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Taguatinga - DF
2019
UM RELATO DE EXPERIÊNCIA SOBRE UMA ABORDAGEM
BRASILEIRA DE MUSICALIZAÇÃO INFANTIL
A Flauta Doce começa a se estabelecer no Brasil no século XVI, trazida pelos Jesuítas
nos primeiros anos da colonização por estar em voga em toda Europa, utilizando-se tanto na
música sacra, quanto na profana. Neste mesmo século, após sua chegada, a Flauta Doce teve,
além do papel artístico, papel pedagógico também, por ter sido utilizada em grande parte, por
crianças indígenas, confirmando ser uma forte ferramenta como instrumento musicalizador.
Após o período barroco: Clássico e romântico, a flauta transversal toma lugar da flauta doce por
compositores e intérpretes, por se adequar melhor no que diz respeito a dinâmica, tessitura e as
novas concepções de sonoridade da época. Até mesmo a fabricação do instrumento ficou escassa
e o raríssimo repertório do século XIX foi composto para instrumentos similares (flageloet,
csakán1).
Neste período (século XIX), no Brasil, quase não se tem registros do instrumento. A não
ser pela flauta baixo encontrada no Rio de Janeiro, no acervo do Museu Delgado de Carvalho. O
instrumento foi doado em 1896 pelo compositor Leopoldo Miguez (1850-1902). A existência
deste instrumento, é uma das evidências que ainda havia lauta doce no Brasil antes da chegada
dos imigrantes europeus no Brasil, no século XX.
No Brasil, o reaparecimento da flauta doce se dá no período pós-guerra, com a chegada
dos imigrantes europeus que vieram com o intuito de buscar refúgio. Como no século XX,
especialmente após 1920, a flauta doce estava voltando a ser utilizada aos poucos no continente
Europeu, primeiramente por intérpretes interessados no repertório antigo e posteriormente por
educadores que constataram a eficiência do instrumento na musicalização infantil, os
compositores da época, voltaram a se dedicar ao instrumento, produzindo novas obras e
estendendo sua técnica. Com o aumento de composições para o instrumento e também do
número de grandes intérpretes, a flauta doce foi se tornando um poderoso instrumento de
pesquisa e técnicas alternativas de composição.
Embora o reaparecimento da flauta doce no Brasil tenha se dado no início do século XX,
no que diz respeito a uma abordagem brasileira, especialmente para iniciação musical com
1
O flageloet é um instrumento de origem francesa similar à uma flauta doce de dimensões pequenas,
normalmente com seis furos, sendo quatro de frente e dois atrás para os polegares. O casakán é um instrumento
de origem húngara, utilizado principalmente em Viena no início do século XIX; pode ter formato similar ao de uma
flauta doce soprano chaveada e ter tubo estreito e alongado.
crianças, é quase inexistente, um repertório para flauta doce que enfatize ritmos brasileiros,
limitando o repertório a adaptações de canções vocais para o instrumento.
O presente relato de experiência se deu em uma creche na cidade de Samambaia Norte,
localizada no Distrito Federal. Trata-se de um projeto social que tem o intuito de não perder a
ligação e o compromisso com as crianças depois que migram da creche para o ensino
fundamental. A instituição oferece cursos de música e capoeira nos horários em que as crianças
não estão na escola. Este relato se deu quando ouve uma oportunidade de substituição de uma
professora de flauta doce. Haviam turmas já iniciadas executando repertorio que abordava
basicamente canções de roda e alguns temas internacionais. Entre os alunos, haviam alguns já
iniciados, repertório razoável, e outros também que não tocavam absolutamente nada. Ao
dialogar com os alunos sobre o que conheciam além do repertório disponível para flauta doce na
creche, foi observado que as crianças até então, tiveram uma experiência musical muito rasa, no
que diz respeito a estilos, principalmente do seu próprio país. A realidade cultural daquelas
crianças e suas famílias se limitava basicamente aos estilos "sertanejo universitário e hip hop”.
A primeira ação realizada foi de dividir as turmas por faixa etária, para que pudesse ser
realizada uma diferenciação de metodologia utilizada. Visto que alguns ainda não eram
alfabetizados.
Devido a constatação de grande escassez ou falta total de um método para flauta que
abordasse o repertório popular brasileiro para que se pudesse aumentar o leque cultural que até
então era limitado a forte aculturação estrangeira e ao midiático nacional. A segunda ação
realizada foi confecção de peças musicais em estilos que caminham por estilos como: xote,
baião, ciranda, arrasta-pé, bossa-nova, choro, samba e etc. O repertório foi produzido em ordem
progressiva, afim de alcançar uma homogeneidade técnica entre os alunos e também de trabalhar
ritmo, solfejo e notação musical. Foi frequentemente apresentado aos alunos, áudios, vídeos,
jogos pedagógicos e atividades diversas de apreciação musical, para que fossem se
familiarizando com os estilos, tendo em vista a grande riqueza cultural de nosso país.
2. DESENVOLVIMENTO
Foi observado que os alunos, antes de começarem a tocar o repertório popular brasileiro,
e de fazerem atividades de apreciação musical, tocavam de forma mecânica, sem entendimento
ou sensibilidade. Mesmo se tratando de ritmos e melodias simples, a realização das mesmas, se
dava de forma bastante artificial. A medida em que foram conhecendo os estilos através de
vídeos e atividades de escuta, progrediram bastante na performance do instrumento. Para
Dalcroze, antes do aluno ter conhecimento de nota ou altura, o aluno deve ter conhecimento de
vivência da rítmica. Para Villa-Lobos, o ritmo é o mais importante e o primeiro ensinamento que
a criança deve adquirir. Ao comparar o ensino de música à aquisição de linguagem, Villa-Lobos
chama a atenção para o fato de que a criança, muito antes de dominar as regras gramaticais,
utiliza palavras com fluência e formula frases já com entonação. A criança percebe a linguagem
musical como uma coisa viva, que vai além de um agrupamento de regras. A experiência aqui
relatada não se firma exclusivamente no método, porém, trata-se de um levantamento e
apresentação da cultura popular, tendo como finalidade, a preservação das tradições e da
identidade brasileira.
O relato aqui presente, observa a importância da realização expressiva dos ritmos
brasileiros e sua vivência através da performance na flauta doce e também das atividades de
ritmo, solfejo e apreciação musical.
Como objetivos mais específicos, ressalta-se o desenvolvimento da concentração,
coordenação do movimento e do pensamento, além do desenvolvimento estético e da
criatividade.
A metodologia utilizada é composta de uma coleção de peças progressivas no que se
refere a técnica de flauta doce, abordando uma variedade de ritmos brasileiros. O método tem o
intuito de formar ouvintes críticos, expondo a diversidade cultural brasileira. A coletânea é
formada por peças progressivas da autoria do professor, mas também por canções populares
brasileira de compositores populares. As peças são todas escritas em partitura com as sílabas das
notas escritas embaixo das figuras. Inicialmente, os alunos trabalham o solfejo de cada canção
lendo as sílabas e associando ritmo as figuras musicais pelas cores e características. A nota si por
exemplo, lê-se em semínima: si. Porém a mesma nota em mínima lê-se: si-i. Portanto, o
professor ensina os alunos a cantar a melodia pronunciando o nome da nota, executando o ritmo
e acompanhando ao violão. Depois de memorizarem a melodia, executamos na flauta. As
primeiras peças são compostas exclusivamente para a mão esquerda e possuem apenas as notas
si, lá e sol. Gradativamente, são acrescentadas as notas dó e ré (mão esquerda). Posteriormente a
mão direita é inserida, porém trabalhando inicialmente, exclusivamente com notas não
acidentadas.
O modelo de flauta doce utilizada é a germânica, por ter dedilhado mais simplificado,
por se tratar de um método que trabalha inicialmente com crianças de cinco anos de idade.
Embora o método seja composto de melodias simples que vão se tornando cada vez mais
complexas gradativamente, é sortido de ritmos como: xote, baião, ciranda, choro, bossa nova,
arrasta pé, chamammé, capoeira, choro, etc. Foram realizadas práticas de improvisação
orientadas e também acompanhadas pelo professor ao violão.
Swanwick (2008) reforça que não devemos seguir apenas um método, de forma
sistemática, passo a passo, quando trata-se de uma atividade complexa como a performance
musical.
Utilizar diversos jogos musicais pedagógicos com intuito de trabalhar pulso, métrica
musical, altura, intensidade, dinâmica, valores (som e silêncio) Ex.: Atenção-
concentração com diversos temas, porém, com o intuito principal de trabalhar ritmo
(colcheia e semínima) através das palmas; Vivo-morto, com intuito de trabalhar altura
(grave e agudo) e etc.
Cantar canções infantis com diversos ritmos, acompanhadas pelo professor (violão)
Recital de encerramento
Fonte: MELLO, 2019
No período inicial, o repertório foi passado aos alunos passo a passo e de forma cantada.
Os alunos memorizaram as notas solfejadas pelo professor tendo em vista que os alunos desta
faixa etária (cinco anos) ainda estão no início da alfabetização, o que causa complicação na
leitura das sílabas que representam as notas trabalhadas inicialmente: si, lá e sol.
Para os alunos do segundo período, na faixa etária entre oito e nove anos, além de
aprenderem através da memorização do solfejo, receberam uma pasta com as partituras das
músicas, com as sílabas embaixo de cada nota da partitura. Os alunos liam as sílabas e o
professor explicava os valores rítmicos associando as diferentes cores e formas das figuras. O
programa para o segundo período foi:
Apresentação do Instrumento (corpo e breve história)
Exibição de vídeos de curta metragem sobre instrumentos dos naipe das madeiras e
metais com comentários e explicações do professor, inclusive sobre os conceitos de
orquestra sinfônica e de câmara.
Recital de Encerramento
Fonte: MELLO, 2019.
Os alunos do terceiro período, de faixa etária entre dez e onze anos, tiveram uma
abordagem de ensino muito parecida com a dos alunos do segundo período, diferenciando
apenas na dificuldade técnica e na identificação da altura das notas na pauta, além da consciência
das fórmulas de compasso. O programa trabalhado foi:
Estudo da Escala diatônica (Dó grave até o Fá agudo)
Identificação das notas na flauta (linhas e espaços). Altura, ritmo, solfejo e execução da
partitura.
Recital de Encerramento.
Fonte: MELLO, 2019.
Este processo resultou na elaboração de um material didático, destinado a dar suporte as
aulas, com o intuito de trabalhar a iniciação musical, abrangendo a técnica instrumental e
notação musical, porém, enfatizando a estética musical brasileira. O material foi trabalhado em
três turmas de diferentes níveis. Além da relevância do material como ferramenta de apoio ao
docente, poderá ser útil também, para o desenvolvimento de novas propostas pedagógicas que
agregam o ensino da educação musical.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este presente relato de experiência foi vivenciado a partir do projeto social “Tocando em
Frente”, realizado pela Associação Nossa Senhora Mãe dos Homens, localizada na cidade
satélite de Samambaia Norte, em Brasília – DF. A instituição tem como missão o desejo de
transformar a realidade das crianças e adolescentes da região, visando trazer esperança às
famílias que viviam em um contexto de diversas situações de risco e vulnerabilidade social. O
projeto “Tocando em Frente” é destinado para as crianças que migraram da creche para o ensino
fundamental 1, com intuito de dar suporte a essas crianças no turno em que não estão na escola,
promovendo atividades que contribuem para formação educativa e social. Este projeto surgiu do
interesse de expandir as atividades pedagógicas e culturais para as crianças e adolescentes da
região, porém, tem como principal motivação, o interesse de promover formação humana por
meio da musicalização infantil. Qualificar a educação, expandir o acesso à educação musical
para crianças e adolescentes da comunidade, bem como contribuir para formação de um
pensamento crítico e senso estético, são fundamentais para o desenvolvimento educacional. O
projeto “Tocando em Frente” contempla essas premissas.
REFERÊNCIAS
AGUILAR, Patricia Michelini. A flauta doce no Brasil: da chegada dos jesuítas à década de
1970. 2017. 258f. Dissertação de Doutorado – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.
BARBOSA, Cacilda Borges. Estudos de ritmo e som. 1° ano. 2ª ed., Rio de Janeiro, 1982,
Prefácio.
BEYER, Esther. A apreciação musical por músicos experientes. IN: BEYER, Esther; KEBACH,
Patricia. Pedagogia da Música: experiências de apreciação musical. Porto Alegre: Ed. Mediação,
2009.
COLÉGIO PEDRO II. Breve História da Flauta Doce. Sessão “Aprenda a tocar”. Disponível
em: http://www.interkit.com.br/PortalPedroII/aprendaflauta/aprenda_fl_tecnica_hist.html.
Acesso em: 07 mai. 2019.
MOTA, Lídia Nayde da Rocha. Flauta doce nas séries iniciais do ensino fundamental: percepção
de materiais didáticos pelos professores da Escola Parque 307/308 sul – DF. 2018. 38f. Trabalho
de Conclusão de Curso – Universidade de Brasília, Brasília, 2018.
SILVA, Draylton Siqueira. Musicalização por meio da flauta doce. VII Congresso Norte
Nordeste de Pesquisa e Inovação. 19-21 de Outubro, Tocantins. 2012.
SWANWICK, Keith. Ensinando música musicalmente. Trad. Alda Oliveira e Cristina Tourinho.
São Paulo: Moderna, 2003.
SWANWICK, Keith. Ensino instrumental enquanto ensino de música. Trad. Fausto Borém de
Oliveira e Revisão de Maria Betânia Parizzi. Disponível em: https://docgo.net/doc-
detail.html?utm_source=ensino-instrumental-enquanto-ensino-de-musica-keith-swanwick.
Acesso em 12 jun. 2019.