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O CANTO ORFEÔNICO NA ESCOLA III – REPERTÓRIO

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Sumário

O canto orfeônico na escola III – Repertório ..........................................................


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Repercussão internacional do canto orfeônico brasileiro ....................................


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Canto orfeônico: Primeiro e Segundo Volumes .....................................................


6

A teoria das representações sociais .......................................................................


7

Análise das canções de ofício ..............................................................................

10

Considerações sobre o ensino de música ............................................................


21

REFERENCIAS .........................................................................................................
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O canto orfeônico na escola III – Repertório

Com relação às composições, arranjos e organizações de canções, as composições


musicais de Villa-Lobos somam 212 nos cinco volumes, sendo 41 compostas por
outros músicos e 157 são temas populares. O total de peças seria em número de 452,
sendo que, menos as 44 repetidas nos volumes, totalizam 408 músicas.

Na abordagem do repertório proposto por Villa-Lobos, quase que totalmente voltado


para a música brasileira e para a idade escolar relativa ao ensino básico. Observa-se
que existe um repertório para cada faixa etária:

- Crianças até cinco anos: Canções em uníssono com pequena extensão; de


preferência, acompanhadas de gestos e ações lúdicas; que contenham elementos
facilitadores para a preparação de codificação e decodificação do ritmo e da melodia,
e do exercício da memória; apreciação musical a partir de seleção de peças
compatíveis com a capacidade de atenção e concentração segundo a idade dos
alunos.

- Desde cinco a nove anos: Gradativo aumento da extensão e da complexidade


rítmica, melódica, harmônica e polifônica; codificação e decodificação de elementos
básicos, rítmico-sonoros; apreciação musical.

- A partir de nove anos: Desde que se constate capacidade de abstração, inserção


de conhecimentos teóricos básicos, estritamente ligados à prática musical e
necessários para solidificar a aquisição da codificação e decodificação da música;
dados históricos complementares; apreciação musical. Ações pedagógicas paralelas
ao aprendizado de canções

- Improvisação vocal e instrumental com base em pesquisa sonora abrangente,


com inclusão de timbres de qualquer fonte sonora e alturas independentes de escalas
e modos convencionais.

- Codificação e decodificação livres, a partir da escrita espontânea ao


desenvolvimento de qualquer tipo de registro rítmico-sonoro. Os princípios do canto
orfeônico nas escolas brasileiras foram então caracterizados pelas adaptações e

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elaboração de repertório para cada faixa etária, baseando-se principalmente no
folclore nacional, reforçando o nacionalismo e a busca pela criação da identidade
nacional vivida no século XX.

Repercussão internacional do canto orfeônico brasileiro

Na esfera internacional, a pedagogia orfeônica de Villa-Lobos se situa no mesmo


período do projeto de educação musical realizado por Zoltan Kodaly (1882- 1967) na
Hungria, pelo qual Villa-Lobos teria se encantando em viagem à Europa, buscando
aplicá-lo de forma semelhante no Brasil.

Pode se destacar seis concepções semelhantes nos projetos de Villa Lobos e de


Kodály:

1) a de que a música é um direito de todos;

2) a de que a educação musical é necessária para o desenvolvimento pleno do ser


humano;

3) a de que a voz cantada e o melhor instrumento de ensino porque é acessível a


todos;

4) a de que a música folclórica de alta qualidade deve ser utilizada no ensino musical;

5) a de que o aprendizado musical é mais significativo quando realizado em um


contexto de experimentação;

6) a de que os professores de música devem ser especialmente preparados para a


árdua tarefa de educação musical.

Para Villa-Lobos o canto orfeônico tinha como elemento educativo destinado a


despertar o bom gosto musical, formando elites, concorrendo para o levantamento do
nível intelectual do povo e desenvolvendo o interesse pelos feitos artísticonacionais.

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O crescimento da aplicação do canto orfeônico nas escolas teve como

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consequência a necessidade de materiais didáticos específicos, uma organização
sistematizada num conjunto de coletâneas organizadas por Villa-Lobos. Como o
funcionário público burocrático do governo responsável pelo projeto, o maestro
elaborou um Guia Prático que se constituiu, essencialmente, em uma coleção de
músicas folclóricas, ou populares de inspiração folclórica, sem abordar outros estilos
musicais, tais como os de caráter cívico-patriótico ou de louvor ao trabalho.

Mais duas obras foram compiladas e publicadas, uma intitulada de Solfejos, e a outra
de Canto Orfeônico. Nessas coleções encontramos uma diversidade de estilos e
objetivos. Estas eram utilizadas no processo de formação de professores
especializados, como também na prática orfeônica nos diferentes níveis escolares.
Nesse trabalho focalizamos os dois volumes do Canto Orfeônico.

Em ambos, temos presente uma rica variação, incluindo no seu corpo peças contidas
também no Guia Prático. Com base nessas referências, fizemos a seleção das
canções folclóricas, patrióticas e hinos nacionais que são aqui analisados.

Optamos pelo Canto Orfeônico I e II, por sua abrangência e representatividade.

Canto orfeônico: Primeiro e Segundo Volumes

A coleção Canto Orfeônico, como nos referimos, está organizada em dois volumes.
Vale destacar que o primeiro, de 1940, está dividido em categorias temáticas.
Acreditamos que esta organização seja fruto do apogeu do Estado Novo na época de
sua publicação, tempos em que Villa lobos deveria ater-se mais profundamente ao
conteúdo ideológico das obras.

No primeiro volume da obra encontramos como subtítulo seu objetivo:


“Canções e Cantos Marciais para a Educação Consciente da ‘Unidade de Movimento”.
Este se caracteriza pela predominância de temas patrióticos com ritmo de marcha,
tais como: “Duque de Caxias” (letra de D.Aquino Correa – música de Francisco Braga);

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“Mar do Brasil” (letra de Sylvio Salema – música de H. VillaLobos); “Alerta – Canção
dos Escoteiros” (letra e música de B. Cellini – arranjo de H. Villa-Lobos); etc.

Isto porque o maestro entendia a necessidade do domínio desse padrão rítmico para
a boa execução do caráter marcial da maioria dos hinos. A visão panorâmica do
segundo volume, o de 1951, demonstra que nesta fase o maestro encontrava-se
menos voltado para os objetivos da educação musical por não desfrutar mais da
cobertura e gigantismo do Estado Novo.

Observamos uma junção não muito criteriosa de composições, O Guia Prático,


teoricamente, seria uma obra de seis volumes, mas, na prática, possui apenas um,
sem nenhuma intenção didática ou categorização dos conteúdos, destacando-se
novamente as canções folclóricas.

Enfim, nestes dois volumes encontram-se músicas datadas do período que precede
a instalação do Estado Novo até o segundo governo de Vargas. Acreditamos que
estas músicas estão impregnadas das representações sociais para a construção de
uma ideologia nacionalista.

A teoria das representações sociais

Atualmente muitos estudos científicos de variadas áreas têm apresentado o conceito


de representação social, o que desperta o nosso questionamento sobre a concepção
científica da teoria das representações sociais.

Neste tópico do artigo tentaremos, ainda que de maneira breve, ultrapassar as


representações sociais da “Teoria das Representações Sociais”, ou seja, ultrapassar
o senso comum a respeito do tema. Esta teoria, bem como outras, é originária de uma
determinada área e se tornou teoria em outros campos do conhecimento.

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A Representação Social, ainda que tenha surgido da Sociologia de Durkheim, tomou
corpo nos estudos da Psicologia Social e foi concebida como teoria no trabalho
desenvolvido por Serge Moscovici, aprofundado por Denise Jodelet. De forma
concisa, abordamos aqui o ponto de vista sociológico inicial da representação social.

Durkheim foi o primeiro cientista a empregar esforços nos estudos das


Representações Sociais. Na visão durkheimiana é a sociedade que pensa. Nesta
perspectiva, as representações sociais podem estar conscientes ou não pelos
indivíduos. Segundo esta concepção o indivíduo é tido como “impotente” diante do
poder absoluto sistematizado em sociedade.

Em 1961 na França, dentro da Psicologia Social, foi o trabalho de Moscovici, La


Psychanalyse, son image, son public, que sistematizou as representações sociais
como uma teoria. Desde então, a teoria vem sendo utilizada em investigações de
variadas questões contemporâneas. A teorização de Moscovici tem servido de
ferramenta para diferentes campos, como: a educação, a saúde, o meio ambiente e a
comunicação, formando escola e até gerando diferentes propostas teóricas.

A partir dos estudos da Psicologia Social, diferentes definições de representações


sociais surgiram, entre os pedagogos, sociólogos, psicólogos, etc. Para Denise
Jodelet, que aprofunda as idéias de Moscovici, a representação social: É uma forma
de conhecimento, socialmente elaborada e partilhada, com um objetivo prático, e que
contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto social. Igualmente
designada como saber de senso comum ou ainda saber ingênuo, natural, esta forma
de conhecimento é diferenciada, entre outras, do conhecimento científico.

Entretanto é tida como um objeto de estudo tão legítimo quanto este, devido à sua
importância na vida social e à elucidação possibilitadora dos processos cognitivos e
das interações sociais. (Jodelet, 2001, p.22).

Entre as diferentes concepções sobre a teoria encontramos uma semelhança, é o


entendimento de que as representações sociais recebem ascendências pelas
tradições, pelas questões étnicas, pelos conhecimentos populares e científicos, ou
seja, por visões diferenciadas do mundo. Faz-se importante destacar que para Serge
Moscovici: “As representações sociais são um conhecimento de segunda mão, cuja
operação básica consiste na contínua apropriação de imagens, das noções e das
linguagens que a ciência não cessa de inventar” (Moscovici, 1994, p.19).

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Neste trabalho, assume-se a concepção de Representação Social como uma
categoria complexa que não deve consistir como entendimento de um fenômeno
particular do ser, porém como um fenômeno relacional, considerando o indivíduo
dentro de um contexto histórico, social e cultural, onde a construção do “eu” está
relacionada pela interatividade com os outros.

Para Moscovici (2003) a construção das representações sociais acontece por dois
processos básicos: a ancoragem e a objetivação. Para o psicólogo social, ancorar é
enquadrar em categorias, e à imagens já conhecidas, algo novo. Isto é, tornar o que
é estranho em familiar, ancorar o desconhecido em representações já formuladas.

Dessa maneira, a nova representação toma forma, o que era novidade tornase
elemento integrante e fincado no sistema de pensamento oficial. Em outras palavras,
as novas representações ganham espaço e, nessa perspectiva, passa a fazer parte
do sistema de interação do indivíduo com o mundo social, pois o que é comum ao
grupo possibilita a comunicação e a nova troca de influências. “É quase como que
ancorar um bote perdido em um dos boxes de nosso espaço social”

(p.61).

Ao segundo processo, Moscovici chama de objetivar, onde o indivíduo torna uma


abstração em algo quase concreto e físico. É pelo processo de objetivação que a
representação social é cristalizada. O individuo transforma as noções abstratas em
imagens e as imagens em elementos da realidade.

Objetivar é descobrir a qualidade icônica de uma ideia, ou ser impreciso; é reproduzir


um conceito em uma imagem. Comparar é já representar, encher o que está
naturalmente vazio, com substância. Temos apenas de comparar Deus com um pai e
o que era invisível, instantaneamente se torna visível em nossas mentes, como uma
pessoa a quem nós podemos responder como tal. (Moscovici, 2003, 71-72).

As representações sociais normalmente estão mais relacionadas com as pessoas


que atuam fora da comunidade científica, embora a comunidade acadêmica também
tenha as suas próprias. Segundo Moscovici, a representação social é o

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conhecimento de senso comum de um tema determinado, onde estão inseridos, de
forma semelhante, as ideologias, os preconceitos e as peculiaridades das práticas
cotidianas, sejam elas sociais ou profissionais.

Enfim, consideramos a teoria das representações sociais também compatível com o


objetivo deste artigo, na medida em que nos ajuda a entender como o senso comum
é construído pelos políticos com o objetivo de manipular as massas. Como afirma
Moscovici: “A materialização de uma abstração é uma das características mais
misteriosas do pensamento e da fala. Autoridades políticas e intelectuais, de toda
espécie, a exploram com a finalidade de subjugar as massas. Em outras palavras, tal
autoridade está fundamentada na arte de transformar uma representação na realidade
da representação” (Moscovici, 2003, p.70).

Análise das canções de ofício

O governo Vargas procurava, sem dúvida, reconhecer a importância do trabalhador,


tendo em vista nossa tradição escravocrata que via no trabalho uma atividade pouco
nobre. Ao fazer esse reconhecimento, fortalecia seu projeto político. Getúlio valeu-se
bem dessa característica preconceituosa de nossa cultura em relação ao trabalho e
consolidou sua imagem popular como o político que o dignificava. (D’araújo, 1997,
p.81).

As representações sociais do trabalho aparecem nas canções de ofício, sob a forma


do canto do trabalhador de diferentes profissões, passando pelo profissional da usina,
pelo remeiro, lavrador, pescador, boiadeiro, marceneiro, ferreiro, pela costureira,
rendeira, pelos trabalhos das crianças no jardim da infância, dos adolescentes e
jovens estudantes, do professor ao operário.

Na coleção Canto Orfeônico de Villa-Lobos entre ideologias do regime está a


exaltação às representações sociais do trabalho, incluindo tanto as profissões rurais

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como as urbanas. Entretanto, os ofícios mais ligados à plantação, à pecuária e outras
atividades carregam conteúdos regionais e folclóricos recolhidos pelas pesquisas
desenvolvidas pelo maestro.

Considerações a respeito da história da educação musical no Brasil Os primeiros


indícios sobre o ensino da música no Brasil coincidem ao período do descobrimento,
especialmente após a chegada dos jesuítas de Portugal. Nesse período, nota-se que
a música servia como ferramenta de transmissão da religião e da cultura europeia aos
índios brasileiros. Na ocasião a educação musical estava voltada ao modo europeu
de promover a educação e a prática musical em igrejas, conventos e colégios.

Com a chegada da família real ao Brasil, no ano de 1808, a música estendeuse para
os teatros ao invés de ficar restrita à Igreja, porém, quanto ao ensino de música, não
há indícios de grandes alterações metodológicas em relação ao período anterior, uma
vez que esses ensinamentos mantinham-se presos a métodos progressivos com
grande ênfase na memorização.

Apesar de presente desde o descobrimento foi somente em 1854 que se instituiu


oficialmente o ensino de música nas escolas públicas brasileiras, e apenas em 1890
é que se passou a exigir, legalmente, a formação específica para o professor de
música. Mesmo com as exigências legais na segunda metade do século XIX, o ensino
de música não se fortaleceu no início do século XX, porém durante a década de 1920,
surgiram algumas importantes contribuições a favor da expansão do ensino de música
no país, caso dos defensores da escola nova no Brasil: Anísio Teixeira e Fernando de
Azevedo.

Na década seguinte, soma-se a contribuição do maestro Heitor Villa-Lobos que


defendeu uma reformulação do ensino de música junto ao governo brasileiro. Surge,
assim, a disciplina de Canto orfeônico que passa a ser contemplada nas leis e
decretos federais para o Ensino Básico. Após as reformas de ensino de Francisco de
Campos, em 1931 e de Gustavo Capanema, em 1942, o governo federal procurou
expandir e tornar o ensino do Canto Orfeônico obrigatório na escola, não apenas no
ensino primário, como também no ginasial.

O início da ditadura militar ocorrido no ano de 1964 no Brasil trouxe a necessidade de


adequar a educação brasileira ao novo período político do país, com isso o ensino do
canto orfeônico muda de nome, passando para Educação Musical, em 1964 e, em

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1971, o ensino de música é extinto dos currículos escolares, sendo substituído pela
Educação Artística, que mantinha um caráter interdisciplinar, pois havia ênfase nas
quatro linguagens artísticas, sendo elas: a dança, a música, o teatro e as artes
plásticas.

Neste artigo propõe-se uma investigação acerca da expansão do ensino de música e


do canto orfeônico durante as décadas de 1920 a 1940, período em que a disciplina
se afirmou no cenário educacional brasileiro.

O canto orfeônico no Brasil Pode-se dizer que a inclusão da disciplina de canto


orfeônico nas escolas brasileiras se deve, principalmente, à colaboração de dois
personagens principais.

O primeiro é um grupo que ficou conhecido como os defensores da Escola Nova no


Brasil e, o segundo, foi com o maestro Heitor Villa-Lobos que lutou pela consolidação
do ensino do canto orfeônico nas escolas brasileiras.

No final da década de 1920 e início da década de 1930, ganhava força no Brasil, um


grupo de educadores que se intitulavam os defensores da escola nova, que pregavam
uma educação para todos, ou seja, que pudesse abranger as camadas mais carentes
da sociedade. A presença marcante de alguns destes intelectuais como Fernando de
Azevedo, Lourenço Filho e Anísio Teixeira no mercado editorial, nas gestões dos
sistemas de instrução pública e até mesmo na formulação de políticas educacionais,
fez com que as ideias destes educadores fossem propagadas por todo o país.

Tais intelectuais se preocupavam com o ensino de música, tanto para as escolas


primárias como para as secundárias: Segue-se, na então Capital do país, a Reforma
de Anísio Teixeira, em 1932, que já encontrou estruturada a de seu antecessor,
Fernando de Azevedo, a qual, em virtude da Revolução de 1930, não pôde ter o
desenvolvimento almejado.

Na Reforma de 1932, a Música e as demais Artes têm um lugar proeminente, como


um dos mais preciosos alicerces da Escola Nova. Além da programação para Escolas
Elementares, Jardins de Infância e Ginásios, é criada a Cadeira de Música e Canto
Orfeônico no Instituto de Educação e que foi ministrada pela Professora Ceição de
Barros Barreto […] (JANNIBELLI, 1972, p. 42).

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O projeto escolanovista defendia uma educação para as massas, especialmente para
a crescente população que habitava os grandes centros urbanos e servia de mão de
obra barata para o também crescente movimento industrial. A música tinha um
importante espaço neste olhar sobre a educação. Essa relação se dava exatamente
no sentido de despertar a cidadania.

A finalidade educativa da música, mais tarde iria ao encontro da política nacionalista


de Getúlio Vargas que, desde o início de seu governo, buscou uma centralização do
poder, lutando contra a política regionalista praticada durante a Primeira República. A
administração do país tinha que ser única e independente dos proprietários rurais que
apoiavam e eram apoiados pelo Governo Federal no período da política do café com
leite.

Sendo assim, a afirmação de uma nação era uma das bandeiras do governo getulista
e a música era uma poderosa ferramenta a favor de uma unificação artística, musical
e política. Na obra Novos caminhos e novos fins: a nova política da educação no Brasil.
Subsídios para uma história de quatro anos, com primeira edição no ano de 1937,
Fernando de Azevedo analisou a reforma educacional planejada e executada por ele,
no Rio de Janeiro, entre os anos de 1927 a 1930.

Em sua análise o autor defendia o ensino das artes apoiado no poder recreativo desta
área de conhecimento: “A educação nova quebraria o ritmo da unidade essencial da
vida, se, no seu propósito social, não abrangesse, para desenvolver o bem-estar do
indivíduo e da comunidade, as poderosas inspirações da arte, nos seus aspectos
educativos e recreativos”. (AZEVEDO, 1958, p.119).

Se por um lado, Fernando de Azevedo considerou importante um espaço para as


artes na nova proposta educacional, compreendendo as suas mais diversas
manifestações (desenhos manuais, música, teatro e dança), por outro, apresentou
uma visão utilitarista da arte na escola, em que esta não assumia papel essencial pelo
seu lado técnico e teórico, mas sim pela sua capacidade recreativa.

O ensino das artes era apresentado como um poderoso meio de educação, capaz de
promover um dos valores essenciais para o homem da década de 1920: a
sociabilização. Esta, de fato, era uma preocupação dos intelectuais da escola nova
que procuravam promover uma educação que preparasse o indivíduo para o

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convívio harmônico na sociedade.

Dessa forma, descartavam os ideais de uma educação tradicionalista que apenas


visava a instrução, ou seja, a simples transmissão de conhecimento. A respeito das
diferentes artes, Fernando de Azevedo complementa: No novo código de educação,
as representações dramáticas, a música e a dança não entraram apenas como
divertimento nos programas de festas e reuniões escolares, mas se integraram, como
num corpo de doutrina, no novo sistema com que a escola, aproveitando a arte na sua
função social, como um auxiliar maravilhoso na obra de educação, poderá contribuir
para aprofundar e consolidar as bases espirituais de nossa formação, abrindo a
sensibilidade da criança as atividades ideais, capazes de despertá-la e desenvolvê-la,
sem prejuízo, antes como proveito das práticas cotidianas. (AZEVEDO, 1958, p. 128-
129).

Desta forma, Fernando de Azevedo criticava a arte dentro da educação tradicional. A


arte, que até então se hospedava, retraída, nos programas artificiosos de festas
escolares, para deleite dos pais, no seu encantamento pelos filhos, incorporou-se ao
sistema de educação popular, como um dos principais fatores educativos e uma das
mais poderosas forças de ação, de equilíbrio e de renovação da coletividade […]
(AZEVEDO, 1958, p.118).

Para Azevedo, as atividades artísticas e musicais dentro da escola nova deveriam ser
abordadas utilizando uma educação popular inspirada em motivos da vida infantil, da
flora, da fauna e do folclore nacionais, o que também tornava necessários o
recolhimento e a pesquisa dos cantos e canções populares provenientes do folclore.

A utilização da arte folclórica na escola teria sua força maior na relação educativa com
o aluno, e menor para apresentações em reuniões e festividades escolares. O autor
apresenta um ponto importante para a análise da música na escola, uma vez que
ressaltava que durante a educação tradicional, os rituais e festividades escolares
serviam apenas como “vitrine” e eram realizados apenas para deleite dos pais. Mais
tarde, Villa-Lobos também se preocuparia com esta questão, uma vez que relatou que
o excesso de apresentações poderia ser prejudicial para o trabalho do professor em
sala de aula.

O sentido de “renovação da coletividade” aparece no texto de Fernando de Azevedo,


demonstrando novamente a afirmação de uma educação em busca da sociabilidade
entre os estudantes. A ênfase em atividades em conjunto tornava-se então um dos

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elementos centrais para uma educação que privilegiava o ensino para as massas.
Assim como os defensores do ensino de música do início do século XX, os intelectuais
da escola nova também se inspiravam nos modelos de escolarização de países
europeus.

Percebe-se, por exemplo, que algumas das ideias de Fernando de Azevedo assumem
um paralelo com a obra de um pedagogo francês chamado Chasteau em Lições de
pedagogia (livro para o uso dos alunos da escola normal), publicado originalmente em
1899 na França. Segundo esse manual: A música eleva o espírito, estimula a
sensibilidade, sobre a qual se pode edificar todo o plano educativo. Representando o
lado puramente estético da educação popular, até sobre este aspecto merece ser
muito apreciada. – Depois, sob o ponto de vista moral, a música apresenta, para a
juventude, uma poderosa couraça contra os perigos doutros prazeres, e isto pelo
sentimento puro e elevado que ela cultiva.

Finalmente sob o ponto de vista disciplinar, o canto que acompanha as marchas, os


exercícios, as saídas e as entradas dos alunos, impede a desordem e o tumulto, ao
mesmo tempo que ministra um alimento salutar à atividade nativa dos alunos,
distraindo-os, alegrando-os, facilitando-lhes poderosamente o seu trabalho.

É por isso que até o ensino de ginástica costuma ser acompanhado dum canto bem
ritmada (CHASTEAU, 1899, p. 370). Publicada e traduzida no Brasil, para o uso nas
escolas normais ainda em 1899, a obra de Chasteau, de certa forma, expressava uma
das necessidades fundamentais para a formação de uma república.

Ciente disso, Fernando de Azevedo nunca negou a influência direta das obras dos
europeus. Neste sentido, algumas comparações entre Chasteau e Azevedo se tornam
inevitáveis, como por exemplo, a valorização do lado estético e moral. É certo que
existem algumas diferenças, já que em nenhum momento Azevedo apresenta
diretamente a música como forma de conter a desordem ou contra os “perigos doutros
prazeres”, tais como o álcool, o jogo ou a libertinagem.

No entanto, a música assume abertamente uma função de controle tanto no discurso


de Chasteau quanto no discurso de Azevedo, pois poderia oferecer essa elevação
espiritual por meio de um ensino recreativo, capaz de distrair e alegrar os alunos,
contendo, dessa forma, sua energia. A semelhança entre os discursos dos europeus
e dos brasileiros como Fernando de Azevedo foi muito comum nesse período de busca

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pela renovação educacional. Outro personagem importante na defesa do ensino de
música no Brasil foi Heitor Villa-Lobos.

Apesar do sucesso como músico, instrumentista e compositor, o maestro manteve


um forte interesse pela educação, sendo decisivo no projeto de implantação e
divulgação do canto orfeônico nas escolas brasileiras. Durante a década de 1920,
antes da sua segunda viagem à Europa, o maestro Villa-Lobos já possuía a ideia de
criar coros populares nacionais, como demonstra um cronista do jornal carioca Folha
da Noite, de 3 de novembro de 1925: Espírito de fina observação, Villa-Lobos notou
que o costume admirável de cantar em coros ainda não penetrou nos povos latinos,
sendo um hábito antigo na raça teutônica.

Na Alemanha, cada indivíduo tem a sua voz determinada, com seu repertório de
canções nacionais e, na primeira reunião em que se encontra, sabe executar a sua
parte num concerto vocal.

Na França já se começa a educar o povo com as músicas a vozes, sendo um exemplo


incipiente o hino dos estudantes em greves, num cortejo qualquer pelas ruas de Paris.
É necessário que, também aqui, se intente o mesmo, começando pelas escolas, único
ponto de seguros efeitos nas vindouras gerações de moços. Em lugar de encher a
cabeça das crianças com os famosos hinos que nas escolas se cantam, de letra e de
música estúrdias, sem a menor compreensão por parte, muitas vezes, até dos
professores, é preciso que se ensine os pequenos a cantar as nossas canções
apanhadas entre o povo, conseguindo que eles aprendam, cada qual a sua voz
determinada, de modo que, no primeiro momento em que se encontre um grupo
reunido, se possa, muito naturalmente, passar umas horas de agradável música.

Mas a criança não poderá reter uma composição de várias vozes… Pois que não seja
de muitas vozes, mas de duas apenas. E os nossos cantos, já estão fixados? Temos
já canções nossas? Canções, temo-las e muitas; falta-nos somente quem as ame e
as queira cantar. Da sistematização delas se encarregou o próprio Villa-Lobos e, muito
breve, ouvi-las-emos nos seus adoráveis concertos. Dos coros passou a falar da
nossa nomenclatura musical, dizendo que vai tudo muito errado, jamais sendo tango
ou tanguinho o que hoje com tais nomes se publica (FOLHA DA NOITE, citado por
KIEFER, 1986, p. 142-143).

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Desde a década de 1920, a discussão que colocava o ensino musical distante da
mera execução de hinários já estava presente. O ensino de elementos do folclore, na
busca de resgatar uma identidade nacional, mostrava-se como preocupação principal.
Neste momento, nota-se a “invenção” de uma tradição nacionalista para o Brasil,
resultado de uma República emergente em busca de uma identidade cultural. O
conceito de Hobsbawn sobre a “tradição inventada” pode contribuir no entendimento
desta questão:

Por “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas


por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica,
visam inculcar certos valores e normas de comportamento através de repetição, o que
implica, automaticamente; uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre
que possível, trata-se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado
(HOBSBAWN, 1997, p. 9, grifo do autor).

A disseminação da formação de uma cultura nacional se deu através das artes, da


educação, da imprensa e do Governo, atendendo ao critério da “repetição”,

exposto por Hobsbawn. Essa relação com o nacionalismo não era uma exclusividade
da música, uma vez que artistas das mais diversas áreas se empenhavam em divulgar
a arte nativa brasileira, a cultura indígena e folclórica: Tarsila do Amaral, Anita Malfati
e Di Cavalcanti na pintura; Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Manuel Bandeira
na literatura, e outros, que também estiveram empenhados ao que chamavam de
resgate da cultura brasileira.

Após a Semana de Arte Moderna, o maestro Villa-Lobos manteve certa receptividade


do público e da crítica paulistana. Este impacto rendeu-lhe uma bolsa para estudar na
França, onde “[…] os viajantes e turistas brasileiros, desejosos de tomar o tradicional
‘banho de civilização’ em Paris, descobriram o quanto era ‘importante’ e ‘genial’ a
cultura da população que os envergonhava pela miséria, ignorância e matiz da pele e
que tanto seduzia os franceses […]” (SVECENKO, 2000, p. 278- 279, grifos do autor).

Quando voltou ao Brasil, no ano de 1930, o consagrado compositor deparouse com


uma realidade musical bem diferente daquela que havia vivenciado na Europa. Se,
por um lado, notava um público numeroso para a música, por outro, percebia que este
público se encontrava aprisionado em “[…] esquemas rígidos e manipulado ao sabor
das conveniências dos empresários […]” (NÓBREGA, 1970, p.11).

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Isso levaria Villa-Lobos a apresentar à Secretaria de Educação do Estado de São
Paulo, por escrito, um plano de educação musical semelhante ao apresentado e
ignorado, anteriormente, a Júlio Prestes, à época presidente do estado de São Paulo
e candidato à presidência da República.

Após a revolução de outubro de 1930, ano em que Getúlio Vargas assumiu a


presidência da República, Villa-Lobos manteve ativas suas tentativas de reconstrução
da educação musical brasileira, utilizando em seu discurso um forte apelo nacionalista,
associado à defesa do folclore e da música brasileira de raiz.

Em 12 de janeiro de 1932, Villa-Lobos entregava ao presidente Getúlio Vargas um


memorial sobre o ensino de música e artes do Brasil. Neste documento, Heitor Villa-
Lobos problematizava a questão artística brasileira no âmbito educacional,
comparando-a novamente com as experiências realizadas em outros países. Além
disso, o maestro apresentava a música como a melhor e a mais eficaz propaganda do
Brasil para o exterior.

Para Villa-Lobos, a música e as demais artes apareciam como elementos que


deveriam ser valorizados por um governo preocupado com a formação de seus
cidadãos. Ao justificar suas intenções no trecho inicial da carta, Villa-Lobos acentuava
o discurso nacionalista: No intuito de prestar serviços ativos a seu país, como um
entusiasta patriota que tem a devida obrigação de por à disposição das autoridades
administrativas todas as suas funções especializadas, préstimos, profissão, fé e
atividade, comprovadas pelas suas demonstrações públicas de capacidade, quer em
todo o Brasil, quer no estrangeiro, vem o signatário, por este intermédio, mostrar a
Vossa Excelência o quadro horrível em que se encontra o meio artístico brasileiro, sob
o ponto de vista da finalidade educativa que deveria ser e ter para os nossos patrícios,
não obstante sermos um povo possuidor, incontestavelmente, dos melhores dons da
suprema arte. (VILLA-LOBOS, 1932).

O problema levantado por Villa-Lobos e a forma apresentada para a sua solução


(exaltação ao nacionalismo) pareciam ser as melhores justificativas para a realização
do seu projeto. Elevar a arte a um símbolo de potencial da Nação se tornava o principal
argumento utilizado pelo maestro para conseguir atingir seus objetivos. Villa-Lobos
sintetizava e defendia aquilo que já era realidade na Europa: o vínculo do ensino de
música com uma função utilitarista para a sociedade.

17
Na reforma de ensino de 1932, de autoria de Anísio Teixeira, na capital do país, a
música e as demais artes tinham lugar destacado dentro dos currículos escolares. Na
Universidade do Distrito Federal (UDF), no ano de 1935, havia o curso de Formação
de Professores Secundários de Música e Canto Orfeônico, com várias cadeiras
culturais e pedagógicas.

Em 1933, foi criada a Superintendência de Educação Musical e Artística,


transformada em Serviço de Educação Musical e Artística (SEMA), no ano de 1939.
Este também foi o ano em que Villa-Lobos apresentou sua proposta de ensino musical
para os demais estados brasileiros: Aos interventores e diretores de instrução de todos
os estados do Brasil foi enviado em 1933 um apelo no sentido de que se
interessassem pela propagação do ensino da musica nas escolas e pela organização
de orfeões escolares, apresentando-se ao mesmo tempo uma exposição das
necessidades e vantagens que poderiam advir para a unidade nacional, da prática
coletiva do canto orfeônico, calcada numa orientação didática uniforme.

Foi esse apelo acolhido com interesse e simpatia em muitos Estados que desde então
se preocuparam em torna-lo uma realidade. Assim, resolveu-se aceitar a matrícula de
professores estaduais nos cursos especializados, para pequenos estágios onde êles
pudessem adquirir os conhecimentos básicos imprescindíveis. (VILLA-LOBOS, 1946,
p. 528).

Este projeto somente foi possível com a Superintendência que reunia cerca de 200
professores que ministravam o ensino da Música e Canto Orfeônico nas escolas de
diversos níveis. Entre as realizações de Villa-Lobos dentro do SEMA destaca-se a
atuação em defesa do canto orfeônico, por meio das concentrações orfeônicas
promovidas durante o governo de Getúlio Vargas.

Após cinco meses na instituição, foi realizada uma demonstração pública com uma
massa coral de 18.000 vozes, constituídas por alunos de escolas primárias, das
escolas técnico-secundárias, do Instituto de Educação e do Orfeão de Professores.
Muitas dessas concentrações orfeônicas promovidas por Villa Lobos traziam no
repertório canções com acentuado teor nacionalista. Isso fez com que críticas
recaíssem a este ensino e ao governo ditatorial de Getúlio Vargas, no período do
Estado Novo, uma vez que eram feitas comparações a práticas semelhantes aplicadas
na Alemanha nazista de Hitler e na Itália fascista de Mussolini.

18
Em 1943, o maestro Villa-Lobos deixou a superintendência do Distrito Federal e
fundou o Conservatório Nacional do Canto Orfeônico, de âmbito federal, com a
finalidade de formar professores e de orientar o ensino musical em todo o país. Dessa
forma, o maestro se preocuparia em oferecer as diretrizes para o ensino da música e
do canto orfeônico nas escolas brasileiras.

Villa-Lobos manteve uma posição de destaque no ensino de canto orfeônico do país,


sendo citado em diversos livros didáticos da disciplina, como por exemplo, na obra:
Noções de música e canto orfeônico, voltado para a 1ª série do curso ginasial, de
Maria Elisa Leite Freitas, no ano de 1941, que apresenta Villa-Lobos como […] uma
das maiores glórias da música nacional, aquele que, segundo Alberto Nepomuceno,
achou a chave da verdadeira música brasileira, enquanto que ele achara apenas a
porta, devemos, portanto a organização definitiva do ORFEÃO, na capital do Brasil,
dum orfeão único que deverá, mais tarde, unir num só coro todas as vozes brasileiras
para, sob uma só e mesma orientação, aprender a cantar as grandezas da Pátria e
saber cantando defende-la e glorifica-la pelo trabalho honesto e inteligente, cumprindo
assim, o compromisso ditado por Roquette Pinto e assinado por todos os orfeonistas:
PROMETO DE CORAÇÃO SERVIR À ARTE, PARA QUE O BRASIL POSSA, NO
FUTURO, TRABALHAR CANTANDO (FREITAS, 1941, p.18, grifos do autor).

A ideia de trabalhar cantando relacionava-se a outra grande preocupação do governo


getulista: o trabalho. A música serviria como uma forma de compensação ao trabalho.
Villa-Lobos também pretendia atingir os operários, que eram frequentemente
convidados a participar das concentrações orfeônicas promovidas pelo maestro
durante as décadas de 1930 e 1940.

O apoio para as classes operárias urbanas, sempre foi um dos focos da política
getulista, realidade que não acontecia durante a política anterior ao golpe dado pelo
grupo de Vargas, em 1930.

19
Considerações sobre o ensino de música

O ensino de música sempre esteve presente na história da educação brasileira,


porém em alguns momentos com maior destaque do que em outros. No período em
que o canto orfeônico foi defendido pelos escolanovistas Anísio Teixeira e Fernando
de Azevedo e pelo maestro Heitor Villa-Lobos, o ensino de música prosperou na
educação brasileira, contudo não o suficiente para se propagar até nosso tempo,
sendo substituída pela Educação Artística, na década de 1970.

Nos dias atuais existe uma grande preocupação com o ensino de música nas escolas,
principalmente após a publicação da Lei nº 11.769, de 18 de agosto de 2008, que
tornou novamente obrigatória a presença da música dentro das escolas básicas
brasileiras.

Contudo, nota-se que essas instituições ainda não estão preparadas integralmente
para a aplicação de tal legislação, impedidas pela carência de materiais, espaços
adequados para a prática musical e, principalmente, de professores qualificados para
atuar com música na educação básica.

A política café com leite recebeu esse nome em razão da estreita aliança política entre
São Paulo e Minas Gerais, respectivamente, grandes produtores de café e leite. Esses
estados detinham os dois maiores colégios eleitorais do país e elegeram entre 1894 e
1930, nove dos doze presidentes que governaram o Brasil.

Os padrões morais de conduta e pensamento, que seriam principalmente difundidos


por meio das letras das canções orfeônicas, uma vez associados aos ideais de civismo
e patriotismo, estabeleceram a ideologia nacionalista como ponto de referência.

Essa ideologia trazia em si a ideia de um Estado forte, unificado, como instituição


suprema que garantiria a segurança e o bem estar dos cidadãos e que guiaria a nação
coesa rumo a um ideal coletivo de progresso e de valorização do elemento nacional.

Sendo assim, os seguintes elementos presentes na formação discursiva villalobiana


entram em consonância com os ideais nacionalistas em voga então: a valorização do
elemento nacional, a começar pelo folclore; valorização do ideal de coletividade e de
integração do indivíduo na pátria e do ideal de progresso e de elevação do país à
condição de nação civilizada por meio do trabalho; valorização da idéia de um Brasil

20
Novo pautado no progresso, no trabalho, na unidade nacional e nos interesses
comuns da coletividade.

Apenas em um elemento, o discurso de Villa-Lobos parece marcar uma diferença


entre as suas ideias e à formação ideológica, mais especificamente em relação
àquelas elaboradas por Mário de Andrade.

Ao contrário do musicólogo paulista, que considerava a raça e a música brasileira


como resultante da interação das três raças – ameríndio, negro e europeu (1962, p.
25), Villa-Lobos destacava apenas o elemento ameríndio (ou aborígene) como fator
originário de ambas, visto ser aquele o primeiro a ocupar a terra. Contudo, nos demais
aspectos, o discurso de Villa-Lobos pode ser lido como parte integrante do
pensamento vigente na época, revelando como seus planos educacionais musicais
interagiram com a ideologia.

O próximo passo da análise foi verificar se havia coerência entre esses elementos e
o discurso observado nas canções. É importante destacar que, embora a maioria das
canções não seja de autoria literal e/ou musical de Villa-Lobos, o comprometimento
discursivo / ideológico das canções foi atribuído a esse compositor pelo fato de que a
escolha das canções para a composição da obra didática foi de sua responsabilidade,
além de que ele era o nome mais visível como idealizador do movimento.

Em relação ao aspecto musical, verificou-se também o estabelecimento de certas


regras que deveriam nortear a escolha do repertório a ser ensinado nas escolas, ideias
que visariam, além do objetivo de formação moral e cívica por meio das letras das
canções, também à formação estética.

Particularmente no texto Educação Musical (1946, p. 528-530), foram encontradas


algumas ideias que podem constituir uma “formação discursiva musical” villalobiana
que pôde servir de base para a comparação com as características musicais
encontradas nas canções.

Primeiramente, o compositor destacou, de maneira geral, que a música deveria ser


ensinada da mesma forma que a língua: aprender-se-ia primeiro a ouvir e a falar
(cantar), antes de serem introduzidas as regras gramaticais.

21
Destaca-se aqui, portanto, um ensino de cunho prático. Assim, a música vista
como portadora de som e sentimento, deveria ser sentida pelas crianças antes de
serem introduzidas as regras de condução harmônica. Como metodologia de ensino,

Villa-Lobos destacava: “[...] eduque-se o ouvido a passar de um tom a outro, a esperar


que certos sons sigam-se a outros, a combinar sons entre si.

Permita-se aprender a melodia, a sentir a harmonia não em função de regras, mas


pelo som no seu próprio ouvido” (1946, p. 496). Tal postura poderia ser também vista
como uma “civilização do ouvido”, ou à inserção de uma “audição de mundo” com
base nos padrões tonais. Naquele mesmo texto notou-se, também, que VillaLobos
parecia posicionar-se, na educação, contra experimentalismos da estética musical, o
que ele chamou de “música-papel acadêmica”, de caráter “puramente intelectual”
(VILLA-LOBOS, 1946, p. 498), expressa “nesse ‘modernismo’ de mau gosto e feios
sons sem sentimento” (ib, p. 498).

O compositor estaria, provavelmente, referindo-se às vanguardas musicais postas em


prática no Brasil a partir de 1939, com o Movimento Música Viva40, liderado pelo
compositor alemão Hans Joachim Koellreuter (1915-2005). Essa hipótese se
apresenta pelo fato de que Villa-Lobos fez essa crítica estética somente nesse texto,
que data do ano de 1946 e que foi o último analisado para esta pesquisa, seguindo
uma ordem cronológica.

E, também de acordo com as datas dos demais textos (a maioria anterior à década
de 1940)41 e com a maneira com que Villa-Lobos concebeu seus escritos a respeito
do canto orfeônico – por meio do acréscimo progressivo de ideias a uma matriz inicial
-, esses elementos apontam para uma crítica ao movimento liderado por Koellreutter.

Embora Villa-Lobos compositor tenha explorado em várias de suas obras texturas


instrumentais e harmônicas inovadoras - algumas delas associadas ao
impressionismo francês, expandindo e chegando ao limite das fronteiras tonais, de
acordo com o musicólogo José Maria Neves (1977, p. 12), na sua posição de educador
Villa-Lobos parecia ser mais cauteloso. Sua 40 Esse grupo objetivou pesquisar e
experimentar novas técnicas e linguagens, como o atonalismo e o dodecafonismo
praticados pela Escola Vienense, e criticou a utilização meramente temática do
folclore na composição erudita.

22
Koellreutter exerceu suas atividades composicionais e didáticas no Rio de
Janeiro, São Paulo e Bahia. Há um texto analisado para esta pesquisa que não é
datado - A música nacionalista no governo Getúlio Vargas. Contudo, pelo seu
conteúdo e relação com os demais textos, na observação da maneira como VillaLobos
os escreveu, acredita-se que seja do início da década de 1940.

Nessa época as atividades do Movimento Música Viva ainda eram incipientes (por
isso talvez Villa-Lobos ainda não tivesse se referido a esse movimento nesse texto) e,
ao mesmo tempo, já havia sido criado (em 1939) o Departamento de Imprensa e
Propaganda (DIP), que editou o texto em questão. 113 crítica aos movimentos de
vanguarda, que introduziam a música atonal, e sua auto-atribuição da missão de levar
a música às massas populares, reforçam a idéia de civilização estética musical por
meio dos padrões tonais, código familiar à sociedade – por ser o sistema de audição
vigente – e, por esse motivo, adequado ao objetivo de civilização dos costumes por
meio do conteúdo presente nos textos das canções.

A civilização estética, por meio desse código conhecido e arraigado nos padrões de
escuta da população, serviria como meio para o objetivo de civilização dos costumes.
Além disso, ao valorizar o elemento nacional, e principalmente a música folclórica
como o elemento propiciador da formação de uma consciência musical brasileira,
Villa-Lobos trouxe à luz a questão de que esses elementos estariam carregados de
“ressonâncias ancestrais” (VILLA LOBOS, 1946, p. 529).

De acordo com a idealização da infância brasileira pensada por Villa Lobos, esses
elementos constituiriam a música que faria parte do universo da criança. Dessa forma,
o canto orfeônico deveria então se pautar, num primeiro momento, nesses elementos
acessíveis, de forma que repercutissem expressivamente no imaginário infantil, o que
garantiria uma fixação duradoura para posteriormente passar para a utilização de
canções patrióticas, que os reforçaria: E, mais tarde, são os hinos, as marchas e as
canções patrióticas aprendidas na vida escolar, que vão despertar no seu espírito a
noção de Pátria e de nacionalidade. Ou então, as recordações pitorescas dos cânticos
e baterias obstinadas, executadas, diariamente em vários meses de cada ano, -
hábitos e costumes carnavalescos de há séculos, no Brasil, desde os cordões,
ranchos, pastorinhas, até as atuais “escolas de samba” (1946, p. 529).
Além disso, Villa-Lobos também mencionou que a música deveria interessar a
criança primeiramente pelo ritmo e, em seguida, pelo “caráter de simplicidade e pelo

23
aspecto socializador da melodia” (ib, p. 530). Pode-se entender que a questão rítmica
ligar-se-ia a padrões rítmicos dinâmicos presentes na música folclórica brasileira, à
qual a criança identificar-se-ia intuitivamente, e que estavam nela latentes certas
ressonâncias ancestrais que deveriam ser despertadas. Essa tarefa caberia, então,
ao canto orfeônico ao trabalhar com o folclore, e, ao enfatizar o caráter de simplicidade
e o aspecto socializador da melodia, Villa-Lobos parecia valorizar melodias de fácil
memorização, aptas à prática coletiva e também intuitivamente identificáveis pelas
crianças.

Enfim, tais características descritas acima podem delimitar uma espécie de formação
discursiva musical, que se resume nos seguintes tópicos:

• Ensino pautado no folclore - primeira etapa;

• Valorização de ritmos dinâmicos ligados aos padrões encontrados no folclore;

• Valorização da simplicidade melódica para fácil memorização e reconhecimento.

Sendo assim, percebemos nessa formação discursiva musical o objetivo de civilizar


por meio de uma certa estética musical, que valorizava o elemento nacional e os
padrões tonais. Uma vez levantadas as formações discursivas verbal e musical de
Villa-Lobos, o próximo passo da análise voltou-se às canções, na observação dos
seus textos e música para verificar possíveis coerências ou diferenciações em relação
às formações discursivas villalobianas e à formação ideológica de então, assim como
a unidade texto / música. Sendo assim, as canções foram classificadas e
estabelecidas em categorias temáticas recorrentes, com suas respectivas
subcategorias, que se caracterizam por traços comuns no que diz respeito às
manifestações linguísticas denunciadoras de uma certa formação ideológica.

É importante destacar que essas são categorias abstratas que se referem aos temas
mais explícitos e mais facilmente perceptíveis à primeira vista, e que não podem ser
consideradas divisões isoladas, mas sim categorias que se intercambiam. Esse
referido intercâmbio pode ser observado no fato de que algumas canções encaixam-
se em mais de uma categoria, uma vez que seus textos abordam simultaneamente
dois ou mais temas de acordo com a classificação estabelecida na

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tabela.

As cinco categorias estabelecidas, com suas respectivas subcategorias, são as


seguintes: Categoria I - Temática folclórica: envolve canções que de alguma forma
refletem tradições folclóricas, estando dividida nas seguintes subcategorias:

• Folclóricas ambientadas: abordam canções recolhidas dos povos ameríndio,


negro africano e europeu (português), com predomínio de canções dos povos negro
e ameríndio. Do folclore português conta-se com uma canção (nº 40, segundo
volume). As canções recolhidas foram, geralmente, ambientadas pelo próprio
VillaLobos, de acordo com as exigências vocais e instrumentais do nível dos alunos
aos quais as canções seriam aplicadas;

• Folclóricas adaptadas com outros textos: são canções que utilizam melodias
folclóricas populares (como a melodia de “Marcha, soldado!” – nº 2, segundo volume)
adaptadas com novos textos, geralmente de autoria de escritores brasileiros;

• Inspiração folclórica: consistem em canções que são compostas, em sua


maioria por Villa-Lobos, tomando como base fragmentos rítmicos e/ou melódicos,
lendas e personagens do folclore, sobretudo dos povos ameríndio e negro.

O termo ambientado é utilizado na adaptação de melodias folclóricas a determinadas


exigências instrumentais e vocais, ao passo que para as melodias previamente
compostas e identificadas por sua autoria é utilizado o termo arranjado.

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VillaLobos. Rio de Janeiro, v.7, p. 85-87, 197.

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