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Análise das primeiras cartas jesuíticas do Brasil Colonial: O uso do Tupi-

Guarani como instrumento de catequização a partir dos séculos XVI e XVII.

Sarah Santos Silva1

Resumo
Os primeiros escritos jesuíticos, ou seja, as primeiras cartas trocadas entre os
membros da Companhia de Jesus, após desembarcarem na terra Brasillis, no século
XVI, sob a missão de propagar a cruz e a coroa, têm como objetivo descrever em
tom edificante os acontecimentos relacionados às suas missões. Na intervenção
jesuítica e em sua propagação da fé e do império ao além-mar, os religiosos,
utilizavam instrumentos articulados pelo Estado, mas também se valiam de forma
autônoma, do uso de práticas menos ortodoxas para fazer o translatio da religião e
dos ensinamentos cristãos aos indígenas, por exemplo, fazendo o uso de sua língua
vernácula, o Tupi-Guarani, com o objetivo de tornar o gentio “civil”. Nesse sentido, o
presente trabalho pretende analisar algumas dessas cartas, que visavam
estabelecer dialogo dentro da intervenção, e que direcionadas a Roma, descrevem o
uso do Tupi como um instrumento utilizado pelos jesuítas para a conversão dos
gentios ao cristianismo.

Palavras-chave: Cartas. Catequização. Tupi-Guarani. Intervenção Religiosa.


Indigena.

Abstract
The first Jesuit writings, that is, the first letters exchanged between the members of
the Society of Jesus, after landing on terra Brasillis, in the 16th century, with the
mission of propagating the cross and the crown, have the objective of describing in
an edifying tone the events related to their missions. In the Jesuit intervention and in
their propagation of the faith and the empire overseas, the religious used instruments
articulated by the State, but also made use of less orthodox practices to make the
translatio of religion and Christian teachings to the natives, for example, making use
1
Graduanda em Letras com habilitação em Português (Licenciatura) na Escola de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (EFLCH/Unifesp). E-mail:
sarah.santos21@unifesp.br.
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of their vernacular language, the Tupi-Guarani, with the objective of making the
natives "civil". In this sense, the present work intends to analyze some of these
letters, which aimed to establish dialogue within the intervention, and that directed to
Rome, describe the use of Tupi as an instrument used by the Jesuits for the
conversion of the Gentiles to Christianity.

Keywords: Letters. Catechization. Tupi-Guarani. Religious Intervention. Native.

Introdução

As primeiras cartas do Brasil, escritas pelos membros da Companhia de Jesus, os


jesuítas, tinham o objetivo de relatar como estava se desdobrando o processo de
catequização ultramarino na terra dos “bárbaros gentios”. De forma que esses
relatos por um lado, valem mais “enquanto literatura de informação, seus escritos
mostram-se ricos por espelharem a mentalidade catequizadora do grupo, e,
sobretudo, as implicações sociais e politicas de sua atuação.” (BRANDÃO, 1993, p.
197), por outro, também serviam para que o Estado, e consequentemente, a Igreja,
pudessem acompanhar e controlar, não somente o desenvolvimento da intervenção,
mas também impor práticas a serem utilizadas para o sucesso desta.
A intervenção religiosa e o processo colonizador, de modo geral, propunham-se a
“salvar” os nativos, que sob as luzes do cristianismo e do império, viviam em
extremo pecado e de forma bárbara, já que “a visão que tinham da sociedade tribal,
era a de um estado caótico, carente de ordenação espiritual, moral e social.”
(BRANDÃO, 1993, p. 197), e para isso, utilizaram, dentre muitas outras forças
impositivas, a catequização para promulgar a fé cristã, que no imaginário
expansionista e colonizador europeu, acreditavam ser a força capaz de promover o
livramento dos indígenas deste estado de caos.
No que se refere a esse projeto catequizador, e a importância de Anchieta, a autora
de “O discurso dos missionários jesuítas”, Helena Brandão, já anteriormente citada,
no que diz respeito ao padre e o discurso proposto por ele, enquanto um homem
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religioso, mas também um homem de época, sob o viés do ideal europeu


expansionista, colonizador e religioso, afirma que:

“A linguagem com que se refere aos índios mostra essa ambivalência, ao


refletir o teor universalista e redutivo dos discursos evangelizadores que se
sustentam na dicotomia civilizado VS bárbaro, cristão VS gentia e na
necessidade de eliminar as diferenças sob a égide de uma mesma crença (a
católica) e a civilização (portuguesa).” (BRANDÃO, 1993: 198).

No que diz respeito ao uso e apropriação do Tupi como prática e instrumento


utilizado para catequizar os gentios, é importante ressaltar que os primeiros contatos
datados a partir da década de 30 do século XVI, teriam ocorrido pela necessidade
dos primeiros colonos desembarcados a terra recém-achada, de conhecê-la, bem
como, de sobreviver. Para o autor que colaborou com a obra “O português e o tupi
no Brasil, Aryon Dall’Igna Rodrigues, esses contatos:

“{...} Se deram especialmente com falantes das variedades tupi e tupinambá.


Ao estabelecer relações amistosas com uma comunidade indígena, os
portugueses foram aprendendo a usa a língua desta comunidade indígena, os
portugueses foram aprendendo a usar a língua desta...”. (RODRIGUES, 2010,
p. 31).

A importância de José de Anchieta, também é vital ao processo da catequização dos


indígenas, se apresenta passível de citação aqui, uma vez que “uma das principais
ferramentas de catequização utilizada por Anchieta foi à elaboração de um extenso
corpus em língua vernácula.” (EDSON, 2010, p. 17).
Notoriamente ao uso e apropriação do Tupi como prática e instrumento para
catequizar os gentios, a exemplo dos autos de evangelização escritos por Anchieta,
podem ser caracterizados como:
“[...] Textos simples, de uma religiosidade popular, numa linguagem que
objetivava despertar a devoção do índio. Eram copiados, recopiados, ás
vezes adaptados, e distribuídos para serem cantados nas diferentes igrejas.
Embora revelem preocupação formal com a medida, métrica e rima, seu
objetivo principal não era estético, mas pragmático.” (BRANDÃO, 1993, p.
197).
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Para além das tentativas de aproximações “amistosas”, que levaram os primeiros


colonos ao contato com o tupi e tupinambá, sabe-se que o processo de colonização
e catequização dizimou muitos nativos, culminou em incontáveis estupros e muitas
outras atrocidades, e consequentemente um estado de caos. Com isso, o uso do
tupi como veículo de comunicação nos autos, nos sermões e no projeto de
intervenção jesuítica não é nada mais do que uma parte integrante desse processo
de devastação, e além dos de descrever as ações edificantes e obrigatórias nas
cartas, os jesuítas também descreviam em seus diálogos os processos de usos do
tupi, descrições da língua e entre outros aspectos.

Descritivo do uso do Tupi-Guarani como instrumento de catequização nas


primeiras cartas

Na carta de Padre Manuel da Nóbrega, datada de agosto de 1549 na Bahia, após

descrever as benfeitorias da terra, frutas e plantas do solo brasileiro, e também

alguns dos povos nativos e seus costumes, o padre distingue alguns destes e fala

sobre a comunicação entre os jesuítas e gentios: “Aqueles com quem temos

comunicação até agora são de duas castas: uns se chamam tupiniquins e outros

tupinambás².” (NOBREGA, 1549, p.35). Apesar de nenhuma observação ou

introdução maior sobre como se dava essa comunicação entre eles, no que se

refere ás línguas tupi e tupinambá:

“[...] Durante o século XVII, o nome tupi ficou mais associado, sobretudo, no

sudeste e sul do Brasil, aos índios recrutados pelos bandeirantes para invadir

e dominar as missões jesuíticas, e outras comunidades de indígenas guaranis

na bacia do rio Paraná.” (RODRIGUES, 2010, p. 29).

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Grupos indígenas brasileiros, filiados á família tupi-guarani.
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Outro ponto a ser destacado da carta supracitada, ainda sobre os povos tupiniquins
e tupinambás, o padre afirma que estes não conhecem Deus, já que não
reconhecendo essa entidade na prática religiosa dos nativos, pois o mais “próximo”
que tinham do Deus da fé cristã seria Tupã³, e que “é como diz coisa divina. E assim
não temos outro vocábulo mais convincente para trazê-los o conhecimento de Deus
que chama-lo de pai tupã.” (HUE, 2006, p. 36), nesse trecho destacado da carta de
Nobrega, se faz evidente o uso da língua vernácula como instrumento de
catequização dos nativos, a referência à divindade superior da cultura dos tupis-
guaranis atrelada ao Deus dos cristãos, se apresenta para que seja possível
conquistar-lhe a simpatia, a confiança, gerando algo como um sentimento empático,
capaz de os faça despertar interesse pela fé, e para isso há a manipulação
elementos do universo cultural dos indígenas, bem como sua língua.
Já no ano de 1551, Antônio Pires⁴, envia da capitania de Pernambuco uma
carta direcionada aos irmãos da Companhia de Jesus em Coimbra, nela Pires relata
também algumas questões especificas da terra e das situações ocorridas na
capitania, em um dos trechos ao falar de Padre Nóbrega, afirma que:

“Sabereis que p.e. Nóbrega chegou a essa Bahia, depois de visitar e


percorrer as capitanias, e logo ordenou que Padre Navarro fosse a Porto
Seguro para transladar as orações e os sermões na língua desta terra, com
alguns intérpretes, que para isso ele tinha muito bons;” (HUE, 2006, p. 44).

Ainda sobre o padre Navarro, logo depois, Antônio Pires disserta agora sobre as
dificuldades em relação à comunicação com os nativos, aponta que apesar de o
padre supracitado ter muitas habilidades, aos outros faltavam estas, já que “[...] E
disso sentimos toda muita falta, por carecermos da língua e não sabermos declarar
aos índios o que queremos, por falta de intérpretes, que saibam como desejamos
explicar e dizer.” (HUE, 2006, p. 45), com isso, fica claro que além da resistência dos
indígenas e dos seus costumes considerados bárbaros, a língua era um dos maiores
empecilhos para o estabelecimento da intervenção jesuítica e a missão de perpassar
aos gentios seus sermões e valores religiosos sobre o inferno, o juízo, a glória e
entre outros.
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Nos trechos posteriores da carta de Antônio Pires, fala sobre o processo de


conversão dos gentios, os exorcismos, os sermões, como são os novos convertidos,
o que fazem e como é o processo de aceitação da comunidade local com os
mesmos. E em um desses trechos que ele fala sobre a exclusão dos índios recém-
convertidos e como são apartados de suas famílias e convívio social tribal.

Conclusão

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Chamado “Espírito do Trovão”, na cultura Tupi-Guarani, Tupã é o grande criador dos céus, da terra, dos
mares, assim como o mundo animal e vegetal.

⁴ Antônio Pires foi um jesuíta português, nascido na Vila de Castelo Branco, bispado da guarda. Entrou na
Companhia de Jesus em 1548, e foi chegando à Bahia no Brasil foi enviado para a capitania de Pernambuco.
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De forma que, o uso do tupi-guarani como instrumento persuasivo para facilitar o


processo colonizador e catequizador do gentio, e utilizado por meio de sermões,
autos e outros escritos jesuíticos, explicita também o viés da língua como uma
instância de poder durante a intervenção religiosa. Nas palavras de Helena Brandão,
“para levar o índio à compreensão do mistério do pecado e da redenção”
(BRANDÃO, 1993, p. 198) foi preciso fazer com que ele simpatizasse com discurso,
e interessava utilizar práticas de manipulação desse discurso por meio da
apropriação de sua língua vernácula, o tupi-guarani. Um dos exemplos mais claros
disso foi à tentativa de comparação de Tupã com o Deus da religião cristã, ao
chama-lo Pai Tupã.
As primeiras cartas do Brasil colonial, que servem também como literatura de
informação, e que ao se estabelecerem como diálogos interpostos dentro da
Companhia de Jesus por seus membros, nos revelam os detalhes de como se dava
esse processo de intervenção feita pelos jesuítas, mas também algumas de suas
práticas para o “sucesso” dessa catequização.
A exploração das crenças, gostos, costumes, elementos culturais e, sobretudo a
língua dos indígenas, bem como, a sua apropriação para uso religioso e com
propósito de converter os nativos para livra-los do “estado de caos” em que viviam,
pois “imaginando livrá-los desse estado de caos e de carência, em sua atuação,  o
que fizeram na realidade foi justamente colaborar para conduzir o índio à  situação
que propunham evitar.” (BRANDÃO, 1993, p. 197).

Bibliografia
8

EDSON, Paulo. Catolicismo Indígena – Como as traduções feitas por José de


Anchieta para o tupi moldaram o cristianismo do Brasil Colônia / Paulo Edson
– Jundiaí, Paco Editorial: 2010.

RODRIGUES, Aryon Dall’igna. O português e o tupi no Brasil / Tupi,


Tupinambá, Línguas Gerais e Português do Brasil. NOLL, Volker. DIETRICH,
Wolf (organizadores). - São Paulo: Contexto, 2010.

ZERON, Carlos Alberto de Moura Ribeiro. Linha de fé: A Companhia de Jesus e


a escravidão no processo de formação da Sociedade Colonial (Brasil, século
XVI e XVII) / Carlos Alberto de Moura Ribeiro Zeron; tradução Antônio de Pádua
Danesi. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2011.

HUE, Sheila Moura, Primeiras cartas do Brasil [1551-1555] / tradução,


introdução e notas, Sheila Moura Hue. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006.

BRANDÃO, Helena H. Nagamine. América Latina: palavra, literatura e cultura/ 8.


Literatura de evangelização, O discurso dos missionários jesuítas.
Organizadora Ana Pizzaro. – São Paulo: Memorial; Campinas: UNICAMP, 1993.

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