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VOLUME
DA GENTEREPÚBLICA
BRASILEIRA MEMÓRIAS
(1889-1950)
Preparação
Vera Cristina Rodrigues Feitosa
Revisão
Bárbara Anaissi
Projeto gráfico e tratamento de imagens
Victor Burton
Diagramação
Adriana Moreno e Anderson Junqueira
Pesquisa iconográfica
Renato Venancio
Pesquisa documental
Carlos Milhono
P954h
Del Priore, Mary, 1952-
Histórias da gente brasileira, Volume 3: República – Memórias (1889-1950)
/ Mary del Priore. — Rio de Janeiro: LeYa, 2017.
il. (Histórias da gente brasileira ; 3)
Inclui bibliografia
ISBN: 978-85-441-0551-1
1. Brasil – História. 2. Brasil – Civilização. I. Título. II. Série.
17-43522 CDD 981
CDU 94(81)
20/07/2017 24/07/2017
Glossário 542
Minibiografias dos principais memorialistas/autores citados 552
Referências bibliográficas 560
PREFÁCIO
Eu me lembro...
B
om dia. Pode entrar. Tome assento e venha conversar. Re-
unidos aqui, se encontram vários escritores brasileiros.
Escritores, mas, sobretudo, memorialistas. Você os co-
nhece: seus rostos estão em tantas capas de livros...
São tão diversos: há os irônicos, os proseadores,
os vaidosos, os tristes e os alegres. Mas, de
muitos, os retratos foram apagados, assim
como sua obra. Daí a importância desta
conversa. Ela é cheia de vozes distantes. De sota-
ques diferentes. Erico Verissimo e José Lins do
Rego, Wilson Martins ou Zélia Gattai, e muitos
outros, trazem na forma de escrever o
PÁGINAS 12 E 13
som das palavras nas diferentes regiões do país. Trazem junto com o verbo,
hábitos, gestos, vivências. A conversa nesta sala é sobre memórias, lem-
branças e história.
A verdade da memória é singular, não é? Contar o passado significa re-
montar longe nos anos, atravessar fronteiras, deixar-se guiar pelo fluxo das
imagens, das associações livres, dos vazios e das reentrâncias esculpidas
pelo tempo. A memória seleciona, elimina, exagera, minimiza, glorifica,
denigre. Modela sua própria versão dos fatos, libera sua própria realidade.
Heterogênea, mas coerente. Imperfeita, mas sincera.
Pode uma vida contar a História? Quem recorda suas pequenas his-
tórias conta também a grande História? E nas que são relembradas, en-
contramos as marcas do passado, os fenômenos que se repetem, a perma-
nência dos hábitos ou as rupturas com a tradição, assuntos deste livro? O
poeta diria que a memória é como a corrente, forte e maciça, que puxa
do fundo do poço o balde cheio de lembranças. Vidas passadas, memó-
rias e histórias estão misturadas nessa matéria a que recorremos quando
queremos recordar. E “recordar é viver”, diz o ditado. A memória é uma
janela que se abre para ver o mundo daquele que lembra. E uma janela
que nos permite, também, alargar o nosso. Águas passadas? Nada disso.
Um arquivo de crenças, de valores coletivos que persistiram na forma de
hábitos e costumes.
Antes, porém, algumas questões de metodologia. Sabemos que a me-
mória é a capacidade humana de reter os elementos do passado. Porém,
há alguns anos, e para alguns historiadores, o termo tomou um sentido
restrito. Sentido que, segundo eles, oporia memória à história. A primeira
resultaria de lembranças que um indivíduo tem de seu passado individual.
Enquanto a história seria um discurso impessoal, frio, ignorante dos des-
tinos humanos, mais preocupada com os destinos coletivos. Conclusão? A
narrativa subjetiva se contraporia ao discurso objetivo. E, a história, seria
o único caminho para a verdade.
Nas últimas décadas, a publicação de memórias narrando a vida coti-
diana, as experiências individuais – mais do que os grandes fatos históri-
cos – causaram tanto impacto junto à opinião pública, que os historiadores
se sentiram na obrigação de examinar a questão mais de perto. Ora, muitas
e muitas vezes, os próprios historiadores recorreram a testemunhos orais
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A
hipódromos, nas cocheiras onde se encilhavam os animais de corrida.
[ICONOGRAFIA].
viu desfilar batalhões, ouviu troarem canhões
e chegar o som da radiola. Nos salões, observou
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Campos Sales:
republicano
e aristocrático.
Retrato do presidente
Campos Sales, 1898.
ARQUIVO NACIONAL [DOSSIÊ].
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[HEMEROTECA].
em fevereiro de 1891. Seu governo, chamado
República da Espada, foi marcado pela crise econômica e por movimen-
tos contra sua gestão autoritária.
Em 22 de agosto de 1891, o Congresso Nacional exibiu um conjunto
de leis que visava à redução de poder do presidente da República. Deo-
doro aplicou, então, o Golpe de Três de Novembro. Seus decretos assi-
nados nesse dia – dissolução do Legislativo e estado de sítio – foram
frustrados por resistências espalhadas por todo o país. Após a pressão
dos militares, que apontaram canhões para o Rio de Janeiro, o presiden-
te renunciou ao cargo, em 23 de novembro de 1891, deixando Floriano
Peixoto, vice-presidente, em seu lugar.
Floriano Peixoto, por sua vez, assumiu o poder acentuando ainda mais
as tendências ditatoriais do regime. Além de não convocar novas eleições
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Cabeças cortadas
Nas coxilhas do Sul do Brasil, o sol brilhou sobre cabeças cortadas. Era a
Revolução Federalista, guerra civil que eclodiu logo após a Proclamação
da República, alimentada pela crise política gerada pelos federalistas. Es-
tes formavam um grupo opositor que pretendia libertar o Rio Grande do
Sul da governança de Júlio de Castilhos, então presidente do estado. Seus
adeptos queriam também conquistar maior autonomia diante do poder da
recém-proclamada República.
O conflito atingiu os três estados da região: Rio Grande do Sul, San-
ta Catarina e Paraná. Os federalistas, seguidores de Gaspar da Silveira
Martins – gasparistas ou maragatos –, eram inimigos viscerais dos repu-
blicanos seguidores de Júlio de Castilhos, ditos castilhistas, pica-paus ou
ximangos. Desencadeou-se violenta luta armada, que durou de fevereiro
de 1893 a agosto de 1895, tendo por vencedores os castilhistas.
A degola dos prisioneiros não foi prática rara em ambos os lados, ad-
quirindo caráter revanchista. Muitas vezes, era realizada em meio a zom-
barias e humilhações; outras, menos frequentes, antecedida de castração.
A vítima, ajoelhada, tinha as pernas e mãos amarradas, a cabeça estendida
para trás: a faca era passada de orelha a orelha, como na degola de uma ove-
lha, rotina das lides nas coxilhas. Ressentimentos acumulados e desaven-
ças pessoais, somados ao caráter rude do homem da campanha, acostuma-
do a sacrificar o gado, estavam na base de tais atos de selvageria. Do ponto
de vista militar e logístico, a prática decorria da incapacidade das forças
em combate de fazer prisioneiros, mantê-los encarcerados e alimentá-los,
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Cabeças cortadas.
O Malho, ano IX, n. 389,
p. 70, 26 fev. 1910.
BIBLIOTECA NACIONAL
[HEMEROTECA].
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E os dias corriam sempre sombrios, nublados, até que, uma tarde, es-
palhou-se em todo o comércio, com o mistério apavorante de um agouro, a
notícia de que a esquadra bombardearia a cidade no dia seguinte.
O clamor subiu em lamentação de desastre. Justamente eu chegava à
rua do Ouvidor quando estrídulos toques de clarim faziam mover a multidão
em ondular tumultuoso, como o oceano sob a lufada violenta de um ciclone,
e começaram a passar, com estridor de ferragens, os pesados armões da arti-
lharia [...]. Abriam-se claros, mas logo animais a trote avançavam, arrastando
com fragor outras carretas, até que a bandeira, desfraldada no punho de um
cavaleiro moço passou, palpitando gloriosamente, saudada pelo povo.
Uma banda vinha tocando, como nos dias tranquilos de festa, mas o es-
trondo da artilharia mal deixava ouvir a música [...]. Os soldados marchavam
curvados ao peso das mochilas [...]. Vieram, em seguida, os voluntários; todos
moços, animados de entusiasmo que lhes transparecia nos olhos, que se acu-
sava em todos os seus movimentos.
Seguiam para a morte como para uma apoteose, satisfeitos, orgulhosos,
sem sentir o peso das armas sobre os ombros desacostumados [...]. Ao clan-
gor das charangas possantes o entusiasmo subia, comunicando-se ao povo
que abria alas à passagem das tropas. Por último, foi um batalhão que desfi-
lou ao rufo dos tambores, ao som vibrante das cornetas e, por muito tempo,
ouviu-se o trepidar dos passos dos soldados. Olhando, então, para a rua, tive
a impressão de um rio rútilo, a correr, tal era o brilho das baionetas juntas,
parecendo um só corpo luminoso, espelhento, que fulgia [...]. Grosso tumul-
to de gente precipitava-se para os bondes, com algazarra; mulheres corriam
arrastando crianças que choravam [...]. E os bondes eram invadidos; senhoras
iam de pé nos estribos, agarradas aos balaústres ou entre os bancos. Pobres
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