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António Castanheira
Universidade NOVA de Lisboa
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All content following this page was uploaded by António Castanheira on 29 October 2019.
antónio castanheira
Avant-propos
Este ensaio procura entender a questão decolonial como uma actualização semi-
ológica do conceito de grau zero, analisando os lugares do discurso num sistema
de significação profundamente enraizado na Retórica. Fá-lo usando como campo
de exploração e de evidência o trabalho da artista Grada Kilomba, entendendo
também a sua produção escrita — falsamente mais prosaica — como um gesto
artístico. O trabalho tem por princípio aglutinador a dualidade normalidade/des-
vio, com a base epistemológica que isso implica, dá conta do modo como os
enunciados são construídos e recebidos na oposição denotação/conotação e
torna evidente que o projecto colonial foi sempre secundado por uma semântica
desenhada por valores (ideológicos, morais, económicos ou políticos).
«There is a mask of which I heard many times during my childhood. It was the
mask Escrava Anastácia was made to wear. The many recounts and the detailed
descriptions seemed to warn me that they were not simple facts of the past, but
living memories buried in our psyche, ready to be told. Today, I want to re-tell
them. I want to speak about that brutal mask of speechlessness.
This mask was a very concrete piece, a real instrument, which became a part of
the European colonial project for more than three hundred years. It was compo-
sed of a bit placed inside the mouth of the Black subject, clamped between the
tongue and the jaw, and fixed behind the head with two strings, one surrounding
the chin and the other surrounding the nose and forehead. Formally, the mask
was used by white masters to prevent enslaved Africans from eating sugar cane or
cocoa beans while working on the plantations, but its primary function was to
implement a sense of speechlessness and fear, inasmuch as the mouth was a pla-
ce of both muteness and torture.
In this sense, the mask represents colonialism as a whole. It symbolizes the sadis-
tic politics of conquest and its cruel regimes of silencing the so-called ‘Others:’
Who can speak? What happens when we speak? And what can we speak about?»
Why do I write?
‘Cause I have to
‘Cause my voice,
in all its dialects,
Has been silent too long
(Jacob Sam-La Rose)
O poema escolhido por Grada Kilomba para epígrafe do seu livro Plantation
Memories: episodes of everyday racism é também perfeito para iniciar a nossa
travessia decolonial do seu trabalho artístico. Grada começa por estabelecer as
bases de toda a problemática que se vai seguir e por nos fornecer uma pista so-
bre a essência do projecto colonial: «It is also a poem about resistance, about a
collective hunger to come to voice, to write and to recover our hidden history.» 1
Trata-se de uma questão de linguagem, mais precisamente de uma questão de
Pragmática da Linguagem, e é esta capacidade que a palavra tem de fazer existir,
de fazer acontecer, que irá conduzir todo o trabalho de Grada, desde Plantation
Memories até hoje.
«…our discourses embody not only words of struggle, but also of pain —
the pain of oppression. And when hearing our discourses, one can also
hear the pain and emotion contained within its brokenness , she argues, of
still being excluded from places at which we had just ‘arrived’, but can
hardly ‘stay’.7
Irmingard Staeuble
Epistemologia
O projecto colonial foi muito mais do que um projecto de dominação económica
e social. Ainda que a motivação original tenha sido extractiva — no sentido
abrangente de recolher e trazer para a metrópole tudo o que pudesse ter valor,
incluindo pessoas —, a sua concretização só foi possível pela implementação de
uma dimensão cultural, pela imposição de um modelo global. Enquanto o Impé-
rio Romano se instalou através de um procedimento de miscigenação, onde os
ocupantes impunham o seu sistema legal, tributário e administrativo de um modo
consideravelmente impositivo, mas eram bastante flexíveis e permeáveis em to-
dos os outros aspectos, incluindo a língua e a religião — que por norma se fundi-
am com as tradições de cada povo — o Império Colonial foi muito mais inflexível
no seu contacto com os povos e civilizações conquistados.
«Due to racism, Black People experience a reality different from white pe-
ople and we therefore question, interpret and evaluate this reality differen-
tly. The themes, paradigms am methodologies used to explain such reality
might differ from the themes, paradigms an methodologies of the domi-
nant. It is this ‘difference’, however, that is distorted from what counts as
valid knowledge. Here, I inevitably have to ask how I, as a Black woman,
can produce knowledge in an arena that systematically constructs the dis-
courses of Black scholars as less valid.»8
A partir daqui, a epistemologia ganhou a forma definitiva que hoje lhe conhece-
mos. Começa por definir o que deve ou não ser questionado — os temas —; fixa
os requisitos de análise e de explicação dos fenómenos — os paradigmas — e,
finalmente, estabelece as regras de condução da investigação e do raciocínio —
o método. Este modelo exclui imediatamente uma parte significativa e ameaça-
dora do conhecimento indígena ao negar-lhe o interesse, a legitimidade, o valor
e a verdade, ou seja, em última instância, nega-lhe o direito à existência.
Topica
A Matriz Colonial do Poder é um poderoso processo retórico11. Já o era no pe -
ríodo religioso mas acentuou-se no período científico. A sua implantação faz uso
de todo o corpus da Retórica mas tem o seu ponto de apoio mais importante na
primeira parte — a Inventio —, mais precisamente no seu corpo de valores prefe-
renciais — a Topica. Para entender o funcionamento da argumentação a favor da
Epistemologia, mobilizemos a definição de valor implícita no conceito de com-
portamento preferencial fixado por Charles Morris na sua proposta da Axiologia:
«É por isso que o poder ou a sombra do poder acaba sempre por consti-
tuir uma escrita axiológica, em que o trajecto que separa habitualmente o
facto do valor é suprimido no próprio espaço da palavra, dada sempre
como descrição e como juízo.»13
11As últimas décadas do século vinte viram surgir um movimento de constatação e estudo dos
mecanismos retóricos nos processos de comunicação e legitimação do trabalho científico, lan-
çando uma névoa de suspeição sobre a neutralidade e a objectividade da ciência e, mais lata-
mente, do projecto moderno. O grande dinamizador desta linha de pensamento entre nós foi
Manuel Maria Carrilho, com inúmeras publicações sobre o assunto (A Filosofia das Ciências,
Razão e Transmissão da Filosofia, Itinerários da Racionalidade ou Réthoriques de la modernité) e
a organização do Colóquio Internacional sobre Retórica e Comunicação na Fundação Calouste
Gulbenkian, em 1992, em que estiveram presentes algumas das mais importantes figuras inter-
nacionais (Stephen Toulmin, Michel Meyer, Jaakko Hintikka, Anthony Cascardi e Oswaldo Por-
chat Pereira), do qual resultou uma publicação.
12 MORRIS, Charles. Signos e Valores, p. 35.
13 BARTHES, Roland, O Grau Zero da Escrita, pág. 25.
antónio castanheira domingo, 23 de Junho de 2019
Grada Kilomba
e o grau zero de tudo pag 9
«They allow the white subject to place our discourses back at the margins,
as deviating knowledge, while their discourses remais at the centre, as the
norm. When they speak it is scientific, when we speak it is unscientific;
universal / subjective;
objective / subjective;
rational / emotional;
impartial / partial;
they have facts, we have opinions
they have knowledge, we have experiences
These are not simple semantic categorizations; they possess a dimension
os power that maintains hierarchical positions and upholds white supre-
macy, We are not dealing here with a “peaceful coexistence of words”, as
Jacques Derrida (1981: 41) emphasizes, but rather a violent hierarchy that
defines who can speak.»14
O Grau Zero
Esta é uma questão fundamental para entender o racismo na sua expressão mais
lata, na evidência da permanência da Matriz Colonial do Poder nas sociedades
ocidentais contemporâneas. Temos de começar por considerar a importância de
um lugar do preferível mobilizado da Topica em que se funda o discurso retórico
da epistemologia: a denotação é preferível à conotação. Este enunciado axioló-
gico é a coluna vertebral da Epistemologia. A verdade pura é sempre preferível à
especulação. Na ciência, no conhecimento, não há lugar para a especulação,
para a divagação poética. Este valor identifica-se regularmente com um outro
mais evidente — a objectividade é preferível à subjectividade. Ortodoxamente,
na Epistemologia não há, sequer, lugar para a subjectividade. A subjectividade é
relegada para os territórios subalternos da arte, da emocionalidade, e é apenas
tolerada na infância pré-epistemológica e a estratégia é de tal modo refinada que
a subjectividade pode, até, ser considerada desde que o sujeito seja considerado
como objecto, como elemento descontínuo que pode ser isolado e descrito,
sendo o resultado contabilizado, não como um enunciado geral ou universal, mas
como um caso “subjectivo” com a sua validade circunscrita ao universo individual
de um sujeito, com o interesse limitado que isso tem para o conhecimento geral.
É fascinante o grau de protecção que a Epistemologia logrou desenvolver para
se defender dos ataques, tanto exteriores como interiores.
15 BARTHES, Roland. O Grau Zero da Escrita, 1953. Barthes, na sua clareza didáctica sem pa-
ternalismo, formalizou um sistema capaz de dar conta da realidade, um sistema formal, uma
rede de lugares vazios e das suas respectivas relações, que nos permite descrever, explicar e
compreender a realidade muito para além da literatura e da linguística. Barthes cumpriu o sonho
de Saussure e ofereceu-nos a Semiologia completamente independente dos estudos linguísticos
e literários, como uma ferramenta insubstituível para dar conta do sentido em qualquer área.
antónio castanheira domingo, 23 de Junho de 2019
Grada Kilomba
e o grau zero de tudo pag 11
Other racial groups can neither be racist nor perform racism, as they do
not possess this power. The conflicts between them or between them and
the white dominant group have to be organized under other definitions,
such as prejudice. Racism instead includes the dimension of power and is
revealed through global differences in the share of and access to valued
resources such as political representation, policies, media, employment,
education, housing, health, etc.»20
Como seria inevitável, foi um pequeno passo para que da construção de um sis-
tema hierárquico de valores se passasse a um complexo e poderoso sistema de
poder, com o controlo do acesso a ser feito por quem constituía a norma, um
sistema que oprimiu a diferença e que chegou tão longe a ponto de, retorica-
mente, conseguir legitimar o racismo.
20 Idem.
antónio castanheira domingo, 23 de Junho de 2019
Grada Kilomba
e o grau zero de tudo pag 13
A arte moderna não mudou nada neste aspecto. No tempo dos movimentos abo-
licionistas oitocentistas em França, em que se empenhou Théodore Géricault, a
arte passou a incorporar o negro apenas como objecto, como peça exótica numa
composição, e nunca lhe concedeu o papel de sujeito. Picasso, algum tempo
mais tarde, deixou-se fascinar pelas expressões plásticas das colónias mas, apesar
de serem conhecidas algumas posições suas em defesa do primitivismo (que as-
sociava a um desejável estádio infantil do desenho), o certo é que o modernismo
se desenvolveu em estilos sucessivos que eram ocidentais, fechados e, conse-
quentemente, continuavam a manter no exterior as expressões exóticas. Só o
Pós-Modernismo, na sua senda do pluralismo, com a importância que o feminis-
mo teve ao abrir a arte a grupos sub-representados e com a imposição do con-
ceptualismo a toda a arte futura abriu um espaço às expressões até então proscri-
tas, mas tratava-se de um lugar virtual que dificilmente podia ser ocupado, pelas
limitações que os negros e os indígenas enfrentavam na sua inserção social, com
acesso deficitário à educação, às instituições e aos lugares de visibilidade.
Ironicamente, nem a proposta de Duchamp, que defendia que, para ser artista
bastava declará-lo, abriu a arte ao colonizado, uma vez que o conceito de arte e
de artista, como é entendida no Ocidente colonial, não existia nas línguas indí-
genas.
antónio castanheira domingo, 23 de Junho de 2019
Grada Kilomba
e o grau zero de tudo pag 14
Considerações finais
D Mignolo21 e o seu grupo de pensadores, que se ocupam militantemente de
disseminar o projecto decolonial, advertiram-nos para um problema que pode ter
grandes repercussões no olhar que temos dirigido à modernidade, um problema
que deve questionar ou, em última instância, inverter a percepção do mundo
ocidental. A Epistemologia, como grande discurso suprematista, é um sistema de
uma perfeição absoluta, construído sem falhas nem vulnerabilidades, um sistema
inatacável a partir do seu interior, indestrutível com as regras do método científi-
co, mas é um sistema edificado sobre um axioma, sobre uma premissa impossível
de verificar que os seus defensores pediram, a priori, que fosse aceite sem neces-
sidade de demonstração. Provavelmente, em virtude do deslumbramento que a
euforia do progresso e a inebriação com sucesso dos seus resultados — que nos
ofereceu o ofuscante mundo tecnológico da sociedade de consumo — a neces-
sidade de provar a premissa inicial acabou por ficar adiada sine dia ou, simples-
mente, esquecida e desvalorizada.
Mas não deixa de ser curioso constatar o facto de ser a arte a apontar o caminho
que, até aqui, pertenceu à ciência.
Bibliografia
ARISTÓTELES. Organon (vol I — Categorias). Lisboa: Guimarães Editores, 1974
(3ª ed., 1985).
BARTHES, Roland. Le degré zero de l’écriture. Paris: Seuil, 1953. O Grau Zero da
Escrita. Lisboa: Edições 70, 1981.