeira de Malinowski, que precisa dos do romance de Tutuola, o bêbado em bus-
trobriandeses para existir, Certa-Antropolo- ca do seu fazedor de vinho de palmeira, não
gia ensinada nos cursos introdutórios erigiu se deixa enganar. Ele sabe que o que aquele
um monumento, daqueles que não se cons- perfeito cavalheiro exibe não só não lhe per-
trangem, a céu aberto, a revoltar os derru- tence, como ludibria quem o observa sobre
bacionistas. Esse esquisito monumento en- seu verdadeiro valor e sua real composição.
talhado em mármore, em seu sólido tronco, Kisukidi (2020) também resgata a obra
mas que instavelmente finca os pés em ca- de Tutuola para nos falar de outro impas-
noas, remonta à comparação que Nyamnjoh se do universalismo. Ao tratar da resistên-
(2021) faz de Cecil Rhodes e o “completo cia dos museus europeus em reconhecer as
cavalheiro” do romance de Amos Tutuola. suas coleções de arte africana como rouba-
Nyamnjoh recupera o autor nigeria- das, a autora aponta para o recorrente uso
no Amos Tutuola para sustentar seu argu- do universalismo como escusa para a ma-
mento sobre a incompletude, a deambula- nutenção dos acervos na Europa, onde as
ção e os limites de qualquer aparato analí- peças seriam vistas por Toda a Humanida-
tico que se deseje avesso a arestas ou a ex- de. Sem se reconhecer como caveiras e na-
cessos. Amos Tutuola, em O Bebedor de Vi- da mais, os curadores e representantes dos
nho de Palmeira, romance de 1952, narra museus assumem o discurso da completude
um encontro entre um “completo cavalhei- diante da precariedade que marcaria a cena
ro” e uma moça que realiza sua fantasia de do patrimônio nos lugares de onde original-
encontrar um homem verdadeiramente bo- mente esses objetos vieram. Não reconhe-
nito. Acontece que o tão bonito cavalhei- cem o despropósito de afirmar que o objeto
ro não passava de um crânio, cujos atribu- – qualquer que seja, fetiche ou não – estaria
tos são todos tomados de empréstimo em correndo risco se voltasse ao solo de onde
seu caminho da floresta para o mercado na emergiu em outros tempos, de onde foi reti-
aldeia, para impressionar a moça. O crânio rado com violência, para ser exibido para o
havia montado todo o seu corpo – comple- Mundo, nas galerias europeias.

388 Rev. Pós Ciênc. Soc., São Luís, v.19, n.2, 375-398, mai/ago, 2022
Malinowski seria mais um monumen- mente no Caribe, afirma com frequência que
to ao projeto de encontrar uma Humanida- naquelas ilhas foram plantadas espécies ve-
de comum por meio do esbulho? Quais as getais, como a cana-de-açúcar, o cacau e o
qualidades de Argonautas, para além daqui- algodão, e transplantadas pessoas (escravi-
lo que foi tomado de empréstimo pelo ca- zadas ou forçadas a trabalhar), vindas, am-
minho, que de fato pertencia a Trobriand e bas, dos continentes africano e asiático. Os
precisaria ser devolvido para seus donos? cultivos que Malinowski encontrou em Tro-
Ou, pensando na trama de The Bottle Imp, briand são o objeto essencial de Coral Gar-
estaríamos deixando nas mãos de Mali- dens, no entanto, em Argonautas, durante
nowski um encantamento que ele queria e toda a narrativa, nos vemos acompanhados
deveria passar para frente? Devolvendo o de referências à devoção desses ilhéus e dos
que pegou dos trobriandeses, o que sobra de de ilhas vizinhas a diferentes roças e à ativi-
Malinowski é sua brincadeira, sua postura dade subaquática de encontrar pérolas.
de lançar-se ao mundo e sua disposição de É nosso interesse aqui apontar para
viver uma experiência onde mapa e territó- algumas reflexões que surgem da leitura de
rio não se confundem antecipadamente. Ao Argonautas sobre a relação entre a plan-
invés de aprender com essa postura, o Ma- tation no mundo derivado da conquis-
linowski que se lê desde o Brasil, que nos é ta de Colombo, e passagens da monografia
conhecido, é aquele composto por suas par- de Malinowski sobre as relações dos ilhéus
tes desencarnadas, que falam a Todo Mun- com o trabalho para os comerciantes bran-
do, por não falarem precisamente de nin- cos. Além dos trabalhos nas diferentes la-
guém e a ninguém. vouras, chamamos atenção, mais detida-
No item seguinte, ainda sob a inspiração mente, à atividade de mergulho e coleta de
da relação Stevenson-Malinowski, iremos conchas, ou melhor, pérolas, naquele prin-
partir de outro aspecto do conto: a apari- cípio de século.
ção do homem branco como aquele que de- Malinowski declara que, outrora, para os
tém a garrafa quando Kwame a procura, e ilhéus, qualquer pérola encontrada era da-
como aquele que desdenha da maldição da da às crianças, para que brincassem. Nes-
vida eterna no inferno para ter a garrafa so- sa passagem do texto, Malinowski recorre
mente para si. ao artifício da simetria que, com ou sem in-
tenção, termina por minimizar o efeito do
4. Trobriand como plantation esbulho colonial. Os bagi (soulava) dos tro-
briandeses seriam coisas insignificantes e
A unidade é submarina. imundas, sem nenhum valor, se compara-
Ar respirável, nosso problema é como estu- das a pérolas valiosas. O oposto ocorreria
dar fragmentos/o todo aos trobriandeses diante da sede por pérolas
Edward Kamau Brathwaite, 197510 dos aventureiros brancos. Malinowski afir-
ma que a independência e as peculiarida-
A literatura de que tratamos, devotada des culturais e mentais dos nativos são tra-
à investigação sobre a plantation, notada- tadas como uma frivolidade indulgente pela

10. No original: “The unity is submarine Breathing air, our problem is how to study fragments/whole”, tra-
dução nossa.

Argonautas, monumental e incompleto 389


maioria dos residentes brancos. Essa avalia- cio vêm eclipsando a importância dos antigos
ção apressada o preocupava, pois reconhe- costumes. (MALINOWSKI, 1984, p. 123).
cia estar diante de um tesouro científico.
No capítulo XIV, “O kula em Dobu Por- O que nosso autor chama de “interes-
menores técnicos da roça”, Malinowski in- ses” não só diminuiu o afluxo local ao Kula,
dica que são as “forças sociais da tradição e como imprimiu qualidades distintas sobre
do costume que imprimem valor nesses ob- a participação daqueles que ainda tomam
jetos” (MALINOWSKI, 198411, p. 261), péro- parte no ritual. Malinowski elogia a tenaci-
las ou colares (“cada um deles uma fieira de dade dos que seguem no Kula, pois o tempo
contas achatadas, em parte descoloridas, em que a ele dedicam lhes seria mais lucrativo
parte cor de framboesa ou vermelho-tijo- se devotado à extração de pérolas:
lo, formando um longo rolo cilíndrico”) (p.
260). Diz-nos Malinowski que “o valor con- Atualmente, quando os pescadores, mergu-
vencional de um objeto traz, em si, poder, lhando à procura de pérolas, conseguem
fama e o prazer de aumentá-los” (p. 261). ganhar de dez a vinte vezes mais do que ao
Brancos e ilhéus estariam apenas cultivan- executar o que lhes compete no wasi, a tran-
do o que lhes dava poder, reconhecimento e sação em geral constitui um grande peso pa-
prazer. Malinowski chega a estabelecer cer- ra eles. Um dos mais notáveis exemplos da
ta diferença entre as duas perspectivas: “No tenacidade dos costumes nativos é o fato de
caso do homem branco, o processo é infini- que, apesar de toda a tentação que a pes-
tamente mais complexo e indireto, mas não ca de pérolas representa, e apesar da gran-
difere em essência do dos nativos” (p. 261). de pressão que os negociantes brancos exer-
Em outras passagens do texto, como a cem sobre eles, os pescadores jamais se es-
seguinte, do capítulo VI, “Lançamento de quivam de praticar o wasi e, tendo recebido
uma canoa e cerimônia de visita cerimo- o presente inaugural, dedicam seu primeiro
nial Economia tribal nas ilhas Trobriand”, dia de tom tempo à pesca, e não à procura
vamos encontrar referências menos explíci- de pérolas. (MALINOWSKI, 1984, p.146, no-
tas à assimetria que permite a expansão das ta 60, grifos nossos).
crenças e costumes dos brancos em detri-
mento daquelas dos ilhéus: Malinowski celebra a persistência dessa
possibilidade de se dedicarem à pesca, pa-
Atualmente, outros interesses – como, por ra retribuírem os vegetais ganhos, em vez
exemplo, mergulhar a busca de pérolas, tra- de se restringirem à extração de pérolas. No
balhar nos campos de cultivo [plantation12] entanto, ele também observa, no capítulo
pertencentes ao homem branco ocupam a XXI, “As divisões do Kula e suas ramifica-
atenção do nativo, e muitos acontecimentos ções”, que nem todos os partícipes do Kula
referentes às missões, ao governo e ao comér- resistem da mesma forma aos negociantes

11. Todas as citações de Argonautas no presente artigo são da edição de “Argonautas do Pacífico Ociden-
tal: um relato do empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné melanésia”,
tradução de Anton P. Carr e Lígia Aparecida Cardieri Mendonça, revista por Eunice Ribeiro Durham e pu-
blicada pela editora Abril Cultural, terceira edição, 1984.
12. Na versão em inglês, lê-se plantation.

390 Rev. Pós Ciênc. Soc., São Luís, v.19, n.2, 375-398, mai/ago, 2022
brancos. Alguns, como os ilhéus de Kava- da somente com relação à pesca da (concha)
taria, já nem sequer participavam mais das conus. De fato, esta magia é apenas a adap-
expedições: tação da magia do mwali (braceletes) às pé-
rolas. No entanto, duvido que tal adaptação
A ilha de Kayleula é sem dúvida o centro de ou transferência ocorresse sem que antes os
construção de canoas mais importante. Não fundamentos da crença e costume nativos ti-
sei com certeza se antigamente algumas das vessem sido abalados pelas regras e ensina-
canoas de Kavataria eram realmente feitas mentos bem intencionados, mas nem sempre
em Kayleula e adquiridas pelos habitantes de sábios e benéficos do homem branco; e pe-
Kavataria, embora acredite ser este o caso. la introdução do comércio. (MALINOWSKI,
Hoje em dia a comunidade de Kavataria está 1984, p. 295, nota 82).
completamente absorvida pela indústria de
Nosso autor não reconhece senão boas
pérolas e, tendo abandonado as expedições
intenções nos propósitos europeus, mas
há uma geração, já nem sequer possui cano-
as. (MALINOWSKI, 1984, p. 359). ainda assim identifica efeitos nefastos. A
inserção de objetos no circuito (como os
Vemos também que não somente os machados, recebidos em troca de pérolas
ilhéus se transformam com a conquista co- nas trocas com os colonos) e o desapareci-
lonial. Embora Malinowski tenha ouvido, e mento de outros artefatos (como os escu-
registrado no capítulo XVII, “A magia e o dos, as lanças e outras armas decorativas)
Kula”, que “a magia não pode ser inventa-
indicam um fator que nos parece crucial: o
da” (MALINOWSKI, 1984, p. 295, nota 82),
tempo em Trobriand e nas ilhas parceiras
ele assinala que um encantamento tradi-
cionalmente dirigido a mwali se destinava, foi radicalmente alterado com a invasão
à época, também à pesca da ostra, em bus- colonial. Passa-se grande parte dos dias
ca de pérolas. Como percebe Malinowski, mergulhando-se em busca de pérolas. O
se a magia se transformou ou se adaptou, trabalho para a produção de matérias-pri-
tal fato se deve diretamente ao empreendi- mas retira dos ilhéus a possibilidade de
mento colonial: expandir e transformar suas artes e ofí-
cios, como o faziam anteriormente.
A associação da magia com qualquer inte-
resse vital é demonstrada pela pesca da pé-
rola. Neste caso, devido à chegada dos ho- De fato, há cerca de três gerações, a aparên-
mens brancos, abriu-se uma nova perspecti- cia teria sido muito diferente. Os nativos de
va muito absorvente e lucrativa. Existe agora então estariam armados de escudo e lança;
uma forma de magia associada a esta pesca. alguns estariam carregando armas decorati-
Aparentemente isto contradiz o dogma na- vas, tais como as espadas-porrete, feitas de
tivo de que a magia não pode ser inventa- madeira dura, os cacetes de ébano maciço ou
da. Se colocados frente a esta contradição, os os pequenos lança-dardos. Um exame mais
nativos explicam que esta magia é, na ver- minucioso revelaria então muitos outros
dade, uma antiga magia da pesca de conchas adornos de nariz, espátulas para cal fina-
que se aplica a todas as conchas encontradas mente entalhadas, cabaças pirogravadas. Al-
na laguna, e que até então havia sido usa- guns desses objetos estão fora de uso atual-

Argonautas, monumental e incompleto 391


mente; os que ainda são usados são de quali- dois anos, desde a época em que tinha vi-
dade inferior e muitos não apresentam qual- vido como seu vizinho em Omarakana (...).
quer enfeite. (MALINOWSKI, 1984, p. 123). Eu o achei mudado e envelhecido, sua figura
alta mais curvada, e o rosto largo, com sua
Há, no início do século XX, quando Ma- expressão meio benevolente e meio astuta,
linowski observa o Kula, uma decadência enrugado e preocupado. Ele tinha algumas
insuspeita13. Apesar de admirável, o núme- queixas a fazer sobre o modo casual com que
ro de canoas durante seu trabalho de cam- tinha sido recebido em Sinaketa, onde não
po em Kiriwina era 1/3 daquele que outrora lhe tinham dado nenhum colar, embora al-
navegava na expedição. A decadência é de- guns dias antes os habitantes de Sinaketa ti-
corrente da existência, entre ilhéus, cano- vessem levado centro e cinquenta pares de
as, tubérculos, mwali e magias e a mercado- braceletes de Kiriwina. De fato, a mudança
ria, da composição-plantation, ou seja, da de posição relativa entre os chefes de Sinake-
“existência predadora de um Outro consti- ta e o próprio To’uluwa é um ponto perma-
tuído para fins de perpetuação dos próprios nente de mágoa para o velho chefe. (MALI-
meios de produção que se tornam inques- NOWSKI, 1984, p. 337-338).
tionáveis” (BORGES, 2020, p.3).
A exegese dos Argonautas sugere que es- Sem o mesmo tempo de que dispunham
se processo de decadência afetava também para produzir os bens valiosos que ingres-
os chefes. Ainda que lhe parecesse indubitá- sam no circuito de trocas, dos mwali aos
vel a autoridade dos chefes e sua ascendên- soulava, passando pelas canoas ou pelos
cia no ritual, era igualmente incontestável alimentos, como os porcos ou inhames, os
que sua influência tanto decaía proporcio- ilhéus e sua magia se recompõem para ga-
nalmente na importância cada vez mais mo- rantir a participação no Kula. Nesse repo-
desta do evento, que atraía cada vez menos sicionamento constante, parte significativa
interessados, quanto se recompunha, tendo de sua atenção é dedicada a não se deixar
em vista as redes forjadas por novos chefes, capturar totalmente, deixando, por exem-
que “enriqueciam” a partir do pagamento plo, celeiros cheios, sem comer nem ven-
em mercadorias (tabaco, noz de betel e ou- der os tubérculos, garantindo assim à vida
tros vaygu’a, como as lâminas para macha- que nasceu da barriga da terra um futuro
do beku) que recebiam dos brancos, em tro- que não seja o de mercadoria. Imaginando
ca das pérolas, como vemos em um dos tre- um futuro em meio à plantation, vemos na
chos do capítulo XIX: “O Kula interior”: etnografia de Malinowski relatos do que os
ilhéus faziam para o reencantamento de um
Naquela ocasião em Sinaketa eu o encon- mundo ameaçado, relatos da composição-
trei [To’uluwa] depois de um intervalo de uns -terra em coexistência com a composição-

13. Wax, a partir de material de Peter Worsley, reflete sobre o que chama regime de castas, imposto na
Melanésia, que teria perdurado oficialmente até os eventos de independência que, para o caso da Papua
Nova Guiné, ocorreu em 1975: “As guerras nativas tinham sido exterminadas, apesar de serem altamente
ritualizadas e vinculadas aos sistemas de status e religiosos de muitas sociedades. A cobrança de impos-
tos forçou os homens nativos a trabalharem na plantation(...). Europeus se apropriaram das terras nativas
para plantations ou para mineração” (WAX, 1972, p. 4).

392 Rev. Pós Ciênc. Soc., São Luís, v.19, n.2, 375-398, mai/ago, 2022
-plantation (BORGES, 2020). Sob esta ótica, contemporânea imaginar igualmente outros
temos em mãos uma ode à imaginação e à futuros para a antropologia – para aquela
liberdade diante do extermínio. de Malinowski e para a atual, à qual nos de-
Stocking Junior (1991) relata que, em dicamos. Deparamo-nos com os vários des-
1916, Malinowski depôs numa comissão tinos que Argonautas pode ter. Por um lado,
parlamentar de inquérito sobre o trabalho o frustrante papel de cerceador, quando lida
forçado dos papuásios na plantation de co- somente com sua Introdução, para dela ex-
co do magistrado RL Bellamy, que em Ki- trair um manual de adequadas maneiras em
riwina tinha 120 mil coqueiros. A investi- campo. Por outro, uma exegese literal que
gação objetivava conhecer a disposição dos atenta para o circuito do Kula, desprezando
nativos para o trabalho na plantation, dian- os demais circuitos dos quais participam os
te da crescente ameaça de menor oferta de ilhéus. Essa última leitura, mais disciplinar
mão-de-obra contratada (indentured labour) e clássica, não deixa de cercear o tempo e o
vinda da Índia e da China para as planta- espaço como o faz a colônia. Avessa à po-
tions, que alimentavam os negócios britâ- rosidade e à deambulação, mesmo que por
nicos e australianos no Pacífico Sul. Mali- meio da ficção, procura demarcar fronteiras
nowski, de maneira bastante sutil, teria ten- para fins de “bom entendimento”. Insistir
tado demover os administradores coloniais nessa prática seria almejar uma completu-
de seus planos, repetindo uma querela que de ou totalidade que de fato nunca existiu.
tivera com Bellamy, alegando inaptidão Interessa-nos uma antropologia que
cultural dos ilhéus para o trabalho, e usan- busque reconhecer a incompletude não co-
do como alegoria o entendimento local so- mo falta a ser sanada, como com a solução
bre a relação entre sexo e reprodução, que da derrubada do “complete gentleman”, mas
tão bem conhecemos das entrelinhas de seu sim como a abertura para histórias não cap-
artigo sobre os Baloma, quando menciona o turadas pela história única de que nos fa-
trabalho forçado na plantation por longos la Chimamanda Adichie: uma abertura pa-
períodos, que chegavam a três anos. ra histórias não reduzidas à miséria do pre-
sentismo da história colonial orientada por
Com uma prisão, um hospital, doze residen- definições pelas ausências (ADICHIE, 2019).
tes brancos e uma próspera indústria de pé- Reconhecer a porosidade, a deambulação e
rolas em suas lagoas, Kiriwina (a maior das a incompletude é reconhecer possibilidades
ilhas de Trobriand) era um dos “lugares mais de futuro que operam não segundo uma ló-
bem governados e mais ‘civilizados’ da re- gica de quitar a dívida (porque impagável)
gião”.( YOUNG, 1984, p. 16 apud STOCKING legada pelo racismo colonial (FERREIRA DA
JUNIOR., 1991, p. 42, tradução nossa14). SILVA, 2019). Antes, trata-se de, longe des-
sa ânsia inalcançável por reparação “hu-
Se a antropologia se lança ao mar e aca- manista”, reconhecer, imaginar e promo-
ba por expropriar terras e territórios, mesmo ver formas de, como diz Frank B. Wilderson
“sem querer” e “sem prever”, é nossa tarefa (2021), a partir de uma provocação de Sai-

14. No original: “With a jail, a hospital, twelve White residents, and a thriving pearl industry in its lagoon,
Kiriwina (the largest Trobriand island) was one of the “best governed and most ‘civilized’ places” in the
region” (Young, 1984, p. 16, cf. Black, 1957).

Argonautas, monumental e incompleto 393


diya Hartman, não fugir do problema, mas ção, entendimento e perpetuação do cânone
de existirmos lado a lado. Com Hartman antropológico, de seu alcance e de sua im-
(2020) e Wynter (2006), lembramos que a portância no tempo presente.
escapatória é também impossível porque é Acreditamos com isso ter demonstra-
ao passado nefasto que tributamos nossa do que antropólogos em suas pesquisas não
própria existência no presente. devem se deixar levar pela sedução do ma-
pa, por suas bordas bem definidas, por sua
Considerações finais escala manejável. No território há potencia-
Ao aproximarmos Malinowski da figura lidades que, como procuramos indicar, ne-
de Colombo, reconhecemos o caráter inau- nhum mapa consegue exaurir. A finalida-
dito e revolucionário de sua circum-nave- de do mapa é a pretensa exaustão e o con-
gação. Prosseguindo com tal comparação, trole, como em uma plantation, enquanto o
entendemos que Malinowski não foi capaz propósito do território, assim como o da an-
de desafiar a noção de Homem que lhe ser- tropologia amadora, só existe no seu futuro.
via de porto seguro, em face das variadas
Agradecimentos
máscaras culturais com que se deparou. Este
problema de origem, o problema que Fanon
Este artigo resulta de discussões coleti-
define como sendo de uma sociogenia, ra-
vas realizadas no âmbito do GESTA (Grupo
ramente é tocado criticamente, quando so-
de Estudos em Teoria Antropológica). Pa-
mos, como aprendizes, introduzidos a Argo-
ra sua confecção, outres colegas colabora-
nautas do Pacífico Ocidental.
ram, embora sua autoria não se faça presen-
Pareceu-nos conveniente apontar pa-
te aqui. Em nome de Fabiola Gomes e Ro-
ra nossa produção ativa de sua entroniza-
gério Campos, agradecemos a profícua par-
ção, ou melhor, da entronização de certos
ceria ao longo de todos esses anos. Presta-
aspectos de sua obra e seus consequentes
mos um especial agradecimento à Mariza
efeitos, a partir da mesmerização que sen-
Peirano, por sua leitura atenta e sugestões
timos diante do conceito de alteridade, co-
generosas. Todes es autores contaram com
mo aqueles que no romance de Tutuola se
fomentos públicos, seja por meio de bolsas
deixam capturar pela caveira disfarçada de
de pesquisa, seja pela manutenção de seus
completo cavalheiro.
PPGs. Os recursos da CAPES, do CNPq e de
Com o propósito de aproximar concei-
outras agências são cruciais para a pesqui-
tualmente Trobriand ao Caribe, a partir dos
sa no país.
problemas teóricos que autores como Wyn-
ter julgam pertinentes para se entender a
Referências
conquista colonial, encontramos, nas en-
trelinhas da obra, reflexões de Malinowski
ADICHIE, C. N. O perigo de uma história única.
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so, procuramos evidenciar nossa participa-
lonial Encounter. Tradução de Bruno Reinhardt.
ção ativa na produção de um mapa que aca-
Ilha. Florianópolis, v. 19, n. 2, p. 313-327, dez.
ba sendo tomado pelo território trobriandês.
2017.
Recuperamos os efeitos devastadores da co-
lonização e do racismo sobre nossa percep-

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RESUMO ABSTRACT

Neste artigo tratamos da monumentaliza- This article deals with the monumentali-
ção de Argonautas, a partir da dissemina- zation of Argonauts in Brazil, based on the
da e reiterada leitura de sua Introdução em widespread and repeated reading of his In-
disciplinas formativas no Brasil. Mediante troduction to Formative Disciplines. Acti-
conceitos como incompletude e brincadei- vating concepts such as incompleteness
ra, encontramos, nas entrelinhas da obra, and play, we find, between the lines of the
reflexões de Malinowski pouco ressaltadas work, Malinowski’s reflections little hi-
sobre o trabalho escravizado ou forçado ghlighted about enslaved or forced labour
em Trobriand. Essa releitura nos permite in the Trobriand. This rereading allows us
tecer aproximações analíticas entre o em- to weave analytical approximations be-
preendimento do autor e o de Cristóvão tween the author’s undertaking and that
Colombo, a fim de problematizar a noção of Christopher Columbus. Through hidden
de Humanismo. Ao analisar passagens re- passages of the work, we explore the cen-
cônditas da obra, exploramos a centrali- trality of the plantation in the Trobriand
dade da plantation nas ilhas Trobriand, Islands. We suggest the future of Argo-
com o fim de sugerir que o futuro de Argo- nauts resides in its appropriation beyond
nautas reside na possibilidade de sua apro- the exegesis of its Introduction, which is,
priação para além da exegese deste frag- in fact, little expressive of the whole work.
mento, a célebre Introdução, de fato pouco
expressivo da obra.

PALAVRAS-CHAVE KEYWORDS
Malinowski. Argonautas. Plantation. Mon- Malinowski. Argonauts. Plantation. Mo-
umentos. Brincadeira. Humanismo. numents. Playing. Humanism.

Recebido em: 28/07/2021


Aprovado em: 16/05/2022

Argonautas, monumental e incompleto 397


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