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O CANTO ORFEÔNICO NA ESCOLA I – HISTÓRIA E

POLÍTICAS PÚBLICAS

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Sumário
A influência do canto orfeônico na educação brasileira entre as décadas de 1930 e
1960 ............................................................................................................................ 2

Orfeonismo no Brasil ................................................................................................... 6

Delimitação do objeto de pesquisa, objetivos e hipótese ............................................ 8

Canto Orfeônico e política educacional ..................................................................... 11

Rumo à educação (musical) do século XXI ............................................................... 14

Os defensores da escola nova e do ensino de música na escola ............................. 17

Villa-Lobos: a busca de um projeto nacional para o ensino de Música ..................... 22

As finalidades declaradas do canto orfeônico na escola secundária......................... 30

REFERENCIAS ......................................................................................................... 36

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A influência do canto orfeônico na educação brasileira
entre as décadas de 1930 e 1960
A inserção da música na escola tem sido tema de diversas pesquisas no Brasil
nos últimos anos em função da aprovação da Lei n° 11.769 (Brasil, 2008) a qual
tornou a música um conteúdo obrigatório para a educação básica.

Ao contrário do que possa parecer, a presença desse componente no currículo


escolar brasileiro não é novidade: de acordo com autores como Queiroz e Marinho
(2009) e Quadros Jr. e Quiles (2012), a música enquanto disciplina começou a fazer
parte da estrutura curricular a partir do Decreto nº 1.331 (Brasil, 1854).

No entanto, com o surgimento do canto orfeônico no início da década de 1930,


finalmente ela ganhou maior espaço e reconhecimento dentro do ensino formal. Por
ser considerado pela literatura especializada como um marco importante para a
inserção da música dentro da educação formal tornou-se importante a realização
de uma pesquisa histórica sobre o canto orfeônico através da ótica da legislação
educacional da época visando favorecer uma melhor compreensão do impacto
dessa proposta metodológica no Brasil.

Assim, baseado em pesquisas documental e bibliográfica, esse trabalho pretende


abordar a história do ensino formal de música no período entre as décadas de 1930
e 1960, momento em que houve maior predominância do ensino de canto orfeônico
no Brasil. Dessa forma, faz-se necessário aqui um breve esclarecimento sobre o
que foi o canto orfeônico.

Breve histórico sobre o canto orfeônico

Existem relatos de que a prática do canto orfeônico iniciou no Brasil desde a década
de 1910, através dos trabalhos de João Gomes Júnior, Fabiano Lozano e João
Batista Julião, todos situados no Estado de São Paulo (Parada, 2008, p. 174175).
Por outro lado, autores como Noronha (2011, p. 87) e Menezes (2005, p. 40)

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destacam que foi apenas a partir de Villa-Lobos que essa proposta tomou maiores
proporções.

Segundo Fucks (1991, p. 122), o propósito principal de Villa-Lobos era despertar o


gosto das pessoas pela música e ensiná-las a ouvir. Ele acreditava que todo mundo
era capaz de aprender, pois se as pessoas conseguem emitir sons para falar, é
possível emiti-los também para cantar.

A prática do canto individual ou coletivo não é uma novidade das sociedades


modernas. Presente em todos os povos, dos mais primitivos aos mais “civilizados”,
a música vocal manifestou-se de diversas formas e com várias finalidades.

Ora conectada com a dança, ora separada, em alguns períodos históricos


exprimiu-se nas práticas religiosas e cívicas, como recurso de memorização
nas escolas de profetas de Israel, na educação de crianças e jovens, na política,
nas guerras, nos banquetes e nas festas.

No final da primeira década do século XIX, o pedagogo e compositor suíço Hans


Georg Nageli (1773-1836), conhecido como o pai dos coros masculinos, iniciou
um trabalho de canto coletivo e fundou o Instituto de Canto de Zurique, em
1805.

Nessa instituição, Nageli dirigiu um coro misto, um coro de pequenos cantores


e um coro masculino. Anos depois (1824), o compositor fundou duas
sociedades: a Sociedade Coral de Zurique e a Sociedade Musical Feminina.
Até 1834 existiam na Suíça, sem contar com os escolares, mais de vinte mil
cantores que integravam os grupos corais desse país (BONITO, 1952).
Seguindo o exemplo da Suíça, o movimento associativo do canto coral se
disseminou para outros países da Europa, a exemplo da França, Alemanha,

Inglaterra, Portugal, Espanha e da América, a exemplo dos Estados Unidos, do


Brasil, da Argentina, dentre outros (BARRETO, 1938).

Até 1832, os grupos que praticavam o canto coletivo denominavam-se corais. A


partir de 1833, segundo Arruda (1960, p. 112), o coordenador do ensino de
canto das escolas de Paris, Guillaume Louis Bocquillon Wilhem (1781-1842),
com o intuito de homenagear o mitológico Orfeu, “adotou o termo L’Orpheon

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para designar os coros de alunos de todas as escolas, que se reuniam para, de
quando em quando, realizar audições”.

Desde então, a palavra orfeão passou a ser empregada em vários países,


incluindo-se o Brasil. Cabe destacar que, na França, a música foi introduzida
nos currículos da escola politécnica e da escola normal em 1929. Alguns
anos depois surgiram as associações orfeônicas, que tinham como objetivo
promover a integração social de pessoas de todas as classes sociais e,
também, organizar encontros e concursos nacionais e internacionais dos orfeões.

Na Alemanha, durante o século XVI, o orfeonismo denominou-se Liedertafele nele


predominou o caráter religioso. Na Inglaterra, Glee ou Madrigal foi o nome dado às
sociedades corais que surgiram no século XVIII, além das associações
denominadas Tonic Sol-Fa Associations.

Diferentemente da França, Inglaterra e Alemanha, o orfeonismo na Espanha


data de 1851 e se destaca pelo caráter de contenção social, ou seja, a priori,
foram criados vários orfeões compostos pelos operários e, posteriormente,
surgiram associações de caráter escolar, acadêmicas, entre outras (ARRUDA,
1960; BARRETO, 1938).

Em Portugal, a terminologia Orpheons aplicou-se aos corais mistos, quer de


origem popular, quer pertencentes a liceus, escolas e universidades. A presença
do movimento orfeônico nesse país iniciou-se com a criação das associações
orfeônicas e esteve presente no currículo da escola, através da disciplina Canto
Coral.

Há registros de inúmeros orfeões criados nas cidades portuguesas. Podem ser


tomados como exemplos, o Orfeão Acadêmico de Coimbra e o Orfeão do Porto. O
primeiro foi fundado em 29 de outubro de 1880 (O Orfeon, 1938) e, o segundo,
surgiu em 3 de fevereiro de 1910, no Porto (O Orfeão do Porto, 1942).

Ambos se tornaram referência nacional e internacional. Vale ressaltar que o Orfeão


do Porto completou, em 3 de fevereiro de 2010, cem anos de existência

(BONITO, 1953). No que tange ao ensino da disciplina Canto Coral, Barreiro


(1999) sublinha que durante o período do Estado Novo (1932 a 1975), essa

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modalidade de ensino esteve atrelada aos interesses da ideologia desse regime,
que apoiou o ensino do Canto Coral, não vislumbrando o aspecto da formação
integral que ela podia trazer ao escolar, mas percebeu o quanto seria útil
para controlar, disciplinar e incutir a ideologia desse sistema político.

Nos Estados Unidos, os orfeões apareceram na segunda metade do século


XIX e se desenvolveram por meio das associações denominadas Apollo
Clubs, as quais se caracterizaram pela inserção e pela valorização do folclore
(GILIOLI, 2003).

Quanto ao orfeonismo no Brasil, assinalamos que esse movimento sofreu


influência da França e dos Estados Unidos. As autoras de manuais pedagógicos de
Canto Orfeônico, como Barreto (1938), Almeida [1947] e Arruda (1960),
sustentam que as primeiras iniciativas de inserção das práticas orfeônicas nas
escolas brasileiras ocorreram no estado de São Paulo, nas duas últimas décadas
da Primeira República, e tiveram como mentores João Gomes Junior, Carlos
Alberto Gomes Cardim, Lázaro Lozano, João Batista Julião, dentre outros.

A partir da Revolução de 1930, o Canto Orfeônico foi introduzido nas escolas


brasileiras e tornou-se uma disciplina obrigatóriano currículo escolar, pelo Decreto
nº 19.941, de 30 de abril de 1931.

Nesse contexto, em nível nacional, esse projeto de inserção da música no currículo


da escola foi coordenado pelo músico e compositor Heitor Villa-Lobos. Enquanto
nos países da Europa e nos Estados Unidos, o orfeonismo se disseminou,
sobretudo, por meio das associações, como as citadas acima, no Brasil,
apesar da existência de algumas associações orfeônicas, a escola constituiu-se o
principal palco de propagação do ideal positivista e republicano.

Com isso, estiveram em evidência discursos, cujos temas se voltavam para a


valorização do nacionalismo, da estética, da moral, da natureza, do trabalho, do
patriotismo, da higiene, da disciplina, da raça e da cultura. Buscou-se um sentido
de raça e de nacionalidade partindo das músicas de caráter folclórico, pátrio e
cívico.

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Orfeonismo no Brasil
O orfeonismo no Brasil se configurou de forma diferente dos outros países,
porque o ponto de partida desse movimento não foram as associações
orfeônicas, mas, sim, a escola.

No contexto escolar, o saber musical passou pelo processo de Pedagogização,


ou seja, os conteúdos foram organizados conforme os níveis de ensino; surgiu um
profissional específico para lecionar a disciplina Canto Orfeônico; criaram-
se instituições (SEMA, CNCO) responsáveis pela formação de professores e
coordenação desse ensino em vários estados do Brasil; publicaram manuais
pedagógicos e manuais escolares e outros recursos necessários ao funcionamento
da disciplina.

O Brasil criou uma metodologia para o ensino do Canto Orfeônico, que não
existiu em nenhum país da Europa e da América. Cabe ressaltar que, apesar
do Brasil ter recebido influência das práticas orfeônicas da França e dos
Estados Unidos, o ensino do Canto Orfeônico se instituiu de forma
independente, a ponto de ter chamado a atenção de alguns países europeus
e da América do Sul.

Na palestra intitulada Repercussão do Ensino de Canto Orfeônico Fora do


Distrito Federal, proferida por Maria Olympia de Moura Reis (1942),
coordenadora da Superintendência de Educação Musical e Artística, é possível
termos uma noção da repercussão do ensino brasileiro da educação musical,
nos estados do Brasil e no exterior.

Em 1936, Villa-Lobos representou o Brasil no Congresso de Educação Musical


realizado em Braga. O evento recebeu representantes de alguns países da
Europa e da América. Estiveram presentes no congresso representantes de
20 países. Nessa oportunidade Villa-Lobos apresentou o plano nacional de música
adotado no Brasil, que obteve o primeiro lugar. Após o término do congresso, o
Maestro foi convidado para discorrer sobre a educação musical escolar brasileira
em Viena, Berlim, Paris e Barcelona.

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Em todos os lugares pelos quais passou, recebeu [...] os mais francos aplausos
das autoridades no assunto, que consideraram a orientação dada ao nosso ensino
um novidade digna de divulgação, o que foi feito por meio de várias revistas e
jornais europeus. Fato curioso: a velha Europa, que nos dera fartos exemplos da
música coral como agente eficaz de educação moral, social e artística, na Alemanha
e na Inglaterra, como na França, na Espanha e em outros países, recebia agora
de retorno da América, ou melhor, do Brasil, a utilização da música coletiva num
âmbito muito mais largo – qual o de fator na formação cívica (REIS, 1942, p. 8).

Na América do Sul, Villa-Lobos e sua equipe da SEMA realizaram conferências


para docentes e discentes das escolas de Buenos-Aires (1939), Montevidéu
(1940) e Venezuela. Nesses países, os docentes brasileiros apresentaram os
procedimentos didático-pedagógicos do ensino da música, na modalidade do Canto
Orfeônico, adotados na escola brasileira.

As práticas do ensino do Canto Orfeônico do Brasil chamaram a atenção do


musicólogo português Rebelo Bonito. No livro de sua autoria, Canto coral e
vida orfeônica: subsídios para a história do canto coletivo popular e artístico
(1952), o autor aborda a trajetória do Orfeonismo em Portugal, elenca os nomes
das associações orfeônicas, dos orfeões, dos diretores, dos regentes e das
categorias dos orfeões.

Além disso, faz um comentário das práticas orfeônicas no Brasil, destacando a


criação do CNCO e o curso de formação de professores. No dizer do musicólogo,
é, pois, o Brasil aquele país que possui na atualidade, ao que parece, mais
desenvolvidos e metodicamente organizados os serviços didáticos para o ensino
e prática do canto coral. O nome de Villa-Lobos, tão prestigioso como o de
Kodály, lhe anda associado (BONITO, 1952, p. 71).

Apesar de ter sido utilizada como veículo de propaganda do governo Vargas,


a educação musical escolar na modalidade do Canto Orfeônico, esteve muito
bem amparada, estruturada e assessorada no Brasil. Não é à toa que, como podemos
observar, a metodologia desse ensino foi difundida em vários países da Europa e da
América.

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Delimitação do objeto de pesquisa, objetivos e hipótese

A disciplina Música esteve presente no currículo da escola sergipana tanto no


Império (1860; 1886) quanto em todas as décadas Reforma do Ensino de 1890
– da Primeira República. Com isso, voltamos nossa atenção para a segunda
metade do século XIX e entramos na Primeira República com o propósito de
situar, historicamente, as práticas da educação musical escolar em Sergipe. Mas,
no que diz respeito às práticas da educação musical escolar, na modalidade do
Canto Orfeônico, ressaltamos que, só tiveram início na Escola Normal de Aracaju,
em 1934 (Ofício nº 62/34).

Por isso, para análise de suas práticas, no currículo da referida instituição,


tomamos como marco temporal inicial, o ano de 1934 e como marco temporal
final, o ano de 1971, momento em que a disciplina foi retirada do currículo pela
Lei nº 5.692/71 (PENNA, 2010).

Um apanhado histórico da relação entre Educação Musical e políticas públicas


para educação no Brasil

Precisa muitas vezes o regente-professor advogar em relação à importância da


Educação Musical na Escola. Tal fato é observado por diferentes autores, como
Reimer (1989) e Lehman (2006). Este último autor, inclusive, menciona a necessidade
de se convencer a classe política desta necessidade. Esta situação nos fez refletir
acerca das relações estabelecidas entre a Educação Musical e as políticas públicas
no Brasil.

Situamos, para efeito deste trabalho, o estudo da Educação Musical no Brasil, desde
o início do processo colonialista empreendido pela coroa portuguesa em terras
americanas a partir do Século XVI, pois dos processos de ensino de música utilizados
pelos povos nativos pouco restou documentado e também escaparíamos ao enfoque
sobre política educacional que damos neste artigo.
Neste período inicial, a educação era realizada pelos colégios da Companhia de
Jesus. As primeiras missões jesuíticas começaram a chegar em terras brasileiras a

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partir de 1549 e em 1750, a Província dos Jesuítas contava com 131 casas, entre as
quais 17 eram colégios 3.

Em 1541, o papa Paulo III aprova, através da bula Regimini Ecclesiae militantis, a
regra de quarenta e nove pontos encaminhados por Santo Inácio de Loyola, fundador
da Companhia de Jesus. Conforme Mesnard (1992), estas constituições previam a
instituição de seminários, denominados colégios, junto às cidades que possuíam
universidades, onde os futuros jesuítas obteriam suas graduações. Porém, a regra
precisava expressamente que a Companhia não abriria nem classes nem centros de
ensino [MESNARD: 1992, 59].

Com o passar do tempo, estas residências jesuíticas foram transformando-se em


verdadeiros colégios. No Brasil, a atividade coral está ligada diretamente ao processo
colonialista, sendo os mestres de capela importantes difusores da música neste
período. Os franciscanos e sobretudo, os jesuítas desempenharam papel importante,
a partir de meados do século XVI.

O cargo de mestre de capela se estendia também às matrizes vizinhas. Esses


músicos eram professores, dirigiam o coro, escreviam música e cantavam-na, além
de tocarem vários instrumentos [MARIZ: 1999, 33].

Para compreender a pedagogia utilizada nestas escolas e missões é necessário


buscar que tipo de formação recebiam estes religiosos. No campo específico da
Educação Musical é preciso remontar ao Concílio de Trento, realizado entre 1545 e
1563, onde Robinson & Winold (1976) identificam um impulso para a atividade coral
com a aceitação da polifonia na liturgia.

Também encontraremos informações sobre este tipo de educação no Colégio


Romano e na Schola Cantorum e ainda nas duas obras que codificavam o ensino
jesuítico: a Ratio Studiorum e a Ratio discendi et docendi.

Seguindo as principais políticas educacionais, vamos encontrar, no Século XVIII as


chamadas Reformas Pombalinas, instituídas pelo Marquês de Pombal com vistas a
alinhar o Estado português com o pensamento iluminista.

De acordo com Maxwell (1996), no que diz respeito à educação, Pombal

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almejava alcançar três objetivos principais: “trazer a educação para o controle do
Estado, secularizar a educação e padronizar o currículo” [Maxwell: 1996, 104]. As
Reformas Pombalinas desestruturaram o ensino religioso sem contemplar um sistema
educacional laico, público e gratuito.

Sem formação adequada de mestres, as aulas-regias substituem o curso de


humanidades e se constituem de disciplinas isoladas sem uniformidade de ensino. Por
esta época vivia-se o período áureo da extração de ouro em Minas Gerais onde,
quanto ao panorama musical, conforme Mariz (1999): não havia músicos autóctones
e se acredita com bastante segurança que eles vieram em grande parte do Nordeste,
isto é, da Bahia e de Pernambuco, uma vez que Rio de Janeiro e São Paulo eram
ainda cidades muito pequenas e modestas. Quase todos eram mulatos e os padres-
músicos foram poucos, uma vez que a construção de conventos estava proibida pela
coroa portuguesa, a fim de evitar o contrabando de ouro e diamantes [MARIZ: 1999,
39].

Segundo o mesmo autor, músicos organizavam-se nas chamadas


irmandades, as quais prestavam serviços a igrejas e prefeituras. Alguns mestres de
irmandades davam aulas em suas residências. Já durante o Vice-Reinado e o Brasil
Império, vamos encontrar uma política educacional voltada à formação de pessoal de
nível superior com vistas a suprir uma demanda do Estado com relação a carreiras
liberais e militares.

Cursos Normais chegaram a ser instituídos, mas o ensino elementar e o secundário


não eram requisito para acessar os cursos superiores. Neste sentido, Aranha (1996)
se posiciona frente a política educacional da corte: as medidas reforçam o caráter
elitista e aristocrático da educação brasileira, a que têm acesso os nobres, os
proprietários de terras e uma camada intermediária, surgida da ampliação dos quadros
administrativos e burocráticos [ARANHA: 1996, 153]. Isto se deve ao fato de que, com
este quadro, filhos da nobreza e da aristocracia recebiam instrução em casa enquanto
a grande massa de escravos e camponeses libertos permanecia analfabeta.

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Canto Orfeônico e política educacional
E com este panorama, chegamos ao Século XX, onde vamos encontrar inicialmente
dois momentos distintos, sendo o primeiro, antes de 1925, conhecido como
“entusiasmo pela educação” e o segundo, após este período, chamado “otimismo
pedagógico”.

No primeiro, encontramos a base de cunho positivista advinda da Proclamação da


República, onde a educação assume grande importância enquanto solução para todos
os problemas nacionais.

Contrariamente ao pensamento vigente no período imperial, após a Proclamação da


República, ocorre um entusiasmo pela instrução das massas, a qual constitui,
conforme Carvalho (1989), a “dívida republicana”, ou seja: o Estado brasileiro devia,
enquanto compromisso ético, moral e, sabemos, de cunho econômico, instruir o povo,
pois as massas ignotas constituíam verdadeiro freio ao progresso nacional.

Neste período é que ocorrem, conforme Fuks (1991), as primeiras tentativas de


organizar-se um Orfeão no Brasil. Também é o momento onde efetivamente acontece
a separação entre educação pública e Igreja.

Robinson & Winold (1976) chamam a atenção para o fato de que a


experiência coral no ocidente está assentada em três importantes instituições: a Igreja,
a escola e as sociedades de canto. A ideia de cantar por prazer estético e cultural
surge no século XVIII e se intensifica no século XIX.

Estes mesmos autores apontam que o foco de desenvolvimento da atividade, antes


centrado na Igreja, desloca-se para as associações corais e escolas, a partir do
advento da modernidade, momento da separação entre o Estado e Igreja.

No Brasil, aconteceu que somente a Proclamação da República possibilitou


efetivamente a instituição do ensino laico. Durante as Reformas Pombalinas, os
jesuítas foram substituídos por outros religiosos, conforme Saviani (2004), “com
destaque para os oratorianos” [SAVIANI: 2004, 02].
Rosa Fuks (1991) chama a atenção para a má qualidade musical nas Escolas
Normais desde meados do século XIX e é principalmente neste universo, o da
formação docente 'normal', é que vamos buscar elementos para coadunar política

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educacional e Educação Musical no Brasil deste período, pois a necessidade de
formação de professores demandava uma utilização constante da música.

A pesquisa feita por esta autora aponta um desencontro entre esta necessidade e a
prática musical da Escola Normal. No segundo período, ou seja, de 1925 em diante,
é que encontramos o surgimento dos ideais escolanovistas, onde a transformação
nacional dava lugar a tentativa de formar um novo homem. E é neste momento
histórico que o advento do Canto Orfeônico desponta enquanto tentativa de Educação
Musical para as massas.

O Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova é lançado à nação em 1932, mesmo ano
em que Villa-Lobos é convidado a assumir o S.E.M.A – A primeira Escola Normal
criada no Brasil, O Instituto Estadual Prof. Ismael Coutinho, em Niterói, no atual estado
do Rio de Janeiro, data de 1835 e foi um dos Institutos Normais pesquisados pela
autora. FUKS, Rosa.

A ligação entre o Canto Orfeônico e o escolanovismo se dá desde a sua gênese, pois


é o advento do pensamento que origina a Escola Nova, o otimismo pedagógico, que
cria as condições necessárias para o surgimento de um movimento de Educação
Musical através da crença na formação de um novo sujeito adequado ao crescimento,
a identidade e a segurança nacional. Outros educadores musicais do mesmo período
também partilhavam da ideia de aproximação entre o escolanovismo e a Educação
Musical, tais como Sá Pereira (1937).

Os escolanovistas eram apenas combatidos, neste período inicial, pelos educadores


católicos, os quais, conforme Saviani (2004), mais tarde capitularam aos princípios da
Escola Nova sob pena de perda de clientela.

Besen (1991) Chama atenção à diversidade das ações empreendidas no intuito de


concretizar um verdadeiro movimento de educação musical. Se enquanto tal intento,
críticas redundam, o mesmo não se pode dizer enquanto modelo de política pública
orientada à Educação Musical no Brasil.

Um dos grandes êxitos do Canto Orfeônico. Percebe-se a preocupação de Villa-Lobos


com os mesmos elementos com os quais nos deparamos em termos de gestão de
Educação Musical em redes de ensino ainda hoje. No Ensino Fundamental: formação
continuada de professores, subsídio material, preparação de material didático,

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orientação metodológica, organização curricular, diretrizes, visibilidade das ações e
conexões com outros usos e funções da música.

A ideia de formação de professores em nível superior era uma bandeira do


escolanovismo no Brasil, tendo sido defendida principalmente por Anísio Teixeira e
Fernando de Azevedo, tendo o primeiro participado da criação da Escola de
Professores do Instituto de Educação da Universidade do Distrito Federal (RJ) e o
segundo, do Instituto de Educação da Universidade de São Paulo.

O Conservatório Nacional de Canto Orfeônico ligava-se a Universidade do Distrito


Federal, sendo este conservatório fundado por iniciativa de Gustavo Capanema. A
criação do Conservatório Nacional de Canto Orfeônico se dá em pleno Estado Novo
(1937-1945) e na esteira da chamada “Reforma Capanema”.

Esta se constituía em uma série de decretos denominados “Leis Orgânicas do


Ensino”. Entre outras iniciativas, é o momento da criação de um sistema paralelo de
ensino profissional: em 1942 é criado o SENAI – Serviço Nacional de Aprendizagem
Industrial e em 1946, o SENAC – Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial.

Compartilhamos com Aranha (1996) a opinião de que, “mesmo reconhecendo o êxito


do SENAI e do SENAC, é preciso identificar aí o sistema dual de ensino” [ARANHA:
1996, 202], ou seja: universidade para os filhos das elites e ensino técnico
profissionalizante para os filhos da grande massa de trabalhadores.

Ainda hoje percebemos a dualidade no ensino, questão que nunca foi resolvida a
contento na educação brasileira. No que diz respeito à música, o combate a dualidade
no ensino é um dos motivos pelos quais defendemos a inclusão da Educação Musical
no currículo, pois assim pode-se oferecer o acesso ao conhecimento musical a todos
os estudantes através, inclusive, da escola pública.

Mesmo o ideal expresso por Villa-Lobos, de levar Educação Musical para todos
através do Canto Orfeônico esbarra necessariamente na questão: todos, quem?
Embora este não seja um aspecto que a metodologia proposta ou a interferência do
maestro pudesse modificar, é impossível não fazer a ligação entre Villa-Lobos e o
Estado Novo, tanto que ao despontar do desenvolvimentismo, novos ares da vida
política nacional, o Canto Orfeônico também entre em decadência, minada a
sustentação política do projeto, entre outros motivos.

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Mesmo a inserção da Educação Musical nos currículos escolares não dará conta a
nível imediato de reduzir o efeito do dualismo educacional nesta área, pois o
conhecimento musical sistematizado oferecido nas escolas é apenas mais uma
possibilidade de contato com a música.

E nesse ponto, somos assaltados por uma série de questões: que música? Que
currículo? Que escola? Que aluno? Que infância? Que método? Que professor? E por
aí vamos... Besen (1991).

A educação é um ato político e a escola, um espaço de disputa política. Neste sentido,


mesmo que as leis do período não o dissessem expressamente, o todos na educação
do Estado Novo ainda segregava os pobres, os camponeses, os negros e o operariado
em favor de uma elite urbana, branca e católica.

Rumo à educação (musical) do século XXI


Durante a Segunda República, inicia-se a discussão da primeira LDB – Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a qual tramita a partir de 1948 e é
promulgada em 1961 (Lei 4024/61).

Também é o momento em que surge o Movimento de Cultura Popular em


Pernambuco e o método Paulo Freire de alfabetização de adultos. O país respira uma
urgência por mudanças, apoiadas na cultura popular e nos movimentos sociais.

O clima político torna-se extremamente tenso após a vitória da Revolução Cubana: é


a ascensão do comunismo na América Latina. A mesma ideia de segurança nacional
que sustentou o Estado Novo serve enquanto justificativa para outra ditadura, a qual
estaria sendo instituída, diziam os militares, na salvaguarda do estado de direito no
Brasil.

São os desdobramentos da Guerra-Fria que assola o mundo, bipolarizado entre


capitalismo e comunismo. O grupo Música Viva se forma em 1939 e em 1946 lança
um manifesto, onde defende um ensino ideologicamente engajado. Neste manifesto,
não se referem diretamente à Educação Musical, mas sim à educação entendida em
seu âmbito de integralidade: MUSICA VIVA, compreendendo que o artista é produto
do meio e que a arte só pode florescer quando as forças produtivas tiverem atingido
um certo nível de desenvolvimento, apoiará qualquer iniciativa em prol de uma
educação não somente artística, como também ideológica; pois não há arte sem
ideologia [MARIZ: 1999, 298].

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Neste manifesto, o grupo se posiciona na vanguarda da produção musical brasileira,
extrapolando inclusive o pensamento escolanovista. Este tipo de ideal educacional
jamais encontraria eco no regime autoritário imposto ao país após 1968.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional promulgada pelo governo militar,


lei 5.692/71 assume um caráter tecnicista e aponta a terminalidade de segundo grau.
O ensino polivalente das artes afasta a prática musical das escolas, principalmente
das escolas públicas. É posto em marcha um processo de sucateamento dos serviços
prestados pelo Estado (e isto inclui a educação) em função do investimento em
infraestrutura feito neste período com vistas a promover o 'milagre econômico'.

A partir da segunda metade dos anos 70, os discursos de situação e oposição se


confundem, numa tentativa de empatia do regime pela causa dos mais pobres.
Germano (1994) aponta a necessidade de busca de hegemonia pelo centro do poder,
o qual se afastava cada vez mais até mesmo dos interesses da classe industrial
brasileira.

O mesmo autor aponta também para a continuidade do velho regime no seio da Nova
República. Na década de noventa, com a promulgação da nova constituição em 1988,
fez-se necessária uma nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a qual
é promulgada em 1996. A partir desta lei, a lei 9394/96 é que vemos o ressurgimento
da atividade musical nas escolas enquanto componente curricular.

É preciso estar atento, neste período, ao projeto privatista das elites brasileiras, as
quais acenam com investimentos estatais e renúncia fiscal para projetos educativos
não governamentais enquanto vemos minguar os investimentos para a educação (e,
por extensão, para a Educação Musical) na escola pública.

Tal processo caminhou fortemente nos anos noventa através de iniciativas como os
'Amigos da Escola' e as leis de incentivo à cultura. Já nestes primeiros anos do Século
XXI, assistimos a ampliação do Ensino Fundamental para 9 anos, a criação do
FUNDEB – Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica, o qual amplia
o investimento federal na educação e o processo de municipalização da Ensino
Fundamental no Brasil.

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Este dado nos coloca a necessidade de conquistar espaço para a Educação Musical
nas redes municipais de ensino, não obstante a luta pela inclusão da Educação
Musical enquanto componente curricular obrigatório em todos os sistemas de ensino
a nível nacional. Chamamos a atenção também para as ditas políticas inclusivas
perpetradas principalmente a partir do governo de Luís Inácio Lula da Silva e
materializada, em termos de Ensino Fundamental, principalmente na lei

10.639/03.

Também atentamos para a necessidade de sustentação política das iniciativas de


Educação Musical que estão acontecendo nestas redes públicas municipais de
ensino. As poucas iniciativas existentes apontam, em sua maioria, para trabalhos
extracurriculares.

Tais trabalhos são necessários, mas falham no proporcionamento da continuidade


das ações. Iniciativas, como a da Secretaria Municipal de Educação de Florianópolis,
onde ocorre a garantia de o profissional de artes atuar na especificidade da habilitação
em que se graduou dentro do currículo, são raras. No caso deste município citado, tal
garantia foi conquistada após o ensino de música extracurricular ser suspenso por
falta, justamente, de sustentação política em um momento de transição da gestão
municipal.

Tal suspensão de atividades nos é relatada por Finck (1997). Percebe-se, guardada
a distância histórica existente entre a contemporaneidade e a primeira metade do
Século XX, a atualidade do trabalho realizado pelo Canto Orfeônico, através do SEMA
e do Conservatório Nacional de Canto Orfeônico em termos de política, conforme
Borges (2006) publica para a Educação Musical.
Neste momento em que surgem iniciativas para inclusão do ensino de música nas
escolas brasileiras, ainda é o único modelo de política pública de ensino musical
voltada para as massas. Também percebemos a importância da sustentação política
necessária a qualquer ação educacional. Nos termos da inserção da música no
currículo, tal sustentação é imprescindível para o êxito e continuidade das ações.

Ao abordar o tema “Políticas Públicas em Educação Musical”, proposto para um fórum


de debates no XII Encontro Anual da Associação Brasileira de Educação Musical

16
(ABEM) – Florianópolis, outubro de 2003 – sentimos a necessidade de, primeiramente,
compreender e explicitar o conceito de “política educacional”.

A sociedade política, onde se concentra o poder da classe dirigente (governo,


tribunais, exército, polícia), é o lugar do direito e da vigilância institucionalizada,
estando a seu cargo, portanto, a formulação da legislação educacional (e outros
termos normativos), assim como a sua imposição e fiscalização. Já a sociedade civil
– composta pelas associações ditas privadas, como igrejas, escolas, sindicatos, meios
de comunicação, ONGs, etc. – é o campo onde se situa o sistema educacional, sendo
nela, portanto, que as leis são implantadas e concretizadas.

Os defensores da escola nova e do ensino de música na


escola
Em 1930, o maestro Heitor Villa-Lobos apresentava seu projeto de reformulação do
ensino de Música para as escolas paulistas e, posteriormente, brasileiras. Nesta
proposta, apresentava os benefícios da Música para os estudantes dos níveis
primário, secundário e normal.

Porém, o maestro não foi o único a defender o ensino de Música. No final da década
de 1920 e início da década de 1930, ganhava força no Brasil, um grupo de educadores
que se intitulavam “os defensores da escola nova”, que pregavam uma educação que
pudesse abranger as camadas mais carentes da sociedade

17
(“educação para todos”).

A presença marcante de alguns destes intelectuais como Fernando de Azevedo,


Lourenço Filho e Anísio Teixeira no mercado editorial, nas gestões dos sistemas de
instrução pública e até mesmo na formulação de políticas educacionais, fez com que
as idéias destes educadores fossem propagadas por todo o país.

Tais intelectuais se preocupavam com o ensino de Música, tanto para as escolas


primárias como para as secundárias: Segue-se, na então Capital do país, a Reforma
de Anísio Teixeira, em 1932, que já encontrou estruturada a de seu antecessor,
Fernando de Azevedo, a qual, em virtude da Revolução de 1930, não pôde ter o
desenvolvimento almejado.

Na Reforma de 1932, a Música e as demais Artes têm um lugar proeminente, como


um dos mais preciosos alicerces da Escola Nova. Além da programação para Escolas
Elementares, Jardins de Infância e Ginásios, é criada a Cadeira de Música e Canto
Orfeônico no Instituto de Educação e que foi ministrada pela Professora Ceição de
Barros Barreto (...) (JANNIBELLI, 1972, p.42).

O projeto escolanovista defendia uma educação para as massas, especialmente para


a crescente população que habitavam os grandes centros urbanos e serviam de mão-
de-obra barata para o também crescente movimento industrial.

A Música tinha um importante espaço sobre este olhar sobre a educação. Essa
relação se dava exatamente no sentido de despertar a cidadania. Essa finalidade
educativa da Música, mais tarde iria ao encontro da política nacionalista de Getúlio
Vargas que desde o início de seu governo, buscou uma centralização do poder,
lutando contra a política regionalista praticada durante a Primeira República.

A administração do país tinha que ser única e independente dos proprietários rurais
que apoiavam e eram apoiados pelo Governo Federal no período da política do Café
com Leite. Sendo assim, a afirmação de uma nação era uma das bandeiras do

18
governo getulista e a música era uma poderosa ferramenta a favor de uma unificação
artística, musical e política.

Na obra “Novos Caminhos e Novos Fins: A nova política da educação no


Brasil. Subsídios para uma história de quatro anos”, com primeira edição no ano de
1937, Fernando de Azevedo analisou a reforma educacional planejada e executada
por ele no Rio de Janeiro entre os anos de 1927 a 1930. Em sua análise o autor
defendia o ensino das artes apoiado no poder recreativo desta área de conhecimento:
“(...) A educação nova quebraria o ritmo da unidade essencial da vida, se, no seu
propósito social, não abrangesse, para desenvolver o bem-estar do indivíduo e da
comunidade, as poderosas inspirações da arte, nos seus aspectos educativos e
recreativos”. (AZEVEDO, 1958, p.119).

Se por um lado, Fernando de Azevedo considerou importante um espaço para as


artes dentro da educação nova, compreendendo as suas mais diversas manifestações
(desenhos manuais, música, teatro e dança), por outro apresentou uma visão
utilitarista da arte na escola, em que esta não assumia um papel essencial pelo seu
lado técnico e teórico, mas sim pela sua capacidade recreativa.

O ensino das artes era apresentado como um poderoso meio de educação, capaz de
promover um dos valores essenciais para o homem da década de 1920: a
sociabililização. Esta de fato era uma preocupação dos intelectuais da escola nova
que procuravam promover uma educação que preparasse o indivíduo para o convívio
harmônico na sociedade.

Desta forma, descartavam os ideais de uma educação tradicionalista que visava


apenas a instrução, ou seja, a simples transmissão de conhecimento. A respeito das
diferentes artes (música, teatro e dança), Fernando de Azevedo complementa: (...) No
novo código de educação, as representações dramáticas, a música e a dança não
entraram apenas como divertimento nos programas de festas e reuniões escolares,
mas se integraram, como num corpo de doutrina, no novo sistema com que a escola,
aproveitando a arte na sua função social, como um auxiliar maravilhoso na obra de
educação, poderá contribuir para aprofundar e consolidar as bases espirituais de

19
nossa formação, abrindo a sensibilidade da criança as atividades ideais, capazes de
despertá-la e desenvolvê-la, sem prejuízo, antes como proveito das práticas
cotidianas. (AZEVEDO, 1958, p.128-129).

Desta forma, Fernando de Azevedo criticava a arte dentro da educação tradicional. A


arte, que até então se hospedava, retraída, nos programas artificiosos de festas
escolares, para deleite dos pais, no seu encantamento pelos filhos, incorporou-se ao
sistema de educação popular, como um dos principais fatores educativos e uma das
mais poderosas forças de ação, de equilíbrio e de renovação da coletividade
(AZEVEDO, 1958, p.118).

Para Azevedo, as atividades artísticas e musicais dentro da escola nova deveriam ser
abordadas utilizando uma educação popular inspirada em motivos da vida infantil, da
flora, da fauna e do folclore nacionais, o que tornava necessário também o
recolhimento e a pesquisa dos cantos e canções populares provenientes do folclore.

A utilização da arte folclórica na escola teria sua força maior na relação educativa com
o aluno, e menor para apresentações em reuniões e festividades escolares. O autor
apresenta um ponto importante para a análise da Música na escola, uma vez que
ressaltava que durante a educação tradicional, os rituais e festividades escolares
serviam apenas como “vitrine” e eram realizadas apenas para deleite dos pais.

Mais tarde, Villa-Lobos também se preocuparia com esta questão, uma vez que
relatou que o excesso de apresentações poderia ser prejudicial para o trabalho do
professor em sala de aula. O sentido de “renovação da coletividade” aparece no texto
de Fernando de Azevedo, demonstrando novamente a afirmação de uma educação
em busca da sociabilidade entre os estudantes.

A ênfase em atividades em conjunto tornava-se então um dos elementos centrais para


uma educação que privilegiava o ensino para as massas. Assim como os defensores
do ensino de Música do início do século XX, os intelectuais da escola nova também
se inspiravam nos modelos de escolarização de países europeus.

20
Percebe-se, por exemplo, que algumas das ideias de Fernando de Azevedo assumem
um paralelo com a obra de um pedagogo francês chamado Chasteau em Lições de
Pedagogia (livro para o uso dos alunos da escola normal), publicado originalmente em
1899 na França. Segundo este manual: A música eleva o espírito, estimula a
sensibilidade, sobre a qual se pode edificar todo o plano educativo. Representando o
lado puramente estético da educação popular, até sobre este aspecto merece ser
muito apreciada. – Depois, sob o ponto de vista moral, a música apresenta, para a
juventude, uma poderosa couraça contra os perigos doutros prazeres, e isto pelo
sentimento puro e elevado que ela cultiva. Finalmente sob o ponto de vista disciplinar,
o canto que acompanha as marchas, os exercícios, as saídas e as entradas dos
alunos, impede a desordem e o tumulto, ao mesmo tempo em que ministra um
alimento salutar à atividade nativa dos alunos, distraindo-os, alegrando-os, facilitando-
lhes poderosamente o seu trabalho.

É por isso que até o ensino de ginástica costuma ser acompanhado de um canto bem
ritmado (CHASTEAU, 1899, p. 370). Publicada e traduzida no Brasil, para o uso das
escolas normais ainda em 1899, a obra de Chasteau de certa forma expressava uma
das necessidades fundamentais para a formação de uma

República.

Ciente disso, Fernando de Azevedo nunca negou a influência direta das obras dos
europeus. Neste sentido, algumas comparações entre Chasteau e Azevedo se tornam
inevitáveis, como por exemplo, a valorização do lado estético e moral.

É certo que existem algumas diferenças, já que em nenhum momento Azevedo


apresenta diretamente a música como forma de conter a desordem ou contra os
perigos doutros prazeres.

No entanto, a música assume abertamente uma função de controle tanto no discurso


de Chasteau, quanto no discurso de Azevedo, pois poderia oferecer essa elevação
espiritual por meio de um ensino recreativo, capaz de distrair e alegrar os alunos,
contendo assim a energia dos mesmos.

21
A semelhança entre os discursos dos europeus e dos brasileiros como Fernando de
Azevedo, foi muito comum neste período de busca pela renovação educacional.

Villa-Lobos: a busca de um projeto nacional para o


ensino de Música
Apesar do sucesso como músico, instrumentista e compositor, o maestro Heitor
VillaLobos manteve um forte interesse pela educação, sendo decisivo no projeto de
implantação e divulgação do Canto Orfeônico nas escolas brasileiras.

Durante a década de 1920, antes da sua segunda viagem à Europa, o maestro Villa-
Lobos já possuía a idéia de criar coros populares nacionais, como demonstra um
cronista na Folha da Noite (Rio de Janeiro) de 03 de novembro de 1925: Espírito de
fina observação, Villa-Lobos notou que o costume admirável de cantar em coros ainda
não penetrou nos povos latinos, sendo um hábito antigo na raça teutônica.

Na Alemanha, cada indivíduo tem a sua voz determinada, com seu repertório de
canções nacionais e, na primeira reunião em que se encontra, sabe executar a sua
parte num concerto vocal. Na França já se começa a educar o povo com as músicas
a vozes, sendo um exemplo incipiente o hino dos estudantes em greves, num cortejo
qualquer pelas ruas de Paris.

É necessário que, também aqui, se intente o mesmo, começando pelas escolas, único
ponto de seguros efeitos nas vindouras gerações de moços. Em lugar de encher a
cabeça das crianças com os famosos hinos que nas escolas se cantam, de letra e de
música estúrdias, sem a menor compreensão por parte, muitas vezes, até dos
professores, é preciso que se ensine os pequenos a cantar as nossas canções
apanhadas entre o povo, conseguindo que eles aprendam, cada qual a sua voz
determinada, de modo que, no primeiro momento em que se encontre um grupo
reunido, se possa, muito naturalmente, passar umas horas de agradável música.

22
Mas a criança não poderá reter uma composição de várias vozes... Pois que não seja
de muitas vozes, mas de duas apenas. E os nossos cantos, já estão fixados? Temos
já canções nossas? Canções, temo-las e muitas; falta-nos somente quem as ame e
as queira cantar. Da sistematização delas se encarregou o próprio VillaLobos e, muito
breve, ouvi-las-emos nos seus adoráveis concertos.

Dos coros passou a falar da nossa nomenclatura musical, dizendo que vai tudo muito
errado, jamais sendo tango ou tanguinho o que hoje com tais nomes se publica
(FOLHA DA NOITE citado por KIEFER, 1986, p.142-143).

Desde a década de 1920, a discussão que colocava o ensino musical distante da


mera execução de hinários já se encontrava presente. O ensino de elementos do
folclore, na busca de resgatar uma identidade nacional, mostrava-se como
preocupação principal.

Neste momento, nota-se a “invenção” de uma tradição nacionalista para o Brasil,


resultado de uma República emergente em busca de uma identidade cultural.

O conceito de Hobsbawn sobre a “tradição inventada” pode contribuir no entendimento


desta questão: Por “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas,
normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de
natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de
comportamento através de repetição, o que implica, automaticamente; uma
continuidade em relação ao passado.

Aliás, sempre que possível, trata-se estabelecer continuidade com um passado


histórico apropriado (HOBSBAWN, 1997, p.9). A disseminação da formação de uma
cultura nacional se deu através das artes, da educação, da imprensa e do Governo,
atendendo ao critério da “repetição” exposta por Hobsbawn.

Essa relação com o nacionalismo não era uma exclusividade da música, uma vez que
artistas das mais diversas áreas se empenhavam em divulgar a arte nativa brasileira,
a cultura indígena e folclórica: Tarsila do Amaral, Anita Malfati e Di Cavalcanti na
pintura; Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Manuel Bandeira na

23
Literatura, e outros, que também estiveram empenhados no “resgate” da cultura
brasileira.

Após a Semana de Arte Moderna, o maestro Villa-Lobos manteve certa receptividade


do público e da crítica paulistana. Este impacto rendeu-lhe uma bolsa para estudar na
França, onde “(...) os viajantes e turistas brasileiros, desejosos de tomar o tradicional
„banho de civilização‟ em Paris, descobriram o quanto era „importante‟ e „genial‟ a
cultura da população que os envergonhava pela miséria, ignorância e matiz da pele e
que tanto seduzia os franceses” (SVECENKO, 2000, p.278-279).

Quando voltou ao Brasil, no ano de 1930, o consagrado compositor deparouse com


uma realidade musical bem diferente daquela que ele havia vivenciado na Europa. Se
por um lado notava um público numeroso para a Música, por outro percebia que este
público se encontrava aprisionado em “esquemas rígidos e manipulado ao sabor das
conveniências dos empresários” (NÓBREGA, 1970, p.11).

Isso levaria Villa-Lobos a apresentar à Secretaria de Educação do Estado de São


Paulo um plano de educação musical por escrito (mesmo documento que havia sido
apresentado e ignorada anteriormente a Júlio Prestes, então presidente de São Paulo
e candidato à presidência da República).

Após a Revolução de outubro de 1930, ano em que Getúlio Vargas assumiu a


presidência da República, Villa-Lobos manteve ativas suas tentativas de reconstrução
da educação musical brasileira, utilizando em seu discurso um forte apelo nacionalista,
associado à defesa da música brasileira de raiz (canções folclóricas).

Em 12 de janeiro de 1932, VillaLobos entregava ao presidente Getúlio Vargas um


memorial sobre o ensino de Música e Artes do Brasil. Neste documento, Heitor Villa-
Lobos problematizava a questão artística do Brasil no âmbito educacional,
comparando-a novamente com as experiências realizadas em outros países.

24
Além disso, o maestro apresentava a Música como a melhor e mais eficaz
propaganda do Brasil para o exterior. Para Villa-Lobos, a Música e as demais artes
apareciam como elementos que deveriam ser valorizados por um Governo
preocupado com a formação de seus cidadãos. Ao justificar suas intenções no trecho
inicial da carta, Villa-Lobos acentuava o discurso nacionalista: No intuito de prestar
serviços ativos a seu país, como um entusiasta patriota que tem a devida obrigação
de por à disposição das autoridades administrativas todas as suas funções
especializadas, préstimos, profissão, fé e atividade, comprovadas pelas suas
demonstrações públicas de capacidade, quer em todo o Brasil, quer no estrangeiro,
vem o signatário, por este intermédio, mostrar a Vossa Excelência o quadro horrível
em que se encontra o meio artístico brasileiro, sob o ponto de vista da finalidade
educativa que deveria ser e ter para os nossos patrícios, não obstante sermos um
povo possuidor, incontestavelmente, dos melhores dons da suprema arte. (VILLA-
LOBOS, 1932).

O problema levantado por Villa-Lobos e a forma apresentada para a sua solução


(exaltação ao nacionalismo) pareciam ser as melhores justificativas para a realização
do seu projeto. Elevar a arte a um símbolo de potencial da Nação se tornava o principal
argumento utilizado pelo maestro para conseguir atingir seus objetivos.

Villa-Lobos sintetizava e defendia aquilo que já era realidade na Europa: o vínculo do


ensino de Música com uma função utilitarista para a sociedade. A expansão em âmbito
nacional do ensino do Canto Orfeônico teve sua origem na década de 1930, e contou
com o apoio dos representantes da Escola Nova.

Na Reforma de ensino de 1932, de autoria de Anísio Teixeira, na capital do país, a


Música e as demais Artes tinham lugar destacado dentro dos currículos escolares. Na
UDF (Universidade do Distrito Federal), havia o curso de Formação de Professores
Secundários de Música e Canto Orfeônico, com várias Cadeiras culturais e
pedagógicas.

Em 1933, foi criada a Superintendência de Educação Musical e Artística,


transformada em SEMA. Este também foi o ano em que Villa-Lobos apresentou sua

25
proposta de ensino musical para os demais estados brasileiros: Aos interventores e
diretores de instrução de todos os estados do Brasil foi enviado em 1933 um apelo no
sentido de que se interessassem pela propagação do ensino da musica nas escolas
e pela organização de orfeões escolares, apresentando-se ao mesmo tempo uma
exposição das necessidades e vantagens que poderiam advir para a unidade nacional,
da prática coletiva do canto orfeônico, calcada numa orientação didática uniforme.

Foi esse apelo acolhido com interesse e simpatia em muitos Estados que desde então
se preocuparam em torna-lo uma realidade. Assim, resolveu-se aceitar a matrícula de
professores estaduais nos cursos especializados, para pequenos estágios onde eles
pudessem adquirir os conhecimentos básicos imprescindíveis. (VILLA-LOBOS, 1946,
p. 528).

Este projeto somente foi possível com a Superintendência que reunia cerca de 200
professores que ministravam o ensino da Música e Canto Orfeônico nas escolas de
diversos níveis. Entre as realizações de Villa-Lobos dentro do SEMA destaca-se a
atuação em defesa do Canto Orfeônico, por meio das concentrações orfeônicas
promovidas durante o Governo de Getúlio Vargas. Após cinco meses na instituição,
foi realizada uma demonstração pública com uma massa coral de 18.000 vozes,
constituídas por alunos de escolas primárias, das escolas técnicosecundárias, do
Instituto de Educação e do Orfeão de Professores.

Em 1943, o Maestro Villa-Lobos deixou a superintendência do Distrito Federal e


fundou O Conservatório Nacional do Canto Orfeônico, de âmbito federal, com a
finalidade de formar professores e de orientar o ensino musical em todo o país.

Dessa forma, o maestro se preocuparia em oferecer as diretrizes para o ensino da


Música e Canto Orfeônico nas escolas brasileiras.
Villa-Lobos manteve uma posição de destaque no ensino de Canto Orfeônico do país,
sendo citado em diversos livros didáticos da disciplina, como por exemplo, na obra
Noções de Música e Canto Orfeônico, voltado para a 1ª série do curso ginasial, de
Maria Elisa Leite Freitas, no ano de 1941, que apresenta Villa-Lobos como (...) uma
das maiores glórias da música nacional, aquele que, segundo Alberto Nepomuceno,
achou a chave da verdadeira música brasileira, enquanto que êle achara apenas a

26
porta, devemos, portanto a organização definitiva do ORFEÃO, na capital do Brasil,
dum orfeão único que deverá, mais tarde, unir num só côro todas as vozes brasileiras
para, sob uma só e mesma orientação, aprender a cantar as grandezas da Pátria e
saber cantando defende-la e glorifica-la pelo trabalho honesto e inteligente, cumprindo
assim, o compromisso ditado por Roquette Pinto e assinado por todos os orfeonistas:
PROMETO DE CORAÇÃO SERVIR A‟ARTE, PARA QUE

O BRASIL POSSA, NO FUTURO, TRABALHAR CANTANDO [grifos no original]


(FREITAS, 1941, p.18).

A ideia de trabalhar cantando relacionava-se a uma outra grande preocupação do


governo getulista: o trabalho. A Música serviria como uma forma de compensação ao
trabalho. Villa-Lobos também pretendia atingir os operários, que eram frequentemente
convidados a participar das concentrações orfeônicas promovidas pelo maestro.

O apoio para as classes operárias urbanas, sempre foi um dos focos da política
getulista, realidade que não ocorria durante a política anterior ao golpe dado pelo
grupo de Vargas em 1930. Os decretos de ensino de 1931 e 1946: O Canto Orfeônico
no curso ginasial Durante as décadas iniciais do século XX, a Música não foi
contemplada nos programas oficiais do ensino secundário, sendo apenas encontrada
na Escola Normal.

Em termos de legislação, o Canto Orfeônico passou por dois momentos em sua


história, o primeiro em 1931 na Reforma de Francisco Campos, quando foi
incorporado ao programa oficial do curso ginasial, e o segundo, em 1946 quando
houve uma reformulação do programa da disciplina.
Nestes programas propostos percebe-se que o Canto Orfeônico sofreu algumas
variações quanto ao número e à distribuição das aulas. Serão analisados aqui as leis
e decretos recorrentes destes dois momentos marcantes para o ensino do Canto
Orfeônico.

Na Reforma educacional de Francisco Campos em 1931, o recém-implantado


programa de Música e Canto apresentava forte ênfase no caráter nacionalista,
ressaltando a organização dos orfeões que participassem dos recitais de arte e festas

27
escolares, e que interpretassem os hinos e as canções patrióticas que apareciam
como elemento central deste ensino. No programa aparecem também ressalvas sobre
a importância das canções patrióticas, que deveriam “inspirar o amor e o orgulho pelo
Brasil, forte e pacífico, e inculcar o desejo pela ação energética e constante em prol
do engrandecimento nacional” (BRASIL, dec. 19890, de 18 de abril de 1931).

Nota-se, nesta passagem do programa, uma das finalidades declaradas do ensino do


Canto Orfeônico na escola já discutida na década de 1920 que era de estimular o
sentimento nacional nos alunos, o que mantinha relação com o fato de Getúlio Vargas
apoiar, durante seu governo, a criação da imagem de uma nação unificada em
combate aos regionalismos que ocorriam durante o período da República Velha.

Aparentemente, a disciplina de Música constava timidamente no programa. Era, entre


as matérias, uma das que menos tinham espaço na grade curricular, apresentando
um total de 5 horas/aula distribuídos nas três primeiras séries do curso ginasial.
Mesmo assim, historicamente a disciplina jamais havia sido, em termos de legislação,
tão valorizada na escola.

Essa simpatia pela disciplina por parte do ministro Francisco Campos, sintetizava as
discussões sobre a função formadora da escola e o papel fundamental que a Música
representava neste projeto. Esta finalidade formadora da escola era encontrada na
própria exposição de motivos anexada a legislação de 1931: Via de regra, o ensino
secundário tem sido considerado entre nós como um simples instrumento de
preparação dos candidatos ao ensino superior, desprezando-se, assim, a sua função
eminentente educativa que consiste, precisamente, no desenvolvimento das
faculdades de apreciação, de juízo e de critério, essenciais a todos os ramos da
atividade humana e, particularmente, no treino da inteligência em colocar os
problemas nos seus termos exatos e procurar as suas soluções mais adequadas
(BRASIL, dec. 19890, de 18 de abril de 1931).

Se a Reforma no início dos anos 1930 atendeu parte dos discursos sobre o Canto
Orfeônico ocorrida nos anos 1920, foi com Gustavo Capanema , em parceria com Villa
Lobos, que o Canto Orfeônico atingiu seu ápice. Nas reformas educacionais de

28
Capanema, o Canto Orfeônico assumiu um importante objetivo para os ideais do novo
ministro da educação e do Presidente Getúlio Vargas, uma vez que contemplava
questões como nacionalidade e civismo. Segundo Baia Horta, para o ministro Gustavo
Capanema, a educação (...) não podia ser neutra no mundo moderno. Logo, também
no Brasil, já ameaçado “pelas tempestades do tempo presente”, a educação não podia
ser neutra, mas teria de “se colocar exclusivamente a serviço da nação”.

Com o novo regime instaurado (Estado Novo), o Estado havia se


reestruturado e mobilizado os seus instrumentos para cumprir sua função de “fazer
com que a nação viva, progrida, aumente as suas energias e dilate os limites de seu
poder e de sua glória”. E a educação era, segundo o ministro, um desses instrumentos
do Estado. Assim, seu papel seria “ficar a serviço da nação” (HORTA, 2000, p.148).

É certo que esses ideais do ministro iam ao encontro da política do Governo Getulista,
que buscava o desenvolvimento do país por meio do trabalho, e principalmente do
progresso, que se acreditava ser capaz de levar o Brasil ao desenvolvimento
econômico social. No entanto, mesmo que estes ideais tenham ganhado grande força
no período do Estado Novo já havia, nos anos anteriores ao novo regime, esta
preocupação com a relação entre a educação e a formação da nação.
De certa forma, os ideais educativos de Capanema resumiam de maneira intensa
aquilo que já era procurado desde o início do século: uma educação engajada com a
pátria. Segundo Bahia Horta, Capanema (...) contrapondo-se àquilo que preconizavam
os pioneiros da Escola Nova (...) defendeu que a educação devia atuar “não no sentido
de preparar o homem para uma ação qualquer na sociedade”, e sim “no sentido de
prepará-lo para uma ação necessária e definida, de modo que ele entre a constituir
uma unidade moral, política e econômica, que integre e engrandeça a nação”
(HORTA, 2000, p.149).

O ministro utilizava alguns argumentos dos defensores da Escola Nova em prol dos
interesses do Estado, no entanto, adequando-os a sua realidade. A ideia da educação,
enquanto formação de cidadãos, se manteve presente nos dois discursos, porém
Capanema tinha a sua sociedade ideal em vista, não importando apenas formar um

29
cidadão para uma sociedade utópica, mas sim formar cidadãos para viver no regime
do Estado Novo.

Desta forma, ensino de Música e Canto Orfeônico passou a ser utilizado como um
meio educativo a favor dos ideais do Estado Novo. O apoio do próprio Villa-Lobos ao
presidente Getúlio Vargas demonstrou isso, ou seja, se por um lado o maestro notou
um importante espaço nas escolas para divulgar a boa Música, por outro, Vargas
percebeu um poderoso meio de divulgação política.

No entanto, foi a partir de 1946, período posterior ao Estado Novo, que o Canto
Orfeônico sofreu um processo de reformulação apresentado pelo ministro Raul Leitão
Filho na qual a avaliação passava a ser obrigatória no ensino ginasial. Isto demonstra
que o ensino de Canto Orfeônico não ocorreu apenas durante o período do Estado
Novo.

O apoio eminente de Villa-Lobos ao ensino de Música na escola continuou


independente da política adotada no país. Ainda na reforma de 1946, nota-se que é a
carga horária da disciplina de Canto Orfeônico para o curso ginasial é alterada, pois
as aulas aparecem nas quatro séries do ensino ginasial, porém com apenas uma aula
para cada ano escolar. Mesmo passando a englobar todas séries do curso ginasial,
há uma redução no horário em relação às reformas propostas por Francisco Campos.

As finalidades declaradas do canto orfeônico na escola


secundária
As finalidades declaradas do Canto Orfeônico resumiam as discussões propostas
pelos defensores do ensino de Música nas décadas iniciais do século XX. Balizando
esta análise estão, de um lado, as idéias sobre as finalidades do Canto Orfeônico
desenvolvidas por educadores acadêmicos, como Villa-Lobos e Barreto, e de outro as
disposições sobre o assunto, publicadas em Leis e Decretos Federais. A partir da
relação entre estes enfoques, discutem-se aqui questões como: Para que servia o
ensino do Canto Orfeônico na escola? Qual suas finalidades enquanto disciplina
escolar?

30
As finalidades do Canto Orfeônico na escola nem sempre priorizaram o
desenvolvimento da sensibilidade musical e estética dos alunos. Mesmo os grandes
defensores do ensino de Música provenientes do meio artístico e acadêmico, como
Villa-Lobos e Ceição de Barros Barreto, eram cientes destas finalidades do Canto
Orfeônico na escola, conforme expressa o trecho a seguir extraído da obra Coro
Orfeão de Barreto, em 1938: A finalidade do estudo do canto não é apenas o de
promover a aquisição da habilidade de entoar canções, mas o de proporcionar melhor
compreensão da música e aumento de satisfações, baseados em apreciação e
execução.

A apreciação, incluída, forçosamente em cada detalhe do ensino de música, tem o


poder de motiva-lo. Estimula o espírito de análise e observação e, por isso, aperfeiçoa
a execução. Concorre, portanto, para o aumento do interesse em compreender e em
sentir a música (BARRETO, 1938, p. 69).

Se por um lado, Barreto apresentava as finalidades musicais do ensino do Canto


Orfeônico como, por exemplo, valorizar a apreciação e a compreensão dos diferentes
elementos musicais, ao invés da simples execução de canções, por outro, não deixava
de contemplar alguns objetivos que não estavam ligados ao caráter “teórico” e
“estético” da disciplina.

Neste trecho, a autora apresenta alguns pontos importantes do canto na escola:


Elemento disciplinador e socializador por excelência é, porem, no canto em conjunto
que melhor se amplia o seu poder educativo.

Do canto coral disse Lourenço Filho (Jornal de Piracicaba – 14/06/21): “Não há


sentimento que não possa interpretar com dignidade, elevação, energia e vigor, que
convence e arrasta. Não há ideia que ele não possa sugerir, não há ação que êle não
possa despertar ou inibir... Razão pela qual o canto em coro é um dos mais prontos e
prestáveis auxiliares da educação moderna”.

O canto em conjunto impõe a noção de solidariedade no esforço, acostuma o


indivíduo a fundir suas próprias experiências com as dos seus companheiros, ensina-

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lhe a sentir e agir em massa, realizando o seu trabalho de acordo com o trabalho do
grupo, tornando-o consciente de ser parte de um todo num conjunto organizado,
valorizando, assim, a necessidade de uma disciplina por todos consentida e adotado
com o fim de conseguir a melhor execução musical. (BARRETO, 1938, p.70 -71).

A prática do Canto assumia funções disciplinadoras e sociabilizadoras na escola,


conforme já discutido por Fernando de Azevedo na década de 1920. Estas funções
seriam úteis quanto aos objetivos gerais da escola, ou seja, a importância do ensino
musical se dava mais pela promoção à convivência em grupo do que pela função
técnica e estética da disciplina.

Assim, o ensino prático do canto e as grandes concentrações orfeônicas formadas


por estudantes secundaristas, apresentavam a melhor forma de atingir essa finalidade
“sociabilizadora” da escola, uma vez que privilegiavam o trabalho em grupo.
Villa-Lobos concordava com Barreto e também apresentava o canto como elemento
disciplinador. Porém, havia por parte destes educadores uma forte preocupação com
a qualidade do ensino de Música. Enquanto Villa-Lobos anunciava o mal que faria à
disciplina e à escola o excesso de apresentações, Barreto denunciava a situação
precária à qual estava vinculado o ensino de Música e de Canto Orfeônico: Tudo nos
leva a crer que inúmeras divergências existem entre o que os próprios programas de
ensino têm estabelecido e o que realmente se pratica.

Programas existem com orientação conveniente.

Eles deverão, em qualquer caso, porém, ser ajustados à classe e às condições do


ambiente, onde se pretenda processar o ensino. Será necessário compreender o
meio, onde viva a criança, sua experiência musical anterior, seus gostos, suas
preferências.

Só então poder-se-á esboçar um plano de trabalho com objetivos definidos,


suscetíveis de serem alcançados. Ora, isso exigirá condições de orientação do
professor. Não bastará um programa. A ausência dessa verdadeira orientação
observa-se geralmente na realização do ensino de música, como disciplina isolada de

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todas as outras. No entanto, por ser uma linguagem do sentimento ela facilmente se
relaciona com todos os assuntos, prestando-se ao ensino globalizado.

E só por essa forma, acreditamos que a experiência em arte e beleza possa influir na
formação das crianças. (BARRETO, 1938, p. 17-18). Tanto Villa-Lobos quanto Barreto
se mostravam preocupados com a formação musical e estética dos alunos,
ultrapassando a função utilitarista do ensino de música na escola.

É certo que nenhum destes dois defensores da educação musical negaram, por
exemplo, o poder de sociabilização da música. No entanto, sempre apresentaram uma
forte preocupação com a qualidade no ensino de teoria musical e na compreensão e
valorização das canções folclóricas nacionais e mundiais, sem descartar as canções
eruditas.

O ensino de Música unia-se também a uma outra questão central da escola: a tensão
entre o velho e o novo; o tradicional e o moderno. Os próprios renovadores da
educação apresentavam a importância de uma educação moderna, voltada para a
sociedade.

Desta forma, estes educadores combatiam a antiga educação tradicional, alegando


incompatibilidade às novas tendências da sociedade. Com a reforma de Francisco
Campos em 1931, algumas reivindicações dos escola novistas foram incorporadas
como, por exemplo, a prática do coro que surgia como um verdadeiro exemplo de
educação moderna.

Essa alusão à modernidade assumia íntima relação com o discurso dos intelectuais
da escola nova brasileira com o discurso artístico do Movimento Modernista Brasileiro,
já que ambos movimentos buscavam um rompimento com um passado tradicional em
prol do novo.

Villa-Lobos de certa forma era um ótimo representante desse ensino modernizador,


uma vez que foi um dos expoentes da Semana de Arte Moderna, em 1922. Villa-Lobos
carregava a fama de um artista moderno e consagrado, principalmente após seu
sucesso na Europa.

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Outra finalidade à qual o Canto Orfeônico esteve ligado na escola remete ao discurso
sobre a função higienista à qual a escola estava submetida: O canto em côro difere
do canto individual, não somente no sentido de visar este, principalmente mais
virtuosidade, como por globalizar com mais eficiência diversos fatores educacionais,
apropriando-se melhor ao ensino coletivo. Não representa apenas a satisfação
produzida pela execução das canções. É também elemento de desenvolvimento
físico, pelo que exige como atitude na prática de sua realização, pelo treino da
distribuição e capacidade respiratória, influindo na circulação de todo o organismo,
pelo controle dos nervos e músculos, determinando melhor conjugação de ritmos,
despertando a inteligência, desenvolvendo o raciocínio, aperfeiçoando a sensibilidade
(BARRETO, 1938, p.70).

As vantagens do ensino do Canto Orfeônico assumiam uma relação direta com o


físico, o corpo, a capacidade respiratória e a circulação sanguínea, além de trabalhar
com a perspectiva da recreação; em que o canto seria capaz de oferecer:
“(...) ocupação do mais alto valor às horas de lazer, como recreação sadia”
(BARRETO, p. 71, 1938).

Na legislação de 1931, o ensino do Canto Orfeônico justificava-se pela


“capacidade de aproveitar a música como meio de renovação e de formação moral e
intelectual” (BRASIL, dec. 19890, de 18 de abril de 1931). Para isso, o ensino de Canto
Orfeônico deveria ter “(...) a forma recreativa, convindo sejam os cânticos variados. É
indispensável escolherem-se composições de autores de real mérito, preferindo-se as
que já se tenham incorporado ao patrimônio artístico nacional” (BRASIL, dec. 19890,
de 18 de abril de 1931).

No período do Estado Novo esta discussão voltava com força ainda maior: Persegue-
se obstinadamente não somente a configuração de um tipo físico único para o
brasileiro; ambiciona-se também a definição de um só perfil racial, a ponto de ser
estabelecida uma relação simples entre raça e Nação constituída.

A importância do trato no corpo é crucial para uma sociedade que se vê somatizada;


a saúde, a força do corpo é a sua saúde e sua força estimadas. A projeção mesma de

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uma parte física e equilibrada com a espiritual dimensiona um conjunto social
equilibrado, no qual as tensões e conflitos ficam fora de lugar pela natureza singular
de sua constituição.

Afinal, um projeto articulado de corporativização avançava nos anos 30 e a imagem


do corpo humano impunha-se como necessariamente positiva e acabada para o
conjunto da sociedade. (LENHARO, 1986, p.79).

A necessidade de homogeneização da raça era um dos discursos, que envolvia a


educação para as massas, na tentativa de moldar uma Nação. A ideia de se formar
um único perfil racial mantinha uma relação com o ensino de Canto Orfeônico na
escola. Trata-se então de uma tentativa de homogeneização cultural, na qual uma
cultura elitista que privilegiava a música erudita repleta de elementos folclóricos era
considerada a ideal. Em prol desta normalização das raças, buscavase uma raiz
brasileira na arte, na música, assim como na educação.

Na política, buscava-se por meio do autoritarismo formar um ideal de nação. Porém


este forte envolvimento do ensino do Canto Orfeônico com um ideal de país acarretava
em uma desvalorização do conteúdo específico de música, que deveria ceder espaço
a um amplo estudo de hinos e canções cívicas.

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REFERENCIAS
ABREU, Dr. Alysson de. Leis do Ensino Secundário e seus Comentários. Manual do
Inspetor de Ensino Secundário. Graphica Queiroz Breyner Ltda., 1939, 2ª edição.

ARRUDA, Yolanda de Quadros. Elementos de Canto Orfeônico. Companhia Editora


Nacional, São Paulo, 1960, 33ª edição.

BARRETO, Ceição de Barros Barreto. Côro orfeão. São Paulo: Companhia


Melhoramentos, 1938. CHASTEAU. Lições de pedagogia. Tradução de: Antonio
Figueirinhas. Porto: Ária Figueirinhas, 1899.

BRASIL. Decreto n° 19.890, de 18 de abril de 1931. Dispõe sobre a organização do


Ensino Secundário. Coleção das leis da República dos Estados Unidos do Brasil, v.

1, p. 470-480, 1931. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/19301949/D19890.htm>.

BRASIL. Decreto n° 51.215, de 21 de Agosto. Estabelece normas para a educação


musical nos Jardins de Infância, nas Escolas Pré-Primárias, Primárias, Secundárias e
Normais, em todo o País. Diário Oficial da União, seção 1, p. 7602-7605, 196.

BRASIL. Decreto-Lei n° 8.529, de 2 de janeiro de 1946. Lei Orgânica do Ensino


Primário. Diário Oficial da [República dos Estados Unidos do Brasil], seção 1, p.

113121, 1946a. Disponível em:


<http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.

BRASIL. Decreto n° 8.530, de 02 de janeiro de 1946. Lei Orgânica do Ensino Normal.

BRASIL. Decreto n° 24.794, de 14 de julho de 1934. Cria, no Ministério da Educação


e da Saúde Pública, sem aumento de despesa, a Inspetoria Geral do Ensino
Emendativo, dispõe sobre o Ensino de Canto Orfeônico, e dá outras providências.

36
BRASIL. Decreto no 41.926, de 30 de julho de 1957. Aprova o Regimento do
Conservatório Nacional de Canto orfeônico, do Departamento Nacional de

Educação, do Ministério da Educação e Cultura. Diário Oficial da União, seção 1, p.


19234, 1957. Disponível em:
http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral

BRASIL. Lei nº 11.769, de 18 de agosto. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de


1996, Lei de Diretrizes e Bases da Educação, para dispor sobre a obrigatoriedade do
ensino da música na educação básica. Diário Oficial da União, seção 1, p. 1, 2008.

BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais – v. 6: Arte. Brasília: MEC/SEF, 1997.

O discurso do silêncio. Rio de Janeiro: Enelivros, 1991 Superintendência de Educação


Musical e Artística do Distrito Federal, por esta época, Rio de Janeiro.

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