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MÚSICAS DO MUNDO NA EDUCAÇÃO1

Magda Dourado Pucci e Berenice de Almeida

Abre-te! Abre-te ouvido, para os sons do mundo, abre-te ouvido para


os sons existentes, desaparecidos, imaginados, pensados,
sonhados, fruídos! Abre-te para os sons originais, da criação do
mundo, do início de todas as eras... Para os sons rituais, para os
sons míticos, místicos, mágicos. Encantados... Para os sons de hoje
e de amanhã. Para os sons da terra, do ar e da água... Para os sons
cósmicos, microcósmicos, macrocósmicos... Mas abre-te também
para os sons de aqui e de agora, para os sons do cotidiano, da
cidade, dos campos, das máquinas, dos animais, do corpo, da voz...
Abre-te, ouvido, para os sons da vida...
2
( Fonterrada apud Murray Schafer, 1992).

Vivemos um momento especial da história da Educação Musical


Brasileira merecedor de um “abre-te sésamo!” que nos revele quais tesouros
musicais encantarão as crianças e os jovens brasileiros.
O universo musical tem muitos tesouros a serem desvendados - há
muitos gêneros musicais do Brasil e do mundo, cada um com diferentes
padrões estéticos e conceitos - e para isso é fundamental que a educação não
seja fundamentada no preconceito ou na exclusão.
O enfoque multicultural da educação está presente no Relatório sobre
Educação para o Século XXI para a UNESCO3 que tem como uma das
premissas “preparar cada indivíduo para compreender a si mesmo e ao outro,
através de um melhor conhecimento do mundo”4. Abarcar os conhecimentos
das diferentes formas de pensar do ser humano - sejam elas tradicionais,
modernas, antigas, pop, de minorias ou maiorias - nos conduz a novas
possibilidades sonoras.
Neste novo milênio, diante da globalização e com os avanços
tecnológicos, podemos facilmente entrar em contato com as mais variadas
culturas do mundo e ouvir músicas que não poderíamos sequer imaginar há

1
Texto publicado in: Jordão, Allucci, Molina, Terahata (Org.). A Música na Escola. São Paulo:
Allucci & Associados Comunicações, 2012, p. 119-121
2
SCHAFER, M. O Ouvido Pensante. Trad. Marisa Trench de O. Fonterrada, Magda Gomes da
Silva, Maria Lucia Pascoal. São Paulo: Editora UNESP, 1991, p.10-11
3
DELORS, J. Educação, um tesouro a descobrir. Relatório para a UNESCO da Comissão
Internacional sobre Educação para o Século XXI. São Paulo: UNESCO, MEC, Cortez Editora,
1999
4
idem, p.47

1
décadas atrás, como um canto dos pigmeus da África, o som do er-hu e da
pipa chineses ou os didjeridus australianos.
Na educação musical também ocorreram muitas transformações durante
o século XX com as inovações de Dalcroze, Willems, Orff, Kodály, Villa-Lobos,
Koellreutter, Schafer, Gainza e outros - e ainda há muito e a ser transformado
por nós, educadores atuantes na contemporaneidade.
No Brasil, recentemente, observamos uma série de iniciativas na
educação musical que procuram assimilar algumas expressões populares tanto
músicas quanto de transmissão de conhecimento, como por exemplo: o
aprendizado musical pela metodologia das escolas de samba cariocas5; o
estudo da música nordestina através de seus gêneros mais significativos
utilizando a rabeca e os pífanos6; além da performance das manifestações
brasileiras como o maracatu e o jongo7. Este “clima” de renovação permeia a
educação musical, mas ainda assim, esse “novo repertório” é realizado como
um adicional e não como um eixo norteador.

Não é nossa intenção eleger métodos, mas sim refletir sobre a forma de
abordar conteúdos musicais a partir de novos repertórios. Incentivamos um
olhar mais profundo para as diferentes músicas do mundo, a chamada World
Music - que pode ser popular, clássica (erudita), folclórica, religiosa, profana,
comercial, oriental e ocidental8 - e vem se difundindo pela Europa e Estados
Unidos, mas aqui, de maneira menos incisiva. A globalização suscita, ainda
mais, a necessidade de compreensão desse fenômeno que se expandiu de
forma vertiginosa quando as mídias tornaram acessível a escuta de músicas de
lugares distantes, estimulando a curiosidade pelo “outro”. As músicas podem
abrir portas culturais, são chaves para o conhecimento do “outro” e se
transformar em um exercício de alteridade, estimulando a formação de
cidadãos mais abertos a outras maneiras de viver.

5
Projeto desenvolvido por Ermelinda Paz descrito in: PAZ, E. A. Pedagogia Musical Brasileira
no século XX. Metodologias e Tendências. Brasília: MusiMed, 2000.
6
Projeto desenvolvido por José Antonio Madureira descrito in: PAZ, E. A. Pedagogia Musical
Brasileira no século XX. Metodologias e Tendências. Brasília: MusiMed, 2000.
6.
Existem várias associações culturais em Recife que ensinam os princípios musicais do
maracatu para pessoas de fora da comunidade. Em São Paulo, podemos citar a Associação
Cachuera! que oferece estudos e prática do Jongo, Instituto Brincante que oferece eventos e
espetáculos de manifestações populares na área de dança, música, teatro, entre outras.
7.
BOHLMAN, P. World Music. A very short introduction. New York: Oxford University Press,
2002.

2
Vivemos também um momento em que minorias estão levantando suas
bandeiras e suas expressões estão vindo à tona, desencadeando um processo
de grandes descobertas culturais. Portanto, o que propomos aqui é pensar a
música além das fronteiras das nações, tendo como ponto de partida os
aspectos culturais de diversos grupos e regiões, pois é impossível, considerar
um único estilo musical representativo de um país, como é o caso do Brasil
com sua diversidade de gêneros.

O aumento significativo das pesquisas na área musical ainda não ecoou


nas salas de aula. Há um hiato entre o pesquisador acadêmico e o educador
musical que pouco dialogam e compartilham seus conhecimentos. O ideal seria
integrar a prática musical às pesquisas, pois é comum ouvir crianças cantando
determinadas músicas sem saberem sua origem, quem as cantou, a língua,
seu contexto, sem explorar suas particularidades tais como o sotaque, a
entonação e a instrumentação. Em geral, os arranjos de canções folclóricas
são feitos baseados nos recursos da música erudita e deixam de lado
características que trazem à tona conteúdos interculturais e interdisciplinares.
Essa atitude descontextualizada torna a música um mero entretenimento em
que os conteúdos simbólicos se perdem. Cada canção possui um universo a
ser explorado pelo professor que, a partir de sua pesquisa, proporcionará um
aprendizado mais significativo para seus alunos.

É preciso investir na formação musical tanto dos professores de música


assim como dos não especialistas. Proporcionar um mergulho nas várias
formas de expressão musical seja ouvindo (e muito!)9, cantando ou tocando
para que eles tenham mais consciência e autonomia na criação de seus
projetos pedagógicos .

Quanto maior o número de referências, mais rica e interessante será


essa educação, não apenas musical, mas geral. Sabemos que é impossível

9
O trabalho de apreciação musical é tão importante quanto o da prática musical. Muitas vezes,
não temos oportunidade de realizar práticas com instrumentos que exigem uma técnica muito
específica como o som da flauta ney turca ou o som do kemance afegão, para citar dois de
inúmeros exemplos, mas a audição de timbres instrumentais ou vocais diversos e múltiplas
formas de tocar é fundamental na formação, não apenas dos professores, como também dos
alunos.

3
trazer à sala de aula todas as músicas do mundo, mas podemos selecionar um
leque de possibilidades e criar conexões culturais. Ao buscarmos um maior
equilíbrio entre os vários repertórios possíveis, proporcionamos um ambiente
no qual os alunos podem desenvolver uma postura aberta, de curiosidade e
receptividade às muitas músicas da música (Brito, 2009).

A seguir, descreveremos brevemente algumas conexões entre as


músicas do mundo que poderiam ganhar um aporte educacional.

Conexões Rítmicas
O ritmista da escola de samba realiza ritmos complexos em andamentos
acelerados com naturalidade sem ter frequentado uma escola de música, mas
ele aprende seu instrumento através da utilização de sílabas rítmicas que
organizam cognitivamente o movimento nos instrumentos de percussão como,
por exemplo: para o ritmo do tarol (ou caixa clara) é usado as seguintes sílabas
para a memorização:

Pá co pá pá / co pá pá co (pdf ritmo encore anexo)

4
Tarol (caixa clara) de escola de samba

Vemos nessa experiência uma ligação com o ensino musical na Índia,


onde os alunos aprendem os complexos e longos ciclos rítmicos (tala) com um
solfejo com palavras (theka) que se aproximam do som da tabla ou do
pakhawaj que facilita muito o domínio dos instrumentos.

Tabla indiana

5
Pakhawaj

Por que não utilizar, em alguns casos, o sistema musical da música


clássica10 indiana? Ele não poderia estimular processos cognitivos entre
crianças e jovens brasileiros?11 O ritmo kerarwa de oito tempos divididos em
padrões rítmicos de 3-3-2 se solfeja dessa maneira:
dha gui na / ti na ka / dhi na /

que é o equivalente à célula-base do baião.

Com base nessa semelhança, é possível desenvolver, de forma criativa,


a “levada” do baião com o ritmo kerarwa, inclusive usando outros instrumentos
não indianos12. Além do aspecto lúdico da atividade, estimulamos a curiosidade

12. Estamos nos referindo ao sistema de aprendizado da forma clássica da música indiana e
não da música popular ou folclórica.
11
Essa técnica foi utilizada no projeto Samwaad - Rua do Encontro - dirigido por Ivaldo
Bertazzo no qual reuniu ritmos indianos aos brasileiros. Centenas de crianças do Complexo da
Maré, na Zona Norte do Rio de Janeiro, desenvolveram uma técnica corporal baseada no tala
indiano, pois na Índia, assim como os músicos, os dançarinos também precisam solfejar com
as silabas para que memorizem os movimentos corporais.
12
Baseado nas semelhanças entre alguns talas indianos com ritmos brasileiros, o Mawaca
criou uma brincadeira musical chamada Dendê com Curry onde um trecho de um tala é falado
simultaneamente à tabla e logo em seguida ganha o acompanhamento do pandeiro brasileiro.
Essa vinheta mostra que, ao tocarmos e vivenciarmos os sons de lá, entendemos melhor os
sons daqui. Nas apresentações do Mawaca pelos CEUs de São Paulo, ensinamos essa
brincadeira para as crianças da platéia que, rapidamente, entenderam o processo.

6
das crianças pela Índia, podendo conhecer suas crenças, danças, rituais e
outros aspectos culturais.

Trocas Culturais
É possível também criar conexões musicais entre povos que
historicamente estiveram ligados a nós como os portugueses, cujo cancioneiro
apresenta melodias matrizes das nossas cantigas infantis. O canto de Miranda
D´Ouro Sarandilhera apresenta uma semelhança melódica com algumas de
nossas cirandas, dado que possibilita criar arranjos trançando uma melodia na
outra. Além da ligação melódica é interessante relacionar uma relação
semântica entre os verbos cirandar e sarandar, que é o ato de peneirar
“mexendo as cadeiras”, saracoteando. Assim estimulamos o desenvolvimento
da capacidade de criar com conteúdo.
A nossa relação cultural com a África foi intensa, mas ficou esquecida
por muito tempo e só agora começa a ser compreendida. O samba, o
maracatu, o jongo e outras manifestações da cultura brasileira tiveram sua
origem em regiões africanas sudanesas cuja polirritmia complexa pouco
conhecemos. Se pudéssemos aprender parte dessa polirritmia nas escolas,
iríamos desenvolver melhor o senso rítmico dos alunos assim como nos
aproximar culturalmente desses povos.

Além dos diferentes povos africanos, não só divididos em países 13, mas
em grupos étnicos que falam diferentes línguas, nos esquecemos que aqui no
Brasil, temos a presença de 230 povos indígenas que falam 180 línguas
diferentes (ISA) e que tem culturas distintas. Isso nos faz pensar que está na
hora de começarmos a enxergar o Brasil como um país multilíngüe e começar
a ouvir esses outros sons que estão nas florestas brasileiras. Existe uma
tendência de não pensarmos nesses povos como o “outro”. Porque mesmo
vivendo na mesma terra, “ser índio” significa conceber o mundo de “outra”
forma. A música, para eles, é parte de rituais complexos que exigem de nós,
um cuidado especial ao lidar com esse repertório em sala de aula.

13
Importante lembrar que a divisão em países no continente africano desconsiderou por
completo as questões étnico-culturais, criando fronteiras políticas entre grupos que viviam
juntos há milênios.

7
Afinações do Mundo

Outra questão importante é a afinação que possui referenciais


diferentes em outras culturas, como é o caso da música indiana, que há
milênios, já distinguia claramente os tons e os quartos de tons14. Para alguns
de nós, esses microtons soam como “desafinações”, no entanto, fazem parte
da estrutura da música clássica indiana e têm lugar distinto nas escalas
(ragas) e não são ornamentos, como é o caso da música árabe.

Na música árabe, os quartos de tom são usados para “colorir” a canção,


seja ela o ghazal (gênero ligado à poesia sufi) ou ao rai (canções de protesto
marroquinas). Nesse caso, os melismas e ornamentos são usados pelo cantor
para mostrar sua habilidade de improvisar.

Música ou Oração?

Nas cidades muçulmanas, quando ouvimos o iman nos minaretes


fazendo orações a Alá, sua performance nos soa como música, mas para os
muçulmanos ela é apenas uma oração “embelezada”, com muitos melismas
que produzem um som potente que pode ser ouvido em toda a cidade.

Instrumentos-Chaves

Instrumentos musicais também podem ser chaves para o


conhecimento do “outro”, pois eles nos podem nos proporcionar associações
aos aspectos simbólicos e espirituais, assim como aos gêneros, ao status
cultural e ao valor estético.
Podemos citar como exemplo o pandeirão do Boi do Maranhão,
instrumento circular e sem platinelas, tocado pelos homens e presente na festa
junina nas ruas de São Luis. De onde esses instrumentos teriam vindo, se em
Portugal os pandeiros conhecidos como adufes, são quadrados e tocados
quase que exclusivamente por mulheres? Como e quando os pandeirões
vieram parar aqui? A explicação nem sempre será única – mesmo porque a
verdade nunca é uma só - mas é o caso de se pensar nos intercâmbios
indiretos que tivemos com os povos islâmicos presentes em várias partes do

14
KHAN, H. I. La musica de la vida. Madrid: Ed. Querubin, 1995, p.28.

8
Nordeste, pois ainda é comum a presença desses largos pandeiros nos países
africanos muçulmanos, são eles que acompanham os cortejos religiosos das
cortes reais do Norte da África. É provável que tenham vindo com os africanos
escravos sudaneses e se misturaram às festas da corte portuguesa, assim
como suas vestimentas.

Adufe português

15
Pandeirão na festa do Boi no Maranhão

15
http://www.flickr.com/photos/lesyeuxheureux/galleries/72157625984300956/

9
Bendir (ou tar) em cerimônia sufi marroquina

Bendir na África do Norte

Poderíamos citar outros exemplos, pois as conexões não param por


aqui. A cada exemplo sonoro, seria possível localizar vários tipos de relações
sejam elas musicais, culturais, históricas, antropológicas que podem ser
extremamente úteis nas nossas aulas, pois a música é muito mais do que tocar
e cantar! É também articular ideias, relacionar sistemas culturais, estruturar o
pensamento e pensar o mundo.E o Brasil, por ter sido povoado por tantos
povos diferentes, vem recriando as diferentes influências o que resulta nesse
país multicultural, portanto nossos ouvidos sempre estiveram abertos aos sons
do mundo. Por que não continuarmos abertos aos imensos tesouros musicais a
serem explorados? Abre-te sésamo!

10
BIBLIOGRAFIA DE REFERÊNCIA

ALMEIDA, M. B. de & PUCCI, M. D. Outras Terras, Outros Sons. São Paulo:


Callis, 2002.

BOHLMAN, P. World Music. A very short introduction. New York: Oxford


University Press, 2002.

BRITO, M. T. A. de. Quantas músicas tem a música? – Ou algo estranho no


museu. São Paulo: Ed. Peirópolis, 2009.

DELORS, J. Educação, um tesouro a descobrir. Relatório para a UNESCO da


Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI. São Paulo:
UNESCO, MEC, Cortez Editora, 1999

KHAN, H. I. La musica de la vida. Madrid: Ed. Querubin, 1995, p.28.

PAZ, E. A. Pedagogia Musical Brasileira no século XX. Metodologias e


Tendências. Brasília: MusiMed, 2000, p. 213.

SCHAFER, M. O Ouvido Pensante. Trad. Marisa Trench de O. Fonterrada,


Magda Gomes da Silva, Maria Lucia Pascoal. São Paulo: Editora UNESP, 1991

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