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Zoltán Kodály e Heitor Villa-Lobos: duas


metodologias que se comunicam1

Adriano Justino MOREIRA2

Resumo: O presente trabalho trata das propostas de educação musical idealizadas


por Zoltán Kodály e Heitor Villa-Lobos e como se deu a organização e aplicação
de tais propostas em seus países de origem, observando a proximidade existente
entre essas duas metodologias de ensino musical. Esta pesquisa justifica-se
pela importância que o método Kodály tomou não só a nível nacional, mas
também a nível mundial e pela similaridade que essa metodologia tem com o
Canto Orfeônico, projeto que foi aplicado à educação musical brasileira durante
três décadas. Tem-se como objetivo apresentar as principais características do
Método Kodály e do Canto Orfeônico, embasando-se a pesquisa a partir de
referencial teórico bibliográfico.

Palavras-chave: Educação Musical. Zoltán Kodály. Método Kodály. Heitor


Villa-Lobos. Canto Orfeônico.

1
Artigo apresentado ao Curso de Especialização em Metodologia do Ensino de Música pela Faculdade
de Administração, Ciências, Educação e Letras (FACEL), Curitiba (PR), em 4 de maio de 2015.
2
Adriano Justino Moreira. Especialista em Metodologia do Ensino da Música pela Faculdade de
Administração, Ciências, Educação e Letras (FACEL). Graduado em Música pela Universidade
Anhembi Morumbi. Tutor Presencial no curso de Licenciatura em Música pelo Claretiano – Centro
Universitário. E-mail: <adrianomoreira@claretiano.edu.br>.

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Zoltán Kodály and Heitor Villa-Lobos:


two methods that communicate with each
other

Adriano Justino MOREIRA


Abstract: This study approaches the musical education proposals conceived by
Zoltán Kodály and Heitor Villa-Lobos, as well as how their organization and
application occurred in their country of origin, observing the existing proximity
between these two musical teaching methods. This research is justified by the
importance of the Kodály method not only nationally, but worldwide, and by
its similarity with the Choral Singing, a project applied to the Brazilian musical
education for three decades. Based on a bibliographical theoretical framework,
this study aims at presenting the main characteristics of the Kodály Method and
the Choral Singing.

Keywords: Musical Education. Zoltán Kodály. Kodály Method. Heitor Villa-


Lobos. Choral Singing.

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1.  INTRODUÇÃO

O seguinte artigo tem como tema de pesquisa dois métodos


de educação musical desenvolvidos entre o século XIX e século
XX: a Metodologia Kodály (proposta de educação musical desen-
volvida na Hungria por Zoltán Kodály) e o Canto Orfeônico (proje-
to idealizado e desenvolvido no Brasil por Heitor Villa-Lobos entre
os anos de 1930 e 1960).
Ávila (1993) afirma que a metodologia de ensino desenvolvi-
da por Kodály resulta de suas pesquisas e excursões científicas por
seu país, o que gerou um sistema de ensino musical aplicado em
todas as escolas húngaras.
Sobre o projeto do Canto Orfeônico, desenvolvido por Hei-
tor Villa-Lobos, Ávila (2010) expõe que o músico brasileiro, numa
experiência próxima à do músico húngaro, utilizou uma série de
músicas folclóricas recolhidas a partir de suas viagens pelo interior
do Brasil e que passaram a fazer parte do material didático a ser
utilizado nas escolas regulares brasileiras.
Goldemberg (2002) aponta que Villa-Lobos e Kodály com-
partilhavam objetivos muito próximos, mesmo estando em locais
e situações diferentes e essa proximidade de objetivos e princípios
que norteiam a filosofia músico-educacional de cada um gerou a
seguinte questão: há consonâncias entre a Metodologia Kodály e o
projeto Canto Orfeônico? Esta pesquisa desenvolve-se com o an-
seio de buscar resposta a essa questão.
Observando tanto as orientações dos Parâmetros Curriculares
Nacionais/Artes no que diz respeito à Educação Musical, quanto
a obrigatoriedade do ensino da música na Educação Básica (am-
parada pela Lei 11.769, publicada no Diário da União em 18 de
agosto de 2008), este trabalho justifica-se por iniciar uma pesquisa
em torno de duas metodologias de educação musical que podem
vir a contribuir para o trabalho pedagógico do professor/educador.
Objetiva-se apresentar as consonâncias existentes entre essas
duas filosofias de Educação Musical, partindo-se de referencial bi-
bliográfico que ampare tal pesquisa.

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Na primeira parte deste artigo, apresenta-se Zoltán Kodály,


seu contexto social e suas ideias sobre a necessidade da educação
musical para todo indivíduo. Na segunda parte, trata-se de Heitor
Villa-Lobos, sua vida, seu ideal nacionalista e como, a partir desse
ideal, organizou um material didático a ser utilizado nas escolas
brasileiras a partir da década de 30.

2.  ZOLTÁN KODÁLY, MÚSICO E PEDAGOGO


“Cantei antes de falar e cantei mais do que falei. Meu
primeiro instrumento foi fabricado por mim mesmo”
(Zoltán Kodály).
Zoltán Kodály, músico húngaro nascido em Kecskemét em
16 de dezembro de 1882 e falecido em Budapeste em 06 de março
de 1967, foi filho de pais músicos amadores. Tocava piano, violino
e violoncelo, além de ter cantado em muitos corais. Idealizou um
sistema de educação musical a partir do folclore húngaro, tomando
como instrumento primordial para esse sistema de musicalização o
canto. Acreditava que o aprendizado da música é o melhor cami-
nho para se adquirir maior capacidade intelectual, física, sensorial
e afetiva e propunha que a educação musical fosse feita desde o
ventre materno até qualquer ocasião que se apresentasse propícia
(ÁVILA, 1993).
Partindo do princípio de que a criança apresenta uma rápida e
agitada evolução em seus primeiros anos de vida, tanto física quan-
to intelectual, Kodály acreditava que a educação musical inicial
deve partir da música tradicional em seu estágio mais primitivo, ou
seja, dentro da simplicidade de seus elementos rítmicos, melódicos
e formais, uma vez que essa música é compatível com a fase de vida
em que a criança está inserida e por ser este um período em que a
mesma vivenciará a linguagem musical, sua escrita, sua leitura e
criação, para, num segundo momento, experimentar o aprendizado
de qualquer outro tipo de música (ÁVILA, 1993).
Ávila (1993) expõe que Kodály organizou o repertório de seu
projeto de Educação Musical a partir de um trabalho científico de
investigação do folclore húngaro, pesquisa esta favorecida inicial-
mente pelo fato de seu pai ser ferroviário, o que fazia com que se

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mudasse constantemente, colocando-o em contato com a música


de diversas cidades e regiões húngaras. Sua pesquisa, que abrangia
quatro grandes fases (registrar, transcrever, classificar e publicar),
foi desenvolvida juntamente com seu amigo músico Béla Bártok,
indo ambos por regiões diferentes da Hungria para coletar o maior
número possível de canções.
A escolha do repertório folclórico justifica-se por ser este,
segundo Kodály, o de mais fácil acesso a todos, uma vez que as
cantigas de ninar, as pequenas canções infantis, os brinquedos can-
tados ou ritmados tradicionais de seu país constituem a verdadeira
língua materna da criança.
A implantação oficial do ensino musical na Hungria iniciou-
-se na década de 40, com o surgimento de um grande movimen-
to coral fomentado pelo trabalho de Kodály e sua equipe junto às
escolas (ÁVILA, 1993). As aulas de música, incrementadas com
treinamento vocal, aprendizado de canções e aquisição de repertó-
rio selecionado, tendo como base metodológica o canto, o material
musical folclórico (base de toda a produção artística de Kodály)
ou material composto para tal finalidade, foram oficializadas na
Hungria em 1951, com base no sistema proposto por Kodály e, pos-
teriormente, seu método foi adotado em diversos países do mundo
e, para que tal ato obtivesse sucesso em terras estrangeiras, cada
país fez as adaptações necessárias, levando-se em consideração as
características estruturais da música popular própria de cada região,
mas mantendo-se a essência do método que é o canto e primando
para que, no desenvolver do processo, a criança torne-se apta a ou-
vir, cantar, escrever e ler (ÁVILA, 1993).
Segundo Ávila (1993), Kodály se utiliza de princípios já pen-
sados por outros pedagogos com referência ao início do aprendiza-
do musical, como a entoação de intervalos disjuntos para facilitar
a afinação, o ritmo baseado em figuras que representam a pulsação
e sua subdivisão, as canções curtas, de aspecto formal bem defi-
nido, a tessitura adequada à idade do aluno, a vivência corporal
acompanhando o cântico, predominância inicial da polifonia sobre
a harmonia, a presença constante de elemento lúdico. O critério da

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apresentação dos elementos teórico-musicais por meio das canções


é determinado pelas características das mesmas.

O método Kodály

Segundo Ávila (1993), é um método construtivista, sempre


com um espaço para a participação da criança na composição do
conteúdo utilizado no processo de musicalização, observando o
repertório do aluno e partindo deste para levá-lo à aquisição dos
conteúdos propostos, permitindo que ele atue na elaboração das ati-
vidades. Seus instrumentos são o solfejo relativo (utilizado desde
a Idade Média – “mão guidoneana”), as palavras rítmicas (idea-
lizadas pelo pedagogo francês Aimé Paris a partir das propostas
anteriores de Rousseau e depois utilizadas no método Galin-Paris-
-Chévé), e o manossolfa3.
Além desse sistema, Kodály utilizou-se também do sistema
numeral proposto por Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), em que
o algarismo 1 se refere ao primeiro grau da escala, o 2, ao segundo,
e assim sucessivamente. Fundamentou-se também nos conceitos
de Émile Jacques-Dalcroze a respeito do movimento corporal no
aprendizado da música (eurritmia4 ou rítmica) (ÁVILA, 1993).
Podemos caracterizar tal método por:
• Basear-se no folclore húngaro;
• Tomar a pentatonia como ponto de partida, apresentando
primeiramente as notas sol-mi, partindo-se depois para as
notas lá, dó e, por fim, ré;
• Trabalhar com as escalas heptatônicas, começando-se com
os modos de dó e lá (modo maior e menor), tomando-se
posteriormente os demais modos e a atonalidade;
• Parte-se da incidência rítmica existente nos cantos infan-
tis.
3
Segundo Lisboa (2005, p. 32, grifos do autor), “[...] manossolfa é uma técnica de solfejo em que
cada nota é associada a um sinal feito com as mãos, dividindo-se nas categorias falado (para fixar a
associação das notas com os sinais específicos), entoado (em que já é aplicada a entonação correta das
notas ao associá-las aos sinais), simples (a uma voz) e desenvolvido (a duas ou mais vozes)”.
4
Ensino da música por meio de movimentos rítmicos corporais.

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A polifonia torna-se indispensável no método Kodály, uma


vez que este atribuía grande valor pedagógico à formação do ouvi-
do, à afinação e independência na leitura, o que se obtém a partir
de exercícios contrapontísticos. Já quanto à harmonia, propunha
seguir-se “[...] o caminho natural do estudo das funções principiais,
secundárias, modulações, formações de acordes etc., sempre com
base na prática vocal e nos argumentos teóricos” (ÁVILA, 1993,
p. 78).
Trata-se de um método que prima pelo aprendizado a partir
da experiência, da vivência musical, a partir da qual surgirão os
elementos teóricos que levarão à compreensão da leitura e escrita
da música, sequência esta que é organizada de maneira a parecer
racionalmente satisfatória e não baseada em argumento lógico.

A aplicação do método nas escolas húngaras

Na Hungria, crianças de 3 a 6 anos frequentam as creches,


onde têm atividades musicais regulares, com jogos e canções vi-
sando ao desenvolvimento auditivo, rítmico e do canto. O reper-
tório consta de 16 a 20 músicas que, com o passar dos anos, vai se
expandindo em quantidade. São brinquedos cantados, rimas infan-
tis, brincadeiras para andar e bater palmas dentro da pulsação das
canções ou rimas, tocar instrumentos rítmicos simples e sentir o
compasso, perceber impulsos e repousos e reconhecer canções fa-
miliares tocadas ao xilofone ou flauta doce. Posteriormente, a ideia
de grave e agudo é inserida e também a ideia de lento e rápido.
Com a ampliação do repertório apresentado, as crianças cantam as
canções em vários andamentos e realizam a linha rítmica por meio
de palmas, sem o canto (ÁVILA, 1993).
O professor responsável pela educação musical das crianças
recebe, em sua formação, treinamento de canto, solfa, percepção
auditiva e ainda um instrumento, sendo dele exigido que partici-
pe de um coral. Nas “Escolas Musicais de Creche” são destinadas
mais horas semanais de música para as crianças (ÁVILA, 1993).
Crianças de 6 a 14 anos possuem aulas semanais de música
com mais frequência, com um repertório consideravelmente maior

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de canções folclóricas. O aprendizado do canto ainda é por imita-


ção, sendo que o pentagrama só é apresentado para essas crianças
ao final dos 6 ou 7 anos de idade, ou seja, final da 1ª série. Os con-
ceitos apreendidos na creche são reforçados e aspectos inerentes
ao canto, como expressividade, respiração, dicção, são trabalhados.
As figuras rítmicas utilizadas inicialmente são a semínima (e sua
pausa), a colcheia, a mínima (e sua pausa), utilizando-se apenas o
compasso binário. Começa-se, a partir da escala pentatônica, exer-
cícios de identificação e escrita dos sons (ÁVILA, 1993).
Ao final da 1ª série o aluno deve estar apto a cantar 80
canções acuradamente e décor, repetir motivos melódicos
e rítmicos, e ler um material selecionado com apenas as
notas da escala pentatônica, bem como escrever, com o
mesmo material, ditados ou linhas rítmicas de canções co-
nhecidas (ÁVILA, 1993, p. 87).
O repertório é contínuo e crescente, caminhando simultanea-
mente com o trabalho de teoria musical que é feito. Outros elemen-
tos rítmicos vão sendo apresentados conforme o repertório, que se
atém às músicas húngaras. Passa-se a utilizar elementos como a
ligadura e a executar cânones. O processo criativo é estimulado e o
trabalho com ostinatos, apresentado na 1ª série, é mantido. Com o
desenvolver dos estudos, as músicas aprendidas na primeira série
são cantadas com solfa e com a altura absoluta, ou seja, trabalha-
-se paralelamente a leitura relativa e a leitura absoluta das notas
(ÁVILA, 1993).
Somente no início da terceira série é que a criança tem inclu-
so em seu repertório canções folclóricas de outro país. Com o con-
tato com a música estrangeira, continua-se a ênfase nos cânones e
na polifonia, trabalhando-se também compassos alternados e outras
combinações métricas. A partir da 5ª série, o repertório é direta-
mente relacionado à história da música ocidental, ou seja, a criança
passa a cantar, ouvir, analisar músicas que vão desde a Idade Média
até a música contemporânea (atonal) (ÁVILA, 1993).
Ávila (1993) expõe que, ao final do oitavo ano, é esperado
que o aluno esteja apto a cantar com todas as escalas maiores, me-
nores, modais, com solfa e com letras, conhecer e cantar todas as
inversões de tríades nas escalas maiores e menores, conhecer a for-

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ma da canção executada e cantar, ouvir, analisar e escrever música


dos séculos XIX e XX. Adolescentes entre 14 e 18 anos têm aulas
de música com prática coral e orquestral.

3.  HEITOR VILLA-LOBOS


“Tenho uma grande fé nas crianças. Acho que delas
tudo se pode esperar. Por isso é tão essencial educá-
las. É preciso dar-lhes uma educação primária de senso
estético, como iniciação para uma futura vida artística”
(RIBEIRO, 1987).
Nascido no Rio de Janeiro a 5 de março de 1887, estudou
violoncelo orientado pelo pai. Excursionou pelo interior do país
e, maravilhado e possuído por motivações sertanejas, folclóricas
e africanas, iniciou um trabalho de pesquisa sobre a música local
(RIBEIRO, 1987). Ingressou no antigo Instituto Nacional de Músi-
ca, mas, não sendo muito adepto dos estudos e do meio acadêmico,
abandou a instituição. Foi casado com Lucília Guimarães, separan-
do-se em 28 de maio de 1936, ano em que se une a Arminda Neves
D’Almeida, a “Mindinha” (RIBEIRO, 1987).
Participou da semana de Arte Moderna de 1922, sendo vaiado
ao entrar no palco de casaca e chinelo no pé esquerdo. Apresentou-
-se em três dias, com três espetáculos diferentes. Em 1923, faz sua
primeira viagem a Paris, fixando-se aí, onde, no ano seguinte, tem
o primeiro concerto inteiramente dedicado a suas obras. Em 1930,
retorna ao Brasil, quando Getúlio Vargas chega ao poder. Durante
o Estado Novo, Villa-Lobos elabora e desenvolve um projeto de
educação musical com enormes concentrações corais em estádios
de futebol, popularizando o canto orfeônico e passando a compor
para fins didáticos, o que resultou na compilação do Guia Prático
(RIBEIRO, 1987).
Foi nomeado Superintendente de Educação Musical e Artísti-
ca do Distrito Federal (1932) e Diretor Nacional do Canto Orfeôni-
co (1942). Foi contemporâneo de Stravinsky, Shoenberg, Prokofiev,
Kodály, Bela Bartok, entre outros. Faleceu em 17 de novembro de
1959, aos 72 anos, sem deixar filhos (RIBEIRO, 1987).

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A música e seu estilo

Como autodidata, segundo ele mesmo dizia, compunha sem


os convencionalismos da nossa chamada civilização. Sua música
é uma espécie de fusão entre a música popular e a música erudita
(RIBEIRO, 1987).
Empregou a música folclórica para formar sua personalidade
musical sem a pretensão de ser um especialista no gênero. Carac-
terizou as regiões do Brasil pelo canto de seu povo e compunha de
forma original, em qualquer ocasião, não se incomodando com o
barulho ou com a presença de outros.
Villa-Lobos tinha como premissa compor de maneira instin-
tiva, transportando a exuberância tropical do Brasil para tudo o que
escrevia. Dizia não se considerar músico, mas sim um artista que se
utilizava dos sons para exteriorizar impressões. Acreditava na edu-
cação social por meio da música, idealizada em seu projeto Can-
to Orfeônico, e propunha que um povo que sabe cantar está a um
passo da felicidade, sendo necessário fazer com que todo o mundo
cante (RIBEIRO, 1987).

O projeto do canto orfeônico

Seu projeto orfeônico foi implantado no Brasil em 1931, assi-


nado por Getúlio Vargas, num período de transição entre a chamada
República Velha ou Primeira República (1889 – 1930) e a Repúbli-
ca Nova ou Segunda República (1930 – 1937) (LISBOA, 2005).
As primeiras observações que podem ser feitas sobre o em-
prego do Canto Orfeônico no Brasil datam do ano de 1910, durante
a República, no Estado de São Paulo, e serviu de mola propulso-
ra para o desenvolvimento do projeto de Villa-Lobos, projeto este
que, depois de oficializado, iniciou-se no então Distrito Federal
(RJ), expandindo-se posteriormente para outros estados brasileiros,
tendo sua culminância em 1942, com a criação do Conservatório
Nacional de Canto Orfeônico (LISBOA, 2005).

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Segundo Lisboa (2005), para a professora Alba de Mello Bo-


nilha, o ensino do canto orfeônico baseava-se em “[...] alto grau
de civismo, a música como um meio e não como um fim, auxiliar
poderosa na tarefa educacional” (LISBOA, 2005, p. 20).
Uma das características a ser ressaltada a respeito do Canto
Orfeônico, sendo aplicado em escolas regulares para maior abran-
gência social, é a de alfabetizar musicalmente. Incorporando texto
e música, o Canto Orfeônico buscava incutir ideias e mensagens
àqueles que dele se utilizavam.
Acreditando ser a música um elemento e fator imprescindível
na formação do caráter do indivíduo, seu projeto visava popularizar
o ensino da música por meio do canto orfeônico. Porém, tal projeto
era também uma crítica à educação musical que vigorava na época,
que instruía a criança, segundo ele, somente a partir dos grandes
mestres da música (estrangeiros), não valorizando a música que
estava mais próxima da criança. Segundo ele, o canto orfeônico
proporcionaria uma:
[...] iniciação segura ao ritmo, uma educação auditiva, a
sensação perfeita dos acordes. [...] O seu mais importante
aspecto educativo é, evidentemente, o auxílio que o canto
coletivo veio prestar à formação moral e cívica da infância
brasileira (LISBOA, 2005, p. 27).
O repertório do canto orfeônico compreendia a música fol-
clórica, música esta que a criança assimilaria mais facilmente. A
educação musical feita por meio de músicas folclóricas partiria do
universo imediato de experiências da criança, desenvolvendo-se
assim na infância e posteriormente na juventude.

O projeto aplicado nas escolas brasileiras

No projeto do Canto Orfeônico, o programa para as esco-


las primárias contemplava desde a recreação rítmica coletiva, com
brinquedos e pequenos instrumentos, passando pela apreciação de
histórias folclóricas brasileiras, até a aplicação de canções infantis.
Para a escola primária, secundária e técnico-profissional, o progra-
ma desenvolvia-se em ordem crescente de dificuldade, subdivido

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em seis grupos (elementos gráficos, rítmicos, melódicos, harmô-


nicos, prática orfeônica, história e apreciação musical) (LISBOA,
2005).
O repertório proposto é o cerne do projeto, isto é, as canções
apresentadas expressam o ideal socializador que a música represen-
ta para Villa-Lobos (civilidade e brasilidade, expressas em canções
cívicas e folclóricas regionais). O repertório oficial engloba can-
ções, hinos, marchas e material didático organizado para este fim,
tendo sido adotados oficialmente os seguintes livros: Guia Prático,
Solfejos e Canto Orfeônico (LISBOA, 2005).
O Guia Prático foi organizado por Villa-Lobos para ser divi-
do em seis volumes, porém só o primeiro foi editado. Trata-se de
canções folclóricas infantis, nacionais e estrangeiras. O livro Solfe-
jos, publicado em dois volumes, foi organizado com a finalidade do
aprendizado e exercício da teoria musical. O livro Canto Orfeôni-
co, também publicado em dois volumes, contém uma coletânea de
canções e marchas de cunho cívico-patriótico e canções folclóricas
recolhidas, sendo algumas destas com texto adaptado.
Além dos livros, Villa-Lobos expunha a necessidade de cada
instituição organizar e criar seus hinos e canções próprias, porém
estas só poderiam ser adotadas como obras didáticas oficiais quan-
do aprovadas pela Comissão Nacional do Livro Didático (LISBOA,
2005).
O que se pode notar é que, de modo geral duas categorias
de canções, porém não exclusivas5, permeiam as obras sugeridas
por Villa-Lobos como material pedagógico: canções folclóricas e
canções de caráter cívico para ressaltar o culto à pátria brasileira.

4.  CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tanto Villa-Lobos quanto Kodály acreditavam na música


como um bem a ser oferecido a todos desde sua mais tenra idade.
Em torno de tal crença, elaboraram ideias e princípios didático-
-musicais que se alinharam e se aproximaram, mesmo estando estes
dois músicos em regiões e momentos diferentes.
5
Uma vez que percebemos nos volumes do Canto Orfeônico canções de Mozart, Haydn e outros.

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Acreditaram ser a voz o instrumento de maior acessibilidade


a todo ser humano; defenderam a música como um direito de todos,
necessária ao desenvolvimento pleno do ser humano; propuseram
o canto como instrumento musicalizador defendendo ser a voz can-
tada o instrumento mais próximo do indivíduo; tomaram o folclo-
re regional/nacional como repertório a ser trabalhado e expuseram
que o professor de música deve estar especialmente preparado para
o ofício da educação musical.
Conclui-se que as similaridades entre tais projetos é expres-
sa em cada objetivo idealizado tanto por Kodály quanto por Villa-
-Lobos. Tratar dos motivos pelos quais fizeram com que um projeto
se perpetuasse a nível mundial e outro tivesse seu fim após 30 anos
de desenvolvimento não é a preocupação deste trabalho. O que
cabe aqui é apropriar-se das semelhanças existentes entre ambos,
tomando-as como possíveis objetos norteadores para um rico e sóli-
do trabalho de educação musical adaptado à realidade do educador
que se aventure a fazê-lo.

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______. Solfejos. São Paulo: Vitale, 1976. v. 1.

______. Solfejos. São Paulo: Vitale, 1946. v. 2.

Educação, Batatais, v. 7, n. 3, p. 135-148, jan./jun. 2017

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