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ARGONAUTS, MONUMENTAL AND INCOMPLETE
Antonádia Borges*
Stella Z. Paterniani**
Gustavo Belisário***
Roberto Sobral****
Caio do Amaral Mader*****
O que fazer com um evento como esse? Por é, mudar a realidade para todes nós, inserir-
um lado, a brutalização em larga escala e, ao -nos na história singular que hoje vivemos.
final, a completa extinção dos Aruaques; e, Então, como abordá-lo? (WYNTER, 2000, p.
a partir de 1518, o trauma da Passagem do 191, tradução nossa1)
Meio para pessoas africanas escravizadas, a
epidemia de morte e os horrores de sua exis- Introdução: homenageando a incompletude
tência plantation-escrava quando chega- de Malinowski e dos Argonautas
vam à costa. Por outro, esse é o evento que
irá tornar possível nossa própria existência; Em razão do ente homenageado, efemé-
que irá fundar o mundo moderno como ele rides são ocasiões em que, aos pronuncia-
* Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: antonadia@
gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2403-8869.
** Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, PR, Brasil. Email: stella.paterniani@gmail.com. OR-
CID: https://orcid.org/0000-0003-0639-3186.
*** Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, SP, Brasil. Email: pp.belisario@gmail.com.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7059-2529.
**** Universidade de Brasília (UnB), Brasília, DF, Brasil. Email: joserobertosobral@gmail.com. ORCID: ht-
tps://orcid.org/0000-0003-4898-0450.
***** Universidade de Brasília (UnB), Brasília, DF, Brasil. Email: caiomader16@gmail.com. ORCID: https://
orcid.org/0000-0003-3344-9894.
1. No original: “What do you do with an event like that? On the one hand, the large-scale brutalization,
in the end, the total extinction of the Arawaks; from 1518 onwards, the middle passage trauma of the ens-
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mentos públicos, vincula-se um emaranha- se apresentou. Em consequência disso, não
do de responsabilidades: umas sutis, outras haveria outro caminho senão empreender
mais evidentes. Tomar parte na comemora- uma autoanálise, correndo o risco de os
ção de cem anos de Argonautas do Pacífi- feitos de Malinowski, o homenageado,
co Ocidental: um relato do empreendimento ficarem em segundo plano.
e da aventura dos nativos nos arquipélagos Nesta condição inelutável – falando des-
da Nova Guiné melanésia envolve, primei- de o lugar que ocupamos –, declaramos an-
ramente, compromisso com um espírito li- tecipadamente nosso interesse circunscrito,
sonjeiro, pois o que está em questão é a sen- no presente artigo, em imaginar essa obra li-
sibilidade para não desvirtuar o propósito vre de uma leitura, amiúde corriqueira, que
de um evento de homenagem. Ademais, a reduza ao papel de receituário metodoló-
uma obra tão extensivamente criticada, gico para o trabalho de campo, prescrito por
à altura de um século, jamais se depararia um pai fundador de disciplina. A propósito
com inédito ímpeto iconoclasta de nossa desta abordagem, que tende a esterilizar a
parte, caso nossa intenção fosse quebrar obra dos potenciais que queremos sublinhar,
esse primeiro protocolo. ensaiaremos uma hipótese sobre os efeitos
Há ainda dois importantes compromis- deletérios da reiterada leitura universitária
sos a se ter em mente. É preciso que nos- da parte introdutória da obra.
so testemunho tenha como foco sincero o Não ignoramos, como nos alerta Young
objeto de celebração, afinal, nada mais in- (2014, n.p., tradução nossa2), que “A [...] ‘In-
conveniente e desnecessário do que um ho- trodução’ (que tem sido traduzida como o
menageador que fale mais de si do que do livro do Gênesis da Bíblia do trabalhador de
homenageado. O segundo desafio é, ainda campo) contém 25 das mais influentes pági-
que de maneira sintética, deixar transpare- nas da história da antropologia social”. Pe-
cer conhecimento suficiente, em profundi- lo contrário, reiteramos que, nos momen-
dade e extensão, de uma obra tão difundida tos iniciáticos, a leitura e a releitura de tal
e comentada, para evitar, ao máximo, qual- parte da monografia reforçam dois constru-
quer parcialidade a seu respeito. tos basilares para a disciplina. Por um la-
Ao manifestar conhecimento dessa so- do, o ilhéu ideal. Por outro, o etnógrafo ide-
fisticada etiqueta, indicamos de antemão al, centro da Introdução, o qual, para tornar
nossa ciência de que falar de Argonautas sensível a persistência de certa distância, er-
desde a realidade da vida acadêmica brasi- gue uma tenda onde se crê abrigado ou até
leira, pelo menos desde a que conhecemos, mesmo acossado diante daqueles que pre-
pode acarretar constrangimentos. A since- tende estudar.
ridade do testemunho requer reconhecer a Espera-se, com a mimese do que é pre-
parcialidade de como essa obra para nós conizado na abertura da obra, que Argo-
laved Africans, the epidemic of death, the horrors of their slave plantation existence when they reached
the shore. Yet on the other, this is also the event that is going to make our own existence possible; it is
going to bring the modern world into being, is going to change reality for all of us, insert us into the sin-
gle history we now live. So how do you approach it?”
2. No original: “The [...] “Introduction” (which has been dubbed the Book of Genesis of the fieldworker’s
Bible) contains twenty-five of the most influential pages in the history of social anthropology.”
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nautas tenha um efeito, mesmo sobre aque- no que, nas traduções para o português da
les que não leiam a obra inteira3. Como fri- obra de Malinowski, foi chamado de “cam-
sa Weston (2018), entre outras, a “magia do pos de plantação”.
etnógrafo” se transmite como magia sim- Entendemos aqui a plantation como um
pática, e sua eficácia é demonstrada, em modo de existência, e de habitar, que se
termos de iniciação, quando, normalmen- alastra para além de plantações de mono-
te anos após essas primeiras aulas de in- cultura em latifúndios. No caso da Melané-
trodução à antropologia, somos interpela- sia, ela se alastra para a atividade extrati-
dos por outrem ou por nós mesmos, dizen- vista de mergulho para a obtenção de péro-
do, sem constrangimento: ah, você encon- las, para a indústria de pérolas e para a pro-
trou o seu Kula! dução acadêmica, – que conta a história do
Neste artigo, procuraremos reposicionar colonizador (settler), a história desde o pon-
a obra de Malinowski a partir de uma abor- to de vista dos invasores coloniais, a histó-
dagem distinta. Ao recorrer à alegoria do ria do massacre nativo.
monumento, em função da celebração dos Ao mesmo tempo, recusamos um enten-
cem anos deste livro, nos permitiremos dis- dimento acerca de uma suposta dominação
cutir a pertinência de se derrubar ou de se total da vida por uma composição-planta-
manter de pé o monumento a Malinowski na tion. Destacamos a composição-terra da
praça pública da antropologia. Nossa inten- existência dos ilhéus, observada por Mali-
ção é sugerir que as leituras de Malinowski nowski acerca do trabalho nas roças e na
para a formação de antropólogos nas insti- própria relação com as pérolas. Como ad-
tuições brasileiras que conhecemos, ao da- verte nosso autor, se há magia para se tra-
rem ênfase em passagens desencarnadas ou, balhar na roça ou para construir e lançar
para dizê-lo de outra forma, centradas na fi- ao mar uma canoa, também há magia pa-
gura do próprio etnógrafo, reencenam o es- ra mergulhar e encontrar ostras e pérolas, a
bulho colonial, ao ignorar o que, no tex- despeito do empreendimento colonial. Nos-
to, poderia retirá-lo de uma zona anódina, sa recusa da dominação da vida pela com-
uma zona supostamente ocupada por todas posição-plantation também se vincula à
as obras de caráter humanista, que falam ao proposição da brincadeira como aborda-
Homem, mas não à humanidade ou, como gem heurística (BELISÁRIO, 2021). Adiante,
desenvolveremos, que tomam o mapa pelo também desenvolveremos esta provocação:
território (WYNTER, 2006). e se Malinowski estivesse brincando? Quais
Para tanto, parece-nos incontornável re- as implicações para a antropologia em se le-
tomar um aspecto por vezes obliterado na var tão a sério a brincadeira?
apreciação de Argonautas como receituário: Tentaremos associar a defesa de uma
as ilhas Trobriand sob a colonização austra- perspectiva humanista diversa, que se en-
liana e inglesa, sua consequente composi- contra nas obras examinadas e a seguir
ção-plantation (BORGES, 2020) e, portanto, apresentadas, à defesa da etnografia pa-
a desumanização dos ilhéus que trabalham ra além de índices de diferença e para além
3. Ou que jamais a lerão, como se depreende dos inúmeros comentários feitos à Introdução, nos volumes
das bibliotecas públicas ou nas versões digitais do livro, disponíveis em dispositivos eletrônicos (como
Kindle, por exemplo), que vão minguando drasticamente ao longo do restante dos capítulos.
4. No original, fallism: movimento que clama pela derrubada de monumentos feitos em homenagem a co-
lonizadores. Ver Frank e Ristic (2020).
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lim se fez acompanhar de Marx, Lenin e ou- lugar incontornável nas grades dos cursos
tros sendo derrubados em todo o território, de Ciências Sociais, assim como as lições so-
outrora cercado pela dita cortina de ferro bre o Kula, a confecção das canoas, os mwa-
(RISTIC, 2020). Televisionadas amplamen- li e soulava trocados e, mais enfaticamente,
te também foram as idas ao chão de monu- a importância do diário de campo, a interlo-
mentos islâmicos, levadas a cabo por ocu- cução imersiva com os nativos, a fim de pre-
pações do Ocidente norte-atlântico, em pa- encher com “carne e sangue” as construções
íses como o Iraque ou a Síria (HABERMAS, abstratas da cabeça do etnógrafo.
2003). Destino análogo tiveram as estátuas O centenário de Argonautas do Pacífico
de Confederados, Cristóvão Colombo e ou- Ocidental inaugura um mito evemerista, para
tros conquistadores, alvo de protestos, em usar uma expressão de George Stocking Ju-
diversas cidades americanas (MITCHELL, nior (1991). Além das míticas ilhas melané-
2020), em consonância com o movimento sias distantes no oceano e habitadas por seus
#BlackLivesMatter (FRYER et al., 2021). Em nativos trobriandeses, também o mito do et-
São Paulo, o Monumento às Bandeiras tem nógrafo é construído: um homem heroico
sido constantemente alvo de intervenções disposto a sair do seu continente, viver entre
(CYMBALISTA, 2020). Mais recentemen- os trobriandeses e voltar para contar o con-
te, dois casos envolvendo intervenções po- teúdo das crenças e práticas sociais daque-
líticas em monumentos ganharam notorie- les com quem conviveu (STOCKING JUNIOR,
dade. O primeiro, ocorrido no Canadá, con- 1991). Pelo exemplo monumentalista de Ma-
cerne à derrubada de estátuas das rainhas linowski, o etnógrafo é o sujeito que, com
Vitória e Elizabeth II, depois da descoberta certa magia, preenche “a lacuna entre pres-
de ossadas de crianças indígenas em loca- crições metodológicas específicas do trabalho
lidades onde funcionavam antigos interna- de campo e objetivos vagamente definidos do
tos administrados pela Igreja Católica e fi- conhecimento etnográfico” (STOCKING JU-
nanciados pelo governo. O segundo, nova- NIOR, 1991, p. 112, tradução nossa5).
mente na cidade de São Paulo, refere-se ao Malinowski como monumento na pra-
ateamento de fogo à estátua do bandeiran- ça pública da antropologia que conhe-
te Borba Gato, assassino e escravizador de cemos não é, por certo, Malinowski por
pessoas indígenas e negras durante a inte- inteiro, mas somente Certo-Malinowski
riorização da colonização no Brasil. (SOBRAL, 2018). Assim como Argonautas
Com as devidas proporções e projeções, é bem mais do que as notas metodológicas
não há dúvida de que um busto de Mali- da introdução, Malinowski tampouco se
nowski adorna largos e praças antropológi- resume à publicação de Argonautas. Não
cas no Brasil e alhures. Nas lousas e nas dis- há escapatória: mesmo o monumento eri-
cussões em sala de aula, vemos e ouvimos gido e cultuado de geração em geração de
com frequência que Malinowski é o pai da antropólogos, é parcial em sua aborda-
etnografia moderna. Isso rende ao ícone um gem canônica.
5. No original: “The gap between the specific methodological prescriptions of fieldwork and the vaguely
defined goals of ethnographic knowledge had thus to be filled by what Malinowski himself had called ‘the
ethnographer’s magic’” (1922, p. 6).
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seria mesmo o caso de se perguntar se al- para a data. O governo jamaicano começou
go erguido como “humano” teria alcançado um plano de escavar e restaurar a cidade de
a façanha de não se desbotar com as intem- Sevilla La Nueva: o primeiro assentamen-
péries do século. Conforme Wynter (2000), to europeu permanente na Jamaica, funda-
o Homem que representa Rhodes, Lenin ou do em 1509, que se tornaria a primeira ca-
Colombo ignora a verdadeira Humanidade. pital do país; em seguida, foi removida para
Mario Quintana, ciente disso ou de outros um lugar mais alto depois da conquista da
efeitos, pôde evitar tal embaraço ao senten- ilha pelos ingleses, em 1655, sendo soterra-
ciar que não queria tal tipo de homenagem. da sob os campos de cana-de-açúcar.
O poeta evitou imortalizar-se numa pra- Concluídos os trabalhos de escavação,
ça em sua cidade natal, pois, segundo ele, um problema de outra ordem surgiu: sabia-
“um engano em bronze é um engano eter- -se muito pouco sobre Sevilla La Nueva e
no” (CARVALHAL, 2005, p. 33). sobre a história da Jamaica pré-conquista
Como veremos, nem Wynter nem Nyam- inglesa. O governo jamaicano, então, solici-
njoh refutam o engano da conquista. No ta a Sylvia Wynter pesquisa documental no
entanto, ambos reconhecem, nesses Ho- Arquivo Geral das Índias, na Espanha, pa-
mens demiurgos do colonialismo, incom- ra elaborar um material formativo de ampla
pletudes que somente se anteveem se os ti- circulação. Essa pesquisa colocou um desa-
vermos sob observação. Nyamnjoh (2021) fio conceitual e analítico para Wynter. Por
e sua reflexão sobre a eliminação de Rho- um lado, a pesquisadora debruçou-se sobre
des de um campo de visão, nos levam a um o mundo jamaicano-espanhol-aruaque-a-
importante dilema: sobretudo em contextos fricano. Por outro, ela se perguntava, tam-
que almejam a pasteurização da vida citadi- bém motivada pelos debates políticos que
na, que tentam remover das vistas todo ti- ocorriam na Jamaica às vésperas de 1992: o
po de incômodo, como reagimos a um “en- que fazer com esse evento? O que fazer com
gano em bronze”? Ainda segundo esse au- a chegada de Colombo, esse evento que pro-
tor, nossa reação pode dizer mais a nosso move o genocídio indígena, o trauma da es-
respeito do que aos feitos do derrubado que, cravidão e os horrores da plantation; e que,
inadvertidamente, numa reviravolta sobre ao mesmo tempo, é o evento fundante que
nossa ação demolidora, pode ser reerguido possibilita a existência da Jamaica como ela
com mais força em outros púlpitos. é, do Caribe como ele é, esse evento que for-
É com essas referências em mente ma o mundo moderno e que forma a reali-
que passamos à próxima seção, tendo dade de todos nós? Como abordá-lo?
como objetivo refletir sobre a existência Diante da efeméride, Wynter quer ir
monumental de Argonautas do Pacífico Oci- além da celebração (da gloriosa conquis-
dental para a antropologia que conhecemos. ta de Colombo) e da perspectiva dissiden-
te (que aponta as inegáveis atrocidades in-
2. Cristóvão Colombo, mais um argonauta tra-humanas e interespécies). Ela ressalta do
evento (a conquista, ao lado de outros even-
Por ocasião dos 500 anos da chegada tos, como as teorias de Copérnico) a emer-
de Cristóvão Colombo nas Américas, diver- gência/constituição de um modo de enten-
sos países do Caribe, em meados dos anos dimento subjetivo. O código de produção de
1980, já começavam a especular projetos sentido do que seja vida e morte e do que
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chegar aos fatos estão se aproximando ca- linowski a fazer alusão a etnógrafos anti-
da vez mais do primeiro postulado do estudo gos, experimentados (menciona missioná-
científico: a possibilidade de uma descrição rios e outros que o antecederam), negando
adequada dos fatos e de suas dependências de antemão essa póstuma alcunha: pai da
mútuas como existem hoje, nas sociedades etnografia. Ele não foi o primeiro etnógra-
primitivas existentes. Somente seguindo fo a pôr o pé nas firmes terras insulares de
esse tipo de conhecimento é que especula- domínio imperial habitadas por sociedades
ções subsequentes frutificariam (...). Somente primitivas. Talvez tenha sido o primeiro a
por meio de tal descrição é que podemos al- fazer uma viagem de transformação políti-
cançar uma definição correta e científica de co-epistêmica, como a promovida por Co-
uma dada instituição em uma dada socieda- lombo, que, por meio de seu método cientí-
de. (MALINOWSKI, 1913: iv; viii-i, p.9-10, fico, trouxe para toda a humanidade, “uma
ênfase e traduções nossas6). imagem científica e transculturalmente ve-
rificável da terra e de conceber o cosmos”
Seguindo a analogia, assim como Co- (WYNTER, 1995, p.17, tradução nossa7).
lombo “descobriu” a América, Malinowski De acordo com Wynter (1995), Colom-
“inventou” a etnografia. Ambos, nas pa- bo quis espalhar sua fé e também angariar
lavras de Wynter, teriam promovido um elementos para sustentar seu próprio status,
“grand design”. Se, ao descobrir terra ha- doravante distante de um mero cartógra-
bitável no além-mar, Colombo abriu a cai- fo e eventual mercador. Colombo, segundo
xa de pandora, promovendo uma “revo- Wynter, se lançara contra modelos escolás-
lução intelectual do humanismo”, Mali- ticos arbitrários. Seu mal-estar e sua atitu-
nowski talvez tenha feito algo similar ao de iconoclasta constituíram as sementes da
referendar a importância de sermos exaus- parcial perspectiva histórico-existencial eu-
tivos sobre as máscaras específico-cultu- ropeia, que se tornou, desde então, hegemô-
rais dessa humanidade. Máscaras que, ao nica. E, assim como a circum-navegação da
tempo que compõem uma humanidade costa ocidental africana servira de ensaio
“comum” para o humanismo eurocêntrico, para a conquista do Caribe, podemos pensar
fragmentam-na ao infinito. que a aproximação prévia de Malinowski ao
Lendo Argonautas, percebemos Ma- campo em Trobriand, por meio de incursões
6. No original: “In the early days of these studies work had been done not by specialists, who would try
to apply to a new set of problems new methods, but by men learned in other branches of science, who
looked at the facts, not full in the face, but from a peculiar and often remote standpoint [...]. Some of the
modern field workers, who happily for our science are at the same time distinguished scholars, have achie-
ved a considerable advance in the method of collecting evidence [...]. Thus both our theoretical concep-
tions and our methods of getting at the facts are certainly approaching more and more the first postulate
of scientific study: the possibility of an adequate description of facts and their mutual dependencies as
they exist now in living primitive societies. Only on a basis of such knowledge are further speculations
fruitful [...]. Only by such a description can we reach a correct and scientific definition of a given institu-
tion in a given society.”
7. No original: “a scientific and transculturally verifiable image of the earth and conception of the cosmos”.
8. Aludimos aqui à célebre frase da Introdução: "Imagine-se o leitor sozinho, rodeado apenas de seu equi-
pamento, numa praia tropical próxima a uma aldeia nativa, vendo a lancha ou o barco que o trouxe afas-
tar-se no mar até desaparecer de vista (MALINOWSKI, 1984, p. 23)".
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3. As brincadeiras de um completo cavalheiro ra quem o carrega teria sido necessário pa-
ra Malinowski pensar os sistemas de trocas
Há um conto escrito por Robert Lou- trobriandeses.
is Stevenson em 1893, The Bottle Imp, ou
O demônio na garrafa, que conta a histó- O que o conto de Stevenson teria a oferecer
ria de Keawe, que descobre, numa de suas a Malinowski era obviamente menos o con-
andanças, uma garrafa, dentro de qual vive teúdo de sua descoberta que a capacidade de
um duende (ou demônio, como se lê na tra- vê-lo como um todo, como uma Gestalt, gra-
dução do texto para o português). O duen- ças a um salto imaginativo: a capacidade de
de/demônio era capaz de realizar todos os construí-lo, como Malinowski escreveu mais
desejos de quem possuísse a garrafa, o que tarde, “mais ou menos como o físico constrói
a tornava muito valiosa. Todavia, o duen- a sua teoria a partir dos dados experimen-
de/demônio havia lançado uma maldição tais”. (GINZBURG, 2000, p. 109).
à garrafa: para desfazer-se dela, seu dono
deveria vender o objeto valioso a um pre- Ao contrário do que a figura mítica e
ço menor do que fora comprado. Ainda: monumental nos sugere, esta inspiração en-
quem morresse em sua posse seria castiga- contrada numa história para crianças revela
do com a vida eterna no inferno. Keawe é um Malinowski brincante. Será mesmo pos-
um dos que toma para si o duende/demô- sível apostar nessa outra chave de entendi-
nio e a garrafa. Após realizar suas fantasias mento do autor?
e vontades, ele passa a garrafa adiante para Façamos nós o exercício de imaginar
um amigo, a um preço menor. Porém, apai- Malinowski e sua postura entre os trobrian-
xona-se e decide casar. Antes do casamen- deses, e como os antropólogos podem tam-
to, descobre que tem lepra, o que arruina- bém ter tomado o mapa pelo território ao
ria seus planos. Vai atrás da garrafa, e a en- formalizar o método etnográfico moderno.
contra na posse de um branco, com valor de Malinowski levou seis semanas para chegar
apenas dois centavos. Curado e casado, Ke- à Austrália. De lá, aportou na ilha Mailu em
awe fica deprimido e, junto com a esposa, 1914, anotando o que observava nos seus
empreende uma viagem por entre as ilhas diários de campo, em sua barraca ou nas re-
de colonização inglesa e francesa para ten- sidências de seus vizinhos brancos, ainda
tar vender a garrafa. Após idas e vindas do sem sistematizar isso num método. Depois
enredo, nos deparamos com o último cobi- Malinowski voltou à Austrália, onde traba-
çoso dono da garrafa que, ao tomar conhe- lhou num primeiro texto, que enviou à Eu-
cimento de seu destino final, opta por ir ao ropa. Em 1914, eclode a I Guerra Mundial
inferno de qualquer jeito, pois, para ele, a na Europa; como a Polônia fazia parte do
garrafa é sua melhor companhia. Império Austro-Húngaro nesse momento, o
O enredo acima descrito, além de po- seu retorno ao Reino Unido ficou prejudi-
der ser lido como um teorema sobre bruxa- cado. Na dificuldade de regresso imediato à
ria (CALAVIA SÁEZ, 2011), teria inspira- Europa e na impossibilidade de permanecer
do Malinowski a compor a trama de Argo- na Austrália, Malinowski vai às ilhas Tro-
nautas, imaginando o Kula da maneira co- briand em julho de 1915, retornando à Aus-
mo foi escrito (GINZBURG, 2000). O objeto trália em 1916. Ele somente conseguiu vol-
que incute uma exigência de circulação pa- tar à Inglaterra em 1921. Em 1922, defen-
9. No original: It was evident even after his death, when he was still remembered as “the man of songs”
(HOGBIN, 1946) doubtless from the times in order to frighten away mulukwausi, or flying witches, he sang
“kiss my ass” to melodies from Wagner.
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Trobriand pode ser comparável com ele- Confundir a brincadeira com a realida-
mentos da vida cotidiana na Inglaterra: os de é um processo comunicativo semelhan-
mwali e soulava e as joias da Coroa bri- te ao de confundir o mapa com o território.
tânica, o Kula e o encantamento de um Quando se brinca, é preciso ter consciência
duende de conto infantil. Nesse jogo, de- de que se está brincando, para poder cons-
pois de “estar lá” e conviver por um tem- cientemente discriminar os signos da reali-
po alongado com os nativos, pôde brincar dade (BATESON, 1972). O perigo de ignorar
com os conceitos de parentesco, magia, o frame “Isso é uma brincadeira” é o de le-
sexo, política, economia etc. var a brincadeira muito a sério ou de sofrer
O impudor de comparar o método et- de esquizofrenia e não discriminar o siste-
nográfico a uma brincadeira (BELISÁRIO, ma simbólico da realidade. O risco de levar
2016) algo tão incompleto e pouco produ- a etnografia muito a sério é não conseguir
tivo – tem consequências imprevisíveis: o discriminá-la da realidade que ela busca re-
que faríamos com todas as revistas de An- presentar. O humanismo radical de Sylvia
tropologia se descobríssemos que Mali- Wynter (PATERNIANI; BELISÁRIO; NAKEL,
nowski estava brincando? O que seria de 2022) nos sugere que é possível adotar a
todos os departamentos, instituições de postura de se lançar ao desconhecido pelos
pesquisa e financiamentos? Aqueles que le- mares tidos como não navegáveis, como fi-
varam a sério demais a brincadeira, podem zeram Colombo e Malinowski, sem confun-
se assustar ou mesmo desprezar essa hipó- dir essa experiência de representação do
tese. Podem bradar que não, que são pes- mundo com a realidade em si. Para isso, a
quisadores sérios, que o que se descobriu brincadeira não pode ser levada tão a sério,
com os “nativos” foi debatido entre os pa- sob o risco de não sabermos dela sair.
res e que a comparação e a analogia são Podemos ainda pensar que confundir a
caminhos incontornáveis para o entendi- brincadeira com a realidade se aproxima de
mento da alteridade. Aos que insistem em uma equivocada produção de comparação,
não se lembrar do caráter lúdico das etno- uma produção de comparação entre não
grafias, relembramos as palavras de Walter comparáveis que, ao fim e ao cabo, tornaria
Benjamin (2009): inviável a própria antropologia como com-
paração e tradução entre sistemas de pen-
O hábito entra na vida como brincadeira, e samento (STRATHERN, 2006). Marilyn Stra-
nele, mesmo em suas formas mais enrije- thern propõe os conceitos de divíduo e de
cidas, sobrevive até o final um restinho de socialidade, a partir da revisão da literatura
brincadeira. Formas petrificadas e irreconhe- produzida sobre a Melanésia, brincando com
cíveis de nossa primeira felicidade, de nos- os então arraigados conceitos de indivíduo e
so primeiro terror, eis o que são os hábitos. E sociedade e recusando a mescla entre o mo-
mesmo o pedante mais insípido brinca, sem do branco de habitar e entender o mundo e
o saber, de maneira pueril, não infantil, brin- as humanidades e os mundos possíveis, is-
ca ao máximo quando é pedante ao máximo. to é, recusando tomar o mapa pelo território.
Acontece apenas que ele não se lembrará Nesse sentido, a consolidação do méto-
de suas brincadeiras, somente para ele uma do etnográfico, que não discerne realidade
obra como essa permaneceria muda. (BEN- e brincadeira, seria ela mesma uma traição
JAMIN, 2009, p.102). à antropologia que aqui nos interessa: a an-
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Malinowski seria mais um monumen- mente no Caribe, afirma com frequência que
to ao projeto de encontrar uma Humanida- naquelas ilhas foram plantadas espécies ve-
de comum por meio do esbulho? Quais as getais, como a cana-de-açúcar, o cacau e o
qualidades de Argonautas, para além daqui- algodão, e transplantadas pessoas (escravi-
lo que foi tomado de empréstimo pelo ca- zadas ou forçadas a trabalhar), vindas, am-
minho, que de fato pertencia a Trobriand e bas, dos continentes africano e asiático. Os
precisaria ser devolvido para seus donos? cultivos que Malinowski encontrou em Tro-
Ou, pensando na trama de The Bottle Imp, briand são o objeto essencial de Coral Gar-
estaríamos deixando nas mãos de Mali- dens, no entanto, em Argonautas, durante
nowski um encantamento que ele queria e toda a narrativa, nos vemos acompanhados
deveria passar para frente? Devolvendo o de referências à devoção desses ilhéus e dos
que pegou dos trobriandeses, o que sobra de de ilhas vizinhas a diferentes roças e à ativi-
Malinowski é sua brincadeira, sua postura dade subaquática de encontrar pérolas.
de lançar-se ao mundo e sua disposição de É nosso interesse aqui apontar para
viver uma experiência onde mapa e territó- algumas reflexões que surgem da leitura de
rio não se confundem antecipadamente. Ao Argonautas sobre a relação entre a plan-
invés de aprender com essa postura, o Ma- tation no mundo derivado da conquis-
linowski que se lê desde o Brasil, que nos é ta de Colombo, e passagens da monografia
conhecido, é aquele composto por suas par- de Malinowski sobre as relações dos ilhéus
tes desencarnadas, que falam a Todo Mun- com o trabalho para os comerciantes bran-
do, por não falarem precisamente de nin- cos. Além dos trabalhos nas diferentes la-
guém e a ninguém. vouras, chamamos atenção, mais detida-
No item seguinte, ainda sob a inspiração mente, à atividade de mergulho e coleta de
da relação Stevenson-Malinowski, iremos conchas, ou melhor, pérolas, naquele prin-
partir de outro aspecto do conto: a apari- cípio de século.
ção do homem branco como aquele que de- Malinowski declara que, outrora, para os
tém a garrafa quando Kwame a procura, e ilhéus, qualquer pérola encontrada era da-
como aquele que desdenha da maldição da da às crianças, para que brincassem. Nes-
vida eterna no inferno para ter a garrafa so- sa passagem do texto, Malinowski recorre
mente para si. ao artifício da simetria que, com ou sem in-
tenção, termina por minimizar o efeito do
4. Trobriand como plantation esbulho colonial. Os bagi (soulava) dos tro-
briandeses seriam coisas insignificantes e
A unidade é submarina. imundas, sem nenhum valor, se compara-
Ar respirável, nosso problema é como estu- das a pérolas valiosas. O oposto ocorreria
dar fragmentos/o todo aos trobriandeses diante da sede por pérolas
Edward Kamau Brathwaite, 197510 dos aventureiros brancos. Malinowski afir-
ma que a independência e as peculiarida-
A literatura de que tratamos, devotada des culturais e mentais dos nativos são tra-
à investigação sobre a plantation, notada- tadas como uma frivolidade indulgente pela
10. No original: “The unity is submarine Breathing air, our problem is how to study fragments/whole”, tra-
dução nossa.
11. Todas as citações de Argonautas no presente artigo são da edição de “Argonautas do Pacífico Ociden-
tal: um relato do empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné melanésia”,
tradução de Anton P. Carr e Lígia Aparecida Cardieri Mendonça, revista por Eunice Ribeiro Durham e pu-
blicada pela editora Abril Cultural, terceira edição, 1984.
12. Na versão em inglês, lê-se plantation.
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brancos. Alguns, como os ilhéus de Kava- da somente com relação à pesca da (concha)
taria, já nem sequer participavam mais das conus. De fato, esta magia é apenas a adap-
expedições: tação da magia do mwali (braceletes) às pé-
rolas. No entanto, duvido que tal adaptação
A ilha de Kayleula é sem dúvida o centro de ou transferência ocorresse sem que antes os
construção de canoas mais importante. Não fundamentos da crença e costume nativos ti-
sei com certeza se antigamente algumas das vessem sido abalados pelas regras e ensina-
canoas de Kavataria eram realmente feitas mentos bem intencionados, mas nem sempre
em Kayleula e adquiridas pelos habitantes de sábios e benéficos do homem branco; e pe-
Kavataria, embora acredite ser este o caso. la introdução do comércio. (MALINOWSKI,
Hoje em dia a comunidade de Kavataria está 1984, p. 295, nota 82).
completamente absorvida pela indústria de
Nosso autor não reconhece senão boas
pérolas e, tendo abandonado as expedições
intenções nos propósitos europeus, mas
há uma geração, já nem sequer possui cano-
as. (MALINOWSKI, 1984, p. 359). ainda assim identifica efeitos nefastos. A
inserção de objetos no circuito (como os
Vemos também que não somente os machados, recebidos em troca de pérolas
ilhéus se transformam com a conquista co- nas trocas com os colonos) e o desapareci-
lonial. Embora Malinowski tenha ouvido, e mento de outros artefatos (como os escu-
registrado no capítulo XVII, “A magia e o dos, as lanças e outras armas decorativas)
Kula”, que “a magia não pode ser inventa-
indicam um fator que nos parece crucial: o
da” (MALINOWSKI, 1984, p. 295, nota 82),
tempo em Trobriand e nas ilhas parceiras
ele assinala que um encantamento tradi-
cionalmente dirigido a mwali se destinava, foi radicalmente alterado com a invasão
à época, também à pesca da ostra, em bus- colonial. Passa-se grande parte dos dias
ca de pérolas. Como percebe Malinowski, mergulhando-se em busca de pérolas. O
se a magia se transformou ou se adaptou, trabalho para a produção de matérias-pri-
tal fato se deve diretamente ao empreendi- mas retira dos ilhéus a possibilidade de
mento colonial: expandir e transformar suas artes e ofí-
cios, como o faziam anteriormente.
A associação da magia com qualquer inte-
resse vital é demonstrada pela pesca da pé-
rola. Neste caso, devido à chegada dos ho- De fato, há cerca de três gerações, a aparên-
mens brancos, abriu-se uma nova perspecti- cia teria sido muito diferente. Os nativos de
va muito absorvente e lucrativa. Existe agora então estariam armados de escudo e lança;
uma forma de magia associada a esta pesca. alguns estariam carregando armas decorati-
Aparentemente isto contradiz o dogma na- vas, tais como as espadas-porrete, feitas de
tivo de que a magia não pode ser inventa- madeira dura, os cacetes de ébano maciço ou
da. Se colocados frente a esta contradição, os os pequenos lança-dardos. Um exame mais
nativos explicam que esta magia é, na ver- minucioso revelaria então muitos outros
dade, uma antiga magia da pesca de conchas adornos de nariz, espátulas para cal fina-
que se aplica a todas as conchas encontradas mente entalhadas, cabaças pirogravadas. Al-
na laguna, e que até então havia sido usa- guns desses objetos estão fora de uso atual-
13. Wax, a partir de material de Peter Worsley, reflete sobre o que chama regime de castas, imposto na
Melanésia, que teria perdurado oficialmente até os eventos de independência que, para o caso da Papua
Nova Guiné, ocorreu em 1975: “As guerras nativas tinham sido exterminadas, apesar de serem altamente
ritualizadas e vinculadas aos sistemas de status e religiosos de muitas sociedades. A cobrança de impos-
tos forçou os homens nativos a trabalharem na plantation(...). Europeus se apropriaram das terras nativas
para plantations ou para mineração” (WAX, 1972, p. 4).
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-plantation (BORGES, 2020). Sob esta ótica, contemporânea imaginar igualmente outros
temos em mãos uma ode à imaginação e à futuros para a antropologia – para aquela
liberdade diante do extermínio. de Malinowski e para a atual, à qual nos de-
Stocking Junior (1991) relata que, em dicamos. Deparamo-nos com os vários des-
1916, Malinowski depôs numa comissão tinos que Argonautas pode ter. Por um lado,
parlamentar de inquérito sobre o trabalho o frustrante papel de cerceador, quando lida
forçado dos papuásios na plantation de co- somente com sua Introdução, para dela ex-
co do magistrado RL Bellamy, que em Ki- trair um manual de adequadas maneiras em
riwina tinha 120 mil coqueiros. A investi- campo. Por outro, uma exegese literal que
gação objetivava conhecer a disposição dos atenta para o circuito do Kula, desprezando
nativos para o trabalho na plantation, dian- os demais circuitos dos quais participam os
te da crescente ameaça de menor oferta de ilhéus. Essa última leitura, mais disciplinar
mão-de-obra contratada (indentured labour) e clássica, não deixa de cercear o tempo e o
vinda da Índia e da China para as planta- espaço como o faz a colônia. Avessa à po-
tions, que alimentavam os negócios britâ- rosidade e à deambulação, mesmo que por
nicos e australianos no Pacífico Sul. Mali- meio da ficção, procura demarcar fronteiras
nowski, de maneira bastante sutil, teria ten- para fins de “bom entendimento”. Insistir
tado demover os administradores coloniais nessa prática seria almejar uma completu-
de seus planos, repetindo uma querela que de ou totalidade que de fato nunca existiu.
tivera com Bellamy, alegando inaptidão Interessa-nos uma antropologia que
cultural dos ilhéus para o trabalho, e usan- busque reconhecer a incompletude não co-
do como alegoria o entendimento local so- mo falta a ser sanada, como com a solução
bre a relação entre sexo e reprodução, que da derrubada do “complete gentleman”, mas
tão bem conhecemos das entrelinhas de seu sim como a abertura para histórias não cap-
artigo sobre os Baloma, quando menciona o turadas pela história única de que nos fa-
trabalho forçado na plantation por longos la Chimamanda Adichie: uma abertura pa-
períodos, que chegavam a três anos. ra histórias não reduzidas à miséria do pre-
sentismo da história colonial orientada por
Com uma prisão, um hospital, doze residen- definições pelas ausências (ADICHIE, 2019).
tes brancos e uma próspera indústria de pé- Reconhecer a porosidade, a deambulação e
rolas em suas lagoas, Kiriwina (a maior das a incompletude é reconhecer possibilidades
ilhas de Trobriand) era um dos “lugares mais de futuro que operam não segundo uma ló-
bem governados e mais ‘civilizados’ da re- gica de quitar a dívida (porque impagável)
gião”.( YOUNG, 1984, p. 16 apud STOCKING legada pelo racismo colonial (FERREIRA DA
JUNIOR., 1991, p. 42, tradução nossa14). SILVA, 2019). Antes, trata-se de, longe des-
sa ânsia inalcançável por reparação “hu-
Se a antropologia se lança ao mar e aca- manista”, reconhecer, imaginar e promo-
ba por expropriar terras e territórios, mesmo ver formas de, como diz Frank B. Wilderson
“sem querer” e “sem prever”, é nossa tarefa (2021), a partir de uma provocação de Sai-
14. No original: “With a jail, a hospital, twelve White residents, and a thriving pearl industry in its lagoon,
Kiriwina (the largest Trobriand island) was one of the “best governed and most ‘civilized’ places” in the
region” (Young, 1984, p. 16, cf. Black, 1957).
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RESUMO ABSTRACT
Neste artigo tratamos da monumentaliza- This article deals with the monumentali-
ção de Argonautas, a partir da dissemina- zation of Argonauts in Brazil, based on the
da e reiterada leitura de sua Introdução em widespread and repeated reading of his In-
disciplinas formativas no Brasil. Mediante troduction to Formative Disciplines. Acti-
conceitos como incompletude e brincadei- vating concepts such as incompleteness
ra, encontramos, nas entrelinhas da obra, and play, we find, between the lines of the
reflexões de Malinowski pouco ressaltadas work, Malinowski’s reflections little hi-
sobre o trabalho escravizado ou forçado ghlighted about enslaved or forced labour
em Trobriand. Essa releitura nos permite in the Trobriand. This rereading allows us
tecer aproximações analíticas entre o em- to weave analytical approximations be-
preendimento do autor e o de Cristóvão tween the author’s undertaking and that
Colombo, a fim de problematizar a noção of Christopher Columbus. Through hidden
de Humanismo. Ao analisar passagens re- passages of the work, we explore the cen-
cônditas da obra, exploramos a centrali- trality of the plantation in the Trobriand
dade da plantation nas ilhas Trobriand, Islands. We suggest the future of Argo-
com o fim de sugerir que o futuro de Argo- nauts resides in its appropriation beyond
nautas reside na possibilidade de sua apro- the exegesis of its Introduction, which is,
priação para além da exegese deste frag- in fact, little expressive of the whole work.
mento, a célebre Introdução, de fato pouco
expressivo da obra.
PALAVRAS-CHAVE KEYWORDS
Malinowski. Argonautas. Plantation. Mon- Malinowski. Argonauts. Plantation. Mo-
umentos. Brincadeira. Humanismo. numents. Playing. Humanism.