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5,a edição
HISTÓRIA

DO CANGAÇO
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DO CANGAÇO

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SsCEC EDITOR AS *
O Maria Isaura Pereira de Queiroz
5º EDIÇÃO, 1997
Diretor Editorial
JEFFERSON L. ALVES
Assessoria Editorial
ENRIQUE PEREGALLI
Edição de Texto e Copydesk
MiIRNA PINSKY
Capa
ANDRÉA VILELA
Revisão
CLóvis M. MEIRA
CéÉLIO F. GODOY JR.
ANA M. G. SANTOS
Fotos
Os CANGACEIROS
LES BANDITS D'HONNEUR BRÉSILIEN
POR MARIA ISAURA PEREIRA DE QUEIROZ
CEDIDAS GENTILMENTE PELA AUTORA

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Queiroz, Maria Isaura Pereira de.


Q4ih História do cangaço / Maria Isaura Pereira de
Queiroz. — 5º ed, - São Paulo : Global, 1997.
(História popular ; 11)

Bibliografia.
ISBN 85-260-0066-7

1. Cangaceiros - Região Nordeste - Brasil


2. Cangaço — Região Nordeste — Brasil |. Título.

B2-1426 CDD-301.18509812

Índices para catálogo sistemático:


1. Brasil: Região Nordeste: Cangaceiros: Sociologia 301.18509812
2. Brasil: Região Nordeste: Cangaço: Sociologia 301.18509812
3. Nordeste: Brasil: Cangaceiros: Sociologia 301.18509812
4. Nordeste: Brasil: Cangaço: Sociologia 301.18509812

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» GLOBAL EDITORA E
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sem a autorização do editor.

Nº DE CATÁLOGO: 1353
“Aos sobrinhos-netos
Pedro, Thomaz, Marcos, Camila e
outros que virão, para quem a HISTO-
RIA DO CANGAÇO, que hoje ainda é
realidade, fará parte somente das gestas
brasileiras, oferece a
Tivo..
Maria Isaura Pereira de Queiroz nasceu em São Paulo e fez sua
formação básica no Instituto Caetano de Campos. Cursou a Facul-
dade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, licenciando-se em
1949 no Departamento de Ciências Sociais. Foi assistente do prof.
Roger Bastide na USP e sua orientanda na École Pratique des
Hautes Etudes, Université de Paris, onde apresentou tese em
1955. Defendeu Livre-Docência em 1963 no departamento de
Ciências Sociais da USP e passou a atuar como professora adjun-
ta daquele departamento em 1973. Com um grupo de colegas,
fundou, em 1964, o Centro de Estudos Rurais e Urbanos, do qual
é hoje diretora de pesquisas. Tem obras publicadas no Brasile no
exterior, entre as quais: O Mandonismo Local na Vida Política do
Brasil e outros ensaios: O Messianismo no Brasil e no mundo; Os
Cangaceiros; O Campesinato Brasileiro; Cultura, Sociedade Rural,
Sociedade Urbana no Brasil; Réforme et Révolution dans les
Societés; Traditionnelles e Images Messianiques du Brésil.
SUMÁRIO

13
CONVERSA COM O AUTOR
15
|— — INTRODUÇÃO

ÃO DO NO RDESTE 17
LO CA LI ZA ÇÃ O DO CA NG AÇ O: O SE RT
1) o clima
do couro”
2) a “civilização
3) transformações

FAZENDEIROS 23
O CANGAÇO SUBORDINADO AOS
1) Conservadores e Liberais
2) Oligarquias

INDEPENDENTE 21
IV — PRECURSORES DO CANGAÇO
1) o “Cabeleira”
2) João Calangro
3) Retirantes

33
OS CANGACEIROS INDEPENDENTES
1) as alianças
2) medo e simpatia
3) necessidade econômica

VI — A HISTÓRIA DE TRÊS CHEFES DO CANGAÇO


1) Antônio Silvino
2) Lampião
3) Corisco

Vil— OS CANGACEIROS INDEPENDENTES: CONSIDERAÇÕES 59


1) fatores estruturais
2) fatores conjunturais
3) mercado de trabalho
4) o fim
vil — A FORMAÇÃO DO MITO DO CANGAÇO 65
BIBLIOGRAFIA É
69
VOCÊ ENTENDEU O TEXTOS ”

CRONOLOGIA
73
o'''oooeçeç'peeper ro e rã ess
CD

CONVERSA
COM O AUTOR

1. Os bandos independentes e erran-


rentes: o célebre Lampião — uma
tes de cangaceiros que percorre- espécie de Robin Hood brasileiro
ram o Nordeste seco, matando e para o folclore — e o Padre Cicero,
roubando, entre fins do século XIX político conservador que canali-
e começo do XX, foram uma sim- zou o descontentamento do serta-
ples resposta à miséria ou se con- nejo miserável. Poderíamos dizer
figuraram como movimentos so- que ambos lutaram pelo mesmo
ciais? povo, pela mesma causa?

Na medida em que os termos


Não é possível afirmar que a eco-
“movimentos sociais” pressupõem
nomia moderna estendia seu sistema
consciência dos problemas vividos
de produção na área então adormecida
numa estrutura sócio-econômica e po-
do sertão nordestino”. A área do sertão
lítica injusta — a consciência sendo
nordestino nunca foi adormecida. Ela
constituída justamente da percepção
se modificou constantemente em sua
e do conhecimento dessa estrutura e
economia, em sua demografia, desde o
de seus efeitos, mesmo que sob um
início da colonização, num processo
modo de percepção religioso — não é
possível admitir que o “cangaço se que continua sem cessar, muito embo-
"Configure como um movimento social. ra a estrutura familiar e política conser-
Foi, realmente, uma resposta à mise- vasse certas tonalidades — o que tam-
ria, O que se evidencia no fato de que bém não excluía certas mudanças. Não
desapareciam, quando a chegada das é possivel, pois, admitir a primeira afir-
mação contida na pergunta.
chuvas reinstalava o modo de vida ha-
bitual. Lampião e o Padre Cicero foram
resultados dessas modificações. O ca-
2. Della Cava, um pesquisador do Pa- so é bastante claro com Lampião: para
dre Cicero, comenta que, enquan- que surgisse, foi necessário que se
to a economia modema estendia modificasse o cenário econômico, em
seu sistema de produção na área fins do século XIX, estreitando as pos-
até então adormecida do sertão sibilidades de emprego para muitos e
nordestino, o triângulo da seca as possibilidades de ascensão sócio-
produzia dois personagens dife- econômica para outros. Um caminho

13
fácil para superar estes problemas foi para os conflitos que aind
o cangaço independente. Lampião a enlu.
tam periodicamente a te
rra nordes.
não exprimiu nenhum espirito de re- tina?
volta. Sua atitude foi de acomodação,
aliando-se, tranquilamente, com al- Se por “mensagem” se entende
guns coronéis do Sertão para sobrevi- à Comunicação de um co
nhecimento,
explicito ou velado, que se
Ver. deseja te-
O papel do Padre Cicero foi mais nha influência sobre quem a recebe,
a
complexo. Num momento em que o mensagem seria, a meus olhos, a di-
Nordeste tinha perdido sua importân- fusão de conhecimentos ac
erca da
cia sócio-econômica no cenário na- estrutura sócio-econômica em que
cional, e em que algumas cidades do tais fenômenos surgiram, a fim de
Sul do País avultavam.como propícias que se soubesse que: 1)o cangaç
o in-
ao enriquecimento, ele Surgiu, para dependente desapareceu quando no-
suas regiões e para os individuos que vas condições sócio-econômicas sur.
ali vinham ter, como um paladino re- giram para o País. As mortes de Lam-
gional, tentando criar em Juazeiro do pião e Corisco foram meros episó-
Norte o que hoje se chamaria um dios das lutas que então se travaram,
“pólo de desenvolvimento”. Para atin- não constituindo causas efetivas do
gir seu alvo, aliou-se à poderosa es- fim do cangaço independente. Na ver-
trutura coronelista, que aceitou total- dade, sem esses acontecimentos for-
mente.. No entanto, também sabia tuitos, dadas as transformações em
que sem o apoio maciço da popula- curso no Pais e particularmente no
ção não poderia resistir às investidas Nordeste, é possível pensar que mes-
que a Igreja Católica dirigia contra mo Lampião e Corisco seriam leva-
ele. Sua luta foi, pois, por um “povo” dos a uma adaptação às novas condi-
em que figuravam todas as camadas ções, sendo reabsorvidos pela outra
Sociais, os coronéis inclusive. Padre sociedade em processo de constru-
Cícero lutou por alguma coisa que o ção — como foram reabsorvidos mais
ultrapassava. Lampião lutou para si tarde seus companheiros que lhes
mesmo e em defesa do seu grupo,a sobreviveram: Labareda, Volta Seca,
fim de sobreviverem e serem podero- Criança e outros. 2) Apesar dessas
Sos. Foram causas diferentes. transformações, persistiram no Ser-
"tão as estruturas dos grandes grupos
familiares e os interesses políticos
3. O cangaço independente, desliga- predominantemente centralizados so-
do de fins políticos, sucumbiu bre a dominação do poder local, per-
apos as mortes de Antônio Silvino, mitindo a continuidade do cangaço li-
Lampião e Corisco, seus lideres gado às lutas de família e às lutas po-
maiores. Qual a mensagem que es: líticas, estendendo-se até os nossos
ta longa e sangrenta luta deixaria dias.

14
| — INTRODUÇÃO

De onde vem o termo “cangaço”, dos por chefes de grandes parentelas


que no Nordeste tomou o sentido de ou por chefes políticos; “pertenciam” a
banditismo? O termo é antigo, pois quem lhes pagava, em cujas terras ha-
nessa região já em 1834 se dizia de cer- bitavam e tinham então domicílio fixo,
tos indivíduos que eles “andavam de- não sendo nem independentes, nem -
baixo do cangaço”, designando parti- errantes. Mais tarde, o mesmo termo
cularmente os que ostensivamente se passou a designar grupos de homens
apresentavam muito armados, de “cha- armados liderados por um chefe, que
péu-de-coiro, clavinotes, cartucheiras se mantinham errantes, isto é, sem do-
de pele de onça-pintada, longas facas micílio fixo, vivendo de assaltos e sa-
enterçadas batendo na coxa”, como ques, e não se ligando permanente-
escreve o escritor cearense Gustavo 'mente a nenhum chefe político ou che-
Barroso. Levavam os clavinotes passa- fe de grande parentela. Estes bandos
dos pelos ombros, tal qual um boi no independentes viviam em luta constan-
jugo, sito é, na “canga”. Esta aproxima- te contra a polícia, até a prisão ou a
ção teria sido responsável pelo signifi- morte. Neste segundo sentido é que o
cado. Seja ou não esta a origem do ter- termo se tornou largamente difundido.
mo, é certo que “cangaço” e “canga- É importante efetuar estas distin-
ceiro” eram utilizados numa região ções porque, enquanto os bandos de
bem delimitada: as vastas caatingas homens armados subvencionados por
aridas que formam o chamado “Polígo- chefes de parentelas ou por chefes po-
no das Secas”, no interior de sete esta- líticos existiam já no século XVlll e per-
dos brasileiros. No entanto, embora sistiram em determinados lugares até
bandidos tenham existido por toda par- os dias de hoje, os bandos indepen-
te no pais, só nesta região foram desig- dentes e errantes do passado eram, ao
nados por “cangaceiros”. contrário, esporádicos. Por outro lado,
Examinando, nos documentos e os bandos que “pertenciam” a um che-
relatos existentes, a realidade que es- fe político ou a um chefe de parentela
tas palavras cobrem, verifica-se que fo- existiram praticamente em todo o Bra-
ram sempre empregadas em dois ca- sil rural, embora com outras designa-
sos distintos. Em seu primeiro e mais ções. Os bandos independentes, po-
antigo sentido, referia-se a grupos de rém, foram específicos do Nordeste
homens armados que eram sustenta- seco. Assim, enquanto os bandos liga-

15
e
q
a
Gm
dos âantiga estrutura familiare política tra certos poderosos locais, como

— ee —
tam-
eram gerais no Pais, o cangaço inde- bém pela eficiente organização
de seu

o
pendente, em sua forma mais comple- bando, pelas grandes extensõe
s terrj.

=
ta e conhecida, foi perfeitamente deli- toriais que percorreu, sempre dentro
mitado no tempo (de fins do século XIX do Poligono das Secas e pelo longo
a 1940) e no espaço (o Nordeste seco). tempo que durou. Antônio Silvino O

ge
Três nomes principalmente se as- antecedeu, Corisco lhe sucedeu e a
sociaram a esta ultima modalidade: An- morte deste em 1940, pouco tempo de-
tônio Silvino, Lampião, Corisco. Deles, pois do fim

mm
de Lampião, marcou o de-
foi Lampião o mais importante não só saparecimento total dos bandos inde-
pelas façanhas contra a polícia e con- pendentes.

SE

16
EEERE EEE ER RE

Il — LOCALIZAÇÃO DO
[DD

CANGAÇO: O SERTÃO DO
NORDESTE

Quem caminha a partir do litoral com os conhecimentos da época, cada


para O interior, no Nordeste, encontra boi necessitava de pelo menos 10 hec-
diversas paisagens sucessivas: primel- tares de pasto.
ramente a Zona da Mata, cuja fertilida-
de fez a riqueza dos engenhos de açu- EEE]
car; em seguida, o Agreste, de vegeta- 1) O CLIMA
ção pouco exuberante, onde se locali-
zaram lavradores de roça de abasteci-
mento (milho, mandioca, feijão, etc.); fi-
nalmente o Sertão recoberto de moitas
espinhudas, castigado por secas perió-
dicas, caracterizado pelas formas ere-
tas e duras dos mandacurus. Normalmente, a estação seca se
Em meados do século XVIII, todo alternava com a estação das àguas.
o Sertão do Nordeste já havia sido per- Quando as chuvas caiam a partir de de-
corrido por portugueses e brasileiros, zembro, durando até junho, o ano era
que nele instituiram a criação extensiva “bom”. Muitas vezes torrenciais, sob a
de gado. Fazendas foram sendo insta- forma de grandes temporais, as chuvas
ladas cada vez mais longe, no interior transformavam em rios o fundo dos va-
das terras. Conjugada com a criação, les, recobriam de vegetação as colinas
desenvolveu-se uma agricultura de fo- desnudas, adoçavam com o verde das
ça nas áreas úmidas das serras, nas folhas a paisagem árida e cinzenta. O
beiradas dos rios, no periodo das Sertão parecia então um imenso Jjar-
aguas. Graças ao fornecimento de gê- dim. Vinha, em seguida, o período da
neros efetuado por estas roças, a re- seca, mas esta seca era normal e espe-
gião se tornou praticamente auto-sufi- rada, era o “verão” que os sertanejos
ciente. Nas partes menos irrigadas, os estavam preparados para enfrentar. Se
rebanhos se expandiram em liberdade; as chuvas não apareciam de dezembro
as propriedades não eram cercadas, a março, durante O “inverno” sertanejo,
seus limites não eram conhecidos com se eram minguadas e muito breves, O
exatidão. A criação de gado não podia periodo seco se estendia sem descon-
se efetuar de outro modo, pois naquele tinuidade, durante um ano completo,
solo, com tais condições climáticas e até o mês de dezembro seguinte. Con-

17
figurava-se então uma ausência de
chuvas que se podia prolongar por dois
2) A “CIVILIZAÇÃO DO
anos ou mais, determinando verdadei-
ra catástrofe. Não se conseguiu ainda COURO”
definira periodicidade das secas. Entre
uma calamidade e outra, podiam de-
correr sete, nove, dez, às vezes mais de
vinte anos normais. Tristemente céle-
bres, tais secas.arruinavam as planta-
Apesar das condições climáticas,
ções, dizimavam o gado e afugentavam a vida no sertão fora relativamente sa-
os homens para o litoral Ou para outras
tisfatória até fins do século XIX, nos
regiões.
anos em que as chuvas eram regulares.
Operavam-se então as grandes A quase totalidade dos criadores de ga-
“retiradas”. As famílias abastadas par- do vivia em suas próprias terras, indo à
tiam para procurar refúgio junto a pa- sede municipal somente quando cha-
rentes que habitavam as serras sempre mados a participar de eleições, ou de
verdes, ou o litoral. Não somente a fa- um júri, ou em comparecimento às fes-
milia conjugal.se punha a caminho, tas religiosas. O gado era tanto a fonte
mas todo o conjunto que se podia cha- quanto o critério de riqueza. Quem era
mar de “família extensa” e até mesmo dono de um número considerável de
de “parentela”; iam os chefes de fami- cabeças, era tido por abastado, pos-
lia com a esposa na garupa, os jovens suísse ou não terras em quantidade.
adultos também a cavalo, seguidos por Estas, por si sós, não constituíam sinal
carros de bois cheios de moças, crian- de riqueza e ninguém se preocupava
ças, bagagens de toda sorte, escolta- em cercá-las ou em definir-lhes os limi-
dos por vaqueiros e “moradores” a pé tes. Quase por toda parte, as terras se
ou a cavalo e finalmente os boiadeiros mantinham indivisas entre os herdei-
tocando o gado. A população mais po- ros. Fazendo-se livremente em grandes
bre punha-se a caminho a pe, na poeira espaços abertos, a criação de gado exi-
das longas jornadas, os adultos carre- gia o auxílio de poucos vaqueiros. A pe-
gando as crianças pequenas, puxando quena quantidade de gente numa fa
a vaca ou as cabras que restavam, O ca- zenda de gado, intensificando as rela-
chorro de estimação fechando a mar- ções face a face, amenizava as distàn-
cha. Estes grupos pobres é que eram cias sócio-econômicas entre patrões e
chamados de “retirantes”. Os bandos, seus subordinados. O número de fa
quando se arranchavam nas vizinhan- zendeiros que vivia na cidade e delega-
ças de um povoado, eram em geral per- va seus poderes a administradores e
seguidos e expulsos pelos habitantes, empregados era realmente mínimo.
temerosos de vê-los esgotar os “olhos- Nas grandes extensões sertane-
dagua” e as fontes que ainda por ali jas, coexistiam criadores e lavradores
existissem, amedrontados com a pos- proprietários da terra, vaqueiros, par
sibilidade de estes retirantes se entre- ceiros, rendeiros, “moradores de
qgarem ao saque, na ânsia de obter ali- favor” e alguns trabalhadores, tanto
mentos para saciara fome — o que ge- permanentes quanto sazonais. Os pro-
ralmente acontecia. prietários da terra eram, em geral, ao

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mesmo tempo criadores e lavradores, vendo a rês com suas crias quando
isto é, criavam gado e abriam roças de descoberto o dono.
sobrevivência. Para auxilia-los em suas Viviam os criadores sem possuir
tarefas, necessitavam de poucos traba- muito “dinheiro de contado” e sem co-
lhadores. Era comum que o filho rapaz, nhecer o luxo — em grande contraste
ou O genro, se tornasse vaqueiro ou com o que se observava, na mesma
parceiro de seus pais. Como parceiro, época, nos engenhos de açúcar da Zo-
cultivava sua própria roça, pagando o na da Mata. Os vaqueiros eram, via de
aluguel da terra ao pai com uma parte regra, filhos, sobrinhos, afilhados dos
da colheita. Os rendeiros pagavam um criadores. Mesmo quando não perten-
aluguel fixo pela terra. Quanto aos ciam à família, eram normalmente in-
“moradores de favor”, ocupavam a ter- corporados a ela, casando-se frequen-
ra com o consentimento do proprieta- temente dentro dela. Os adolescentes
rio, sem pagar formalmente aluguel, da fazenda, fossem filhos dos criado-
porém auxiliando-o todas as vezes que res ou dos vaqueiros, aprendiam juntos
requisitados. a lidar com o gado e a trabalharo couro.
As meninas eram instruídas em cozi-
Os vaqueiros recebiam em paga- nhar, fazer queijo, bordar. A vida de to-
mento a quarta parte do produto do re- dos no Sertão — criadores, lavradores,
banho. Esta última forma de pagamen- vaqueiros, parceiros, rendeiros — era
to era tradicional. Todo ano, no mo- frugal, sem apresentar enormes dife-
mento das vaquejadas, o vaqueiro se- renças na estrutura de consumo das fa-
parava as novas cabeças de gado que mílias. Nos anos sem calamidades de
haviam nascido, sorteava um quarto seca, distinguia-se assim o Sertão por
delas que lhe cabia como salário, e certo bem-estar parcimonioso, difundi-
marcava-as com seu sinal particular. do por amplas camadas da população,
Os vaqueiros podiam esperar um dia se dos fazendeiros aos moradores.
tornarem criadores desde que pudes- O boi impusera sua marca na civi-
sem conservar suas reses, pois não ne- lização do Sertão, a ponto de esta ser
cessitavam da terra para pasto, uma chamada por muitos autores de “civili-
vez que seu gado pastava nos mesmos
zação do couro”. Realmente, constitul-
relvados que o do patrão.
ra ele, desde o início da ocupação do
O grande trabalho dos vaqueiros solo, tanto o material mais abundante
era reunir o gado e fazer a marcação. A para as exigências cotidianas, quanto
propriedade dos animais não era garan- importante produto de exportação. O
tida por cercas, mas por sinais e siglas vaqueiro era um “encourado”, revesti-
gravadas a fogo em seus flancos, com- do de um gibão de couro de bode ou de
pletados por cortes específicos nas vaqueta, protegido por duas perneiras,
orelhas. Os vaqueiros conheciam to- resguardando mãos e pés com luvas e
das as marcas das redondezas, além da calçados de couro de veado. Protegen-
de seu patrão. Se, no momento de mar- do também o cavalo com mantas, pei-
cação, um vaqueiro encontrava uma va: torais e joelheiras do mesmo material,
ca de sinal desconhecido, ferrava OS podia romper pelas caatingas e pedre-
bezerros com a marca da mãe, separan- gais sem perigo de se cortar nos espi-
para si um em cada quatro e devol- nhos. Nas casas feitas de sopapo, as
do

19
portas eram de couro e também as dariedade não excluia a Ocorrê
ncia de
mantas, os catres, os odres, as mochi- conflitos muito variados, ao
contrário
las e um sem-número de outros obje- Numa localidade ou região, o chef
e de
tos. As ocupações possiveis, para OS uma grande parentela podia estabe
le-
homens, eram ligadas ao gado: vaquei- cer aliança com outro ou entrar em dis-
ros correndo a cavalo atrás de reses; puta com ele. Dentro do próprio grupo
carreiros conduzindo pelas caatingas de parentes e mesmo no núcleo fami-
duas ou três juntas de bois; tangerinos liar, surgiam dissensões que degenera-
tocando as manadas pelos caminhos; vam em lutas. As “guerras de familia”
almocreves guiando a longa fila de bur- eram, portanto, frequentes e podiam
ros carregados de mercadorias. Todas eternizar-se.
estas profissões definiam também
ESSES
existências em que a circulação nos BBBBPP:
BPB
grandes espaços era habitual. Real- 3) TRANSFORMAÇÕES
mente, o Sertão sempre foi habitado
por uma população acostumada às via-
gens e aos deslocamentos frequentes
e periódicos.
Relações de parentesco, de alian-
ça matrimonial, de compadrio, de pres-
tações de serviços, de gratidão, uniam Durante o século XIX, notou-se
todos estes habitantes entre si, com- um crescimento rápido da população
pondo grandes grupos de parentelas, do Sertão. Não era que a região rece-
circundados por famílias de rendeiros besse migrantes nacionais ou estran-
e de moradores e por toda sorte de ou- geiros. O aumento observado era oriun-
tros protegidos. Aos chefes destas pa- do de certa melhoria das condições sa-
rentelas era importante contar com nitárias, que alargava a esperança de vi-
bandos de homens que pudessem de- da dos habitantes. A varíola, por exem-
fendê-los nas disputas e nos momen- plo, moléstia que costumava dizimar a
tos dificeis. A existência de forte soli- população daquela região, passou a
ser combatida pela vacina, descoberta
na Europa, ali empregada publicamen-
te a partir de 1795, e disseminando-se
pelo mundo do século XIX. Em 1839, os
moradores do Cariri, zona fértil e natu-
ralmente irrigada do sul do Ceará, de-
monstravam inquietação diante do au-
mento populacional e consequente
fragmentação das propriedades. Era
grande o número de herdeiros, o que
diminuía a possibilidade de rebanhos
extensos. Forçoso é lembrar que o.ga-
do, criado de maneira extensiva, exigia
EE Se sq So SN pastos amplos para alimentá-lo. Por
Bairro pobre de Santa Brigida (1957).
outro lado, um maior número de habi-

20
tantes requeria roças muito maiores, o mente ali apareciam e sua vida se nive-
que determinava o sacrifício dos pas- lara à dos antigos moradores das fa-
tos. Estas circunstâncias estavam, zendas.
pois, acarretando uma diminuição O período do cangaço indepen-
constante do nivel de vida. dente, isto é, em que os bandos não es-
Um descendente pernambucano tavam mais sediados em fazendas,
nem seus componentes subordinados
de grande estirpe de criadores de gado,
a chefes políticos ou a chefes de nu-
Ulysses Lins de Albuquerque, lamenta:
merosa parentela — bandos cujos líde-
va em suas memórias como, no início
res, portanto, decidiam livremente
do século XX, era crescente o nuú-
suas ações e tomavam iniciativas sem
mero de velhas fazendas, habitadas pe-
los descendentes empobrecidos das imposição exterior —, coincidiu justa-
mente com esta decadência. Segundo
antigas famílias importantes da região,
cujas casas abandonadas viravam ta- documentos existentes, o empobreci-
peras. Alguns viviam de fazer carvão, mento geral da população data de fins
queimando as poucas matas que ainda do século XIX.
possuíam na propriedade. Outros se Para compreender melhor o que
valiam dos recursos de pequenos roça- foi este cangaço independente e erran-
dos, tendo ja vendido todos os reba- te, torna-se necessário descrever bre-
nhos. Outros ainda procuravam o refu- vemente o que foi o cangaço subordi-
gio de pequenos empregos públicos nado aos grandes chefes políticos lo-
nos povoados e nas vilas, que lhes per- cais, aos troncos de numerosa parente-
mitissem vegetar. No passado haviam la que, em determinados momentos,
sido figuras obrigatórias dos centros armavam seus vaqueiros, seus mora-
urbanos municipais, vereadores nas dores, seus protegidos. quer para a
Câmaras, juizes de paz, membros do conquista do poder municipal ou re-
corpo de jurados ou exercendo outras gional, quer para a conservação do
funções gradas. Agora, porêm, rara- mesmo.

21
[EDP TZ?f? EEE EEE

HI — O CANGAÇO
SUBORDINADO AOS
FAZENDEIROS

Nos primeiros tempos de ocupa- Qualquer dissensão, por pequena


ção do Sertão, os chefes de grandes fa- que fosse, no interior de uma parentela, '
míilias, que se dispunham a penetrarna- ou entre duas parentelas, imediata-
queles páramos desconhecidos, con- mente dava início a um conflito, que
tratavam bandos de homens armados podia desenvolver-se na forma de uma
para defender os seus e mais a criação “guerra de famílias”, se estendendo
contra ataques de índios. Umavezalas- por várias gerações. Assim, por exem-
tadas as tribos para O interior, esses plo, na luta entre Pereiras e Carvalhos,
bandos passaram a servir de apolo aos na zona de Pajeú de Flores, Pernambu-
chefes a fim de assegurarem o dominio co, a cada pequeno Pereira que nascia,
da localidade ou da região contra os ri- aconselhavam seus avós, seus pais,
vais. Alguns homens de bando passa- seus padrinhos, “que procurasse o seu
vam a vida como simples capangas ou Carvalho a quem devia liquidar” o mes-
guarda-costas. A maioria, porem, cons: mo acontecia entre os Carvalhos e a
tituia familia, habitando então nas ter- pendência, ora violenta, ora larvada,
ras do chefe local na qualidade de “mo- chegou até os nossos dias.
rador” ou de “agregado”. O aluguel da Estas lutas ocorreram frequente-
terra não interessava aos fazendeiros. mente no Sertão, dando lugar a relatos
interessava-lhes manter em sua pro- que foram registrados em documentos
priedade muitos homens, com os e livros, ou se difundiram em versos de
quais pudessem contar nos momentos cantadores das feiras, perdurando ate
necessários. O morador podia, em ge- hoje na chamada “literatura de cordel”.
ral, cultivar sua roça sem nada pagar ao O chefe mais importante da parentela,
patrão, ou melhor, pagando-o com o au- que em geral era também um chefe po-
xílio de seu braço e de suas armas lítico local, dava seu nome ao conjunto
quando chamado a defendê-lo. Viviam de parentes, afilhados, agregados: Cu-
os potentados do Sertão em fazendas nhas e Patacas no Ceará, Dantas e Car-
afastadas dos povoados, nelas se sen- valhos Nóbregas na Paraiba, Pereiras e
tindo mais a salvo dos ataques dos ad- Carvalhos em Pernambuco, constitul-
versários. Quando iam à vila, rodea- ram exemplos dessas intermináveis lu-
vam-se de grande quantidade de “seus tas. em que os bandos de cangaceiros
homens” para se garantir contra qual- de uma e de outra família fechavam ca-
quer ameaça. minhos, saqueavam viajantes, entu-

23
piam cacimbas, esvaziavam açudes, in- aprisionadas, dizimadas, e as auto
rida. |
cendiavam casas de fazenda, atacavam des administrativas destituidas de |
povoações, perpetuadas em histórias seus cargos. No momento, porém, em
consteladas de vinganças sangrentas, que o Partido Liberal tomava o poder
de feitos heróicos, de dedicações ex- naquela zona, passava para a “legalida-
tremadas, de amores românticos. Mui- de e “ilegais” se tornavam os compo-
tas vezes, o continuador do antigo che- nentes do Partido Conservador, que
fe, ao ascender ao comando, adotava- eram atormentados, maltratados, puni.
lhe o nome, para mostrar uma filiação dos e substituídos por outra gente nos
de que se orgulhava. Assim, Jesuino postos administrativos locais.
Brilhante adotou este sobrenome em Leia-se por exemplo o relato das
memória de seu tio, o famoso José Bri- lutas que tiveram por centro a Vila do
lhante de Alencare Souza, ao assumira Teixeira, na Paraiba, em 1866. O jovem
chefia da parentela e ao dar continuida- chefe do Partido Conservador, Liberato
de a uma longa guerra de familias. de Carvalho Nóbrega, fora preso por
seus inimigos das famílias Dantas e
=== SE ETA Cavalcânti Ayres, pertencentes ao Par-
1) CONSERVADORES tido Liberal, e encerrado na cadeia do
E LIBERAIS povoado. Seus irmãos Franco e Augus-
to pediram auxílio ao tio Justino e a um
parente, Sebastião Raposo, prestigio-
so chefe de outra localidade, a fim de
conseguir a libertação do prisioneiro.
Estes chefes reuniram cinquenta mo-
radores e vaqueiros, e entraram na Vila
Durante o Império, a divisão politi-
do Teixeira fazendo tal algazarra que os
ca entre dois partidos, o Conservador e
adversários, aterrorizados, se esconde-
O Liberal, constituiu novo motivo de ram, a polícia não apareceu e o carce-
disputa entre os potentados, cada qual reiro sumiu. Libertado o jovem chefe, o
aderindo ao partido oposto ao do seu grupo saiu da Vila, dirigindo-se a uma
rival.! As próprias autoridades locais propriedade da família, e os homens do
— Juiz, delegado, funcionários diver- bando foram dispersados. No dia se-
sos — ligavam-se a um ou outro parti-
guinte, nada de anormal se notava, ca-
do. Quando o Partido Conservador, por
da homem estava em seu serviço: O
exemplo, estava dominante num muni-
cangaceiro do dia anterior vestia nova-
cipio ou numa região, as parentelas
mente o gibão de vaqueiro e campeava
que compunham o Partido Liberal,
indiferente, como se nada tivesse
seus bandos de capangas, as autorida-
acontecido em sua vida na vêspera...
des que pertencessem ao mesmo par-
Os bandos de homens armados não
tido, eram consideradas “na ilegalida-
de”. Como tal, viam-se perseguidas, eram constantes e sim temporários,
agregando-se e desfazendo-se ao sa-
bor das disputas e dos conflitos.
* Ver Wernet, Augustin “O periodo Regen- Soba cobertura da divisão política
cial” — História Popularin? 7 São Paulo — entre dois partidos, Conservador e Li-
Global Editora — 1982 (N.E.).
beral, estendeu-se assim pelo Império

24
afora uma atmosfera de luta constante. nunciando seus adversários como "pe-
Embora a motivação fosse a conquista rigosos bandidos”. Este exemplo es-
do poder local, os mais variados pretex- clarece o que se passava no Sertão du-
tos serviam de justificativa para os rante a primeira República. Desaparec!-
conflitos: disputas pela liderança no dos os dois partidos do Império, pros-
interior de uma parentela, partilhando-a seguia a luta pelo poder local, por inter-
em duas metades irreconciliáveis; médio das disputas de parentelas, de-
questões de herança e de terra; casos frontando-se então os que estavam no
amorosos os mais diversos. Proclama- poder (“legalidade”) contra os que pre-
da a República, extintos os dois parti- tendiam o poder (“ilegalidad). e
dos, as lutas iniciadas prosseguiram, Em 1922, aconselhado por Padre
dando agora mais realce ao seu aspec- Cicero, de quem era devoto, Sinhô Pe-
to de querelas de parentelas. reira consentiu em se retirar de Per-
nambuco, liquidando ali os seus have-
res. Comprou terras no norte de Minas
2) OLIGARQUIAS Gerais, onde, sempre acompanhado
pelo primo Luiz Padre, retomou seus
afazeres de criador de gado — tradição
de família — vivendo largos anos em
tranquilidade e falecendo há pouco
tempo, em idade muito avançada. An-
tes de abandonar a luta, em seu Estado
Assim, em 1916, em Pernambuco, natal, porém, chamara um de seus Iu-
Sebastião Pereira, conhecido como Si- gar-tenentes, que lhe parecia muito ca-
nhô Pereira, neto do Barão de Pajeu, paz, encarregando-o de liquidar o ulti-
formou um bando para vingar a morte mo de seus adversários dentre aque-
do seu pai e de seu irmão. Foi àfazenda les que culpava pela morte do irmão.
do sogro de um de seus primos, no Este seu seguidor, que aderira ao ban-
Ceará, o major José Inácio, e com ele do de Sinhô Pereira em 1918 para vin-
conseguiu dezoito homens em armas. gar a morte de seu próprio pai, extermi-
Seu primo Luiz Padre, cujo pai fora as- nado por um parente dos Carvalhos,
sassinado por um Carvalho e cuja mãe, reuniu os homens do bando que não
D. Chiquinha, estava constantemente quiseram migrar para outras terras e
exigindo que “morresse Carvalho” pa- executou fielmente a promessa feita
ra vingar a morte do marido, aderiu ao ao chefe. Chamava-se Virgulino da Sil-
bando com alguns homens. Desde en- va Ferreira e ao entrar para o bando de
tão até 1922, Sinhô Pereira e Luiz Padre Sinhô Pereira lhe haviam dado o apeli-
andaram em correrias no interior de do de Lampião...
Pernambuco e da Paraíba, refugiando- O exemplo de Sinhô Pereira é im-
se no Ceará e em Alagoas sempre que portante porque esclarece a modifica:
necessário, pois ali tinham grandes ção havida do Império para a Republi-
amigos. Os Carvalhos, pertencentes ao ca: durante o Império, lutavam Conser-
grupo que então dominava a politica vadores contra Liberais, partidos pol
em Pernambuco, valiam-se da policia e cos que eram nacionalmente reconhe-
das milícias para se defenderem, de- cidos. Na 1º República. passou a exis-

25
tir um partido único, o Partido Republi- do reforçada apos a proclamação da
cano. A luta pela dominação local se Republica.
travou, então, entre os que ocupavam Dentro deste quadro de Oligar-
os cargos politico-administrativos e quias e de desenvolvimento das forças
neles procuravam eternizar-se (oligar- policiais é que começaram a aparecer
quias), e seus contrários, rotulados por bandos, cuja ligação com os chefes po.
eles como bandidos. No momento em liticos locais assumiu nova forma. A
que estes venciam, passavam a ocupar antiga sujeição era substituida pela in.
as chefias e os cargos, destituindo os dependência e pela autonomia. Três
anteriores. Este movimento pendular nomes destacam-se, associados a esta
foi, no entanto, bastante raro, pois o nova modalidade de cangaço: Antônio
grupo que atingiao poder, alem de con- Silvino, Lampião, Corisco. Este novo
tar com seus homens habituais, apoia- cangaço se localizou entre duas datas

SPEED
va-se também na policia e em outras extremas, 1900 e 1940, que marcaram a
forças regulares estaduais e federais. A afirmação de Antônio Silvino como
tendência era, assim, de a oposição ser chefe de um bando independente
constantemente considerada “ilegal” (1900) e a morte de Corisco, o Diabo
e “criminosa”, e de a luta pela domina- Louro (1940), com a qual ocorreu o de-.
ção utilizar novos instrumentos de con- saparecimento total deste tipo de ban-
trole local, como a policia, cuja impor- do. As afirmações acima exigem, po-
tância pouco a pouco se via realçada. rêm, o exame prévio de uma questão:
Embora existisse teoricamente desde não teriam mesmo existido bandos
O Império, a policia durante muito tem- independentes anteriormente ao sécu-
po não tinha'expressão alguma, sO sen- lo XX?

26
[CCOCLLLLTTTTYt PP EB ES BEE GEEE SS

IV — PRECURSORES DO
CANGAÇO INDEPENDENTE

A existência de bandos indepen- EEE


dentes não é mencionada senão rara- 1) O “CABELEIRA”
mente nos relatos, nas memórias, na li-
teratura, nos periódicos e nos demais
documentos das diversas épocas ante-
riores ao século XX. As referências ao
cangaço subordinado, ao contrário,
são frequentes e numerosas, mostran-
do que esta era a forma habitual dos Em 1876, o escritor cearense
bandos dos periodos colonial e impe- Franklin Távora publicou seu romance
rial. E interessante verificar como eram “O Cabeleira”, em que, apoiando-se
então os bandos independentes e co- em crônicas de fins do século XVIII,
mo surgiam. narrou a história dos bandidos Joa-
quim e José Gomes (pai e filho), os
quais, juntamente com um compadre,
o negro Theodósio, haviam, “por mal-
dade natural” (sic), formado um grupo
de cangaceiros. A história se inspirava
em fatos verídicos. Os três companhei-
ros haviam recrutado outros compar-
sas e devastaram o sertão de Pernam-
buco, fazendo incursões na Paraiba e
no Rio Grande do Norte.
Os componentes do bando eram
chamados por seus apelidos. O jovem
José, devido à espessa e cacheada ju-
7 ER. O ão
ba que lhe caia até os ombros, era de-
nominado -o “Cabeleira”; os demais
Es E] EAR

n% e OS ms
ma”

eram conhecidos por Corisco, Venta-


Chapéus, bolsas e armas dos cangaceiros, nia, Jurema, Gavião, Jacarandã — no-
acervo do Museu Nina Rodrigues. O equipa-
pesa aproximada: mes que também serão encontrados
mento de um cangaceiro
mente 40 kg. mais tarde nos bandos de Antônio Sil

21
vino, de Lampião, de Corisco, poden- tias e chapeus-de-couro. Algumas re.
do-se falar então numa “tradição de des estavam armadas dentro das pa-
apelidos de cangaceiros. Reinava na lhoças. A noite alumiavam-se Ordinaria-
região o medo dos bandidos: “Quando mente com fogueiras (....) Tudo anun.
se espalhava a noticia de que o Cabe- ciava que O ponto era sempre provisó.
leira se aproximava com seu bando to- rio e podia ser deixado de um momento
dos se punham em armas e aqueles para outro sem prejuizo nem saudade.
que assim não se preveniam por timo- Ali os cangaceiros, ao som da viola, en.
ratos, os recebiam com submissos ob- tretinham-se uns a cantar, outros a dan.
séquios, e se prestavam apressados a çar, como brincam e saltam as crianças
todas as suas exigências”. Desta for- na campina. Capturado finalmente
ma, ameaçados pelos bandidos, os ro- por forças militares, Cabeleira, seu pai
ceiros ou combatiam ou auxiliavam os e Theodósio foram condenados e en-
malfeitores. As fugas para o mato eram forcados.
também frequentes. Este bando, cuja história Franklin
Cantigas e versos alusivos circu- Távora localizou entre 1775 e 1776, não
lavam pelo Sertão e as avós acalenta- seria O único a se movimentar nos ser-
vam os netos cantando: tões. O autor dá a entender que outros
Fecha a porta, gente, existiriam, pois florestas e serras ro-
Cabeleira 'i vem, chosas ofereciam facilidades ao seu
Matando mulheres, desenvolvimento. Secas e epidemias
Meninos também. . eram, segundo o autor, fatores respon-
Os destacamentos de polícia e as saveis pelo seu aparecimento. Justa-
volantes (Franklin Távora já empregava mente entre 1775 e 1776, fora a provin-
este termo, em 1876, para designar gru- cia de Pernambuco castigada por uma
pos de voluntários que se apresenta- epidemia de varíola e em seguida por
vam às autoridades a fim de lutar con- uma seca que se estendera por 1///
tra OS cangaceiros) encontravam toda afora, permanecendo conhecida na tra-
sorte de dificuldades para perseguir. o dição do povo como “a grande seca
bando, que se movia com grande rapi- dos três sete”. O autor atribuiu, pois, a
dez, dividindo-se em pequenos grupos existência de bandos independentes,
a fim de escapar com maior facilidade como o de Cabeleira, aos momentos
aos perseguidores, juntando-se nova- de grande calamidade pública.
mente mais tarde. Apertado o cerco, os Documentos do século XIX efe-
cangaceiros se ocultavam nas matas, tuam a mesma ligação entre catastro-
nas cavernas das serras, nos carras- fes naturais e o aparecimento de ban-
cais da caatinga. E seu acampamento - dos independentes. Nas grandes se-
era assim descrito pelo romancista: cas cíclicas, a economia do Sertão se
“Tinham eles assentado o seu arraial desorganizava inteiramente. Os poten-
ao pe de um olho-d'água que não seca- tados locais, que em geral garantiam a
va ainda no rigor do verão. Este arraial ordem, pois sem ela a economia se de-
compunha-se de meia dúzia de ran- sorganizava, emigravam para outras re-
chos abertos por todos os lados e uni- giões com sua familia e seus homens.
camente cobertos de palhas de pindo- Os criadores e agricultores menores
ba. Dos caibros pendiam surrões, vés- Viam-Se reduzidos à inanição. Agita:

28
ções ocorriam então, formavam-se miseráveis que procuravam não morrer
bandos armados decididos a conquis- a mingua. O Cariri, rico oásis, era parti-
tar à bala a subsistência da família e cularmente visado pelos retirantes,
muitas vezes eram denominados, nos diante dos quais fugiam os fazendeiros
documentos da época, “cangaceiros abastados e as autoridades.
sem proteção”, isto é, que não se abri- Aos olhos destes, João Calangro
gavam à sombra de nenhum chefe poli- se tornou então um “garantidor da or-
tico. Os líderes destes grupos encara- dem e da propriedade”. Orgulhoso de
vam o momento como extremamente sua ascensão, o pequeno mas robusto
propício para assegurar sua auto-afir- lider, de cabelos avermelhados e rosto
mação e sua ascensão socio-economti- sardento, exigiu que o chamassem de
Ca. General-brigadeiro João de Souza Ca-
langro, passando assim a assinar os bi-
EEE: lhetes ameaçadores que enviava a
2) JOAO CALANGRO quem não quisesse dobrar-se às suas
ordens. Chamado aos povoados para
defender seus habitantes, exigia, em
pagamento, dinheiro, viveres, merca-
dorias variadas, dando-se ao luxo de
vestir seus homens com fardas de casi-
mira, que era o tecido mais caro do Ser-
Excelente exemplo foi o de João tão. Seu bando, inicialmente de vinte e
Calangro que, na região do Cariri (Cea- dois componentes, aumentava a olhos
rá), durante a grande seca de 187/, or- vistos, acreditando-se que em pouco
ganizou um bando e dominou aquela tempo teria chegado aos 100 homens.
área. Em 1875, João Calangro era ape- Eis, porêm, que mudaram as con-
nas um capanga do grupo de Inocêncio dições climáticas em 1879. O Sertão re
Vermelho, grupo aliciado e sustentado verdeceu, as roças prometeram boas
pelo juiz municipal do municipio de colheitas, o gado retornou aos pastos,
Jardim, chefe político local, com o ob- desapareceram os perigosos grupos
jetivo de manter a ordem. O bando de de retirantes. Os abastados fazendei-
Inocêncio Vermelho era, pois, um ban- ros, os chefes políticos, as autoridades
do subordinado a um poderoso local. locais, regressando das cidades do li-
Assassinado Inocêncio em 1876, toral onde se haviam refugiado, viram-
Calangro, que se gabava de ter cometi- se a braços com o prestígio, a soberba
do trinta e dois assassinatos sem que e as exigências de João Calangro, que
qualquer processo fosse intentado pretendia continuar independente,
contra ele, tornou-se seu Sucessor. sem se submeter a nenhum comando.
Com a seca de 1877 e as desordens re- Teve então início verdadeira guerrilha
gionais que ela ocasionava — os ban- entre, de um lado, Calangro e seus ho-
mens, e, de outro lado, a policiae as vo-
dos de retirantes invadindo e saquean-
e lantes organizadas pelos fazendeiros
do povoados —, varias autoridades
locais e autoridades que desejavam ex-
chefes políticos reclamaram o concur
de terminá-los. Os cangaceiros lançaram
so de Calangro contra OS grupos
ados mão de toda sorte de estratagemas.
malfazejos”, isto &, dos esfome

29
Parte da população era pressionada pa- “defensores da ordem”. Durante a seca
ra auxiliá-los. e o fazia temerosa das de 18/7, lia-se no jornal “O Cearense”
vinganças sangrentas dos bandidos. "Hoje e perigoso ser rico, pois o povo
Finalmente, perseguido de perto. pobre lhe há declarado guerra de mor-
Calangro dispersou seus homens e re- te. Dias depois, um editorial do mes.
solveu abandonar a região. Calçou en- mo periódico noticiava que por toda
tão as alpercatas com as pontas volta- parte, no interior do Estado, bandos
das para os calcanhares, a fim de que “acometiam a propriedade com a
Os perseguidores, examinando as pe- maior ostentação”, comentando ainda:
gadas, julgassem que ele descia para o “Dir-se-à que se proclamou entre nós o
Brejo dos Santos. quando na verdade comunismo..." A Comuna de Paris, ins.
subia a Serra do Araripe em busca de talada na Cidade Luz de 18 de março a
um asilo seguro. Encontrou refúgio no 28 dê maio de 1871. tivera ampla reper-
sitio do Padre Manuel Antônio de Je- cussão nos meios letrados de nosso
sus, que ali vivia com sua amásia, de Pais. e o mesmo jornal já citado, busca-
quem tinha vasta prole. Amigo de Ca- va certo paralelismo entre ela e o que
tlangro, mandou que o sacristão tocas: ocorria então no Sertão, chegando a
se a finados na igreja da vila próxima, declarar que, se persistisse esse esta-
anunciando a morte do “general-briga- do de coisas, não estaria longe o dia
deiro. Efetuou em seguida um enterro em que “o comunismo passaria do
fictício, levando para o cemitério e en- campo puramente especulativo e teria
terrando um piião dentro de uma rede a mais formidável aplicação prática”
carregada por dois homens. Enquanto entre nos.
era realizado o enterro, fugiu Calangro Mas, ja então, fazia-se notar uma
para o Piaui. onde passou a morar e de diferença fundamental entre os ban-
onde nunca mais regressou. dos de retirantes e os bandos de can-
gaceiros — além do móvel para agir.
tão diverso num e noutro caso. Podiam
3) RETIRANTES realmente os retirantes atacar proprie-
dades e povoados com extrema violên-
cia e crueldade, quando premidos pela
necessidade. Seus bandos, porém,
eram indisciplinados, atacavam desor-
denadamente e não tinham permanên-
cia no tempo; duravam apenas o mo-
Na maioria das histórias de ban- mento de um assalto, de uma pilha-
dos como este. que se formavam du- gem. De outro tipo eram os bandos de
rante os periodos de dolorosa estia- cangaceiros como de João Calangro,
gem, como as de 1777, 1825. 1877, pe- que treinava seus homens no exercício
quenos fazendeiros. sitiantes, vaquei- das armas de fogo, que exigia deles
ros, moradores, transformados em es: disciplina e uniformização, que os or
fomeados, pilhavam propriedades e ganizava em grupos menores muito
povoados, e eram combatidos como adestrados. No romance de Franklin
autênticos bandidos, enquanto os can- Távora, também se nota como o Cabe-
gaceiros eram apresentados como leira estruturava seu bando em unida:

30
stematli- bandidos, os quais, de ameaçadores
des menores € OS exercitava si
fora-da-lei, passavam, assim, a colunas
camente.
mestras da defesa da ordem...
Confundir, como fazem muitos Pela sua intermitência, pela sua li-
documentos da época, estes bandos gação muito clara com os momentos
organizados, cujas motivações eram o de calamidade pública, pela pequena
enriquecimento pelo roubo e pela pi- menção que lhes é feita nos documen-
lhagem, com os grupos de retirantes tos consultados, pode-se concluir que
premidos ao assalto pela miséria ret- este cangaço esporádico teria sido um
nante, era proveitoso para os abasta- precursor do cangaço independente,
dos fazendeiros e criadores, para as au- isto é dos bandos que porfiavam por
toridades, que defendiam da pilhagem se manterem livres de qualquer jugo.
seus bens e o seu domínio. No afã de Porém, seu tempo de duração era ex-
se garantirem, chegavam os ricos ao clusivamente o tempo que duravam as
extremo de se aliarem com verdadeiros catástrofes.

O bando de Lampião (1929).

31
V — OS CANGACEIROS
INDEPENDENTES

E
[EE TT TZ EE de auxílio mútuo nas mais diversas cir-
1) AS ALIANÇAS cunstâncias — contratos que se esta-
beleciam entre iguais. Qualquer desli-
ze no relacionamento tradicional era
considerado “traição abominável" e os
aliados da véspera passavam a inimi-
gos mortais.
- Um dos melhores exemplos des-
Durante 40 anos, a partir de 1900, tas relações de aliança estã no pacto
três bandos assolaram sucessivamen- implicitamente estabelecido entre
te o Nordeste seco, procurando man- Lampião e o poderoso chefe político
ter-se livres de qualquer jugo, tanto dos do município de Jeremoabo, ao norte
chefes políticos locais apoiados nas da Bahia, Cel. João Sá. Vangloriava-se
grandes parentelas, quanto das autori- João Sá de ser tão temido e respeitado,
dades auxiliadas pela polícia. Esta ten- que o próprio Lampião, que tanto havia
tativa de preservar sua liberdade de circulado pela região, nunca atacara as
ação, de tomar sua decisão com auto- “suas” fazendas e a “sua” cidade. Na
nomia, sem nenhuma dominação exte- verdade, vários documentos demons-
rior ao bando, era encarada pelos che- tram que João Sa frequentava os acam-
fes locais e pelas autoridades como pamentos de Lampião, principalmente
muito perigosa para a manutenção de o que estabelecera no Raso da Catari-
sua própria soberania, conscientes na, sendo parceiro habitual das rodas
que estavam de que um novo poder, de jogo que o chefe de cangaceiros ali
com base exclusivamente na força, os organizava frequentemente. Este rela-
ameaçava. Um comportamento cons- cionamento se estreitara ainda mais
tante dos chefes locais, com relação porque João Sá aceitara ser padrinho
aos líderes do cangaço independente, de filhos de Lampião com Maria Boni-
foi o estabelecimento de alianças, muli- ta; os pais dela eram fazendeiros na
tas vezes reforçadas por relações de Malhada do Caiçara, município de Jere-
moabo, e eram também “gente” do Co-
compadrio. As relações de aliança e O
muito difundidos na re- ronel João Sá...
compadrio,
gião, realmente tradicionais no Brasil Estas relações de aliança, que se
todo, pressupunham contratos tácitos faziam e desfaziam ao sabor das conve-

33
niências e das circunstâncias, consti- acaso residissem. As desumanidades
tuiam um dos fatores importantes da cometidas pelos bandos aume
ntavam
continuidade e da impunidade dos can- os receios em relação a eles.
Os TICOS
gaceiros. E o fato de o Sertão seco se fazendeiros e criadores de gado
tinham
estender por vários Estados também ainda o recurso de partir da região, bus.
era mais uma vantagem. Quando suas cando a tranquilidade das
cidades
aventuras desencadeavam contra os maiores; os médios proprietários, os
bandos a quase unanimidade dos che- pequenos lavradores, os vaqueiros, os
tes políticos e das autoridades de uma moradores, porém, ficavam à mercê
região ou de um Estado, refugiavam-se dos cangaceiros e o medo de repre-
noutro, vizinho, onde encontravam sálias os transformava em aliados for-
gente que os acobertava. çados.

ESS
SSE) Medo ou simpatia? A pergunta se
coloca, pois houve, sem dúvida, tam-
2) MEDO E SIMPATIA bêm gente que aberta ou secretamente
buscou sempre ajudar os bandos. A do-
cumentação que se possui, no entanto,

a
faz supor que o medo seria mais atuan-

E
te do que a simpatia. A simpatia, por

me
—— ——
sua vez, não existia apenas nas cama-
das inferiores do mundo rural e urbano
Um outro fator de êxito também
do Sertão. Permeava também todas as
importante para os bandos era sujeita-
outras, de tal modo que tanto havia po-
rem pequenos fazendeiros, moradores,
bres coiteiros pagos pelo bando, como
agregados, a condição de aliados for-
coiteiros importantes, entre os gran-
cados, utilizando como instrumentos
des chefes políticos. A dualidade que
de pressão o dinheiro e o medo. São
existira sempre no Sertão e que dividia
inúmeros os testemunhos existentes a
as famílias entre “situação” e “oposi-
este respeito. Lampião, por exemplo,
ção”, emergia agora sob a forma de
quando se estabelecia numa zona, pa-
“Simpáticos ao cangaço” e “persegui-
gava semanalmente vários sertanejos
para que o avisassem da aproximação dores do cangaço”.
de seus perseguidores. Em geral, estes Tais “perseguidores do cangaço”
sertanejos eram '“gente” dos coronéis aumentavam na medida em que os
aliados ao cangaceiro, que ficavam as- cangaceiros exerciam vinganças
sim duplamente obrigados: pela lealda- cruêis contra povoados ou contra indi-
de devida ao patrão e pelo “salário” pa- víduos, ao suporem, com ou sem razão,
go pelo chefe de cangaceiros. Os rela- que lhes eram contrários ou que os ha-
tos de crueldade dos cangaceiros viam traído. A formação das “volantes”
quando se viam traidos são inúmeros, decorria também de tais fatos. Um dos
fossem os coiteiros fazendeiros abas- exemplos claros foi o que sucedeu
tados ou humildes moradores; não se quando Maria Bonita, na Malhada do
limitavam a castigar os faltosos, envol- Caiçara, abandonando seu marido, re-
viam na punição a familia toda e até Solveu ligar sua vida à de Lampião.
mesmo todo o povoado em que por Ofendidos com o ocorrido irmãos e
qu

34
E
eq
primos do marido juntaram-se a volan- miragem de vida facil e farta (isto é.
te da polícia que, nessa região norte da sem o trabalho de sol a sol, sem as in-
Bahia, agia contra os cangaceiros. Os certezas da agricultura e do clima, e
parentes de Maria Bonita, seu pai, seus com o sustento assegurado), pela fama
cunhados, seus primos, no entanto, aventureira daqueles individuos meti-
não escondiam o orgulho de fazerem dos em roupas vistosas, de chapéus e
agora parte da “familia” de Lampião, e, bandolas profusamente enfeitados
na mesma regiao, aberta ou sub-repti- com moedas de ouro. Muitas mulheres
ciamente, auxiliavam o bando. sofreram a mesma atração e se ligaram
a cangaceiros. Muito maior, porem, pa-
Um outro fator não deve ser es- rece ter sido a quantidade dos que ade-
quecido: estar o Sertão, desde tempos riram aos grupos levados por um dese-
imemoriais, dividido em parcialidades jo insatisfeito de vingança.
cuja reconciliação, quando ocorria, fi-
Do lado oposto aos cangaceiros,
- cava à mercê do menor pretexto para este mesmo desejo insatisfeito de vin-
ser desfeita. Ainda com o mesmo Lam- - gança aumentava Os ingressos de indi-
pião, sua entrada para o bando de Si- “víduos na polícia e multiplicava as vo-
nhô Pereira, estava ligada ao assassi- lantes. As volantes eram pequenos
nato de seu pai, na grande luta entre grupos de soldados comandados por
Pereiras e Carvalhos, que se irradiava um tenente ou um sargento, sem quar-
sob outros nomes para a Paraiba, para tel fixo, que percorriam continuamente
Sergipe, para o Ceará. Na Paraíba, eram as regiões interioranas a fim de comba-
eles contrários aos Dantas, que domi-
ter os bandidos. Muitas vezes, um fa-
navam toda a zona de Princesa e gran-
zendeiro reunia os seus apaniguados e
de parte do interior do Estado. Lampião se apresentava à polícia, formando as-
dirigiu-se um dia para Princesa, onde
sim uma volante que permanecia sob
entrou triunfalmente, depois de venci-
seu comando. Encontrava-se, pois, no
dos os Dantas e seus aliados. Um des-
interior das volantes e da polícia, uma
tes, o fazendeiro Clementino Furtado,
estrutura sócio-econômica correspon-
jurou vingança. Engajou-se na polícia,
dente à existente no Sertão. O fazen-
recebeu imediatamente o posto de sar-
deiro Clementino Furtado, ao entrar pa-
gento, e foi o popular: Sargento Quelé,
raa polícia, não foi recebido como sim-
um dos grandes perseguidores de
ples recruta: imediatamente lhe deram
Lampião.
o posto de sargento. Fazendeiro não
Qual o peso maior nos comporta- podia ingressar na polícia como solda-
mentos dos habitantes das regiões pal- do raso...
milhadas pelos cangaceiros — simpa- A hierarquia não existia somente
tia e proteção, ou perseguição e ódio? na polícia. Os bandos de cangaceiros
ntação ind a existê
ica ncia de não eram igual itári os internamente:
A docume
como já se disse, permea ndo muit o pelo contr ário, estavam estrutu-
ambos e,
as camada s sociais do rado s em nívei s dive rsos . Os criterios
sempre, todas
a se expres sou mui- que dete rmin avam a hier arquia eram
Sertão. A simpati
adolesc entes, até muit os. Em prim eiro lugar , uma ligação
tas vezes em jovens,
que buscav am OS bandos mais estreita com o chefe levava-os a
meninos,
história s de lutas, pela posi ções de mando. Assim, os irmãos
atraídos pelas

35
e cunhados de Lampião faziam parte escalão mais baixo pagavam o maior
dos “grandes” do bando. O valor de- preço pelas aventuras.
monstrado nas andanças e aventuras
Num outro ponto também se
também retirava o individuo do anoni-
aproximavam cangaço e polícia: nas fa.
mato, alçando-o a melhores postos, co-
mo se deu com Volta Seca, sempre no çanhas e na crueldade. A polícia não se
bando de Lampião. Finalmente,a posi- compunha apenas de indivíduos assa.
ção da família do postulante, na socie- lariados, cuja função era a manutenção
dade global formada pelo Sertão, deter- da ordem: esta era simplesmente a sua
minava também um lugar destacado fachada legal. Na verdade, ela estava
no interior do bando. Corisco, ao in- formada por conjuntos de indivíduos de
gressar no grupo de Lampião, a princi- diversas camadas sociais, que se em-
pio deveu sua colocação ao fato de se penhavam em perseguir os bandidos
originar de importante familia de Ala- por questões de vingança pessoal ou
goas. familiar. Um exemplo, também relativo
Todo bando de cangaceiros en- a Lampião, esclarece este ponto: não
cerrava, pois, os “grandes”, cujos no- podendo matar João Nogueira, seu ini-
mes eram conhecidos e chegaram até migo, que havia fugido, Lampião e seu
- nôs, e a “arraia miúda”, os anônimos bando penetraram no município deste
.Ccomponentes que formavam a sua matando-lhe o pai e outros membros
massa, que permaneceram desconhe- da familia. As represálias não se fize-
cidos e que, como sempre, contribui- ram esperar. muitos Nogueiras e seus
ram com o maior número de mortos aliados se engajaram imediatamente
nas refregas incessantes. Nesse pon- na Polícia de Pernambuco.
to, polícia e cangaceiros se estrutura- Levados pelo Ódio, os componen-
vam da mesma maneira e sempre os do tes das volantes agiam com os simpati-
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Uma “volante”, soldados da policia (1935).

36
ro s da me sm a for- O que estava em jogo, na verdade,
zant es do s ca ng ac ei
- entre Lampião e a “força do governo”,
ma pela qual estes haviam se compor
zo- como se dizia então, era a dominação
tado com seus inimigos. Em certas local. Tanto assim que quando os ban-
ntes
nas do Sertão, quedavam OS habita
as doleiros se instalavam numa localida-
indefesos, premidos entre duas forç
de, com cujas autoridades haviam con-
contrárias: os bandos de cangaceiros
traído um pacto positivo, ali per
de um lado, os bandos das volantes de maneciam em paz, sem tropelias, sem
outro. cada qual buscando refinar suas
perversidades a fim de alcançar a domi-
serem incomodados. Lampião, por
exemplo, certa vez se instalou em
nação local efetiva, atravês do terror.
Triunfo, Pernambuco, onde contava
Os habitantes mais ricos podiam fugir
paragens, escapando ao com a proteção de toda a máquina polí-
para outras
tica local, desde o prefeito até o vigário.
flagelo. Os demais não tinham outra
Ali viveu tranquilamente durante algum
solução senão ir vivendo como fosse
tempo. Festas eram organizadas em
possível, manobrando entre as duas
sua homenagem. Seus “cabras” transi-
forças ou tomando decididamente par-
tavam pelas ruas como qualquer habi-
tido por uma ou por outra: entrando pa-
tante. Rodinhas de adultos, jovens e
ra as volantes, ou caindo no cangaço.
Ranulpho Prata, que em livro pu- crianças vinham ouvir-lhes, na praça,
as façanhas contra as volantes. Os ad-
'blicado em 1930 denunciou os crimes
versários do prefeito, porém, consegui-
de Lampião, descreveu também as
condições de desamparo em que fica- ram um dia matá-lo, invadindo a sede
vam os habitantes perseguidos de am- municipal à frente de duzentos ho-
bos os lados. Foi o que sucedeu com mens. Lampião, ausente, foi avisado e,
um velho sitiante denominado Damá- com seus homens (eram cinquenta na-
zio, em cuja casa Lampião penetrou quela ocasião), saiu no encalço da tro-
“como uma rajada”, violentando-lhe as pa, para vingar o aliado, porêm dessa
filhas, roubando-lhe as economias, es- vez sem êxito. Ordenou então a retira-
pancando-o. Aterrorizado, deixou pas- da, dizendo: “... Ome que morre à toa
não mostra vantage...' e voltou a es-
sar dois dias e só então foi a Jeremoa-
bo denunciar o ocorrido. A autoridade a conder-se na caatinga.
quem se queixou, porém, tratou-o de
“coiteiro” por ter demorado em dar A grande rivalidade que se instala-
ra entre cangaceiros e volantes mas-
queixa e, “para castigo de tão grande
crime, mandou aplicar-lhe uma surra carava a realidade, que era assegurar a
mestra”. Por isso lamentavam-se OS vitória de determinada facção. Canga-
moradores, dizendo outro velho ao ceiros e volantes continuavam, assim,
mesmo Ranulpho Prata: “... O sertão as velhas lutas de parentelas que sem-
véve debaixo duma carga pesada. UM pre haviam existido na região. Consti-
, € O tuiam, portanto, um prosseguimento
costá é feito de Lampião e da seca
é só da Fo rç a do go ve rn o" . Afir- das contendas infinitas entre Conser-
ou tr o
vadores e Liberais, que vigoravam du-
mavam assim que Os desmandos da
sa va m ta nt o qu an to as aç ões rante o Império. À perseguição dos
tropa pe
res da cangaceiros pelas volantes nada mais
de Lampião, somadas aos rigo
era, no século XX, que uma nova faceta
seca...

37
das velhas dissensões que se vinham vos econômicos, pois “hoje em dia avi-
travando durante todo o século XIX, da só & boa pra sordado e pra bandido”.
tendo como alvo o poder local. E nos
Além do fator econômico, o gêne-
combates. como no dia-a-dia do conta-
ro de vida do cangaceiro era também
to com os habitantes, as mesmas atro-
muito atraente. Todas as vezes em que
cidades marcavam o comportamento
pôde instalar-se por algum tempo sem
de cangaceiros e volantes, exercidas
contra seus inimigos, pertencentes a problemas, em alguma localidade,
todas as camadas da população. Lamplão (cujo exemplo sempre é im-
E nem podia ser de outra maneira, portante analisar, pois foi o cangaceiro
independente que teve vivência maior
uma vez que a origem de cangaceiros e
de volantes era a mesma: fazendeiros, em sua “profissão”), levava vida regala-
sitiantes, vaqueiros, moradores, isto é, da, rodeado de seus “cabras”, comen-
os habitantes do sertão seco, teatro do, bebendo, dançando e cantando.
das correrias.
Assim foi em Triunfo, assim foi em Bar-
reiros, perto de Vila Bela (Pernambuco),
assim foi na Várzea da Ema, no Raso da
3) NECESSIDADE Catarina, Estado da Bahia, assim foi
também no Angico, em Sergipe, onde
ECONOMICA finalmente foi morto. Os chefes locais
achavam, muitas vezes, que era vanta-
josa sua permanência numa localida-
de, pois com suas exigências de vida
faustosa, de despesas ostentatórias,
Um terceiro fator, porêm, não po- de frequentes festas, de reuniões para
de ser esquecido quando se analisa a jogatina com os poderosos munici-
formação dos bandos de cangaceiros e pais, animava o comércio, multiplicava
das volantes: o fator econômico. Lam- as feiras, revitalizava a produção.
pião a ele se referiu claramente várias O documentário cinematográfico
vezes. Da primeira vez, no início de do sírio Abraão Benjamin, retratou o vi-
suas atividades, durante o encontro in- ver do bando no norte da Bahia, onde o
teiramente pacífico com Optato Guei- Raso da Catarina foi durante muito
ros que, mais tarde, seria um dos seus tempo o esconderijo preferido de Lam-
perseguidores na policia. Um dos com- pião. Nos rolos de filme que escapa-
ponentes do bando perguntara a Opta- ram à destruição e que compõem quin-
to Gueiros, simples sargento, quanto ze minutos de projeção, os cangacei-
ganhava por mês, respondendo-lhe es- ros agem com a espontaneidade de um
te que noventa e cinco mil réis. Lam- bando de meninos em férias. “Viajam”,
pião então exclamara. “Humt!... muito estabelecem pouso, constroem O
pouco. É melhor ser cangaceiro mes- acampamento, comem, dançam, lu-
mo.” Declaração idêntica fez mais tar- tam. A alegria de viver ritma-lhes o ges-
de ao Padre Emílio de Moura Ferreira. to e os espectadores se defrontam
Depois de ouvir missa, exortado pelo com uma gente feliz e realizada. Com-
padre a que abandonasse o cangaço, preende-se então que seu grito de
afirmou que não podia fazê-lo por moti- guerra fosse: “Aí vem Lampião, aman-

38
do, gozando e querendo bem!” Procu- dades nobres”, a fim de alcançar uma
ravam realizar, para eles mesmos, Sua existência festivae opulenta, tendo su-
visão de um paraíso terrestre rústico: jeitado ao seu mando as diversas ca-
não trabalhar, mas ganhar dinheiro madas sócio-econômicas de toda uma
combatendo e lutando, que são “ativi- região.
EEE
VI — A HISTORIA DE TRES
CHEFES DO CANGAÇO
a
o

Foram três os chefes maiores, co- do qual contavam executar sua desa-
S o a

mo se explicou anteriormente, que fronta.


"SA

realmente conseguiram se impor âes- | Na Paraiba, pouco depois, amorte


trutura sócio-econômica e política vi- 'do Coronel Ildefonso Ayres, em cir-
gente, por um período de tempo mais cunstâncias misteriosas, levara seu fi-
SS

ou menos largo. Sucederam-se de 1900 lho, Silvino Ayres, a organizar um ban-


CE

até 1940. Suas histórias são agora rela- do com o intuito de vingar o crime, atri-
tadas em ordem cronológica. buído aos inimigos da família. Enviou
EE

este um mensageiro à região de Moxo-


EE

tó, onde agia o bando de Luiz Mansi-


1) ANTÔNIO SILVINO dão, solicitando o auxílio de seus pa-
rentes e agregados. Né BaptistaeZefe-
rino partiram então para a zona do Tei-
E

xeira e ali ficaram sob as ordens do


E
E

chefe, de quem Né Baptista, além do


e
TE

mais, era afilhado. Depois de liquidar a


maior parte de seus inimigos, Silvino
Nascido em 1875, em Pernambu-
Ayres retornou à vida de criador de ga-
co, seu nome verdadeiro era Manoel
do. Os dois irmãos regressaram a Per-
Baptista de Moraes. Descendia dos
nambuco para prosseguir em suas vin-
Moraes, dos Feitosas, dos Brilhantes,
ganças, reintegrando-se no bando de
isto é, grandes parentelas cujas con-
Luiz Mansidão. Assassinado Mansidão
tendas foram célebres no Nordeste, li-
por um rapazinho que punia assim a de-
gando-se também à poderosa família
sonra de sua mãe, Né Baptista tornou-
dos Cavalcanti Ayres, da Serra do
se o chefe do grupo. Adotou então O
Teixeira, na Paraiba. Sua vida de aven-
nome de Antônio Silvino, em homena-
turas teve como início a decisão, em
gem a seu padrinho Silvino Ayres.
1896. de vinaar a morte do pai. Né Bap-
tista, como era então conhecido, e Seu Segundo os documentos conhe-
irmão Zeferino juntaram-se ao bando cidos, com Antônio Silvino inaugurou-
de Luiz Mansidão, cujas tropelias es- se a fase das lutas contra a policia e as
tavam ligadas às disputas e desfot- autoridades locais. Capitães, tenentes,
sargentos, delegados e subdelegados,
ras dos Cavalcanti Ayres, e por meio

41
à frente de praças, perseguiram o gru- orientaram para rumos mais diferentes
po, travando com ele renhidos comba- ainda daqueles que norteavam os ban-
tes. Afastando-se pouco a pouco das dos do “cangaço submisso” | Mostran-
lutas políticas e das vinganças familia- do que considerava cada vez mais
as
res, Antônio Silvino delineava, com autoridades locais, regionais e esta.
suas ações, um outro tipo de cangacei- duais, como seus verdadeiros inimi-
ro, CUjos inimigos eram as autoridades gos. Armava tocaias para os correios
locais e a polícia. Caracterizava-se, as- sertanejos, queimando toda a corres-
sim, como um “fora-da-lei” no sentido pondência, sob pretexto de que iam ali
estrito do termo. denúncias ou ordens para sua perse-
Antônio Silvino não gostava de guição. Atacava as turmas de operários
grupos numerosos: cinco ou seis com- que empreendiam a construção da Es-
panheiros e boas armas lhe bastavam. trada de Ferro Great Western, perse-
Tinha todo o espaço das caatingas pa- guindo e assassinando tanto enge-
ra as andanças, os combates, os sam- nheiros quanto trabalhadores, obs-
bas que compunham sua vida. Tinha truindo as linhas já construidas. Parava
duas fraquezas: diamantes e perfumes. os trens e cobrava “taxas de passa-
“Lavava-se por assim dizer, em água- gem” dos passageiros aterrorizados,
de-colônia estrangeira, seus cabelos alegando que a estrada atravessava ter-
estavam reluzentes de brilhantina chei- ras que lhe pertenciam e pelas quais
rosa, trazia nos dedos grossos aros de não havia sido indenizado. Saqueava
ouro em que se encastoavam brilhan- coletorias, mesas-de-rendas, agências
tes. Suas armas eram muito bem cuida- postais. Cobrava impostos de nego-
das. Carregava sempre consigo um ri- ciantes e criadores de gado. Volta e
fle «Winchester» de catorze tiros, um meia telegrafava irônico ao governo fe-
punhal de belíssimo cabo de prata tra- deral, “prestando contas” do que esta-
balhada, uma pistola Browning, cartu- va empreendendo...
cheiras duplas recheadas de balas.”
Como todo bom cangaceiro, fazia lon- Nestas atividades, percorria sem
gas caminhadas a pé, e dizia-se que era cessar o sertão de Pernambuco, passa-
capaz de percorrer 18 léguas em 24 ho- va para o Rio Grande do Norte e a Parai-
ras. ba quando bem entendia, escapava pa-
A Dartir de 1906, suas façanhas se rao Ceará, surrando, saqueando, fazen-
aiii
o

Grupo de cangaceiros (1934).

42
do sofrer vexames os habitantes, as- as eleições locais. Em Caicós, Antônio
Silvino fez comício em praça pública,
sassinando, fosse qual fosse a posição
recomendando candidaturas e... esta-
social dos que considerava seus inimi-
gos. Desta forma, semeava por todo O belecendo a cobrança de certas taxas
para seu grupo. Foi nessas circunstân-
Sertão o terror. Seus coiteiros, espalha-
cias que solicitou aum padre seu ami-
dos por toda parte, davam aviso da mo-
vimentação das tropas, premidos pelo go que intercedesse por ele junto ao
governo do Estado, prometendo mudar
medo, ou então levados pela admira-
ção de seus feitos, ou ainda procuran- “de vida desde que suas atividades pas-
do, através dele, executar suas pró- sadas fossem perdoadas e esqueci-
prias vinganças. Bem pagos para tal, OS das. A resposta foi negativa.
Enfurecido, o cangaceiro retomou
coiteiros pertenciam a todas as faixas
sociais: tanto podiam ser fazendeiros suas façanhas agora com mais auda-
como criadores de gado ou simples cia. Sorrateiro e misterioso, passava €
moradores. repassava entre patrulhas, pelotões,
Por volta de 1910 ou 1911, Antônio destacamentos e tropas. A polícia,
Silvino conheceu Juventina Maria da diante do pouco resultado de suas bus-
Conceição (Tita), filha de um fazendei- cas, encarava-o quase como um fantas-
ro, por quem se apaixonou. O pai da jo- ma. Reaparecia de imprevisto nas po-
vem, não se sabe se de bom grado ou voações matutas, apresentando-se co
premido pelas circunstâncias, consen- mo “procurador do governo”, cobrando
tiu no casamento. Porém, Tita conti- impostos, principalmente de criadores
nuou morando com a família, visitando- e negociantes, e arrecadando assim
a Antônio Silvino nos intervalos de dinheiro para financiar as despesas co-
suas aventuras. Como a grande maioria tidianas de seu bando. Proclamou-se
dos cangaceiros, Silvino não admitia “governador do Sertão”, e negava qual-
mulheres em seu bando. Por esse tem- quer legitimidade aos governos locais
po, o nomadismo começavaa lhe pesar “ou regionais. Sua ousadia chegou ao
e resolveu mudar de vida. O momento ponto de, por vezes, chamar autorida-
parecia propício para tal: seu prestígio des policiais ao telefone, avisa-las do
era grande; os poderosos locais (co- lugar onde se encontrava € telegrafar
merciantes, fazendeiros, políticos) pro- ao presidente do Estado a fim de
curavam estar em paz com ele, estabe- desafiá-lo a que o capturasse.
lecendo alianças para preservar Seus Em 1918, finalmente, “desgraçou-
bens e sua autoridade. o” a perseguição constante que lhe
Antônio Silvino passou então a In- moveu uma vítima, o comerciante Josê
terferir abertamente na política de cer- Alvino Corrêa de Queiroz, dono de um
tos municípios do Rio Grande do Nor- pequeno armazém perdido no Sertão,
te, onde sonhava estabelecer-se como que, assaltado, ficara reduzido à mise-
criador de gado. Assim, por exemplo, ria. Jurando vingar-se, José Alvino in-
em 1912, teve longo encontro com O gressou na polícia de Pernambuco, no
chefe político de S. Miguel de Jucurutu posto de sargento, e passou a seguir O
e com o juiz de direito de Acari, regado cangaceiro, buscando capturá-lo. Sou-
abundantemente com cerveja, a fim
de be um dia que Antônio Silvino estava
homiziado no municipio de Taquaretin-
chegaremacertas determinações para

43
ga, acobertado por dois moradores lo- com toda a família, partiu para o Rio de
cais que muito o temiam. José Alvino Janeiro. Ali solicitou um emprego pú-
penetrou de supetão na habitação de blico ao presidente, alegando que tive.
um deles, que, sob pressão, denunciou ra sua existência cortada pelo cativei-
o local em que Antônio Silvino e quatro ro, quando poderia ter tido uma vida
ou cinco companheiros, confiantes em normal se lhe houvessem dado condi-
seus coiteiros, jogavam cartas tranqui- ções de abandonar o cangaço. Getúlio
lamente sob um juazeiro. Surpreendi- Vargas achou graça na pretensão do
dos, responderam aos tiros da polícia, ex-cangaceiro, e propôs-lhe um empre.
dispersando-se pouco a pouco entre go. Antônio Silvino recusou e pediu pa-
moitas e arvoredos — alguns deles ra falar diretamente com o presidente.
muito feridos, entre os quais o próprio Nesta audiência, apresentou-lhe um re-
chefe. Antônio Silvino conseguiu querimento (redigido por um amigo,
arrastar-se até a casa de um apanigua- pois era analfabeto), no qual se queixa-
do seu, Manoel Mendes, e mandou pro- va de que o trabalho que lhe haviam da-
por ao comandante da tropa sua rendi- do não era digno de um homem, era ta-
ção. Este, temeroso de uma embosca- refa para “cabra” safado e sem-vergo-
da, manteve-se três dias cercando a ca- nha... Getúlio Vargas compreendeu a
sa, sem dar resposta. No entanto, dian- reclamação e arranjou novo emprego, .
te da insistência do sargento José Alvi- mais satisfatório, para o qual foi então
no, resolveu dar assalto à mesma. Lá nomeado o velho cangaceiro. Falecen-
dentro só se encontravam a família e o do Antônio Silvino em 1944, Tita conti-
ferido, este em tão mau estado que não nuou morando no Rio de Janeiro até
reagiu. . 1955, quando, com seus filhos, retor-
José Alvino impediu que Antônio nou ao Estado natal.
Silvino fosse sumariamente liquidado;
sua vingança era outra. O cangaceiro EST]
B Es.
foi levado para o Recife, onde foi pro- 2) LAMPIÃO
cessado e condenado a trinta anos de
prisão em penitenciária. Antônio Silvi-
no, cangaceiro independente, que não
se submetera a nenhum chefe político,
não teve, por isso mesmo, ninguem
que intercedesse por ele — nenhum Em 1930, quando as histórias so-
poderoso local, nenhum chefe de nu- Dre as atrocidades de Lampião chega-
merosa parentela — como acontecia vam ao auge, o folclorista Leonardo
sempre nos casos do “cangaço sub- Motta perguntou a Antônio Silvino, en-
misso". Condenado, purgou paciente- tão preso na penitenciária de Recife:
- mente sua pena nas prisões do Recife, “— Silvino, que é que você me diz
constantemente visitado por sua mu: de Lampião?
lher Tita, que não o abandonou. — Ah, seu Doutor, Lampião é um
Vinte e alguns anos depois, Antô- Prinspe!
nio Silvino foi agraciado com a liberda- — Principe por quê?
de pelo presidente Getúlio Vargas. Não — Veio depois de mim. Os tem-
quis mais permanecer no Nordeste e, pos são outros. A arma estão mais

ar
aperfeiçoada. Não falta quem lhe dê tu- gos variados provenientes do litoral,
es- eram condições novas, que criavam
do. Caixeiro viajante não é besta pra
ele um contexto diferente daquele que
quecer de levar presente de bala pra
um existira no tempo de Antônio Silvino.
(...) Não tenha dúvida: Lampião e
| Acreditava-se que todas estas Cir
Prinspe!”
Para OS sertanejos, que ouviam cunstâncias novas deviam criarum am-
e a in fâ nc ia es tó ri as de pr ín ci pes e biente desfavorável ao cangaço. A
desd
pr in ce sa s, re la to s da s fa ça nh as dos maior rapidez de circulação, tanto das
de
Mag- pessoas quanto das notícias, O aumen-
Doze Pares de França e de Carlos
Ma- to de população, O incremento do co- .
no, de João de Calais, da Princesa
, ser pr ín ci pe si gn if ic av a re unir mércio, seriam provavelmente favora-
ga lo na
mesmo veis à polícia e desfavoráveis ao canga-
riqueza, autoridade, podere ao
tempo ter uma boa estrela. Mas a
fala ço. Não era o que acontecia porém. E
ze verdade que o Sertão não era mais um
do cangaceiro, encerrado havia do
anos na prisão, exprimia também as deserto dividido entre diversas paren-
mudanças havidas na região, O pro telas habitando em suas fazendas. É
gresso que caminhava. A abertura de verdade que se multiplicavam as vilas e
estradas, a instalação do telégrafo e as feiras, às quais acorriam em maior
das ferrovias, a multiplicação de esco- número os caixeiros viajantes. No en-
e os comerciantes a quem
las e delegacias, a maior quantidade de . tanto, estes
habitantes, a maior penetração de arti- serviam, desejosos de resguardar ha-

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45
veres e mercadorias, preferiam pagar o filho Jose, estabelecendo-se perto
um “imposto” ao Rei do Cangaço, sob da vila de Carqueijo, levando dai por
a forma de armas modernas e muni- diante vida pacifica de fazendeiro.
ções, do que persegui-lo e arriscar-se a Para enterrar definitivamente a lem.
perder tudo o que tinham. Lampião se brança do ocorrido, O jovem José
movimentava agora na caatinga com que se aborrecia com disputas e con: |
muito mais facilidade do que seus pre- flitos, adotou o nome Ferreira da Sil.
decessores, seu raio de ação se tornara va. Ào casar com Maria Lopes, com-
incomparavelmente maior do que o prou fazenda em Ingazeira e ali nas.
dos cangaceiros anteriores, a sua per- ceram seus nove filhos. Virgulino, o
manência também ultrapassou tudo terceiro, veio ao mundo entre 1898 e
quanto houvera antes. 1900, não havendo acordo nos docu-
A fala de Antônio Silvino indicava, mentos quanto à data precisa. Virgu-
pois, que o próprio desenvolvimento lino morou a princípio com sua avó, e
econômico do Sertão, cujo melhor sin- frequentou escola primária durante
toma era a proliferação dos caixeiros três anos. Com 12 anos, aprendeu o
viajantes palmilhando as caatingas ofício de amansador de cavalos. Seu
com suas mercadorias, oferecia condi- pai e seus irmãos mais velhos, além
ções para a continuidade dos canga- de criadores e lavradores, eram tam-
ceiros. Negociantes e ambulantes, an- bêm almocreves, isto é, alugavam e
siosos por salvaguardar seus interes- tangiam tropas de burros para trans-
ses, encontravam no auxilio clandesti- porte de mercadorias, e o jovem Vir

=
no ao grande cangaceiro a solução pa- gulino os acompanhava frequente-
ra a defesa e garantia de seus negó- mente em suas viagens.
cios. Na adolescência, Lampião fora al- O município de Serra Talhada, on-
mocreve, isto é conhecera um Sertão de habitavam, estivera sempre per-
no qual os meios de negociar, os meios turbado por uma querela que opunha
de transporte e de comunicações eram duas parentelas, em luta pela domi-
as tropas de burros. Na idade adulta, vi- nação local: os Pereiras e os Carva-
via uma nova fase do comercio sertane- lhos. Depois de um periodo de abran-
jo, assegurada agora pelos viajantes damento, as disputas voltaram a se
dos comerciantes fortes das capitais, envenenar em 1916. José Ferreira ti-
que se utilizavam das estradas de ferro nha relações de aliança com os Pe-
e de rodagem para captar os fregueses reiras. Nesse ano, o patriarca dos Pe-
habitando nas caatingas. Nova etapa reiras, o célebre Padre Pereira, filho
de desenvolvimento econômico que, do Barão de Pajeú, fora morto por um
para se implantar, necessitava de segu- Carvalho. Um dos filhos do morto, Si-
rança; e esta era “negociada” com o nhô Pereira, decidiu vingar-se e, à
Rei do Cangaço. frente de numeroso bando de paren-
Mas quem foi Lampião? tese moradores, principiouacorrera
Seu avô, Antônio Alves Feitosa, caatinga em busca do assassino.
implicado na luta de familias entre | Ora, vizinho a José Ferreira, ha-
Montes e Feitosas no Ceará, tendo bitava o fazendeiro José Saturnino,
morto um inimigo mais ou menos po- da família Nogueira, aliada aos Car-
deroso, fugira para Pernambuco com valhos. Intensificando-se as quere-

46
las entre Pereiras e Carvalhos, atri- doida me pegar, vou, mas muito aper-
tos começaram a surgir entre as fa- riado e com o coração preto. Estou
milias de José Ferreira e José Satur- aguardando uma oportunidade que se
nino, por motivos fúteis, mas que de- me permita fazer o serviço uma só vez,
sencadeavam muitas vezes peque- que não me seja mais preciso voltar pa-
nos tiroteios, com feridos de parte a ra completar a obra”. Permaneceram
parte. A mudança da situação politi- então fora do cangaço os irmãos João
ca municipal, em 1917, levou José (dos mais velhos), encarregado de
Saturnino ao poder. Decidiu então olhar pelas irmãs e Ezequiel, o mais no-
José Ferreira abandonar o local, pre- vo, ainda menino. João nunca entrou
vendo o envenenamento dos contfli- para o cangaço; Ezequiel, porêm, mais
tos e querendo furtar seus filhos
de tarde, ainda adolescente, evadiu-se da
maior participação neles. Instalou- tutela de seu pacífico irmão e foi levar
se em Mata Grande, Alagoas, refugio vida de aventuras sob o mando do Ir-
dos Pereiras quando no ostracismo mão guerreiro.
político, a fim de fugir das persegui- Em 1922, Sinhô Pereira resolveu
ções dos Carvalhos. No entanto, na- abandonar as tropelias pelo Sertão,
quele momento, também em Ala- tanto mais que de todos os inimigos
goas os chefes políticos inimigos que responsabilizava pela morte deseu
dos Pereiras detinham o poder, nos pai, somente restava um. Aceitou en-
municípios vizinhos. Alegando a ne- tão os conselhos do Padre Cicero, de
cessidade de “manutenção da or Juazeiro do Ceará, de quem era devoto,
dem”, uma força municipal de outro e, seguindo o exemplo do primo Luiz
município foi à casa de engenho on- Padre, retirou-se para Minas Gerais, on-
de se homiziara a família e, aprovei- de comprou fazendas e se instalou co-
tando a ausência dos filhos, assassi- mo criador de gado. Antes de partir, po-
nou o velho, depois de rápida troca rém, pediu a Virgulino — que se tornara
de tiros. seu braço direito, tão bem dotado era
Ao regressarem os irmãos, diante para aquela vida — que liquidasse o úl-
do quadro que encoriraram, resolve- timo inimigo de sua família. Virgulino
ram que a melhor forma de vingança Ferreira da Silva cumpriu integralmen-
seria aderirem ao bando de Sinhô Pe- te o pedido e assumiu, dai por diante, a
reira que, com seu primo Luiz Padre, direção do bando.
percorria o Sertão de Pernambuco, li- Já então ganhara a alcunha de
quidando todos os parentes e aderen- Lampião, pois, de tão rápido no tiroteio,
“sua espingarda nunca deixava de
tes de Carvalhos e Nogueiras. A decla-
ter clarão, tal qual um lampião'. Assas-
ração então efetuada por Virgulino ao
cel. Antônio Pereira, perto do povoado
sinado o último inimigo de Sinhô Perei-
ra, como havia prometido, Lampião viu-
de Vila Bela, em Pernambuco (transmi-
foi se livre para agir por sua própria conta.
tida por este a Optato Gueiros),
dia Optato Gueiros, oficial de policia que O
grandemente significativa: “No
ou perseguiu durante anos, assim se ex-
em que eu acabar com OS Nogueiras
da Serra Verme lha, como pressou a seu respeito: “Dobrou a cer-
expul sá-lo s
ei viz de quase todos os fortes chefes ser-
eles o fizeram com meu pai, já poderbala tanejos que dispunham de cabras, as-
uma
morrer, mas se antes disso
47
A
miílias de fazendeiros, de vaqueiros, de

c—
sim como de quase todas as famílias
privilegiadas, que tinham na sua crôni- moradores, que fossem “gente” dos
ca feitos de guerra (no derramamento coronêis com quem estabelecera
de sangue) à emboscada, e de frente. alianças, podiam viver sossegados, na
Muitos desses dominadores do Sertão certeza de que nada sofreriam às mãos
impunham, sob pena de morte, a retira- do Rei do Cangaço. Todavia, os paren-
da de autoridade onde exerciam as tes e agregados de mandões locais
suas funções, quando as desagrada- que haviam recusado atendê-lo so-
vam. À quase todos Lampião humi- friam às suas mãos, mais ainda do que
lhou, a ponto tal que muitos fizeram os chefes, porque mais desprotegidos.
com ele pactos de amizades humilhan- Suas maiores crueldades se orienta-
tes, ditados pelo próprio cangaceiro. ram sempre, porém, contra aqueles
Muitos houve que se faziam de inimi- que, tendo com ele estabelecido algum
gos do bandido e, à socapa, estavam pacto, depois o trairam. A vingança não
com ele conferenciando. Caixas e mais se exercia somente contra o culpado e .
caixas de cerveja eram fornecidas nes- sim contra todos os seus próximos.
sas ocasiões ao grupo. Até senhoras e Assim, as atividades de Lampião
senhoritas iam ver de perto o rei do nunca eram gratuitas. Tinham sempre
banditismo”. uma finalidade: ou obter meios para po-
Todas as aventuras de Lampião, der prosseguir na sua vida, exigindo pa-
nas varias regiões do Sertão, estiveram gamento de “impostos” de fazendeiros
sempre orientadas pelos pactos que fi- e comerciantes; ou então vingar ofen-
zera com determinados coronéis. Fa- sas e traições que contra ele tivessem
sido cometidas. É enorme hoje a docu-
Ty 7 Es aço
ADS 3
mentação que se tem sobre suas faça-
À - E Ê q ; ã
nhas; em que se torturava, saqueava e
Es E FARA Ea degolava tanto pobres quanto ricos,
eram violentadas mocinhas, mulheres
e até velhas, humilhavam-se autorida-
des, fazendeiros e também sitiantes,
vaqueiros e moradores.
O bando era perfeitamente organi-
zado. Dividido em patrulhas de no mini-
mo seis homens, dispersava-se por vá-
rios Estados do Nordeste, sem deixar,
porêm, a região do Sertão. Cada chefe-
te de bando tinha o direito de escolher
onde queria agir, porêm devia obede-
cer sem discutir as ordens emanadas
de chefes mais graduados. Optato
Gueiros, que de perto os conheceu,
conta que “quando quaisquer desses
Lampião e seu irmão Antonio. pequenos grupos se viam por demais
seguidos de perto, debandavam-se
(sic), tomando cada homem di
reção

48
oposta, procurando dissimular o mais 22 de fevereiro:
possível as marcas plantares e, por fim, Lampião atacou a fazenda Serra Ver-
reuniam-se em lugar previamente de- melha, município de Vila Bela (atuz!
terminado, muitas vezes à retaguarda, Serra Talhada), matando seu proprie-
deixando a tropa (de polícia) confundi- tário, José Nogueira, e exterminan-
da em inúteis pesquisas”. | do todo o gado.
Andavam silenciosos e ocultos 04 de março:
nos carrascais, em passinho rápido e Lampião chegou a Juazeiro do Nor-
característico, em que as alpercatas de te, convocado pelo Padre Cicero pa-
couro faziam no chão seco o xá-xá-xá ra combater a Coluna Prestes ao la-
que denunciava a sua chegada. Seu do das forças federais. Acreditou
raio de ação era mais ou menos de 50 que receberia então a patente de ca-
léguas, por entre as noites de espi- pitão.
nhos, pois cangaceiro não andava por 16 de abril:
estradas. Dissimulavam-se pelas caa- O bando invadiu Algodões.
tingas, esgueiravam-se pelas casas e
07 de maio:
justificavam plenamente o que uma
Parte do bando, sob o comando de
vez afirmara Sinhô Pereira a Optato
Sabino, invadiu Triunfo.
Gueiros: “Cangaceiro é invisível, só é
visto quando quer e vê todo mundo 14 de agosto: .
sem ser visto...” Assim eram Lampião e O bando de Lampião interrompeu as
seu bando, de onde a fama de serem comunicações telegráficas de Vila
protegidos por forças ocultas, o que Bela, cortando os fios e incendiando
aumentava O terror que semeavam. os postes.
Surgia inesperadamente nos po-
18 de agosto:
voados — como aconteceu em Souza,
Tiroteio de Lampião com forças per-
na Paraíba, em 1924. O bando cortara
nambucanas no município de Flo-
previamente os fios do telégrafo, im-
resta, Fazenda Favela, resultando 10
possibilitando assim qualquer pedido
soldados mortos e 7 feridos.
de socorro para o exterior. Penetrando
na vila, os cangaceiros pilharam as ca- 26 de agosto:
sas comerciais. Abasteceram-se em Lampião atacou o povoado Tapera,
gêneros; envergaram roupas novas; or- no município de Floresta, matando
- ganizaram um baile; gozaram os favo- 13 pessoas.
res de algumas mulheres que não lhes 02 de setembro:
resistiram. Em seguida partiram, levan- Lampião invadiu Cabrobo à frente de
“do com eles um menino para carregar 150 homens, em perfeita formação
cobertores e bagagens — menino que militar, Comandados a toque de cor-
mais tarde se tornou o cangaceiro Lua neta.
Branca.
06 de setembro:
Para se ter uma idéia da variedade
agia Lampião invadiu Leopoldina, fuzilou
dé atividades e da rapidez com que
de quatro residentes, saqueou o comêr-
o bando, veja-se seu roteiro no ano
Per- cio, a coletoria de impostos, ces-
1926, conforme narra Frederico
truiu o telégrafo.
nambucano de Mello:

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1.º de outubro: atividade, seguia-se outro tanto de re-
Próximo a Floresta, Lampião comba- pouso.
teu com 126 homens a força pernam- Até seu encontro com Maria Bo-
bucana, pondo-a em fuga. nita, não conservara Lampião mulheres
25 de novembro: no bando, a não ser esporadicamente
Lampião sequestrou caixeiros via- em algumas circunstâncias, para cui-
jantes das empresas Souza Cruz e dar de seus terêns. Ao que se sabe,
Standard Oil, exigindo 16 contos de nunca fora um sedutor; tivera apenas
réis de resgate sob pena de morte. amores com prostitutas de povoados.
Por volta de 1928 ou 19229, estando
26 de novembro:
Violento combate na localidade Mo-
Lampião no Norte da Bahia, disse-lhe
um dia um de seus cangaceiros que a
rada, com tropas pernambucanas
filha do proprietário da Fazenda Malha-
que tentavam resgatar os prisionei-
da do Caiçara, no município de Jere-
ros. À luta durou um dia e uma noite.
moabo, estava apaixonada por ele sem
Lampião, à frente de 120 homens,
tê-lo visto e mandava-lhe recado de que
afugentou a tropa.
viesse conhecê-la. Chamava-se Maria e
12 de dezembro: vivia com um sapateiro denominado Zé
Na localidade Juá, os cangaceiros de Neném. Lampião relutou, não gosta-
mataram, a tiros, 127 bois do fazen- va “dessas amorosas”, porém, levado
deiro Joaquim Jardim, no município pela curiosidade e diante da fama da
de Floresta. beleza da jovem, dispôs-se a encontrá-
+4 de dezembro: la. Existem hoje várias versões deste
Tiroteio de Serra Grande, considera- encontro. Todos os testemunhos, po-
do o mais importante dos então tra- rem, concordam em que Maria Bonita
vados por Lampião, que com 90 ca- declarou imediatamente sua disposi-
bras enfrentou uma tropa de 260 sol- ção de partir com o cangaceiro e ele,
dados. À tropa perdeu cerca de 20 subjugado por tanta decisão e formo-
homens e acabou fugindo. sura, consentiu.

Durante um ano, catorze ocorrên-


cias importantes chamaram a atenção
de jornais e autoridades sobre a movi-
mentação do Rei do Cangaço; faça-
nhas distintas, cuja sequência era cor-
tada por periodos de inércia em que os
cangaceiros, refugiados em seus es-
conderijos, refaziam-se das canseiras e
dos perigos, levando uma vida tranqui-
la, comendo, bebendo, em calma ocio-
sidade. A primeira interrupção se deu
entre maio e agosto — três meses de
descanso; em seguida, praticamente
dois meses, em outubro e novembro.
A cada dois ou três meses de intensa
Maria Bonita (1 934)

0
maria Bonita, que não tinha filhos
de sua primeira união, compartilhou
e,
dai por diante à vida do cangaceiro
segundo vários depoimentos, sua in-
fluência no bando foi em geral benéfi-
aten-
ca. Lampião cercou-a sempre de
ções e de carinho, agia como bom ma-
a to

rido e cnamava-a “Santinha”. O exem-


plo do chefe frutificou. Outros canga-
ceiros passaram a se fazer acompa-
E z z
MR Rar

nhar por suas mulheres, que OS seguli-


i-
ram nas grandes caminhadas exaust
vas pelas caatingas, lutando lado a la- Er
echo
E,

do com eles nos combates. Quebrava-


se assim uma regra que até então fora
geral nos bandos de cangaceiros, quer
se tratasse de bandos subordinados a
chefes políticos, quer se tratasse de =
ii! .—— ão = — =

bandos independentes como os de An- Mulher marcada com ferro em brasa por José

tônio Silvino e Lampião: o de serem Bahiano (1935).


grupos exclusivamente masculinos. O
próprio Antônio Silvino, ao se casar vesse moradia fixa, gente estavel que
com Tita, não a levara para a sua com- pudesse dar-lhes trato e apoio. A mor-
panhia: deixara-a na fazenda do sogro talidade infantil, porém, sempre foi
onde ia visitá-la sempre que podia. A muito elevada no Nordeste seco e pou-
paixão de Lampião por Maria Bonita cas dessas crianças puderam sobrevi-
determinara assim uma modificação ver. Dos vários filhos que tiveram Lam-
na composição dos bandos de canga- pião e Maria Bonita, somente restou
ceiros, que depois se repetiu na breve uma menina, criada por seu padrinho,
vigência do bando de Corisco. hoje casada, mãe e avô.
A ninguém era dado, no bando, ter Apesar de ter sempre manifesta-
mais do que uma mulher; e na maioria do gosto pela vida que levava, Lampião
das vezes as mulheres dos cangacel- tentou abandonar o cangaço várias ve-
ros foram esposas fiéis e devotadas. zes, antes e depois de sua união com
Houve porém alguns casos de traição, Maria Bonita. Três dessas tentativas
sempre punidos de morte. Zé Baiano, estão bem documentadas e é possivel
companheiro de Lampião quase desde que tenham havido outras. Nas três
os primeiros dias, tornou-Se célebre ocasiões, estabeleceu-se em lugar fi-
a xo, em municipio no qual podia contar
pela mania de marcar suas iniciais
ferro em brasa no rosto das mulheres com a boa vontade das autoridades ci-
pos suí a. Diz -se que Se vin gav a as- vis e eclesiásticas, dos fazendeiros,
que
dos habitantes em geral. Subitamente,
sim da traição de Lídia, sua primeira
| porém, algo ocorria que o impelia nova-
mulher.
crianças nascidas destas mente para a vida errante. Numa des-
As
e ti- sas vezes, antes de conhecer Maria Bo-
uniões eram entregues à gente qu

91
nita, chegou a adquirir fazenda perto de do, levaria em suas terras vida nova, co.
Vila Bela(Pernambuco)e é-interessante mo capitão do Exército.
historiar mais de perto o que então su- Ao marchar contra a Coluna, Lam.
cedeu. pião pernoitou na fazenda de um coro.
nel seu amigo. Gabou-se então do pos.
Encontrava-se Lampião em sua fa-
to a que fora alçado, do ofício com sua
zenda,tentandoprovar que havia aban-
nomeação, da vida nova que assim ini.
donaado vida de aventuras, quando, de
ciava. O coronel, porém, tomando co.
Juazeiro do Ceará, mandou-lhe um ape-
nhecimento do documento, declarou.
lo o Padre Cicero Romão Baptista (o fa-
lhe que seu valor era nulo. O inspetor
moso Padroeiro do Nordeste) a fim de
do Ministério da Agricultura, que o as-
que o viesse auxiliar na expulsão da
sinara, não tinha poder nenhum para
Coluna Prestes. que havia penetrado
nomeà-lo para nada, muito menos para
na região. Como todo bom sertanejo,
o Exercito, não tendo aquele papel ne-
Lampião reverenciava muito “Meu Pa-
nhum significado de anistia para suas
dim Pe. Cicero”, abstinha-se de pilhar
façanhas, nem valendo como uma ele-
as moradas em que sua imagem esti-
vação a capitão. Desapontadissimo
vesse entronizada e respeitava em
-com o logro, Lampião decidiu abando-
suas andanças todo o Estado do Ceara,
sobre o qual reinava o sacerdote. Por nar a perseguição da Coluna Prestes,
isso, acorreu logo ao chamado. uma vez que nada lucraria com isso.
Regressou à sua fazenda de Vila Bela, e
Foi recebido com sinos repican- passou a exigir que o tratassem sem-
do, foguetório, festas, e, ao pedido de pre de Capitão. Assinava todos os seus
auxilio do Padrinho, replicou com a exi- documentos como Capitão Virgulino
gência que achava natural e justa: que Ferreira da Silva. Pouco a pouco foi re-
o Presidente da República oficializasse tornando as suas atividades de canga-
sua missão, dando-lhe o posto de capi- : ceiro, desistindo de mudar de vida.
tão do Exército brasileiro, armas e car- Lampião voltou a manter seu rit
tuchos para cada um de seus homens mo habitual, entremeado de períodos
(que eram então 300) e fardamento no- de atividade e de periodos de calma.
vo, pois seus homens também se in- Muitas vezes, para estas “férias”, reco-
corporariam as forças militares. Padre lhia-se ao Ceará, onde tinha certeza de
Cícero concordou plenamente. Man- permanecer tranquilo. Em 1928, a per
dou chamar a maior autoridade federal seguição que lhe moveu a polícia de
da cidade — um inspetor do Ministério Pernambuco foi tão intensa que, para
da Agricultura — ordenando-lhe que re- escapar, novamente se valeu do recur-
digisse o documento competente. As- so de dispersaro bando, meio eficaz de
sim foi feito. Armado e municiado, que sempre lançava mão para desnor-
Lampião, transformado em capitão le- tear o inimigo. Já nessa época havia
galista, deixou a cidade com sua tropa, aberto mão da fazenda que comprara
indo em busca da Coluna Prestes, a fim no município de Vila Bela. À frente ape-
de dominá-la. Estava muito satisfeito nas de um pequeno grupo, embrenhou-
com o rumo que tomavam as coisas.
se pelas caatingas. Não tendo sido. fe-
Era já fazendeiro em Pernambuco e, liz num encontro com a polícia per-
terminada a tarefa de que fora incumbi- nambucana, ferido e desanimado, bus-

52
re fú gi o de st a ve z no no rt e da Ba- res. O restante do bando, dividido sem-
co u
hia, de ci di do no va me nt e a ab an do na r O pre em pequenos grupos, sob o co
cangaço. mando de lugares-tenentes seus, co
Recebido pelo mais rico fazendei- mo Corisco, Labareda e outros, contr
ro da região, o Coronel Petronilho de nuavam os ataques em diversas zonas,
Alcântara Reis, do município de Santo em nome de seu chefe. Levados a efel-
antônio da Glória, fazendo amizade to quase ao mesmo tempo, sempre
com o Coronel João Sá, do município com a declaração de que Lampião em
de Jeremoabo, e com o Coronel João pessoa os chefiava, desorientavam a
maria de Carvalho, do município de polícia, reforçando a crença de que O
Serra Negra, municípios estes vizi- Rei do Cangaço era protegido por po-
nhos, julgava Lampião ter alcançado deres sobrenaturais. Depois os diver-
agora, plenamente, a ambição de se Sos grupos iam até o Angico, dar conta
tornar fazendeiro. Foi neste período de do sucedido, ao chefe.
calmaria, vivendo na região como qual- Data desse período a acusação
quer cidadão, que conheceu Maria Bo- efetuada contra Lampião, de explorar
nita e com ela se uniu. Vários inciden- seus chefes de grupos comerciando
tes porém o indispuseram com o Coro- com eles armas e munições que nego-
nel Petronilho; a polícia estava cons- ciantes e caixeiros encaminhavam pa-
tantemente a ameaçá-lo e Lampião ra o seu bivaque. Segundo Optato
acabou voltando às antigas práticas, Gueiros, “na proporção em que estava
por volta de 1930. - sendo gasta a munição e revendida por
A última fase de sua vida, a partir ele, ganhando cento por cento, seria O
de 1936, passou Lampião na fazenda bastante para Lampião enricar (sic)
de outro amigo, o Coronel Antônio Car- acumulando milhões”. Este teria sido
valho, na localidade de Angico, Estado um comportamento constante do gran-
de Sergipe. Ali permanecia sediado de cangaceiro, para fazer face às mui-
com Maria Bonita, mais uns oito com- tas despesas de sua vida. Se Lampião
panheiros e suas respectivas mulhe- explorava os chefes dos grupos, seus
subordinados, era por sua vez explora-
"pe E do pelos comerciantes e coiteiros, que
Ba
lhe vendiam a bom preço as munições
indispensáveis. Muitos destes, rece-
:a bendo o polpudo dinheiro das com-
pras, fugiam imediatamente, quase

AO (SN
=
E: sempre para S. Paulo. Indivíduos que
mascateavam pelo Sertão alcançaram
assim grandes fortunas. O apoio dado
a as

ço AE | v ao Rei do Cangaço provinha, muitas ve-


zes, destes ambiciosos que encontra-
vam na colaboração com os cangacei-
ros uma via certa de ascensão econô-
mica. Tais negociatas se teriam am-
pliado muito durante o periodo em que
e Maria Bonila Lampião viveu em Angico.
Lampião

33
Muito bem instalado em seu refu- ze componentes do bando, inclusive o
gio, o grande cangaceiro somente se de duas mulheres, Maria Bonita e Ene.
afastava quando surgia uma incursão dina, foram decapitados, os corpos ati-
que lhe parecia grandemente proveito- rados num riacho seco. As cabeças,
sa, regressando em seguida ao seu colocadas em latas de querosene,
abrigo. Ali vinham ter constantemente chelas de sal grosso para serem con-
coronéis e chefes locais, para se diver- servadas, ficaram expostas nos de-
tir na jogatina, comendo e bebendo do graus da igreja matriz de Santana do
melhor. Foi ali também que o surpreen- Ipanema, para onde acorreu gente de
deu a traição que lhe roubou a vida: um todas as bandas a contemplá-las. A no-
comerciante com quem habitualmente tícia de que o invencível Lampião fora
negociava, capturado pela policia, não morto, se espalhou com enorme rapi-
apenas revelou o esconderijo, mas dez. Muitos não acreditaram, pois Lam-
também guiou a tropa ate la. Chegando pião era curado de cobra, de corpo fe-
de supetão, travou intensa fuzilaria chado para bala e punhal, tendo fei-
com os cangaceiros surpreendidos, to parte tanto com Deus quanto com
que não tiveram possibilidade de defe- o Diabo... Foram, portanto, verificar
sa: perderam a vida. Esta seria uma das se era dele realmente a cabeça que ali
* várias versões do sucedido e a que pa- jazia.
rece mais plausivel. De Santana, as cabeças foram
A selvageria com que agiram en- conduzidas a Maceió, onde também
tão os soldados da polícia e seus co- permaneceram em exposição e final-
mandantes foi proporcional às cruelda- mente levadas para Salvador, onde mu-
des que habitualmente o grupo pratica- mificadas, integraram o acervo do Mu-
va nos povoados. Os cadáveres dos on- seu Nina Rodrigues, pertencente ao

AS cabeças de 11 cangaceiros mortos em Angico

54
Instituto Antropológico e Etnográfico sempre calma e compostura nestas cir-
da Bahia. Durante longos anos, em bo- cunstâncias tão diferentes de sua vida
cais, no Museu, as cabeças de Lam- habitual. Mais tarde, libertados, de-
pião, de Maria Bonita e de seus compa- sempenharam vários ofícios: Bananeli-
nheiros, serviam para mostrar ao povo ra foi funcionário municipal em Salva-
— afirmavam as autoridades — um ca- dor; Volta Seca, empregado na Leopol-
minho que não deveria ser seguido: O dina, Rio de Janeiro; Labareda, porteiro
do cangaço. Trinta anos mais tarde, a fi- do Conselho Penitenciário na Bahia;
lha e os netos do grande cangaceiro Vinte e Cinco, amanuense do Tribunal
conseguiram autorização para a inu- Eleitoral, em Alagoas; Criança, abasta-
mação dos restos mortais de todos. do fazendeiro no Sul do País e assim
por diante. Dentre eles, coube a Sara-
Uma vez desbaratado o nucleo cura uma função especial — a de guar-
central do bando, as autoridades man- da do próprio Museu Nina Rodrigues.
daram proclamar por toda parte, no Ser- Ali cuidava das relíquias do seu tempo
tão, que os remanescentes teriam a vi- de aventuras, espanava os bocais em
da salva, se entregassem as armas e se que jaziam as cabeças do chefe e dos
rendessem. Existiam ainda grupos co- companheiros, convicto de que estava
mandados por subchefes, que foram ao mesmo tempo prestando inestimá-
se entregando praticamente todos, vel serviço na conservação da memória
com exceção dos subordinados de Co- do cangaço e servindo ainda, com res-
risco. Processados e condenados, peito e carinho, ao seu chefe e aos
cumpriram pena na cadeia, denotando companheiros.

O cabo Bezerra e o sub-tenente Ferreira de Melo, autores do massacre de 1938.


Diabo Louro. Seu nome era Cristiano
3) CORISCO Gomes da Silva Cleto. Era neto de um
grande fazendeiro de Alagoas que, to-
dos os anos, partia em peregrinação
até Juazeiro do Ceará, para pedira bên-
ção ao Pe. Cicero. Compunha então
uma grande caravana com membros de
sua família, agregados, servidores e, ao
Dos três grandes chefes, foi Co- som de uma banda de música, percor-
risco o menos conhecido, ou melhor, ria a longa distância até a cidade do Pa.
aquele que, tendo sido menos estuda- drinho. Os homens iam a cavalo, mu-
do, aparentemente reuniu a seu respei- lheres e crianças em carros de boi, os
to menor documentação. Sua mulher servidores e os músicos a pé.
Dada continua viva. Hã anos, residia Pouco se sabe da vida de Corisco
em Jeremoabo, mas recusava-se ter- até sua entrada para o bando de Lam-
minantemente a dar entrevistas e a his- pião. Teria nascido na Bahia, em Santo
toriar aquele periodo de sua vida. Mais Antônio da Glória, porém, ao que se
tarde, prestou alguns depoimentos, conta, fugira de casa, rapazinho, por ter
contribuindo para que se conhecesse sido violentamente surrado pela mãe.
melhor a figura do marido. Depois de várias peripécias, engajan-
Dizem que Corisco, alto, um pou- do-se inclusive num batalhão do Exer-
co corpulento, fisicamente se destaca- cito, em Aracaju, aderira à revolta do
va dos demais por ser louro e de olhos Tenente Maynard. Dominada a rebe-
azuis, de onde também seu apelido de lião, Corisco foi um dos que deserta-
fam, iniciando uma vida de fugas. Um
dia, na zona do Monteiro, Estado da Pa-
raiba, foi esbofeteado, revidou, houve
luta, matou o agressor. Desertor pri-
meiro e, agora, criminoso, buscou O
bando de Lampião, no qual se integrou,
ao que se sabe por volta de 1926. Coris-
co foi um dos companheiros prediletos
de Lampião, que via nele seu provável
sucessor. Além de seus predicados de
grande coragem, de incomum resistên-
cia fisica, de competência no manejo
das armas, também sabia comandar.
O Diabo Louro encontrou um dia,
em 1928, Sergia Maria Ribeiro da Silva,
conhecida por Dadá, filha de um fazen-
deiro do povoado de Macureré, no mes-
mo município de Glória e, apaixonado,
raptou-a, tinha ela 13 anos. Iniciou-se
assim um segundo romance de amor
Corisco. o “diabo louro 11935) No cangaço, que, em fidelidade e ternu-
o e que pudessem garantir-lhes a sobrevi-
ra. emparelhou-se com o de Lampiã
vência na tranquilidade, sendo que o
maria Bonita. Esta união, porem, foi Sa
Dada rapaz foi entregue ao Padre Bulhõss.
cramentada pela igreja. Corisco e
rgi-
casaram-se em Porto da Folha, Se
em Santana do Ipanema, com um reca-
pe, cIrCu nstância de que muito se or
gu- do escrito de Corisco, pedindo que fi-
lha vve
a jo am, costumando afirmar que zesse dele um doutor... Esse rapaz tor-
somente ela era mulher de cangaceiro, nou-se, mais tarde, deputado federal
as outras todas não passando de com- por Alagoas.
panheiras... A partir de 1932, o bando de Lam-
Dadá viveu doze anos no cangaço, pião cindiu-se em três grupos, assim
ao lado de Corisco, que foi o seu mes- permanecendo até 1936: um comanda-
tre, ensinando-lhe tudo quanto sabia: a do pelo próprio Lampião; o outro, por
mad
a se defean
lutar, err
neja ar,
mas de Corisco e o terceiro por Virgínio,o “Mo-
fogo e até mesmo a ler, a escrever, a derno”, cunhado de Lampião, viúvo de
contar. Muito bem dotada para a costu- sua irmã Angelica. Assim divididos,
ra, muito habilidosa, entretinha-se nas atacavam ao mesmo tempo localida-
horas de calma em bordar os bornais, des muito distantes. Enquanto um gru-
as cartucheiras, em ornamentar cha- po invadia Canindê, em Sergipe, outro
péus e vestes dos cangaceiros, inven- atacava Bonfim ou Pombal, na Bahia, e
tando indumentárias femininas corres- o terceiro chegava de surpresa a Pão
pondentes. Teve sete filhos de sua de Açucar, em Alagoas. Estes ataques
união com Corisco, dos quais sobrevi- simultâneos desorientavam a policia.
veram três, um rapaz e duas meninas. Em seguida, reuniam-se os três grupos
Todos foram dados a criar a famílias num ponto previamente convenciona-
do, para relatar o que fora feito. Atrain-
do as forças da polícia para a Bahia,
Alagoas, Pernambuco, Paraíba, afasta-
vam-nas do refugio central do bando,
em Sergipe, onde eram mantidos so-
mente uns oito cabras de confiança e
onde permaneciam as mulheres.
Em 1937, a partilha dos resultados
de um saque, segundo alguns, o assas-
sinato, por Corisco, de um coronel ami-
go de Lampião, segundo outros, deter-
minou o afastamento do Diabo Louro
do bando. Começou a agir por conta
própria. Muito ativo, multiplicou suas
façanhas, aterrorizando a população
das caatingas de Alagoas e Pernambu-
co: Por isso, não se encontrava em An-
gico em 1938, quando sucumbiram
Lampião, Maria Bonita e alguns canga-
ceiros que os defendiam. A morte de
Lampião €& Maria Bonita
(1934). seu chefe abalou muito Corisco, reavi-

57
vando toda a amizad e e que os
e lealdad por toda parte que teria vida Salva
unira. Enfurecido, jurou mat o delator
ar quem, dentre os cangaceiros de Lam.
e, como a tropa assassina fosse co- pião, depusesse as armas. Quem não
mandada pelo Tenente Bezerra, pas- quisesse se entregar, que partisse para
sou a caçar todos aqueles que tives- muito longe, com a garantia de que não
sem “Bezerra ' no nome, ou que tives- haveria perseguições. Corisco e Dadá
sem qualquer ligação com o matador diante das deserções que aumenta.
de Virgulino. vam, vendo antigos companheiros, ou
Sabedor de que o barqueiro Do- partindo para outras paragens, ou se
mingos, tido e havido por amigo fiel de entregando, ou sendo capturados, dis-
Lampião, fora um dos delatores, partiu cutiam entre si o que convinha mais fa-
com seus cabras em seu encalço. En- zer. Hesitavam em abandonar o Sertão
controu-o em seu casebre, lançando-se e o cangaço e nessa incerteza manti-
a uma verdadeira chacina. Apunhalou nham-se em luta constante contra as
Domingos, a mulher, dois filhos rapa- volantes, que, animadas pela vitória de
zes, uma moça, e so não matou mais Angico, prosseguiam ferozes no encal-
duas jovens que restavam, porque Da- ço do grupo. |
dá se interpôs condoida. Cortou a ca- — Foram um diaatacados de surpre-
beça aos mortos, colocou-as num saco sa pelo capitão Zé Rufino, um dos mais
e enviou-as ao prefeito da cidade de Pi- tenazes perseguidores dos cangacei-
ranhas, em Alagoas, com um bilhete: ros. No tiroteio cerrado, caíram feridos
“Se o negócio é de cabeças, vou man- o Diabo Louro e Dada. Zé Rufino tentou
dar em quantidade..." Mais tarde, Pedro transportá-los ainda com vida para a ci-
Cândido, que se supunha também um dade, porém Corisco morreu no início
dos delatores, foi encontrado morto, da viagem e somente sua cabeça — co-
cozido a facadas, na entrada de Pira- mo a de Lampião — chegou ao desti-
nhas, não se chegando a descobrir no, juntamente com Dada. Esta, grave-
quem seria o autor do crime, porêm re- mente ferida numa perna, teve de se
caindo também as suspeitas em Coris- sujeitar à amputação acima do joelho,
co e seu bando. mas recuperou-se. Processada em Je-
Era O momento em que os gover- remoabo, foi impronunciada. Casando-
nadores nordestinos faziam proclamar se pela segunda vez mais tarde, semter
filhos, passou a viver uma pacata exis-
tência de mãe de família, com os filhos
que tivera de Corisco, assim se man-
tendo até hoje, com seus 67 anos.
A morte de Corisco, a 5 de maio de
1940, marca o fim do cangaço indepen-
dente. Um antigo cangaceiro de Lam-
pião costumava dizer, muitos anos de-
pois, que “a vontade de organizar can-
gaços foi arrefecendo, até que termi-
nou por completo”. O Diabo Louro foi O
último dos grandes cangaceiros inde-
Virginio e Enedina. pendentes.

58
snsCOCDD
I R O S
Os

VII — O S C A N G A C E
INDEPENDENTES:
CONSIDERAÇÕES

Por que, no Sertão do Nordeste, eles, num momento dado. Duas espé-
entre 1900 e 1940, formaram-se bandos cies de fatores explicariam o apareci-
de cangaceiros independentes, viven- mento dos bandos de cangaceiros in-
do de assaltos e de aventura, em luta dependentes, assim como sua perma-
constante com a polícia, sem a prote- nência nos primeiros 40 anos do sécu-
ção explícita de chefes políticos locais lo XX, quando até então duravam de um
e, muito pelo contrário, solicitados por a dois anos, ou melhor, o espaço de
estes para que, por meio de pactos e tempo de uma seca, de uma calamida-
alianças, os poupassem, às suas fami- de pública, desaparecendo em segui-
lias, aos seus bens? Por que um ho- da. A primeira espécie é a dos fatores
mem como Lampião podia escrever bi- estruturais, que formam o arcabouço
lhetes aos chefes locais, exigindo di- nos quais se inscrevem todos os acon-
nheiro, no que era prontamente obede- tecimentos sociais e também os fato-
cido? Por que pôde ele contar, em Per- res da segunda espécie, os fatores
nambuco, no Ceará, na Bahia, em Ser- conjunturais.
gipe, com eficiente rede de coiteiros,
de alto níve l? O hist oria dor Fred eric o EE SE
Pernambucano de Mello cita vários co- 1) FATORES
ronéis da Bahia que foram coiteiros, ESTRUTURAIS
como o Coronel Antônio Carvalho, fa-
zendeiro no município de Canhoba,
Sergipe, assim como seu filho, O capi-
tão-médico do Exército, Eronildes de
Carvalho, fazendeiro no município de
No Nordeste seco, O primeiro con-
Gararu, que, com a Revolução de 1930,
foi elevado a interventor federal do Es- glomerado de fatores estruturais dizia
respeito à disposição e relacionamen-
tado. |
to de grupos de indivíduos no interior
Tais questões SÓ podem ser res-
que OS acon te- da sociedade sertaneja. Como se viu.
pon did as. lem bra ndo -se
cimentos sociais não.devem ser atri-
todo o Sertão estava retalhado entre in-
os a um co nj un to ún ic o de fa to- fluências de numerosos troncos de pa-
buíd rentelas, ora aliados, ora inimigos, vi-
várias
res, porém que conjuntos de por
es to rn am -S é re sp on sá ve is vendo em povoamento disperso (cada
espéci

39
fazendeiro habitando em suas terras) e, suficiente com a agricultura, haviam le-
segundo o escritor cearense Gustavo vado grande quantidade de roceiros e
Barroso, “só pensando no vizinho para moradores a estabelecer um comple-
desprezà-lo'. As questões entre vizi- mento sazonal para seus trabalhos,
nhos abundavam, por motivos os mais que trouxesse algum desafogo à sua
diversos: brigas por posse de gado e de pobre economia. Partiam para o
terras; ambição de dominar politica- Agreste e para a Zona da Mata, nas épo-
mente um povoado ou uma região; re- cas de colheita, principalmente de co-
cusas de casamento; crimes “contra a lheita de cana, formando os conheci-
honra masculina”, etc. Estes grandes dos grupos de “corumbas”, que se en-
troncos de parentelas encerravam em gajavam em troca de comida e de um
seu interior desde o fazendeiro abasta- pequeno salário, fielmente trazido de-
do atê o humilde morador, passando pois à família.
pelo vaqueiro, ligados ao chefe por pa- Finalmente, havia outros fatores
rentesco de sangue muitas vezes, ou estruturais, compondo todo o aparato
então por laços de compadrio, ou por politico-administrativo que se fora im-
sentimentos de gratidão. As barreiras plantando e crescendo no Sertão, co-
entre os grupos sertanejos não eram mo algo alienigena, pois era emanação
horizontais, separando uma camada do Governo Central: organização políti-
sócio-econômica de outra; eram verti- ca (divisão em municípios, formação
cais, afastando um grande tronco de de câmaras de vereadores, eleições pa-
parentela de outro tronco semelhante. ra estes cargos e para o de prefeito); or-
No interior de cada grande tronco, as ganização judicial (divisão em comar-
camadas sócio-econômicas estavam cas, nomeação de juizes); organização
interligadas pela solidariedade do pa- policial (nomeação de delegados,
rentesco, pela afetividade das relações apoiados em destacamentos de solda-
diretas e pessoalizadas. Dentro desta dos); e a indispensável organização bu-
estrutura, o cangaço independente po- rocrática (escrivães, funcionários varia-
dia agir como o fiel da balança na luta dos). Esta aparelhagem, exterior à so-
entre duas grandes parentelas — e ciedade sertaneja, imposta de fora, a
muitas vezes foi esse o seu papel. princípio sô pôde funcionar apoiada
Na sociedade sertaneja, a divisão nos grandes troncos de parentelas. Foi
profissional e as especializações de tendendo porem a separar-se deles, a
ofícios eram de pequena monta. Cria- adquirir autonomia e o conflito surdo
ção de gado, agricultura de abasteci- que existia entre o aparato político-bu-
mento, artesanato, funcionalismo pú- rocrático e os coronéis (estes lutando
blico, constituam as maiores fontes sempre por dominá-lo e colocá-lo a seu
de empregos, o que mostraa limitação serviço, com resistências inesperadas)
dos mesmos quanto às possibilidades constituiu um outro elemento positivo
de seu crescimento em quantidade. para O surgimento do cangaço.
Tratava-se ainda de um conjunto de fa- No entanto, estas três espécies
tores estruturais de ordem econômica, de fatores estruturais existiram no Ser-
que se caracterizava pela sua simplici- tão desde que ali começou a funcionar
dade rudimentar. A pequena quantida- a sociedade de criadores de gado e ain-
de de empregos possíveis, o ganho in- da perduram nos dias de hoje. O canga-

60
co independente, porém, foi atuante nuel Corrêa de Andrade, geógrafo e
somente durante um espaço de tempo historiador, relatou num de seus traba-
limitado, embora continuo: de 1900 a lhos como famílias ricas empobrece-
1940. Os fatores estruturais são, pois, ram, como famílias arranjadas ficaram
insuficientes para explicar o apareci- na miséria, como milhares de trabalha-
mento e o fim do cangaço independen- dores perderam seus empregos, como
te. Torna-se necessário apelar para a baixaram terrivelmente os salários. Es-
segunda espécie de fatores a fim de cassearam, portanto, as tarefas sazo-
tentar uma interpretação: os fatores nais em que se ocupavam corumbas e
conjunturais, isto é, fatores especifi- caatingueiros, os quais ficaram reduzi-
cos de um momento preciso da histó- das às magras ocupações oferecidas
ria de uma sociedade ou de umaregião. somente pelo Sertão. À crise do açúcar
e do algodão melhorou um pouco du-
rante a Primeira Grande Guerra (1914
2) FATORES — 1918). O ano de 1923 porêm marcou
CONJUNTURAIS nova crise, mais aguda ainda, levando
ao fechamento muitos engenhos e
muitas usinas.
Nestes períodos, os fazendeiros
da Zona da Mata e do Agreste aluga-
Tributário da Zona da Mata e do vam parte de suas terras, para roça, a
Agreste, sofreu sempre o Sertão Os foreiros e parceiros, sendo pagos com
contragolpes das vicissitudes por que uma parte da colheita. Desta forma,
passavam as plantações de cana e de não somente os habitantes do Sertão
algodão, as quais, por sua vez, depen- perdiam a possibilidade de trabalho
diam do mercado exterior em que tais temporário nessas lavouras, pois forei-
produtos eram vendidos e da concor- ros e parceiros trabalhavam com mão-
rência de outros países, rivais do Brasil de-obra familiar, como também per
nesse particular. O fim do século XIX diam mercado para seus produtos de
foi especialmente desastroso para o al- roça. Nos períodos de alta do açúcar e
godão e para a cana. Terminada a Guer- do algodão, foreiros e parceiros tam-
ra de Secessão nos Estados Unidos bém cultivavam estes dois produtos,
(1861 — 1865), que desorganizara toda tendo então necessidade de comprar
a produção algodoeira norte- de outrem os mantimentos para sobre-
americana, entrou de novo este país no vivência. Nos períodos de baixa de pre-
mercado, fazendo cair o preço dos pro- ço e de crise, faziam suas lavouras para
dutos. sobrevivência e para venda, decorren-
Mais ou menos por essa época, ti- do daí abundância de viveres nas fei-
nha lugar também a modernização da ras, e o Sertão não tinha possibilidade
produção de açúcar no Nordeste, com de escoamento para os excedentes
ban- que produzia. Menor produção, menor
a transformação dos engenhos
ganho, rebaixamento do nível econô-
guês em engenhos centrais, em segul-
a ruina de. mico, maior tempo livre para aventuras
da em usinas, determinando
fa mí li as qu e nã o pu de ra m ar- e conflitos, era o resultado, para o Ser-
inúmeras
ôn us de la de co rr en te . Ma- tão, da crise da cana e do algodão que
car com o

01
a
se estendeu por todo o tomeço do se- dades de ter o suficiente para viver, de.
culo XX. terminando um abaixamento geral do
No periodo de 18/70 a 1900, uma nova nível de existência.
região brasileira se abriu para a utiliza- Documentos e memórias da épo-
ção dos sertanejos, que eram cada vez ca estão cheios de referências à deca-
mais numerosos. Como já se viu, a me- dência e à ruína de grandes e médios
lhoria das condições sanitárias locais fazendeiros nesse período. Basta fo-
havia contribuido para acelerar o ritmo lhear, por exemplo, os livros de Ulysses
do crescimento populacional. A região Lins de Albuquerque para se tér uma
eraa Amazônia, com a extração da bor- idéia do que acontecia. Se tal ocorria
racha. Forte corrente migratória nor- com fazendeiros mais abastados, o
destina se dirigiu para lã, buscando o que não se dira de sitiantes, roceiros,
enriquecimento no novo Eldorado. O vaqueiros e todos os ofícios ligados à
sonho, porem, foi de curta duração. Em vida rural? O cangaço constituiu, nes-
1912, a produção de borracha declinou, tas condições, uma alternativa. Não era
de maneira tão acelerada que, segundo sem razão que Lampião dizia a Optato
o historiador Caio Prado Jr., já em 1919 Gueiros que ser cangaceiro “era um
a produção brasileira de borracha se meio de vida”. Em 1926, indagado por
tornara insignificante. Desapareciam que não abandonava o cangaço, res-
também ali as possibilidades de traba- pondera durante uma entrevista ao jor-
lho para os sertanejos." nal “O Ceara”: “Se o Senhor estiver em
Note-se a coincidência no tempo um negócio e for se dando bem com
entre a grande redução do mercado de ele, pensará porventura em abandoná-
trabalho, para os sertanejos, o rebaixa- lo?”. Replicaria O jornalista que certa-
mento geral do nível de vida no Sertão mente não. Ao que exclamou o Rei do
devido às condições econômicas vi- Cangaço: “Pois é exatamente o meu
gentes e o aparecimento dos bandos caso; porque vou me dando bem com
de cangaceiros independentes, que este negócio, ainda não pensei em
não escondiam sua aspiração a uma vi- abandoná-lo”.
da de aventuras, porém que os levasse,
em determinado momento, a uma ins-
talação definitiva como fazendeiros, is- 3) MERCADO DE
to é, em que vislumbrassem a possibili- TRABALHO
dade de se tornarem pequenos coro-
neis... Noutras palavras, a partir de fins
do século XIX, as crises econômicas
do Nordeste, como região, coexistiram
com um surto demográfico: maior Diante dos inconvenientes do
quantidade de gente atingia a idade de cangaço para a população — assaltos,
trabalhar, quando as conjunturas eco- assassinatos, desordens de todo tipo,
nômicas lhes trancavam as possibili- principalmente para produtores e ne-
gociantes — a polícia tendeu a aumen-
*Ver Peregalli, Enrique “Como o Brasil fi-
tar cada vez mais seus efetivos. Foram
cou assim?" — História Popular nº 9 — São criadas as volantes. Eram novas possi-
Paulo — Global Editora — 1982 (N.E.). Dilidades de emprego que surgiam pa-

62
c o n s u b s t a n c i a v a na fi gu -
a l é m do c a n g a ç o . . . concreto, se
ra os sertanejos , e lo ca l, do co ro ne l, po nt o cul-
Sé a f i r m a s s e só” ra do chef
Não é de admir a r q u e hi er ar qu ia s ó c i o - e c onômi-
se c o nseguir minante da
haver dois c a m i n h o s pa ra n u m e r o sa paren-
gr es - ca se rt an ej a, ch ef e de
v e l m e n t e en tã o: O in
viver conforta à e ntrada tela e clie nt el a, ce rc ad o de se us ho-
file ir as da po lí ci a, OU para
so nas d a só mens, constantemente em luta
o. .. “ H o j e e m d i a a v i
parao cangaç nd er a co nt in ui da de de sua domi-
pr a s o l d a d o e pr a b a n d i d o ” , afir- de fe
é boa ca l OU re gi on al . Er a ri co e po
L a m p i ã o , c o n f orme regis- nação lo
ma ra u m di a en te , a vi sã o do mundo
i s cl aras ainda dero so . Id ea lm
trou R a n u l p h o Pr at a. M a a l a d a pe -
da popula ç ã o se fo rm ar a e m b
Branca ao
foram as declarações de Lua ór ia s do s c o m b a t e s de Carlos
g u e s de C a r v a l h o , ao des- las hi st
es cr it or R o d r i ança, da
a vi da no c a n g a ç o : “. .. é is pi ci a: Magno e dos 12 Pares de Fr
crever Ma ga lo na , de Jo ão de Ca la is,
, num “Princ es a
Na gandaia a gente tem de tudo por ro-
a na da ! T e m di nh ei ro nu bo rs o, rô pa de Roberto do Diabo — isto é,
fa rt la ri a qu e OS co lonos
ca Se ma nc es de ca va
boa e muita coisa mais que nun o e
pensô vê nem in sonho...” portugueses haviam trazido consig
Cangaço e policia constituía
m, que se tornaram muito populares por
pois, nessa época, as alternativas pos- todo o interior do Brasil... Na melhoria
síveis de emprego para grande parte da de vida desejada, a realidade mostrava
população sertaneja, em seus vários ni- qual o ponto mais elevado da socieda-
veis sócio-econômicos. A ascensão de dê sertaneja, como se desenrolava a
um Optato Gueiros, de um Zé Rufino e existência dos que nesse ponto se co-
de tantos outros no interior das hostes locavam. Estas altas aspirações en-
da polícia, tem seu paralelismo no contravam também no ideário sertane-
prestígio e poder regionais alcançados jo todo um conjunto de imagens de
por um Antônio Silvino, por um Lam» fantasia, inspiradoras e ao mesmo tem-
pião, por um Corisco. Cangaço e poli- po justificadoras.
cia eram, assim, as vias de acesso a po- Nesse ponto não divergiam entre
sições econômicas e de poder, a um ni- si OS cangaceiros e os integrantes das
vel de vida que a estagnação reinante volantes, pois estes últimos também
no Sertão negava à maioria dos habi- perseguiam melhoria de vida e ascen-
tantes. Na polícia e no cangaço, OS são sócio-econômica. Orientavam-se
mais ricos alcançavam logo de início igualmente pelas peripécias cavalhei-
posições melhores, porém a ascensão rescas medievais quando saiam a per-
não estava vedada aos de origem hu- seguir incessantemente os cangacei-
milde. ros nas extensões do Sertão. O univer-
Se do ponto de vista utilitário es- so mental e intelectual de ambos era
tas duas “carreiras” pareciam se equi- idêntico. Em termos de esperança, de
valer aos olhos dos sertanejos, do pon- miragem que quia e inspira as ativida-
to de vista racional elas se orientavam des humanas, cangaço e volantes se ir-
segundo dois padrões especificos, um manavam. Um ou outro dos dois rumos
deles pertencente à vida prática e à so- que era possivel tomar, constituiam, na
verdade, aos olhos de todos os serta-
ciedade ambiente, o outro se configu-
rando essencialmente como um pa: nejos, as portas para a celebridade,
ão para a fama, expressando-se mate-
drão ideal. O primeiro padrao, O padr

63
rialmente em posições de destaque, tradas, em busca de melhoria de vida
em notícias de jornais, em ganhos pal- em outra região. A partir de fins da dé-
páveis. cada de 30, a migração nordestina para
o Sul do País não mais se estancou:
pelo contrário, conheceu sempre ace.
4) O FIM lerações.
O cangaço independente, fruto de
prolongada crise de mercado de traba.
lho para os braços do Sertão, porém cri.
se que se localizava fora dele, deixou
de ser realidade e não teve mais condi.
Se a falta de oportunidade de tra- ções de existir, quando novas possibili-
balho nas caatingas e fora delas pode dades de emprego, de melhoria de vi-
explicar por que surgiram bandos inde- da, de enriquecimento foram surgindo
pendentes no início do século XX, per- “em outras regiões do País, e atraindo
durando por muitos anos, e igualmente os mais ambiciosos, os mais inquietos,
por que se formaram as volantes, que os mais carentes. Embora permane-
eram tropas de polícia especialmente cessem como constantes no Nordeste |
destinadas ao combate do cangaço, a seco a estrutura sócio-política corone-
mesma razão permite compreender lista, as rivalidades e lutas entre paren-
por que, a partir de 1940, desapareceu telas, a seca, a falta de instrução, a reli-
inteiramente-o cangaço independente, giosidade popular, o fenômeno consti-
anulando também a necessidade de tuído por bandos aventureiros, como
volantes que lhe dessem combate. A os de Antônio Silvino, Lampião, Coris-
industrialização, que a Segunda Gran- co, não encontrou mais condições eco-
de Guerra acelerou no Sul do País: a nômicas para se desenvolver, sequer
abertura e expansão de novas frentes sob a forma de tentativa. O Sertão se re-
agricolas e novos centros urbanos no velava assim parte integrante de con-
Norte do Paranã; a impossibilidade de juntos sócio-econômicos maiores: a
retomar a importação de mão-de-obra sociedade nordestina, a sociedade bra-
estrangeira, a que sempre se tinha re- sileira, das quais era também depen-
corrido desde o século XIX (européia, dente deviàdosua própria estrutura só-
“asiática ou outra), constituíram novos cio-econômica interna. Quando'crises
fatores conjunturais exteriores ao Ser- abalavam os dois conjuntos maiores,
tão, que agiram poderosamente sobre Suas repercussões eram sentidas no
ele. A miragem dos altos salários e do Sertão, determinando ali o aparecimen-
enriquecimento nas regiões sulinas do to de ocorrências específicas que não
País, onde se acreditava imperar a surgiam em outras ocasiões nem da
abastança, fez com que levas e levas de mesma forma, nem com a mesma in-
sertanejos se aventurassem pelas es- tensidade.

64
TE =
DO

VIII — A F O R M A Ç Ã O DO
MIT O D O €C A N G A Ç O

Antônio Silvino e Lampião, divi-


Quem foram realmente os canga- mo
ceiros? Simples bandidos? Bandidos diam entre os chefes de seu bando as
defensores dos pobres, que roubavam “notas grandes”, davam aos seus ca-
os ricos para dividir com OS necessita- bras o que lhes haviam prometido e em
dos? Hoje em dia, quando a jovem ge- seguida literalmente atiravam aos po-
bres, que por acaso estivessem por
ração urbana fala do cangaço, tende a
interpretá-lo como a formação de gru- perto, notas miúdas e moedas. Não ha-
pos de indivíduos, no Nordeste seco, via, assim, uma partilha que denotasse
que, semiconscientes da situação de algum ideal de igualdade de bens, mas
opressão das camadas inferiores, sob uma concepção paternalista e menos-
o domínio dos coronêis, arvoravam-se prezadora de superiores (os cangacei-
em defensores dos injustiçados. Por ros) para com os inferiores (os necessi-
isso lutavam contra a exploração do tados). Aliás, aqui também a imagem
homem pelo homem, depredavam e modelo era a dos coronéis, muitos dos
roubavam, chegavam a assassinar, po- quais se orgulhavam de serem os pro-
rêm por uma justa causa, a fim de dar tetores dos pobres. Não se pode es-
algo aos necessitados e de procurar quecer,. porém, que em nenhum dos
abalar uma estrutura social, econômi- dois casos (dos coronêis, dos canga-
ca e política abominável e desnaciona- ceiros), tratava-se de pobres em geral a
lizante. Com a formação desta ima- serem protegidos, mas sim dos seus
gem, opera-se a transformação do can- pobres, dos pobres que os auxiliavam e
gaço em mito. os apoiavam. Os pobres que apoiavam
Toda a documentação atê hoje co- seus rivais (no caso dos coronêis),
nhecida demonstra que os cangacei- ou apoiavam coronéis inimigos e a po-
ros foram realmente cruéis e sangúiná- lícia (no caso dos cangaceiros), eram
rios, tanto com os ricos quanto com os cruelmente martirizados quando apa-
pobres. A distribuição de bens entre os nhados.
pobres, que aliás se fazia muito rara- Estas constatações dizem respei-
mente, orientava-se por uma perspecti- to à realidade concreta do cangaço, tal
va que nada tinha de igualitária. Não qual se verifica nos documentos exis-
eram divididos com os necessitados tentes. Ela transparece também na lite-
os produtos dos assaltos, muito pelo ratura de cordel, vendida nas feiras do
contrário; os grandes cangaceiros, CO- Nordeste, onde os cangaceiros são

65
sempre reprovados e julgados dignos devotamento ao Brasil. Este início da
do inferno. A maioria das composições apropriação do cangaço pelo naciona-
em verso relata suas façanhas sanguúi- lismo urbano ocorreu na década de 50.
nárias, e os apresenta como bandidos. É interessante notar a utilização dos
Nota-se, porém, que enquanto Lam- cangaceiros para uma afirmação da
pião é constantemente julgado dessa identidade nacional, no momento em
forma, hã uma tendência para diferen- que se intensificava no País, o proces-
cia-lo de Antônio Silvino, o cangaceiro so de industrialização do Sul, caracteri-
bondoso. Apesar de se reconhecer cer- zado por uma invasão inusitada de ca-
ta gentileza em Antônio Silvino, sua po- pitais estrangeiros e de multinacio-
sição de cangaceiro não é enaltecida: nais. A iniciativa pitoresca de Assis
assim é que, depois de morto, contam Chateaubriand — que não teve conti
os cantadores, ele não foi aceito no nuidade — correspondia, aparente-
céu... Num folheto citado por Nertan mente, a uma especie de sobressalto
Macedo, publicado, ao que parece, em compensatório do patriotismo nativo
1953, narrava-se também como Lam- diante da subordinação paulatina da
pião, ao descer ao inferno, vencera Sa- economia do País aos meios técnicos
tanas e se transformara no rei das pro- e aos capitais financeiros vindos do es-
fundezas. Seus generais eram Hitler e trangeiro. Sobressalto compensatório
Mussolini, os latifundiários eram seus ao nivel do imaginário, enquanto ao ni-
representantes na terra, encarregados vel econômico e prático se operava O
de arrancar dos-pobres “o resto do ou- avanço do capital... É também nessa
ro” que porventura ainda conservas- década de 50 que se dissemina nas ar-
sem. Nesta perspectiva, a condenação tes a utilização do tema do cangaço —
de Lampião chega ao ponto de consi- na pintura, na gravura, na literatura, no
dera-lo responsável pela estrutura eco- cinema, no teatro — numa perspectiva
nômico-poliítica do Ocidente, a que se em que ora se mesclam, ora se sepa-
devia o flagelo do capitalismo, do na- ram os temas dominantes do herói hu-
zismo, do fascismo, e tambem as heca- mano e justiceiro e do nacionalismo.
tombes e crueldades da Segunda Dir-se-ia que, sob a mitologia dos
Guerra Mundial. bandidos-heróis, operava-se uma to-
Enquanto a literatura de cordel pa- mada de consciência dos problemas
rece expressar constantemente a criti- mais cruciais da atualidade brasileira,
ca da população sertaneja com relação efetuada pelas elites intelectuais e ar-
ao cangaço, nas cidades do sul do Pais tísticas e se inscrevendo nas diversas
uma outra interpretação o encarou co- obras. Data também desse período o
mo verdadeiro simbolo da nacionalida- interesse pelo estudo do cangaço por
de. Foi primeiramente o jornalista per- historiadores, antropólogos, soció-
nambucano Assis Chateaubriand, pro- logos, cujas interpretações também
prietário dos Diários Associados, que, se orientaram em uma ou ambas as
de maneira um tanto jocosa, instituiu a direções.
“Ordem do Cangaço”, destinada a pre-. A compreensão do cangaço se
miar brasileiros que tivessem dado pro- alargava para além dos limites de sua
vas, em feitos, de seu'amor à pátria e existência efetiva, invadindo as para-
estrangeiros que demonstrassem seu gens do imaginário e se enriquecendo

66
com significados múltiplos, que não Uma outra diferença divide o Bra-
nem à sua origem, nem à sil em duas grandes metades: o desen-
pertenciam
sua vigência real. Toda esta afabulação volvimento econômico. À riqueza do
em torno do cangaço fora norteada, Sul se opõe a pobrezado Nordeste e do
principalmente, por dois parâmetros: a Norte. Desta forma, a brasilidade real
oposição de certos intelectuais contra se exprimiria na ruralidade e na pobre-
as camadas dominantes e sua repre- za, enquanto riqueza e urbanização, se-
sentação, O governo, um sentimento diadas no Sul, aliar-se-iam à presença
nacionalista generalizado, que as con- estrangeira, ao capital internacional. O
dições econômicas reforçavam. Mes- que equivale dizer que tudo quanto é
mo Lampião, que na literatura de cor- profundamente nacional estã aliado à
del era sempre encarado como bandi- pobreza e à simplicidade do Norte;e o
do, cuja ação era norteada pelo seu Sul, rico, é cosmopolita, inautêntico e
próprio interesse, ambicioso e trucu- complexo. Valorizar a figura do canga-
lento, adquiriu os lineamentos do herói ceiro constitui, então, uma compensa-
social justiceiro, de um Robin Hood. ção ideológica para nordestinos e nor-
A ênfase, porém, não é na figura tistas. O Sul é rico e próspero, porêm
do justiceiro, mas na idéia de naciona- está adulterado pela invasão estrangei-
lismo. Assim, tanto a imagem do can- ra, é escravo dos capitais internacio-
gaceiro quanto seus sinais caracteristi- nais. Os hábitos dos sulistas não são
cos — o chapéu cheio de estrelas, as mais tradicionais e por isso reinam en-
cartucheiras enfeitadas de bordados e tre eles a imoralidade e a dissolução
penduricalhos, recheados de balas, as dos costumes.
alpercatas rangentes — passaram a Como se vê, a transformação da fi-
simbolizar “nacionalismo”. A “brasili- gura do cangaceiro em símbolo nacio-
dade” do cangaceiro adquiriu maior nal — interpretação hoje largamente
significado numa época em que a imi- difundida no País — repousa sobre
gração estrangeira, ao Sul do Brasil, se uma compreensão emotiva de proble-
intensificava. Contra a “invasão” do es- mas fundamentais na sociedade brasi-
trangeiro erguia-se a figura do canga- leira de nosso tempo. Representaa dia-
ceiro, “guardião” dos valores nacio- lética persistente entre nacionais e es-
nais. trangeiros, entre pobreza e riqueza, en-
A mitificação do cangaço não po- tre o Norte e o Sul do País. O cangacei-
de ser compreendida fora do contexto ro não desencadeou uma tomada de
brasileiro, por um lado e do contexto do consciência dos problemas; pelo con-
Sul do Pais por outro — do Sul do Pais trário, deu margem a uma apreciação
que recebeu levas e levas de imigran- subjetiva deles.
tes estrangeiros até os anos 30 € que, A tomada de consciência implica
em seguida, passou a atrair migrações um conhecimento claro e explicito, u-
nordestinas cada vez mais intensas. Os ma apreensão objetiva e racional de
problemas do Sul, porém, não podem acontecimentos e de problemas, que
ser desvinculados do país, como um respeita os limites de sua vigência real.
todo. Assim, os problemas que concor- O conhecimento veiculado pelo mito
rem para a mitificação do cangaço não do cangaço, no entanto, ultrapassa to-
são regionais, são nacionais. da a documentação de que se pode dis-

67
por, justamente porque se trata de co- Sar OS rumos essenciais e profundos
nhecimento apreendido de maneira do sentir coletivo.
simbólica. Por meio de simbolos, che- Dessa forma, no Pais, encarnou O
ga-se a um conhecimento intuitivo, afe- cangaceiro o povo nacional em oposi-
tivo (que não recorre ao raciocinio, por- ção ao imigrante estrangeiro; encarnou
tanto) e não-metódico. de aconteci- as camadas inferiores nortistas, auten-
mentos e de problemas. ticamente nacionais, simplesmente,
A aceitação do cangaceiro como sofredoras, em relação às camadas
um simbolo afastou-o, portanto, da abastadas, especialmente do Sul do
existência que efetivamente foi a sua Pais, cosmopolitas e em plena expan-
no tempo e no espaço, registrada na são econômica. Dentro destas pers:
documentação e nos depoimentos pectivas, o símbolo acrescentou ao
existentes. Porêm, o que se chama de real traços positivos (o cangaceiro ca:
“verdade histórica” nunca interessou à valeiro andante, defensor dos injustiça-
formação de simbolos. O que interessa dos, generoso protetor dos fracos e
a esta formação é salientar as caracte- dos pobres), sem que se perdessem to-
risticas que lhe sejam úteis para refor- davia os traços que realmente apresen-
çar a solidariedade interna das coletivi- tara, negativos, como os de crueldade,
dades e para distinguir uma das outras ferocidade, perversão. Todos estes tra-
as sociedades globais e, internamente, ços contraditórios coexistem e os ne-
OS grupos que as compõem. Os símbo- gativos se justificam na própria pers-
los são, antes de mais nada, brumosos pectiva do mito: o cangaceiro era cruel,
e ambíguos. São estas condições, po- feroz, perverso, porque a sociedade em
rêm, que lhe permitem captar e expres- que vivia era profundamente injusta.
Te
BIBLIOGRAFIA
O

lio gra fia sob re O can gaç o ind epe nde nte com eça a se avolumar atual-
A bib
ind ica mos aqu i som ent e as obr as que dir eta men te serviram pa-
mente no Brasil;
à vida no Nordeste,
ra compor este texto, referentes tanto ao cangaço quanto
decorrer da narrativa.
sendo que os autores de algumas delas estão citados no

ALBUQUERQUE, Ulysses Lins de — Um sertanejo e o sertão — Rio de


Janeiro, Livraria José Olympio Ed. 1957.

ALBUQUERQUE, Ulysses Lins de — Moxotó brabo —. Rio de Janeiro,


Ed. Livros Organização Simões. 1960.

BAPTISTA, Pedro — Cangaceiros do nordeste — Paraíba do Norte, Livr.


São Paulo, 1929.

BARROSO, Gustavo — Heróes e bandidos — Rio de Janeiro, Livr. Fran-


cisco Alves, 191/.

BASTIDE, Roger — Brasil, terra de contrastes — S. Paulo. Difusão Euro-


péia do Livro, 1959.

CARVALHO, Rodrigues de — Serrote preto — Rio de Janeiro, Soc. Edi-


tora e Gráfica Ltda., 1961.

CORRÊA DE ANDRADE, Manuel — A terra e o homem no nordeste —


S. Paulo, Ed. Brasiliense, 1968.

GUEIROS, Optato — Lampião — Salvador, Livraria Progresso Ed., 4º


ed. 1956.

LIMA. Estácio de — O mundo estranho dos cangaceiros — Salvador,


Ed. Itapoá, 1965.

69
LUNA. Luiz — Lampião e seus cabras — Rio de Janeiro. Ed. Leitura S.A.
1963.

MACEDO. Nertan — Capitão Virgulino Ferreira Lampião. — Rio de Ja-


neiro. Ed. Leilura S.A. s.d.

MELLO. Frederico Pernambucano de — Aspectos de


Banditismo Rural
Nordestino — Recife. Ciência e trópico — Instituto Joa
quim Nabu-
co de Pesquisas Sociais. vol. 2, nº 1, janeiro/junho 197
4,

MONTENEGRO. Abelardo — História do Cangaceirismo no Ceará —


Fortaleza. 1965.

MOTTA. Leonardo — No tempo de Lampião — Rio de Janeiro, Oficina


Industrial Gráfica, 1930.

MOTTA. Leonardo — Cantadores — Fortaleza.


Imprensa Univ. do Ceará,
3º ed. 1961.

NOBREGA, Pe. Pereira — Vingança, não! — Rio de Janeiro, Livraria


Freitas Bastos. 1960.

PARREIRA, Abelardo — Sertanejos e cangaceiros — S. Paulo,


Editorial
Paulista, 1934.

PEREIRA DE QUEIROZ, Maria Isaura —' Notas sociológicas sobre o


can-
gaço”, S. Paulo, Ciência e cultura, vol. 27. nº 5, maio de 1975.

PEREIRA DE QUEIROZ, Maria Isaura — O mandônismo local na


vida po-
lítica brasileira e outros ensaios — S. Paulo, Ed. Alfa-Omega, 1976.

PEREIRA DE QUEIROZ, Maria Isaura — Os cangaceiros — S. Paulo, Ed.


Duas Cidades, 1977

PRADO JR., Caio — História econômica do Brasil — S. Paulo, Ed. Brasi-


liense, 1945.

PRATA, Ranulpho — Lampião — S. Paulo. Ed. Piratinin


ga, 2º ed. 1930.
TÁVORA, Franklin — O Cabeleira — Rio d
e Janeiro, Tipografia Nacio-
nal, 1876.

VILLAÇA, Marcos Vinicius e ALBUQUERQUER.


Roberto C.. — Coronel,
Coronéis — Rio de Janeiro, Ed. Temp
o Brasileiro Ltda, 1965.
ss)

VOCÊ ENTENDEU O TEXTO?

Através da leitura do texto, compreendemos que existiam dois tipos de


Cangaço no “Polígono da Seca”: o Cangaço Subordinado e o Cangaço
Independente. Você poderia definir as características destes bandos?
Qual é a ligação entre catástrofes naturais e o aparecimento dos bandos
7 | a (GO NO |

de cangaceiros?
Que são “retirantes”?

Alguns autores caracterizam o Nordeste seco como a “Civilização do


Couro”. Por que esta denominação?
Polícia e Cangaceiros utilizavam a mesma violência destruidora e foram
produtos da mesma estrutura sócio-econômica existente no Sertão.
Qual era esta estrutura?
As condições sócio-econômicas do Sertão mudaram desde os tempos
de Antônio Silvino a Lampião. Quais foram estas modificações?
md (DO) GONG

Como estava organizado o bando de Lampião?

Quais fatores explicariam o aparecimento dos bandos de cangaceiros


independentes, assim como sua permanência nos primeiros 40 anos do
século XX?
Como era distribuido o produto dos assaltos entre os cangaceiros?

Quais fatores, estruturais e conjunturais, explicariam o desaparecimen-


to do Cangaço Independente?

11
Como e por que se deu a transformação da figura do Cangaceiro em
simbolo nacional?

71
ooo

CRONOLOGIA

1865 Termina a Guerra de Secessão dos Estados Unidos. A reorga-


nização de sua produção de algodão produz crise no Nordes-
te.
Começa a modernização da produção de açúcar nordestina.
Pequenos produtores sem capital fecham seus engenhos, pro-
duzindo desemprego no setor.

1866 Amazonas aberto à navegação internacional.

1870 Deslocamento de trabalhadores nordestinos para a Amazônia,


em busca do novo “El Dorado” da borracha.

1877 Bandos de retirantes, empurrados pela seca, invadem e sa-


queiam povoados — João Calangro organiza seu bando de
cangaceiros. |

1879 Mudam as condições climáticas. O bando de João Calangro


dispersa-se.

1887 Primeira linha férrea no Espírito Santo.

1888 Lei Áurea

1889 Proclamação da República ; E


Milagre em Juazeiro: começa a ascensão política do Padre Ci-
cero.

1896 Manoel Baptista de Moraes (Antônio Silvino) entra no bando de


Luiz Mansidão. Com a morte deste cangaceiro se tornaria che-
fe do bando.
Inaugura-se com Antônio Silvino a fase das lutas diretas con-
tra a polícia e as autoridades.

73
1897 Destruição de Canudos

| 1900 Antônio Silvino afirma-se como chefe de um “Cangaço inde-


pendente”.
Nascimento de Virgulino Ferreira da Silva, futuro Lampião.

1906 As ações de Antônio Silvino voltam-se cada vez mais contra


as autoridades locais.

1910 Antônio Silvino casa-se com Juventina Maria da Conceição (Ti-


ta).

1912 O governo recusa-se a anistiar Antônio Silvino que tentava es-


tabelecer-se como criador de gado.

1914 O Padre Cícero torna-se vice-presidente do Estado do


Ceará.
Começa a Primeira Grande Guerra; melhora a crise do açúcar e
do algodão.

1917 Virgulino, após o assassinato de seu pai, entra para o bando de


Sinhô Pereira, o qual lhe dá o nome de Lampião.

1918 Antônio Silvino capturado, e condenado à prisão perpétua.


(Getúlio Vargas o anistiaria mais tarde.)

1919 Epitácio Pessoa concede importantes auxílios federais para a


execução de grandes obras publicas no Nordeste seco.

1921 Criação do primeiro banco no sertão nordestino.

1926 Corisco — o Diabo Louro — integra-se ao bando de Lampião.


Lampião e seu bando entram em Juazeiro para auxiliar nos
combates a Coluna Prestes.

1928 Ferido e desanimado, Lampião abandona Pernambuco


refugiando-se no Norte da Bahia.
Corisco rapta sua companheira, Dadá.

1929 Neste período de calmaria, Lampião encontra-se com Maria


Bonita.

1930 Lampião retoma sua atividade no Sertão.

74
ban do de La mp iã o cin de- se em trê s gru pos , co mandados
1932 O
por Lampião, seu cunhado Virgínio e Corisco.

1934 Morte do Padre Cicero.


luga-
1936 Lampião permanece em Angico (Sergipe), enquanto seus
res-tenentes continuam suas façanhas.

1937 O Diabo Louro afasta-se do bando de Lampião.

1938 Sucumbem numa emboscada: Lampião, Maria Bonita e alguns


cangaceiros.

1940 Morte de Corisco. Fim do Cangaço Independente.

75
Te rr a — E d m u n d o M o n i z
Canudos: A Luta pela
e B a n d e i r a s — Lu iz a Vo lp at o
Entradas
u e r a Co nt ra es se So ld ad o — Le ón P o m e r
Paraguai: Nossa G
av id ão no Br as il —- En ri qu e Pe re ga ll i
Escr
A República Velha — Leonardo Trevisan
s M a r i n h e i r o s — Má ri o Ma es tr i Fi lh o
1910: 4 Revolta do
O Período Regencial — Augustin Wernet
li o Va rg as e su a É p o c a — An to ni o A. C. Fa ri a e E. Ba rros
Getú
Como o Brasil Ficou Assim? — Enrique Peregalli
A Abolição — Emília Viotti da Costa
História do Cangaço— Maria Isaura Pereira Queiroz
Independência do Brasil — José Ribeiro Júnior
O Índio na História do Brasil - Berta Ribeiro
Inconfidência Mineira — Maria Efigênia Lage
Um Império entre Repúblicas — Denis Bernardes
TINA
pros.

TUE dAY)S
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PI
4
SO "DP LL
“SOJLOIPDUPO
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Livros que estudam o passado

SItpueq So)
para compreender o presente
e iluminar o Futuro

JNouuoy,DP
| Canudos: a luta pela terra Silinindo Monta
7» Entradas e Bandeiras Lnjza Voloaio

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> Paraguai: nossa guerra contra esse soldado Uai
Escravidão no Brasil Soria E

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“ À República Velha L:

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“ O Período Regencial AT
7 Getúlio Vargas e Sua Época Anton:

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: Como o Brasil Ficou Assim? Se Rs E!
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11) História do Cangaço Maria )
NA Independência do Brasil«
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