Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
29,
Setembro/Dezembro de 2017 - ISSN 1983-2850
/ “Deos não nos creou para vivermos eternamente neste valle de miserias”: rituais
funerários e a unção dos enfermos nos aldeamentos Kiriri (1698-1702), 23-41/
DOI: http://dx.doi.org/10.4025/rbhranpuh.v10i29.37576
"God did not create us to live forever in this valley of miseries": funerary rituals
and the anointing of the sick in the villages Kiriri (1698-1702)
Abstract: This article has as main objective to understand the speech of Capuchinhos
and Jesuits in the sertão of Portuguese America, between 1698 and 1702, on the funerary
rituals of the Kiriri. Through the descriptions, the death and practices of the Kiriri
funerals are evidenced in the writings produced for conversion. The documentary corpus
analyzed consists of two catechisms, designed to assist the missionaries in the conversion
of the Indians: one by the Jesuit priest Luigi Mamiani and the other by the Capuchin
Bernardo de Nantes.
Key-words: Death, Kiriri, Jesuits, Capuchins
"Dios no nos creó para vivir eternamente en este valle de miserias": rituales
funerarios y la unción de los enfermos en los pueblos de Kiriri (1698-1702)
Resumen: Este artículo tiene los principales objetivos para comprender el discurso de
Capuchinos y Jesuits en el sertão de América del Norte, entre 1698 y 1702, sobre los
[ 23 ]
Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano X, n. 29,
Setembro/Dezembro de 2017 - ISSN 1983-2850
/ “Deos não nos creou para vivermos eternamente neste valle de miserias”: rituais
funerários e a unção dos enfermos nos aldeamentos Kiriri (1698-1702), 23-41/
funerales rituales del Kiriri. A través de las descripciones, la muerte y las prácticas de los
funerales de Kiriri se evidencian en las escrituras producidas para la conversión. El
documental corpus analizado de dos catequismos, diseñado para asistir a los misioneros
en la conversión de los indios: uno por el Jesuit sacerdote Luigi Mamiani y el otro por el
Capuchin Bernardo de Nantes.
Palabras clave: Death, Kiriri, Jesuits, Capuchinos
2Dos quais podemos destacar: Arte da Grammatica da lingoa mais usada na costa do Brasi,ldo padre Jose
de Anchieta, 1595; Arte da Grammatica da lingoa brasílica, do padre Luiz Figueira, 1687; Diccionario da
língua geral do Brazil, sem data definida; Caderno de vocábulos da língua geral, muito necessário para com
brevidade se aprender, feyto no anno de MDCCL; Diccionario dos vocábulos mais uzuaes para a inteligência da dita
linguage; Diccionario da Lingua geral do Brasil que se falla em todas as Villa, lugares e aldeias deste Vastissimo
Estado. Escrito na Cidade do Pará. Anno de 1771; Diccionarioportuguez, e brasiliano, obra necessária aos
ministros do altar (...), 1795.
[ 24 ]
Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano X, n. 29,
Setembro/Dezembro de 2017 - ISSN 1983-2850
/ “Deos não nos creou para vivermos eternamente neste valle de miserias”: rituais
funerários e a unção dos enfermos nos aldeamentos Kiriri (1698-1702), 23-41/
através da mediação cultural, que tornou possível o acesso ao seu cotidiano e ao seu
universo simbólico. Para Cristina Pompa:
Como a alma não morre, apenas o corpo essa matéria efêmera se decompõe e
morre, segundo o jesuíta. E diante das ações praticadas em vida é determinado o lugar em
qual a alma irá habitar (MAMINAI, 1698, p. 68-69). Os lugares para a morada da alma
[ 26 ]
Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano X, n. 29,
Setembro/Dezembro de 2017 - ISSN 1983-2850
/ “Deos não nos creou para vivermos eternamente neste valle de miserias”: rituais
funerários e a unção dos enfermos nos aldeamentos Kiriri (1698-1702), 23-41/
consistiam em cinco, o céu, o inferno, o purgatório, o limbo dos meninos, e o limbo dos
santos padres. (MAMIANI, 1698, p. 52). Para onde vão os que morrem
Para Bluteau, o inferno consiste num lugar no qual a “divina justiça” castiga aos
“demônios” e aos que morreram em pecado mortal. A localização é apresentada como
sendo no meio do globo terrestre, “o centro deste Universo”, no lugar mais ínfimo do
mundo. E para corroborar com a descrição do espaço em que se encontra o inferno o
autor justifica com uma analogia ao corpo humano:
cinquenta e nove milhas germânicas, na quais cada milha germânica consiste quatro mil
passos geométricos.
Nantes apresenta em seu catecismo as justificativas para que o fiel fosse
condenado a habitar o inferno por toda a eternidade. De acordo com o capuchinho os
pecados mortais são responsáveis pela morte da alma e por isso, estabelece-se o caminho
rumo ao inferno, como ocorreu com os anjos que se tornaram diabos (NANTES, 1709,
p. 67). A cura por assopro pratica pelos “feiticeiros” é também apontada como pecado
mortal, e nesse caso tanto curar como recorrer a tal prática, como também “dar em seu
pay ou sua may”, “desejar interiormente com advertência uma mulher”, “embebedarse
com vinho” (NANTES, 1709, p. 68), como também não confessar. Esse silenciamento
diante do pároco, faz com que o fiel cometa sacrilégio, e como consequência se torna
impossibilitado de comungar, porque “ o diabo lhes fecha assim a boca, para que não
sayão por ella os pecados (NANTES, 1709, P. 80).
A outra morada, o purgatório apesar da proximidade com o inferno, consistia um
lugar no qual a salvação ainda seria possível. Contudo, era necessário uma vida regrada na
terra e ter uma alma virtuosa. O purgatório “he hum fogo grande por cima do inferno
aonde estão as almas virtuosas dos que morrerão em graça de Deos, para satisfazer por
seus pecados, pois não satisfizerão inteiramente neste mundo” (MAMIANI, 1698, p.53-
54)
O limbo é a morada habitada pela almas que morreram na inocência cristã é o
caso dos meninos sem batismo e dos padres que morreram antes da Paixão de Cristo. A
ausência dos preceitos de Cristo se apresentam dessa forma como um lugar habitado pela
escuridão, não há o fogo do inferno nem as chamas do purgatório, apesar a escuridão
como o estado no qual a “luz divina” não se apresentou. Observe que os adultos que
morrem sem o batismo, não se enquadram nas regras para ocuparem o limbo, já que para
esses foi por opção morrer sem o batismo. O limbo dos meninos consistia numa caverna
acima do purgatório (MAMIANI, 1698, p. 54).
A alegoria da caverna serve para repensar essa iluminação fruto dos que
conseguiram por meio do conhecimento transcender o pecado. As boas práticas e o
conhecimento dos preceitos cristãos permite encontrar a luz e dessa forma sair da
caverna.
Para os padres que existiram antes da vinda de Cristo e dessa forma morreram
sem os conhecimentos do Novo Testamento é possível alcançar a salvação, visto que
foram enviando para o Limbo dos padres, o qual pode é descritos como sendo “(...) hua
caverna por riba do Limbo dos meninos, em que estavão antigamente as almas dos
Santos padres, antes que Jesus Christo morresse, esperando ahi pela sua santa vinda, para
q os livrasse della” (MAMIANI, 1698, p. 54-55). De acordo com Nantes, quando Cristo
morreu desceu ao limbo dos padres para os salvar (NANTES, 1709, P. 32).
Cristo é apresentado como marco, em decorrência do que aconteceu aos cristãos
após sua morte. Por meio da Paixão de Cristo e do sofrimento do Calvário que nos livrou
do demônio, do qual Mamiani destaca o sofrimento e a dor. E também a cruz como esse
símbolo do martírio e da salvação. Isso O torna o juiz dos vivos e dos Mortos.
[ 28 ]
Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano X, n. 29,
Setembro/Dezembro de 2017 - ISSN 1983-2850
/ “Deos não nos creou para vivermos eternamente neste valle de miserias”: rituais
funerários e a unção dos enfermos nos aldeamentos Kiriri (1698-1702), 23-41/
E apresenta que Cristo retornará para a terra quando a mesma for queimada. E
nada sobrar, retornará para julgar os vivos e mortos. Os vivos são os justos na graça de
Deus, os detentores da vida eterna. Os mortos “os ímpios que falecerão em pecado
mortal, que he a morte da alma para com Deus” (MAMIANI, 1698, p. 65-66). Em seu
retorno, no momento do julgamento Cristo dirá aos que se acham em pecado:
[ 29 ]
Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano X, n. 29,
Setembro/Dezembro de 2017 - ISSN 1983-2850
/ “Deos não nos creou para vivermos eternamente neste valle de miserias”: rituais
funerários e a unção dos enfermos nos aldeamentos Kiriri (1698-1702), 23-41/
Em seu texto Mamiani apresenta uma crítica aos seculares que atuavam nos
“desertos”, nos locais distantes das sedes administrativas. Ao longo de seu catecismo o
jesuíta elenca as normativas que regem e definem o pontos por ele apresentados, são
bulas e também a obra do também jesuíta Peña Montenegro, o qual em seu livro o
Itinerário dos Padres expõem as questões e os cuidados que os religiosos deveriam ter ao
tratar da salvação dos índios. E com base nos preceitos apontados por Peña Montenegro,
[ 30 ]
Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano X, n. 29,
Setembro/Dezembro de 2017 - ISSN 1983-2850
/ “Deos não nos creou para vivermos eternamente neste valle de miserias”: rituais
funerários e a unção dos enfermos nos aldeamentos Kiriri (1698-1702), 23-41/
Por meio da extrema unção seria possível reiterar a saúde do corpo e da alma.
Assim expurgar os pecados e salvar o fiel da morte ou promover uma passagem para o
Purgatório.
Com tudo, se Deos tiver gosto de vos levar desta vida para a
outra, conformai-vos com a sua divina vontade. Deos não
nos creou para vivermos eternamente neste vale de misérias:
creou-nos para si, & assim deseja muito levar-nos ao Ceo,
pra ahi o gozarmos eternamente; por tanto, filho, deveis
estar aparelhado, & contente para lhe fazer a võtade
(NANTES, 1702, p. 123).
[ 31 ]
Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano X, n. 29,
Setembro/Dezembro de 2017 - ISSN 1983-2850
/ “Deos não nos creou para vivermos eternamente neste valle de miserias”: rituais
funerários e a unção dos enfermos nos aldeamentos Kiriri (1698-1702), 23-41/
3.Ritos funerários
As cinzas, como se pode observar, eram utilizadas pelos Kiriri como amuleto,
constituindo o limite entre o mundo e o eu coletivo, sendo empregadas para afugentar a
morte ou as doenças. Nessa carta, encontramos também uma das possíveis justificativas
para as fugas dos Kiriri das aldeias, uma vez que tinham o costume de vivenciar o luto
longe dos seus e o mais próximo possível da natureza. Também Bernardo de Nantes
descreve as formas de enterramento adotadas por este grupo indígena:3
Cabe ressaltar que estas passagens, mais do que seu conteúdo etnográfico, nos revelam
também as percepções dos missionários sobre as denominadas práticas de “gentilidade”,
e que, de acordo com o que estava estabelecido no Concílio de Lima e ratificado no
“Itinerario para Parochos de Indios”, eles tinham a obrigação de reportar os casos aos
Superiores e castigar os índios por tais práticas.
“Enterrar os mortos” e “rogar a Deus pelos vivos, & defuntos”, são obras da
Misericórdia, como exposto por Mamiani, sendo que a primeira está relacionada com as
obras do corpo, e a segunda, com as obras do espírito (MAMIANI, 1698, p. 17-18). Para
o gentio, o jesuíta ensina que, após a morte, o corpo fica enterrado na sepultura, mas a
alma, eterna, poderia ir a três lugares, dependendo das ações praticadas em vida. Os bons
teriam lugar no céu e viveriam felizes com Deus; Os que não tivessem vivido
3 Nos idos dos anos 2000, no atual município de Tomar do Geru, no estado de Sergipe, durante
reforma realizada em uma escola pública no local em que se encontrava a aldeia do Geru no século
XVII foram encontradas urnas funerárias, localizadas a uma distância de aproximadamente 500
metros da igreja.
[ 32 ]
Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano X, n. 29,
Setembro/Dezembro de 2017 - ISSN 1983-2850
/ “Deos não nos creou para vivermos eternamente neste valle de miserias”: rituais
funerários e a unção dos enfermos nos aldeamentos Kiriri (1698-1702), 23-41/
inteiramente segundo a vontade de Deus iriam para o purgatório, localizado logo acima
do inferno. Por fim, os pecadores iriam para o inferno, “(...) os máos hirão ao inferno em
corpo, & alma, para padecerem hum, & outra tormentos eternos em companhia do
diabo” (MAMIANI, 1698, p. 160). Mamiani ainda reitera que seguir os “costumes dos
vossos avós” só iria levá-los ao inferno (MAMIANI, 1698, p. 157).
O jesuíta, no entanto, descreveu quatro moradas para alma no centro da terra: “o
inferno, o purgatório, o limbo dos meninos e o limbo dos santos padres” (MAMIANI,
1698, p. 53). O limbo dos meninos era uma caverna escura localizada acima do
purgatório, onde ficavam os meninos que haviam morrido sem o batismo, e o limbo dos
padres, para onde antigamente iam as almas dos padres, antes da morte de Cristo. Já o
inferno era descrito como uma grande fogueira, “hum incêndio de fogo inextinguível
aonde ardem deveras” (MAMIANI, 1698, p. 53), para a qual todos os não cristãos eram
levados, bem como aqueles que não seguiam as normas determinadas pelos padres. Esses
pecadores teriam seu corpo queimado por toda a eternidade:
Como podemos observar, o controle e o combate aos “costumes dos avós” se fazia
presente na trama do cotidiano das aldeias, se impondo sobre o tempo ordinário e
também sobre o tempo sagrado, o tempo das celebrações e dos rituais de sepultamento
(MECENAS-SANTOS, 2017, p. 220). Essas antigas práticas eram um obstáculo à
conversão, pois se encontravam atreladas aos pecados do mundo. Havia a necessidade de
abandonar as práticas tradicionais. Elas, contudo, não eram o único empecilho, no
próximo tópico, nos detemos em mais um dos “inimigos da alma”.
Segundo o frei Martinho de Nantes, os Kariri acreditavam que as enfermidades
eram causadas por feitiços que eram lançados por inimigos ou desafetos e que para
combater as doenças era preciso recorrer a contra-feitiçaria. Todavia, nos casos em que o
doente não se recuperava:
4 Nos idos dos anos 2000, no atual município de Tomar do Geru, no estado de Sergipe, durante
reforma realizada em uma escola pública no local em que se encontrava a aldeia do Geru no século
XVII foram encontradas urnas funerárias, localizadas a uma distância de aproximadamente 500
metros da igreja.
[ 36 ]
Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano X, n. 29,
Setembro/Dezembro de 2017 - ISSN 1983-2850
/ “Deos não nos creou para vivermos eternamente neste valle de miserias”: rituais
funerários e a unção dos enfermos nos aldeamentos Kiriri (1698-1702), 23-41/
Mamiani não descreve os rituais funerários dos Kiriri. Para termos acesso a eles,
recorremos à carta do padre Jacques Cockle, de 20 de novembro de 1673. Nela, Cockle
descreve o seguinte costume desses índios: quando a mulher falecia, o marido deveria ir
para o mato, cortar o cabelo e depois retornar; e, quando este voltava para a aldeia, os
outros indígenas fugiam para evitar que algum ente próximo viesse a também falecer.
As cinzas, como se pode observar, eram utilizadas pelos Kiriri como amuleto,
constituindo o limite entre o mundo e o eu coletivo, sendo empregadas para afugentar a
morte ou as doenças. Nessa carta, encontramos também uma das possíveis justificativas
para as fugas dos Kiriri das aldeias, uma vez que tinham o costume de vivenciar o luto
longe dos seus e o mais próximo possível da natureza. Situação semelhante nos é relatada
pelo padre Manoel Correia, ao se referir às práticas dos índios Moritize, que também
habitavam os sertões da Bahia e também viviam tutelados pelos jesuítas. Na carta, as
práticas rituais funerárias são descritas em função de epidemia de varíola que se abateu
sobre a aldeia5
5Também deste mesmo período, temos o relato do frei Martinho de Nantes sobre uma epidemia
de varíola que atingiu uma aldeia de índios que viviam nas proximidades do Rio São Francisco.
[ 38 ]
Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano X, n. 29,
Setembro/Dezembro de 2017 - ISSN 1983-2850
/ “Deos não nos creou para vivermos eternamente neste valle de miserias”: rituais
funerários e a unção dos enfermos nos aldeamentos Kiriri (1698-1702), 23-41/
Cabe ressaltar que estas passagens, mais do que seu conteúdo etnográfico, nos revelam
também as percepções dos missionários sobre as denominadas práticas de “gentilidade”,
e que, de acordo com o que estava estabelecido no Concílio de Lima e ratificado no
“Itinerario para Parochos de Indios”, eles tinham a obrigação de reportar os casos aos
Superiores e castigar os índios por tais práticas.
“Enterrar os mortos” e “rogar a Deus pelos vivos, & defuntos”, são obras da
Misericórdia, como exposto por Mamiani, sendo que a primeira está relacionada com as
obras do corpo, e a segunda, com as obras do espírito (MAMIANI, 1698, p. 17-18). Para
o gentio, o jesuíta ensina que, após a morte, o corpo fica enterrado na sepultura, mas a
alma, eterna, poderia ir a três lugares, dependendo das ações praticadas em vida. Os bons
teriam lugar no céu e viveriam felizes com Deus; (MAMIANI, 1698, p. 81). Os que não
tivessem vivido inteiramente segundo a vontade de Deus iriam para o purgatório,
localizado logo acima do inferno (MAMIANI, 1698, p. 111). Por fim, os pecadores iriam
para o inferno (MAMIANI, 1698, p. 70), “(...) os máos hirão ao inferno em corpo, &
alma, para padecerem hum, & outra tormentos eternos em companhia do diabo”
6 Nos idos dos anos 2000, no atual município de Tomar do Geru, no estado de Sergipe, durante
reforma realizada em uma escola pública no local em que se encontrava a aldeia do Geru no século
XVII foram encontradas urnas funerárias, localizadas a uma distância de aproximadamente 500
metros da igreja.
[ 39 ]
Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano X, n. 29,
Setembro/Dezembro de 2017 - ISSN 1983-2850
/ “Deos não nos creou para vivermos eternamente neste valle de miserias”: rituais
funerários e a unção dos enfermos nos aldeamentos Kiriri (1698-1702), 23-41/
(MAMIANI, 1698, p. 160). Mamiani ainda reitera que seguir os “costumes dos vossos
avós” só iria levá-los ao inferno (MAMIANI, 1698, p. 157).
4. Últimas considerações
A constante preocupação com a firme conversão dos indígenas fez com que o diabo
fosse tema recorrente nos escritos de Mamiani e Nantes, sendo sempre a figura que se
opunha e comprometia o bem, estando associado às antigas práticas dos Kiriri. O inferno
era descrito como uma grande fogueira, para a qual todos os não-cristãos ou aqueles que
não seguiam as normas determinadas pelos padres seriam enviados, e como castigo
teriam seu corpo queimado por toda a eternidade. Para assegurar a salvação o índio
deveria se afastar das práticas comuns a comunidade, as quais são elencadas nos escritos,
ser batizado, e por meio da constante vigilância poderiam se livrar do diabo e como
consequência do inferno.
Uma última chance era concedida no intuito da salvação da alma, a extrema-unção.
Os religiosos seguem as normativas e explicam como o sacramento deveria ser
administrado por um pároco nas aldeias. Mamiani apresenta em seus escrito uma outra
consideração, ao identificar os problemas na administração desse sacramento por parte
dos seculares nos sertões da América portuguesa. Quando o jesuíta reitera a importância
da água e das palavras para que o moribundo possa efetivamente alcançar o perdão
divino e a possível salvação.
Por fim, foi possível apresentar como as práticas funerárias dos Kiriri foram
registradas por esses homens-memória. O estranhamento e o combate aos costumes do
outro, permitem conhecer um pouco, da leitura feita por esses religiosos das práticas
indígenas. A constante preocupação em combater as práticas tradicionais, os assim
denominados “ abomináveis costumes” (a idolatria e a feitiçaria), tornou-se a tônica dos
escritos voltados para a conversão, refletindo uma inquietação sobre a vida e com a
morte.
Referências
Annuae Litterae ex Brasilias 1693. ARSI, Bras. 9, f. 383v.
ARIÉS, Philippe. História da Morte no Ocidente. Trad. Hélio Vega. São Paulo: Ediouro,
2001.
_________. O homem diante da morte. São Paulo: Editora Unesp, 2014.
BARROS, Maria Cândida Drumond Mendes. A relação entre manuscritos e impressos
em tupi como forma de estudo da política linguística jesuítica no século XVIII na
Amazônia. Revista Letras. N. 61. Curitiba: Editora UFPR, 2003.
BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico ...
Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712 - 1728. 8v.
CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Trad. Maria de Lourdes Menezes. 2ª ed. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
CHARTIER, Roger. A ordem dos livros. Leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os
séculos XIV e XVII. Coleção tempos. Tradução Mary del Priore. Brasília: Editora da
UnB, 1994.
[ 40 ]
Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano X, n. 29,
Setembro/Dezembro de 2017 - ISSN 1983-2850
/ “Deos não nos creou para vivermos eternamente neste valle de miserias”: rituais
funerários e a unção dos enfermos nos aldeamentos Kiriri (1698-1702), 23-41/
COCKLE, Jacques. Carta ao P. Geral Oliva, 20 de novembro de 1673. ARSI, Bras. 26, f.33.
DAHER, Andrea. A oralidade perdida. Ensaios de história das práticas letradas, Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
DELUMEAU, Jean. A confissão e o perdão. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
HARTOG, François. Memória de Ulisses: narrativas sobre a fronteira na Grécia antiga.
Trad. Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.
KOK, Glória. Os vivos e mortos na América portuguesa. Da antropofagia à água do batismo.
Campinas: Editora da Unicamp, 2001.
MAMIANI, Luiz Vincêncio. Catecismo da Doutrina Christãa na Lingua Brasilica da Nação
Kiriri. Lisboa: Deslandes, 1698.
MECENAS-SANTOS, Ane Luíse Silva. Trato da eterna tormenta: a conversão nos sertões
de dentro e os escritos de Luigi Vicenzo Mamiani della Rovere sobre os Kiriri (1666-
1699). São Leopoldo. 273 f. Tese (Doutorado em História). Unisinos, 2017.
MECENAS-SANTOS, Ane Luíse Silva. Conquistas da fé na gentilidade brasílica: a catequese
jesuítica na aldeia do Geru (1683-1758). Aracaju: Edise, 2016.
NANTES, Bernardo de. Catecismo da Lingua Kariris, acrescentado de várias praticas doutrinaes e
Moraes, adaptadas ao gentio e capacidade dos Indios do Brasil. Edicção fac-similar. Leipzig,
1709.
NANTES, Bernard de. Relation de la Mission des Indiens Kariris di Brezil situés sur le
Grand Fleuve de S. François du costé du Sud a 7 degrés de la ligne equinotiale. Le 12
septembre 1702, pour F. Bernard de Nantes, capucin predicateur missionnaire
apliqué. Apud POMPA, Cristina. Cartas do Sertão. Catequese entre os Kariri no
século XVII. In: Revista Anthropológicas, ano 7, vol 14 (1 e 2), 2003, p.
NANTES, Martinho, Relação de uma missão no Rio São Francisco. Brasiliana. Volume 368.
Tradução e comentários de Barbosa Lima Sobrinho. 2 ed. São Paulo: Editora
Nacional, [1706] 1979.
PEÑA MONTENEGRO, Alonso de la. Itinerario para Párrocos de Indios. 2a. edição. En
Leon de Francia: A costa de Joan-Ant. Huguenta y Compañia, 1678.
POMPA, Cristina. Por uma antropologia histórica das missões. In: MONTERO, Paula.
Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural. São Paulo, Editora Globo,
2006,
RAMINELI, Ronald. Viagens Ultramarinas. Monarcas, vassalos e governo à distância. São
Paulo: Alameda, 2008.
[ 41 ]