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É essa memória viva e espontânea, que nada tem de artificial, que hoje se encontra num
momento de crise. Jacques Le Goff definiu a memória como um conjunto de funções
psíquicas, pelas quais o indivíduo pode atualizar impressões e informações que ele considera
como passadas. A memória também pode ser entendida como as reminiscências do passado
que afloram no presente, no pensamento de cada um. Maurice Halbwachs defendeu em seu
livro A Memória Coletiva (2013) a tese de que embora acreditemos que alguns
acontecimentos de que nos recordamos pareçam individuais, eles só ganham importância e
sentido porque são, antes de tudo, coletivos. A lembrança é assim construída graças ao nosso
convívio social com outras pessoas, uma vez que podemos basear nossa impressão nas
lembranças de outros indivíduos que fazem parte dos mesmos grupos sociais nos quais
estamos inseridos, seja para reforçar, enfraquecer ou mesmo completar a nossa percepção dos
acontecimentos. Dessa forma, a confiança que temos na exatidão de nossa recordação será
maior, visto que outras pessoas viveram os mesmos acontecimentos e se lembram deles assim
como nós. Contudo, para que o trabalho da recordação seja eficiente, é preciso que nosso
pensamento não deixe de concordar com os pensamentos de outros membros do grupo.
Pierre Nora aponta que a passagem da dupla Estado-nação para a Estado-sociedade, implicou
no fim da história-memória e o estabelecimento de uma história-crítica. Ora, interrogar uma
tradição é não mais se identificar como seu único portador. Assim, a história, entrando em sua
idade crítica ou historiográfica, se desidentificou com a memória. Uma memória que, para
Pierre Nora, acabou se tornando objeto de estudo da própria história. Até mesmo os lugares
onde a memória se cristaliza teriam entrado na dança. Eles nascem do sentimento de que não
há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, manter celebrações, notariar atas,
porque essas operações não são naturais. Se o que eles defendem não estivesse ameaçado, não
seria necessário construí-los. Se ainda vivêssemos as lembranças que eles envolvem, sua
existência teria pouca ou quase nenhuma utilidade. Por outro lado, caso a história não se
apoderasse deles para transforma-los e petrifica-los, eles tampouco se tornariam lugares de
memória. O tempo dos lugares é justamente esse em que deixamos de viver sob a intimidade
de uma memória, para nos submetermos à visão de uma história reconstituída.
De fato, o que concebemos hoje como memória é a sua vastíssima constituição de estoque
material daquilo que nos é impossível de lembrar, mas que poderíamos um dia ter a
necessidade de lembrar. Para Maurice Halbwachs, nossa capacidade de reter os
acontecimentos passados não é ilimitada. Aparentemente, é como se a memória coletiva
tivesse a necessidade de se descarregar. Um dos caminhos para tanto seria a criação de
arquivos, que hoje conhecem uma fase de grande difusão, graças à ajuda das novas
tecnologias, como o computador. Esse imenso repositório de testemunhos, documentos,
imagens, etc., representam o medo que as sociedades têm de esquecerem seu passado, porque
vivendo mais no signo da mudança e do presente, se sentem compelidas a registrar os
acontecimentos como prova de algum julgamento futuro da história. Na concepção de Pierre
Nora, o arquivo muda de sentido devido ao seu peso. Difundido a partir da Baixa Idade Média
pelos Estados monárquicos e religiosos, hoje ele não mais representa o saldo aparentemente
intencional de uma memória vivida, e sim a secreção voluntária, organizada, de uma memória
cada vez mais perdida.
Com efeito, nossa sociedade, em fase de ruptura com sua memória graças à amplitude de suas
mudanças, e obcecada por se compreender historicamente, está, como afirma Pierre Nora,
condenada a fazer do historiador uma figura central, uma vez que é ele quem impede a
história de ser somente história. Jacques Le Goff faz um apelo no final de seu ensaio sobre a
memória, publicado no livro História e Memória (1994), aos pesquisadores de hoje para que
eles trabalhem a memória de forma mais descentralizada e democratizada, dando destaque
para as lembranças de grupos que por muito tempo foram tragados pela intervenção das
classes sociais dominantes. É o caso de citarmos aqui, por exemplo, as mulheres, os operários
e os prisioneiros, definidos por Michelle Perrot como os excluídos da história. O estudo
desses grupos vem conquistando hoje cada vez mais a atenção das ciências sociais,
constituindo-se também num elo de intermediação entre elas. No Brasil, é notável o interesse
pelo estudo das memórias dos grupos de escravos africados, como elemento de construção
das identidades afrodescendentes, relevantes para o estudo do processo de formação da
sociedade brasileira.
Diante do que foi até aqui exposto, pudemos constatar que as sociedades de hoje vivem sob o
medo de esquecer alguma coisa do passado e que não obstante elas são compelidas a buscar
na história sua própria compreensão. Uma história que, por sua vez, não pode desconsiderar
as memórias individuais ou coletivas, repositórios de uma população que atribui ao mais
simples dos vestígios, a potencialidade de ser lembrado. Os lugares onde a memória se
ancora, sejam de natureza topográfica (arquivos, bibliotecas e museus), monumentais
(cemitérios ou arquiteturas), simbólicos (comemorações, peregrinações, ou aniversários), ou
funcionais (manuais, testamentos, ou autobiografias), são assim constituídos porque a
imaginação os investe de uma aura simbólica. Em geral, a história se apega a acontecimentos
assim como a memória se apega em lugares. Nessa relação, e a memória que dita o que a
história deve reter. Como Maurice Halbwachs ressaltou, enquanto a memória é vivida pelos
grupos, é inútil ser pura e simplesmente fixada pela história, o que reforça ainda mais a tese
de Pierre Nora de que nós não mais vivemos em nossas lembranças. Por isso relegamos à
história cada vez mais o papel de transportar a memória.
Mas estaríamos presenciando o fim das ditas sociedades-memória, como a família, a Igreja, o
Estado e a escola, ou, antes disso, vivendo a transformação das mesmas junto com o
fenômeno da globalização? Michelle Perrot, por exemplo, ressalta que a família nunca esteve
tão forte. Ela é um grupo para o qual o indivíduo se volta sempre quando à necessidade lhe
impõe essa aproximação. Contudo, não é mais aquele modelo de família nuclear que Maurice
Halbwachs concebia, mas de um outro tipo: marcada pelas relações de gênero e alterações nos
papéis desempenhados por cada um de seus membros. Sendo assim, a transmissão das
tradições estaria de certa forma garantida, só que aberta a constantes ressignificações. A
globalização não implicou no fim das sociedades-memória, mas na transformação destas. É o
mundo inteiro que precisou se acomodar ao signo da mudança, atualizando valores e
prescrevendo novas regras para o convívio social. Transformações ocorreram (e ocorrem,
mesmo que de forma lenta e gradual) durante todo o processo da história e com elas as
práticas da memória. Talvez ainda não seja o momento de falar no fim da memória, mas
numa nova possibilidade de começo, onde ela procura salvar o passado dos grupos para servir
tanto ao presente quanto ao futuro.
MEMÓRIA HISTÓRIA
. é a vida, sempre carregada por grupos
. é a reconstrução sempre problemática e incompleta
vivos e, nesse sentido, ela está em
do que não existe mais.
permanente evolução.
. é um fenômeno sempre atual, um elo
. é uma representação do passado
vivido no eterno presente.
. é afetiva e mágica, não se acomoda a . é uma operação intelectual e laicizante que demanda
detalhes que a confortam. análise e discurso crítico.
. emerge de um grupo que ela une. . pertence a todos e a ninguém.
. se enraíza no concreto, no espaço, no . se liga às continuidades temporais, às evoluções e às
gesto, na imagem, no objeto. relações das coisas