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Resenha de livro

HOLLER, Marcos Tadeu. Os jesuítas e a música no Brasil colonial. Campinas, SP: Editora
da Unicamp, 2010. 254 p., ISBN 978-85-268-0898-0.

Augusto Charan Alves Barbosa Gonçalves1

A Companhia de Jesus, ordem religiosa fundada por Iñigo López de Loyola2 e


oficialmente criada em 1540 por meio da bula papal instituída por Paulo III, permaneceu no
Brasil de 1549 até 1759, quando foi extinta num processo desencadeado por Sebastião José de
Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal. É no contexto de contra reforma católica que os
jesuítas se movem para o “novo mundo” no intuito de propagar aos “da terra” por onde se
fixaram, não somente a religião que professavam, mas, de um modo geral, a cultura europeia
reinante naquele momento.
A história dos jesuítas na América Portuguesa3 começa quando nove anos após a
oficialização daquela congregação religiosa, o padre Manuel da Nóbrega aportou na costa
brasileira. Ao longo dos séculos, a Companhia de Jesus foi se espalhando pelo território
1
Técnico em Violão Erudito/Artes pelo Centro de Educação Profissional (CEP) – Escola de Música de Brasília
(2007). É Licenciado em Educação Artística – Habilitação em Música pela Universidade de Brasília (2010). É
Mestre em Educação Musical pela mesma instituição (2013). Atualmente, é professor do Conservatório de
Música e Artes de Brasília (CMAB). Atua nas disciplinas teoria musical e violão. Foi membro da Comissão
Organizadora do XII Encontro Regional da Associação Brasileira de Educação Musical (ABEM) ocorrida em
Brasília (DF) de 22 a 24 de outubro de 2012. Desempenhou a função de Monitor no XXI Congresso Nacional da
ABEM de 04 a 08 de novembro de 2013 na cidade de Pirenópolis (GO).
2
Acredita-se que Inácio de Loyola, como é mais conhecido, tenha nascido em 1491 na província de Guipúzcoa,
no território basco e falecido no ano de 1556 em Roma, aos 65 anos de idade. De família nobre, viveu seus
primeiros anos de vida consoante a formação militar que havia recebido. Após ser gravemente ferido por uma
bala de canhão na guerra iniciada em 1521 envolvendo a Espanha e a França, isto é, na batalha de Pamplona,
Inácio, ao retornar à sua terra natal para se recuperar, não encontra os romances cavalheirescos que gostava de
folhear e entregando-se à leitura de Legenda Aurea, de Jacopo da Voragine e Vida de Cristo, de Ludolfo da
Saxônia, inicia seu processo de conversão ao catolicismo.
3
Assim chamada para diferenciar dos territórios da América espanhola fixados pelo Tratado de Tordesilhas.
conquistado, “desde Belém do Pará até Laguna, em Santa Catarina, e em aldeias no interior da
Amazônia” (HOLLER, 2010, p. 12), tendo um papel crucial no interesse que a Coroa
portuguesa tinha em defender terrenos disputados com a Espanha no período em que o
Tratado de Tordesilhas conflituosamente vigorava.
A conversão dos gentios, isto é, dos não católicos, foi certamente o principal objetivo
almejado pela Companhia de Jesus. Para alcançar tal propósito, a música se tornou uma
ferramenta eficaz de doutrinação evangélica não só dos índios na então província do Brasil
como também das populações de outros territórios como, por exemplo, da América
Espanhola, da Índia (Goa) e da África (Etiópia). Nesse sentido, não seria muito improvável
pressupor que os jesuítas tenham utilizado a mesma estratégia de conversão (via música) no
Japão (Nagasaki), na Malásia (Malaca) e na China (Tibete). Segundo as instruções feitas pelo
padre Polanco no ano de 1558 em relação às missões da Índia parecem demonstrar que tal
ensejo não era só possível como também desejável:
Deve-se permitir o canto na Índia e em outros lugares distantes, mesmo que isso não seja
permitido à Companhia na Europa, se nesses locais isso for um auxílio para o culto de Deus e para
o proveito espiritual, como se observou em Goa e na Etiópia (Instru.JoPol.2, 1558, p. 77 apud
HOLLER, 2010, p. 157, grifo meu).

Diante do que foi exposto até aqui, Holler (2010) convida o leitor a compreender o que
era a Companhia de Jesus, quem foi seu principal personagem, a extensão do movimento
jesuítico, os intuitos daquela ordem religiosa e a época em que permaneceram nesta pátria. O
autor aponta que sem essas informações, não se poderia compreender muito bem a atuação
musical dos referidos clérigos no Brasil colonial.
Para a elaboração do referido livro, oriundo de uma tese de doutorado em música
defendida na Universidade Estadual de Campinas (SP) em 2006, Holler (2010) investigou um
número elevado de acervos nas seguintes cidades: São Paulo (SP), Rio de Janeiro (RJ),
Campinas (SP), Florianópolis (SC), Porto Alegre (RS), Lisboa e Roma. Além disso, realizou
uma revisão bibliográfica sobre o tema, consultando outras fontes impressas em sintonia com
seu foco de estudo. Deve-se ressaltar que a maioria da documentação jesuítica encontra-se em
acervos europeus4. A explicação para esse fato é de que, segundo Holler (2010), “no Brasil,
muitos documentos foram destruídos no momento da expulsão dos jesuítas das colônias, e a
quase totalidade dos que restaram perdeu-se devido à má conservação [...]” (p. 24)
De muita valia para o trabalho de Holler (2010), foi a consulta das cartas ânuas5. Estas
contemplam relatos “mais detalhados e extensos que as cartas ordinárias, e descreviam, quase
sempre em latim, os principais acontecimentos nas aldeias e nos colégios da Companhia” (p.
18). Tais cartas podem ser vistas como uma pequena parte da história do Brasil. Na realidade,
à medida que lemos a obra de Holler (2010), percebemos que seria improvável entender como
ocorreu a construção musical e cultural da civilização brasileira sem nos darmos conta da
dimensão da influência que a Companhia de Jesus exerceu por onde aqui passou.
No Brasil, os missionários edificaram três tipos de estabelecimentos: as casas que a
princípio eram escolas de ler, escrever e contar direcionadas aos meninos índios e filhos de
portugueses; os colégios, espaços que ofereciam estudos mais avançados, possibilitando o

4
Felizmente, diversamente ao que ocorre em outras ordens religiosas católicas, os jesuítas disponibilizam seus
arquivos para laicos. Tal fato possibilitou que a atuação jesuítica fosse investigada sob outras perspectivas que
não a deles mesmos.
5
Como o próprio nome já diz, trata-se de cartas feitas anualmente pelos clérigos. No estudo de Holler (2010),
foram encontradas 120 ânuas, das quais 86 continham informações sobre música.
ingresso dos interessados ao curso superior e por fim, os seminários, que se diferenciavam dos
colégios por manterem os alunos em regime de internato com o intuito de formar futuros
clérigos.
Os jesuítas atribuíam ao conhecimento, à escrita e à leitura uma importância
considerável. Não é à toa que o líder da Companhia de Jesus e grande parte de seus
companheiros foram intelectuais, sendo muitos deles os responsáveis diretos pelo registro das
atuações musicais em “terras tupiniquins”. De fato, conforme Mello (1908, p. 28) apud Holler
(2010, p. 33), “os jesuítas foram os primeiros fundadores da escola de música instrumentista
no Brasil, como seja flauta, violino, cravo, órgão por serem estes instrumentos os mais
apropriados ao acompanhamento das vozes nos cantares da igreja”. Por isso mesmo, talvez
tenham sido eles os principais responsáveis pela destruição da música indígena brasileira no
período colonial.
De acordo com Holler (2010, p. 34):
A principal informação contida no texto [de Gallet (1971 – [1928])] é a de uma substituição da
música “primitiva” dos índios por uma “superior” europeia: no capítulo III, intitulado “Destruição
da música primitiva”, Gallet menciona [na página 621] a descrição do padre Cardim de um
indiozinho que tocava diversos instrumentos e afirma que, “por esse tempo, já devia estar
agonizando a primitiva música dos índios recém-civilizados [...]”.

Com isso, atesta-se que os povos “nativos” dos territórios da América Portuguesa já
faziam música. Prova disso são os instrumentos musicais chamados pelos portugueses de
búzios e buzinas. Estes instrumentos de sopro foram construídos e utilizados pelos indígenas
antes e depois do descobrimento do continente sul americano pelos europeus6 (HOLLER,
2010, p. 112-113). Este autor aponta que os índios já tinham sua própria musicalidade e
atuavam no cenário musical religioso nos primeiros anos do Brasil colonial. Por exemplo, é
sabido que na primeira missa realizada no Brasil, “levantaram-se muitos índios e ‘tangeram
corno ou buzina’ [...]” (HOLLER, 2010, p. 112). Sendo assim, seria absurdo pressupor que a
transmissão musical ocorresse nas aldeias entre os índios e seus pares antes mesmo da
chegada dos conquistadores europeus?
O que se evidencia é que musicalmente o Brasil começa a se europeizar no período
colonial, criando-se nesse processo, o discurso de que existiria uma música superior e outra
inferior, desencadeando pré-conceitos históricos que se estendem até os dias de hoje por parte
de alguns sujeitos insistentes em acreditar que a música ocidental europeia esteja em um
patamar estético mais elevado do que outros gêneros e/ou estilos musicais. Até mesmo alguns
pesquisadores tendem a manter a ideologia “europeizadora” quando escrevem textos que
ressaltam a existência de “superioridade” de uma cultura musical em detrimento de outra.
Por exemplo, Kiefer (1977) apud Holler (2010, p. 37) escreveu o seguinte: “como
decorrência da ação ‘civilizadora’ dos jesuítas, a música dos índios, expressão de povos mais
fracos culturalmente, cedeu lugar à música europeia” (p. 12, grifo meu). Um comentário
ainda mais preconceituoso foi o de Mariz (1981). Este autor assim diz:
Obviamente uma civilização de nível tão baixo como a de nosso indígena teria de soçobrar ante
uma influência tão poderosa quanto a europeia. Ocorreu então o que já se chamou,
apropriadamente, de “deculturação” da música indígena brasileira (MARIZ, 1981, p. 38 apud
HOLLER, 2010, p. 37, grifo meu).

6
Pode ser o mesmo caso dos instrumentos: guarará (espécie de tambor indígena), maracá (chocalho) e berimbau
de boca (HOLLER, 2010, p. 134-135).
Apesar de Mello (1908) apud Holler (2010) acreditar que a música europeia exercia
forte atração e fascínio sobre os índios e que estes seguiam os padres como “a rapaziada vadia
ao ouvirem uma banda de música na rua” (p. 22), não se deve concluir daí que os índios
realmente gostassem da música que lhes inculcavam os jesuítas via catequização. Nos
primeiros contatos, os índios muitas vezes foram impelidos a aderirem ao catolicismo seja
pelo uso provável da violência física7 ou simbólica. Inclusive, alguns deles iam de encontro
aos ideais de seus colonizadores, recusando-se à conversão e por isso eram classificados pela
legislação do Brasil colonial como “gentio bravio” e/ou inimigos. Sendo assim, as tensões
entre jesuítas e índios praticamente só ocorriam quando os segundos apresentavam qualquer
tipo de resistência.
Na literatura consultada por Holler (2010), constatou-se que apenas os índios ficavam
deslumbrados com a música europeia como, por exemplo, no texto abaixo, isto é, uma carta
do padre Nóbrega escrita em agosto de 1549.
[Uma] procissão 8 com grande música, a que respondiam as trombetas. Ficaram os índios
espantados de tal maneira, que depois pediram ao padre [Juan de Azpicuelta] Navarro que lhe
cantasse como fazia na procissão (Car. MaNob.2,1549, p. 129 apud HOLLER, 2010, p. 159).

Do contrário, não é de se supor que alguns padres tenham se encantado pela música
indígena, mas ao menos tempo fortemente pressionados por sua ideologia religiosa não a
estudaram profundamente e que talvez por isso não tenham escrito relatos sobre esse assunto?
Levando-se em consideração tal pressuposto, não seria revelador a possível descoberta de
registros históricos com maior riqueza de detalhes sobre a música feita pelos indígenas no
período colonial brasileiro?
Está claro na pesquisa feita por Holler (2010) que o uso de instrumentos indígenas
pelos jesuítas era algo relativamente comum. Em uma carta do padre Nóbrega ao padre Simão
Rodrigues, escrita em 1552, consta que os meninos órfãos originários de Lisboa “costumavam
cantar pelo mesmo tom dos índios [melodias], e com seus instrumentos, cantigas na língua em
louvor de N. Senhor” (Car.MaNob. 5, 1552, p. 373 apud HOLLER, 2010, p. 166-167). Tal
influência musical indígena gerou polêmica e discussões na época, resultando numa
“desavença” entre o bispo Pedro Fernandes Sardinha e o padre Nóbrega sobre o assunto. O
bispo, estarrecido com o “descaso religioso”, se reporta ao padre Simão Rodrigues,
confessando da seguinte maneira:
Eu, querendo de alguma forma procurar fazer o ofício de bom pastor, admoestei, no primeiro
sermão que fiz logo que cheguei a esta costa, que nenhum homem branco usasse os costumes
gentílicos, porque, além de serem provocativos, são tão dissonantes da razão, que não sei quais são
os ouvidos que podem ouvir tais sons, e tanger tão rústico. Os meninos órfãos, antes que eu viesse,
tinham o costume de cantar todos os domingos e festas cantares de Nossa Senhora ao tom
gentílico, e de tanger certos instrumentos que estes bárbaros tangem e cantam quando querem
beber seus vinhos e matar seus inimigos. Falei sobre isso com o padre Nóbrega e com algumas
pessoas que sabem a condição e maneira destes gentios [...] e disse que estes gentios se gabavam
de ser os melhores, pois os padres e meninos tangiam seus instrumentos e cantavam a seu modo.
Digo que os padres tangiam, porque em companhia dos meninos vinha um padre sacerdote,
Salvador Rodrigues, que tangia, dançava e saltava com eles (Car.PeSar.1, 1552, p. 358-359 apud
HOLLER, 2010, p. 167).

7
Há indícios de que muitos jesuítas utilizavam os índios para seus propósitos, por vezes, praticamente
escravizando-os, de acordo com Holler (2010, p. 47).
8
Um século mais tarde, os índios iriam acompanhar certas procissões vestidos a caráter. Prova disso é a descrição
feita pelo padre Antônio Vieira em 1659 de uma procissão do enterro na semana santa, na qual iam “todos os
índios arrastando os arcos e flechas ao som das caixas destemperadas” (Rel.AnVie.1, 1659, p. 132 apud
HOLLER, 2010, p. 132).
O resultado dessa mistura musical entre culturas (europeia e indígena) pode ter
resultado na fabricação de instrumentos por parte dos povos indígenas que permaneceram
para além da expulsão dos jesuítas, em 1759. Por exemplo, ainda no século XX, Holler (2010,
p. 121) alega que duas rabecas, instrumento de corda tocado com arco, foram encontradas em
locais e datas diferentes no Brasil. Uma foi achada entre os guaranis no litoral sul de São
Paulo por Franz Adam em 1909 e a outra entre os índios craó na bacia do Tocantins por
Harald Schultz, em 1949. Ao obervar as figuras das rabecas na página 122 do livro de Holler
(2010), percebe-se que são quase réplicas dos instrumentos europeus — tal a influência que os
jesuítas musicalmente exerceram sobre os índios através da socialização.
Para interagir melhor e facilitar o convencimento dos grupos étnicos existentes no
Brasil, os seguidores da Companhia de Jesus aprendiam o idioma local para que os “da terra”
entendessem melhor a religião que estava sendo repassada. Cantigas, orações e autos em
português foram traduzidos para os idiomas indígenas e as primeiras gramáticas da “língua-
geral do Brasil” foram elaboradas como, por exemplo, a de padre José de Anchieta, de 1595 e
a do padre Luís Figueira, de 1621. Na realidade, para os clérigos, era verdadeiramente
obrigatório o aprendizado da “língua brasílica”, que de acordo com Holler (2010), “eram
línguas gerais, comuns a diferentes grupos, tendo por base o tronco tupi, no sul, e a língua
geral amazônica” (p. 48). Além disso:
Pelo que indicam os documentos mais antigos, no início de sua atuação, os jesuítas utilizavam-se,
além da língua dos índios, também de suas melodias. Uma das críticas do bispo Sardinha era que
os meninos órfãos [trazidos de Portugal] cantavam “cantares de Nossa Senhora ao tom gentílico”
(Car.PeSar.1, 1552, p. 358 apud HOLLER, 2010, p. 164, grifo meu).

Na verdade, os meninos índios músicos participavam das missas solenes9 tocando


instrumentos musicais, inclusive para atrair seus pares “selvagens” a aderirem à religião dos
colonizadores. É o que se constata no relato abaixo.
Na “Crônica” [do padre João Felipe Bettendorf, (1698)] são feitas várias referências a índios
músicos (geralmente chamados de “charameleiros” ou “mestres de capela”) levados nas missões
para que atraíssem os selvagens; na missão à serra de Ibiapaba de 1565, logo após a chegada dos
padres, fizeram-se “os ofícios divinos com canto de órgão [música polifônica] com os índios
músicos e charameleiros que lá se achavam, vindos de Pernambuco, onde antes moravam
(Cro.JoBett, 1698, p. 96 apud HOLLER, 2010, p. 81).

Os padres, segundo os regulamentos da Companhia de Jesus, não podiam exercer


atividades musicais. De acordo com a “Prima Societatis Iesu Instituti Summa” de 1539,
composta por cinco cláusulas escritas na cidade de Roma por Loyola e seus seguidores, reza
que a utilização da música nos estabelecimentos jesuíticos era vetada nas cerimônias sacras e
na missa (HOLLER, 2010, p. 138). Este autor explica que alguns anos mais tarde, isto é, em
1558, o texto elaborado por Inácio e o padre João Afonso de Polanco deu origem ao principal
conjunto de regras da Companhia: as “Constituições da Companhia de Jesus”, proibindo-se
nas casas e colégios da ordem religiosa, a entrada de instrumentos musicais.
Talvez seja por isso que, em todo o estudo feito por Holler (2010), tenha-se
encontrado somente uma única partitura na Biblioteca Nacional de Lisboa, isto é, um “Te
Deum10” sem referência ao seu autor e datada de 172111. Com certeza, à luz da doutrina

9
As missas solenes eram realizadas com música enquanto as missas rezadas não.
10
No livro, o autor não disponibilizou a imagem da partitura.
11
Certamente, ao ler tal informação, pode-se indagar até que ponto a composição musical era uma prática
realizada pelos jesuítas.
jesuítica, os padres deviam se ocupar exclusivamente dos “bens espirituais”. Em algumas
biografias como, por exemplo, a do padre Belchior Pontes, escrita em 1752 por padre Manoel
da Fonseca, advoga-se que o repúdio à música deve ser visto como algo bom, digno de
louvor.
Divertia-se algumas vezes seu irmão João de Pontes com o suave de músicos instrumentos [sic],
mas ele nada prezava de terrestres melodias; se conservava como serpente surda, que foge à
suavidade do encantador, no seu amado retiro [...]. Nem o ter aprendido a cantar era motivo
suficiente, para que em companhia do irmão gastasse algum tempo neste lícito exercício: antes de
tal sorte se houve em toda a sua vida, que quem não soubesse que tinha aprendido esta arte,
julgaria que nem ainda muito de longe tinha cortejado ao harmonioso Apolo (p. 12). (HOLLER,
2010, p. 174).

Com efeito, o “Ratio studiorum”, sistema de ensino elaborado pelos jesuítas, não
menciona a música12. De acordo com Holler (2010), “não foram encontrados documentos que
demonstrassem que o ensino de música fosse usual nos colégios, com exceção do Seminário
de Belém da Cachoeira, na Bahia” (p. 50). Sabe-se que a música era comumente ensinada nas
aldeias até porque naquele ambiente “não era possível contratar um professor, como ocorria
no seminário13” (HOLLER, 2010, p. 183). Isto é, quem assumia tal dever eram os padres e
não os seculares. Estes sim eram os autorizados pela igreja para lecionarem a primeira arte
nos estabelecimentos.
Sendo assim, como eram as aulas de músicas ministradas pelos jesuítas nas aldeias e
no Seminário da Cachoeira de Belém e dos professores seculares? Quais seriam as estratégias
de ensino de música utilizadas por eles? Qual concepção pedagógico-didática se levava em
conta? Certamente, encontrando-se respostas para essas questões, a área de Educação Musical
poderia traçar uma trajetória histórica das abordagens e/ou metodologias utilizadas no Brasil
colonial, desvelando como vem ocorrendo o ensino de música neste país.
De acordo com os acervos investigados por Holler (2010), eram os indígenas, os
irmãos e os músicos domésticos externos à Companhia quem mais atuavam musicalmente.
Holler (2010) coloca que “a Companhia de Jesus revelam uma rígida restrição à prática
musical em seus estabelecimentos, desde os primórdios da ordem” (p. 219). Por isso é que o
lema em latim “Jesuita non cantat” tornou-se coerente em determinada medida. Ainda que
haja relatos de missionários que exerciam atividades musicais.
Em sua “Crônica”, o padre Bettendorf cita o padre João Maria Gorzoni, na Aldeia de Cairitiba, em
ca. 1670, “que tocava uma gaitinha 14, [...] perfeitamente bem de solfa 15 (Cro. Jobett, 1698, p. 270);
cita também o padre Diogo da Costa, que se mudou para o Colégio do Maranhão entre 1690 e
1692, e “sabia cantar e tocar admiravelmente bem a viola 16, ensinou os rapazes a cantarem e a
tocarem, suspendia os ouvintes quando se cantavam as Ladainhas 17 e Salve Rainha à honra da
Virgem Senhora Nossa da Luz” (p. 478). (HOLLER, 2010, p. 173).

12
Comumente, os cursos oferecidos nos estabelecimentos jesuítas eram: teologia, retórica, humanidades,
gramática, abrangendo-se o estudo do latim e às vezes do grego, artes, filosofia ou ciências, lógica, física,
metafísica, ética e matemática.
13
De acordo com Holler (2010), “pelo o que os documentos indicam, a música era utilizada com maior
frequência nos cultos nas aldeias, geralmente feita pelos índios, mas não era uma prática usual nos aglomerados
urbanos” (p. 184).
14
Seria um sinônimo de flauta vertical geralmente feita de taboca.
15
Música escrita não improvisada. “Papéis de solfa” são partituras, “aprender solfa” significa aprender leitura
musical e “cantar por solfa, ou solfear” é cantar com a partitura.
16
Provavelmente viola dedilhada, segundo Holler (2010).
17
Consistem em uma série de invocações católico-religiosas.
Na verdade, o termo “Jesuita non cantat” se aplica mais aos jesuítas que atuavam nos
territórios pertencentes a Portugal. A forma e a frequência de como os padres atuavam
musicalmente nas Américas Portuguesa e Espanhola era dessemelhante — para Holler (2010),
“mais condicionadas por questões políticas do que ideológicas ou religiosas” (p. 215). Na
América Portuguesa, por exemplo, o regime de repartição nos aldeamentos vigorava. Isto é,
os índios deviam trabalhar constantemente e quase nunca ficavam numa mesma localidade,
ocasionando dispêndio de tempo no deslocamento — não facilitando a aprendizagem de
instrumentos musicais, gerando como consequência, uma produção musical relativamente
baixa. Ao contrário, na América Espanhola, as reduções, nome dado aos aldeamentos daquele
domínio de terras, a relação entre jesuítas e índios era mais amistosa, permitindo-se maior
tempo e liberdade para a prática de atividades musicais de ambas as partes. Sobre o assunto,
Serafim Leite (1938-1949) apud Holler (2010) exemplifica:
As aldeias do Brasil e do Paraguai tiveram diversa origem, organização e finalidade. No Brasil
[...], ao redor das vilas e cidades agruparam-se as “aldeias” dos índios, com tríplice fim: -
doutrinário (a catequese), econômico (o serviço dos índios), político (a intenção de utilizar os
índios aldeados na defesa das vilas e cidades contra os índios não confederados ou contra inimigos
externos). [...] No Paraguai, a maneira foi diversa. As aldeias fundaram-se (muito depois das do
Brasil) no coração da selva, com intenção apenas doutrinária, e logo a seguir econômica, agrícola,
pecuária, industrial e artística, por necessidade de subsistência e desenvolvimento da coletividade
(LEITE, 1938-1949, vol. 6, p. 553 apud HOLLER, 2010, p. 208-209).

O número de “instrumentos músicos”, nome dado aos instrumentos musicais no Brasil


colonial, catalogados pelos inventários, registros dos bens dos jesuítas no momento de sua
expulsão em 1759, atestam uma produção musical diferenciada entre as duas Américas. Para a
comparação, serão mostrados a seguir dois quadros que demonstram o número de
instrumentos nos inventários das reduções da América Espanhola e dos estabelecimentos da
América Portuguesa conforme esquema feito por Holler (2010, p. 207) com base em Lange
(1991, p. 59). Este autor e Holler (2010) asseguram que os números apresentados são
aproximados.
Quadro 1 – Número de instrumentos nos inventários das reduções da América Espanhola

Região Número de pueblos Número de instrumentos

Mesopotâmia argentina 32 1.040

Gran Chaco 7 19

Chiquitos 10 252

Mojos 15 389

Total 64 1.700
Quadro 2 – Número de instrumentos nos inventários dos estabelecimentos da América
Portuguesa

Tipo de estabelecimentos Número de estabelecimentos Número de instrumentos

Colégios e seminários 6 8

Aldeias e fazendas 5 48

Total 11 56

Investigando os inventários da América Portuguesa, Holler (2010) minuciosamente


catalogou e quantificou, em várias regiões do Brasil e em distintos estabelecimentos (casas,
colégios, aldeias e seminários), os instrumentos registrados pelos jesuítas até o ano de sua
expulsão, em 1759. O quadro abaixo foi replicado com base em Holler (2010, p. 86).
Quadro 3 – Instrumento nos inventários dos estabelecimentos da América Portuguesa
Aldeia de São Pedro do Cabo

Aldeia do Embu (São Paulo)


Casa da Vila da Vigia (Pará)

Seminário de Belém da

Fazenda de Santa Cruz


(Rio Grande do Norte)
Colégio do Maranhão

Colégio de São Paulo

Aldeia das Gauraíras

Frio (Rio de Janeiro)


Aldeia de Reritiba
Cachoeira (Bahia)

Colégio do Recife
Colégio da Bahia

(Espírito Santo)

(Rio de Janeiro)
Total

Baixões 1 1 1 3

Cravos 1 1 1 1 4

Charamelas [4]18 [4] 8 16

Flautas 2 2 4

Harpas 1 2 3

Manicórdio 1 1 2

18
De acordo com Holler (2010, p. 86), os números entre colchetes são aproximações.
Oboés 3 3

Órgãos 1 1 1 1 1 1 1 1 1 9

Rabecas 2 3 3 8

Rabecões 1 1 2

Sacabuxas 1 1

Violas 1 1

Total 1 2 1 2 1 1 [4] [12] 3 9 20 56

É importante discutir os termos utilizados para os instrumentos musicais acima


referidos. Pois, nem sempre os nomes encontrados nos documentos pesquisados por Holler
(2010) realmente definem-nos com exatidão. Por exemplo, a flauta, sempre mencionada nos
textos do século XVI como “frautas”, “refere-se tanto a instrumentos dos portugueses como
dos índios, e a distinção nem sempre é clara [...] tampouco fazem distinção entre flautas
transversais e doces” (HOLLER, 2010, p. 98-99). As flautas eram muitas vezes escritas com
termos em latim como, por exemplo, fistulae, tíbia e/ou tibiae. As charamelas, instrumentos
de sopro, sofrem a mesma confusão no que tange aos termos utilizados nos documentos, ora
sendo chamadas de tubae, ora de tibiae. Enquanto aos baixões, Holler (2010) constatou em
seus estudos que seria um instrumento semelhante ao fagote, e que soa uma oitava abaixo. O
baixão seria muito parecido com o instrumento que os italianos chamam de fagottone.
Por sua vez, apesar de constar nos inventários, não foi feita qualquer referência a
oboés nos relatos investigados por Holler (2010). Este diz que “o único registro de sua
presença em um estabelecimento do período colonial é o ‘Inventário dos bens da Fazenda de
Santa Cruz’, do qual constam ‘dois oboés de pau amarelo e outro de pau pintado’ [...]” (p.
109). Com a sacabuxa, um ancestral do trombone, resta apenas duas referências, uma no
inventário da Aldeia de São Pedro do Cabo Frio, no Rio de Janeiro, e outra em uma carta do
provincial Henrique Gomes ao padre-geral da Bahia, de 16 de junho de 1614.
Dos instrumentos de cordas, é muito frequente nos textos jesuíticos a menção de
violas. Sobre isso, Holler (2010) explana que “não há dúvidas de que as violas mencionadas
nos relatos jesuíticos sejam as violas dedilhadas, e não as violas da gamba ou da braccio” (p.
114). Inclusive, no Brasil colonial, tantos os índios quanto os padres dedilhavam-nas. Alguns
termos em latim como, por exemplo, cytharae, lyrae e barbiti foram encontrados por Holler
(2010). Este autor diz que tais terminologias não são precisas. Mas que provavelmente
cytharae se referiria às violas, lyrae às liras e barbiti aos alaúdes ou harpas. Estas são raras
vistas nos registros jesuíticos, de acordo com Holler (2010), “o único relato jesuítico que
menciona de forma indubitável uma harpa tangida em terras brasileiras é a carta do padre
Manuel Gomes de 1621, que descreve a primeira missa realizada no Maranhão [...]” (p. 115).
Com relação aos instrumentos de teclas, os inventários mencionam cravos, órgãos e
manicórdios. Estes últimos podem indicar, conforme Holler (2010), serem na verdade,
espinetas, clavicórdios ou mesmo cravos. Pois, muito dos escritores dos inventários não eram
conhecedores de música, gerando-se controversas como, por exemplo, o termo latim
cymbalum — erroneamente traduzido por cravo quando na realidade significaria sinos. Ao
menos, os termos parecem ser precisos em relação aos órgãos. Na verdade, o que pode
chamar a atenção de alguns pesquisadores é o fato de terem existidos órgãos feitos de cana, de
taboca ou taquara e de cedro. Pois, pouco ou quase nada se sabe da origem desses
instrumentos e quais e quem foram seus possíveis construtores.
Evidencia-se no livro de Holler (2010) que não só os jesuítas tiveram uma atuação
musical considerável no Brasil como também os índios que alguns, europeizando-se, foram se
aderindo aos costumes musicais portugueses. O autor deixa de citar o papel que os negros
tiveram na criação musical deste país e, sobretudo, sua atuação musical. Pois, os africanos
também estavam aqui e se socializaram diretamente com os jesuítas, um dos estandartes não
só da colonização e reinado portugueses, mas principalmente da igreja católica. No Colégio
do Recife (PE), por exemplo, fundado em 1655, ensinava-se a “doutrina cristã aos escravos,
ministrado por um padre conhecedor da língua de Angola” (HOLLER, 2010, p. 55). Isto
comprova e interação entre jesuítas e africanos. Será que existem documentos provando que
os padres ensinaram música aos africanos em suas instituições? Pois, sabe-se que fora dos
estabelecimentos jesuíticos a resposta é sim, de acordo com Holler (2010, p. 82).
O livro resenhado pode contribuir com as áreas de Musicologia, de Etnomusicologia e
de Educação Musical por não se tratar somente de uma história da música brasileira contada
na perspectiva dos registros feitos pelos jesuítas que dizem respeito à primeira arte, mas,
sobretudo, porque se trata de uma época em que este país começou a se mesclar cultural e
musicalmente. Aí, seja do ponto de vista da organologia dos instrumentos musicais ou da
biografia dos padres que atuaram musicalmente dentro e fora dos estabelecimentos jesuíticos,
da cultura musical indígena e do ensino de música — o tema torna-se objeto importante de
investigação ao pensarmos nos dados reveladores que podem surgir estudando-se um período
musical brasileiro ainda pouco pesquisado, segundo Holler (2010). Este autor estava certo ao
dizer que com seu livro pretende-se “abrir caminho para estudos futuros, que poderão revelar
importantes aspectos dos primórdios da história da música no Brasil” (p. 222).

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