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LITERATURA BRASILEIRA I

O BARROCO E O BRASIL DO SÉCULO XVII

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Olá!
Ao final desta aula, o aluno será capaz de: 1. Conhecer o teor de denúncia das Cartas do padre Manuel da

Nóbrega; 2. Distinguir diferentes características, técnicas e temáticas na obra do padre José de Anchieta.

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Boa parte das expedições que cruzaram o Oceano Atlântico receberam estímulos da Igreja Católica, preocupada

em expandir a fé cristã, devido à perda considerável de fiéis com o advento da Reforma Religiosa, promovida por

Lutero. Assim, compunham também a tripulação da esquadra membros da igreja, missionários dispostos a

propagar a fé cristã.

Dois deles se destacaram no Brasil pelo pioneirismo de suas produções: Pe. Manuel de Nóbrega e Pe. José de

Anchieta.

A obra de Nóbrega constitui-se de Cartas e o Diálogo sobre a conversão do Gentio (1557 ou 1558), texto em que

discorre sobre aspectos da conversão do indígena por uma perspectiva objetiva.

“O primeiro padre geral não é propriamente um homem de letras: sua Informação das terras do

Brasil (1551) tem sobretudo interesse etnológico e catequético. Mas as Cartas, que da Bahia e de

Pernambuco, a partir de 1549, ele envia ao provincial e aos coirmãos da Companhia em Lisboa, têm o

sabor das coisas vividas: logo traduzidas para o italiano (...), levam para a Europa da Contrarreforma

o eco de uma experiência missionária das mais aventurosas.”

(Stegagno-Picchio, L. História da literatura brasileira. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004. P.77)

Vamos ler um trecho de uma de suas cartas?

“E dahi_vem o pouco credito que .gozam os Christãos entre os Gentios, os quaes não estimam mesmo nada, sinão

vituperam aos que de primeiro chamavam santos e tinham em muita veneração e já tudo o que se lhes diz

acreditam ser manha ou engano e tomam á má parte. Esses e outros grandes males fizeram os Christãos com o

mau exemplo de vida e a pouca verdade nas palavras e novas crueldades e abominações nas obras.

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Os Gentios desejam muito o commercio dos Christãos pela mercancia que fazem entre si do ferro e disto nascem

da parte destes tantas cousas illicitas e exorbitantes que nunca as poderei escrever, e não pequena dôr sinto

n'alma, maxime considerando em quanta ignorância vivem aquelles pobres gentios e que pedem o pão de Deus e

da santa Pé...”

Observe, na Carta de Padre Manuel da Nóbrega, a denúncia da exploração dos índios pelos “cristãos”,

expondo seu desagrado e desacordo com as práticas aviltadoras do gentio.

José de Anchieta (1534- 1597) notabilizou-se por uma variada produção de textos. Sua verve foi registrada em

latim, português e espanhol ( sua língua materna, pois nasceu em Tenerife, uma das Ilhas Canárias) em obras

que vão da poesia aos autos. É de sua autoria, igualmente, a primeira Gramática de Tupi – Arte de gramática da

língua mais usada na costa do Brasil.

Os autos anchietanos são peças produzidas com o objetivo tanto de introduzir o indígena nos rudimentos da fé

cristã, quanto para os colonos que se estabeleciam próximos às missões. Dentre os mais conhecidos estão: o Auto

da Representação na Festa de São Lourenço, Na Vila de Vitória e Na Visitação de Santa Isabel.

Auto é uma palavra de origem latina que tem o significado de ação, ato. Trata-se de uma pequena peça de teatro,

geralmente de tema religioso. Surgiu no final do século XII, na Peninsula Ibérica.

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No entanto, o processo de familiarização à crença e sua simbologia própria encontrou entraves. Um obstáculo

considerável à catequese, segundo Alfredo Bosi, em Dialética da colonização, consistiu na ausência do conceito

de “alma” para o silvícola, o que exigia do pregador a utilização de mecanismos de adaptação para transpor as

diferenças culturais:

“O projeto de transpor para a fala do índio a mensagem católica demandava um esforço de penetrar no

imaginário do outro(...)Na passagem de uma esfera simbólica para a outra Anchieta encontrou óbices por vezes

incontornáveis. Como dizer aos tupis, por exemplo, a palavra pecado, se eles careciam até mesmo de sua noção,

ao menos no registro que esta assumira ao longo da Idade Média europeia?”

As soluções encontradas basicamente consistiram em introduzir a palavra da língua portuguesa no idioma tupi

ou buscar uma semelhança entre as duas línguas. Dessa forma, o sagrado transformava-se em uma “mitologia

paralela” ou uma invenção de um “imaginário estranho sincrético” , como nos ensina Alfredo Bosi:

“Bispo é Pai-guaçu, quer dizer, pajé maior. Nossa Senhora às vezes aparece sob o nome de Tupansy, mãe de

Tupã. O reino de Deus é Tupãretama, terra de Tupã. Igreja, coerentemente é tupãóka, casa de Tupã. Alma é anga,

que vale tanto para toda sombra quanto para o espírito dos antepassados.”

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(BOSI, A. Dialética da colonização. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 65).

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O trabalho de adequação dos textos dramáticos ao público a que se dirigiam demonstra a preocupação

pedagógica das peças, que em última análise corroboravam com o processo de aculturação.

“Os textos teatrais de Anchieta, de maneira geral, têm uma estrutura em comum, e seu principal objetivo era a

catequese do índio e, em menor escala, a instrução dos colonos. Dentro de um projeto maior, o projeto

colonizador português, a preocupação era em formar intencionalmente o homem necessário àquela época

histórica, àquele contexto em específico. Foi para educar e manter o projeto colonizador, a “missão civilizadora”,

que o padre José de Anchieta escreveu suas peças. Afinal, a Companhia de Jesus era a ordem oficial da Coroa

portuguesa no Brasil colônia, uma vez que igreja e Estado estavam unidos pelos laços do padroado.

Disponível em: <amp.br/art03_25.pdf> .

Assim, a atuação dos padres jesuítas acabou por contribuir para a formação da própria cultura brasileira, tanto

por meio dos escritos de José de Anchieta, como de outros jesuítas, como os padres Manoel da Nóbrega e Antônio

Vieira.”

TOLEDO, C. A. A; RUCKSTADTER, F. M. M.; RUCKSTADTER, V. C. M. O teatro jesuítico na Europa e no Brasil no

século XVI. Universidade Estadual de Maringá – UEM. Disponível em: <http://www.histedbr.fae.unicamp.br

/art03_25.pdf>.

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A poesia de Anchieta elaborada nos moldes medievais deixa conhecer a alma doce e fervorosa do jesuíta. Como

se lê na singela A Santa Inês:

“Cordeirinha linda,

como folga o povo

porque vossa vinda

lhe dá lume novo.

Cordeirinha santa,

de Iesu querida,

vossa santa vinda,

o diabo espanta.

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Por isso vos canta,

com prazer, o povo,

porque vossa vinda

lhe dá lume novo.”

Comentário:

O poema foi escrito nos moldes medievais, isto é, empregando a medida velha e recursos estilísticos sonoros,

como o refrão.

Medida velha é a técnica por meio da qual o poeta estrutura os versos em redondilha menor, ou seja, versos

com cinco sílabas poéticas, ou redondilha maior, versos com sete sílabas.

Mas por que medida velha? Existe uma medida nova?

Dá-se o nome de medida velha aos versos que têm métrica de cinco ou sete silabas poéticas. Essa métrica era

comum nas cantigas do Trovadorismo português.

A medida nova foi uma métrica que surgiu no Renascimento e consiste em versos de dez silabas, ou decassilabos.

Tais versos são chamados de heroicos, quando são acentuados na sexta e na décima silabas.

Refrão corresponde a um fragmento de verso ou a versos inteiros que se repetem ao final de cada estrofe ou de

estrofes alternadas.

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Vale acrescentar ainda como obras que compõem o conjunto de textos de informação: o Diário de Navegação, de

Pero Lopes e Sousa (1530); a Narrativa Epistolar e os Tratados da Terra e da Gente do Brasil, do padre jesuíta

Fernão Cardim (1583); o Tratado Descritivo do Brasil, de Gabriel Soares de Sousa (1587); os Diálogos das

Grandezas do Brasil, de Ambrósio Fernandes Brandão (1618); a História do Brasil, de Frei Vicente de Salvador

(1627), etc.

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Para compreender a complexidade do período Barroco, antes devemos retroceder no tempo e tentar

compreender os anseios do homem dos séculos XVI e XVII. Esse olhar para o passado contemplará com mais

atenção a sociedade europeia e a sua história, tendo em vista a sua força-matriz e impondo-se sobre a nossa

situação colonial.

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Do século XI ao século XV, a Europa viveu o que se chamou de Idade Média. Esse período foi marcado por

grandes transformações. O Feudalismo, sistema social e econômico, estava consolidado a esse tempo. Isso

significa dizer que a sociedade medieval era dividida em estamentos: os nobres, o clero e os servos. E, por isso,

quase não havia possibilidade de ascensão social.

Os servos trabalhavam para os senhores feudais e, em troca, estes concediam a segurança contra invasores. O

clero detinha grande poder, pois não havia uma divisão entre Estado e igreja nesse tempo. Dessa forma, cabia-

lhe o papel de apaziguar os ânimos dos camponeses, caso tentassem revoltar-se contra o sistema. Durante muito

tempo, ouviu-se chamar esse período de Idade das Trevas, no entanto, essa expressão é equivocada e

preconceituosa, já que o período foi também marcado, entre outros fatos, pela criação das Universidades e pela

preservação dos escritos da Grécia e Roma antigas por monges copistas.

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Ao fim da Idade Média, a Europa conheceu um movimento chamado Renascimento. Da Itátia para toda a Europa,

o movimento manteve caracteristicas comuns, como a valorização da Antiguidade clássica, a recuperação dos

modelos estéticos gregos e romanos e o prestígio do equilibrio e da razão. No entanto, em países em que o

espirito medieval estava mais arraigado, como Portugal e Espanha, a absorção das ideias novas ganhou matizes

diferenciados.

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Os países da Peninsula Ibérica conheceram o apogeu no século XVI, devido à centralização politica e econômica

precoce, pelo conhecimento de técnicas de navegação e por ter obtido investimento estrangeiro.

O Brasil não vivenciou o Feudalismo, pois, como sabemos, no período medieval o nosso país não tinha sido

encontrado pelos colonizadores ainda. Na idade Média, os indígenas ocupam o protagonismo histórico em

nossas terras: vivíamos as leis e os costumes das tribos que aqui habitavam.

Após 1500, pouco a pouco Portugal estabelecia no Brasil a relação metrópole-colônia, que se prolongou até

1822. Pelo Pacto Colonial, obrigava-se a Colônia a não produzir mercadorias que concorressem com os produtos

da Metrópole, bem como a comercializar apenas com essa última.

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A partir de 1530, iniciou-se a colonização com a expedição de Martim Afonso de Sousa, com o objetivo de deter

as invasões de franceses e holandeses, povoar as terras e cultivar cana-de-açúcar. Para tanto, o pais foi dividido

em capitanias hereditárias, cuja posse foi concedida a nobres portugueses, que tinham o direito de explorar a

terra, mas deveriam proteger seu território, bem como povoar e plantar cana-de-açúcar.

O sistema das capitanias, no entanto, não obteve sucesso. Portugal, em 1549, instituiu o primeiro Governo-Geral,

a cargo de Tomé de Sousa. O governador foi sucedido por Duarte da Costa e Mem de Sá, cujo fim do mandato se

deu em 1572.

Foi no período dos Governos Gerais que Salvador, na Bahia, passou a ser capital do Brasil, devido ao

desenvolvimento da região, bem como pela localização favorável ao envio dos produtos à Europa, já que é uma

cidade litorânea.

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O monopólio comercial estabelecido entre Portugal e Brasil passou a ser um prolongamento da relação entre

Inglaterra e Portugal. Os dois países fizeram uma aliança, por meio da qual o primeiro oferecia apoio militar e

diplomático, mas exigia que o governo português abrisse os portos de seu pais e das colônias para os produtos

manufaturados produzidos pelos ingleses. Essa aliança tornou Portugal dependente comercial, politica e

economicamente da Inglaterra.

No Brasil, a sociedade do período açucareiro era dividida em três classes sociais: os senhores de engenho,

detentores do poder político e econômico, as camadas médias, constituída pelos profissionais liberais,

comerciantes, religiosos e militares e os escravos, principalmente negros de origem africana.

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Você poderia se perguntar: por que preciso saber de História para estudar Literatura?

Fique por dentro

Quando estudamos as obras de uma determinada época, é importante ter conhecimento sobre a contexto social

em que viveram os artistas, assim como entender as referências a fatos e personagens. Isso nos auxilia a

interpretar e analisar os textos, pois a literatura reflete os anseios do homem de uma determinada época.

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Ao analisarmos uma obra literária, até mesmo a ausência de referência à realidade circundante pode auxiliar na

sua compreensão.

Como vimos, os séculos XVI e XVII mudaram a paisagem econômica e política do planeta. As relações sociais

acompanharam essas mudanças.

A Igreja, como instituição social importante dessa época, sofreu grandes abalos e procurou adaptar-se aos novos

tempos. A partir de 1517, um monge alemão chamado Martin Lutero propôs o debate sobre as indulgências

católicas e promoveu um movimento de grande proporções, a ponto de fazer romper a Igreja Católica romana.

Esse movimento foi conhecido como Reforma.

Lutero

A Reforma Protestante foi um movimento reformista cristão iniciado no século XVI por Martinho Lutero, que,

através da publicação de suas 95 teses, protestou contra diversos pontos da doutrina da Igreja Católica,

propondo uma reforma no catolicismo. Os principios fundamentais da Reforma Protestante são conhecidos

como os Cinco solas.

Lutero foi apoiado por vários religiosos e governantes europeus, provocando uma revolução religiosa, iniciada

na Alemanha,

e estendendo-se pela Suiça, França, Países Baixos, Reino Unido, Escandinávia e algumas partes do Leste europeu,

principalmente os Paises Bálticos e a Hungria. A resposta da Igreja Católica Romana foi o movimento conhecido

como Contrarreforma ou Reforma Católica, iniciada no Concilio de Trento.

O resultado da Reforma Protestante foi a divisão da chamada Igreja do Ocidente entre os católicos romanos e os

reformados ou protestantes, originando o Protestantismo.

Fonte:

http://pt.wikipedia.org/wiki/Contrarreforma. Adaptado e revisado,

Abalada pela Reforma, a Igreja católica perdeu um grande número de fiéis para outras religiões e, em

decorrência disso, criou um movimento chamado Contra-Reforma.

Contrarreforma, também denominada Reforma Católica, é o nome dado ao movimento criado no seio da Igreja

Católica em resposta à Reforma Protestante iniciada com Lutero, a partir de 1517.

Em 1543, a igreja Católica Romana convocou o Concilio de Trento estabelecendo, entre outras medidas, a

retomada do Tribunal do Santo Ofício (inquisição), a criação do Index Librorum Prohibitorum, com uma relação

de livros proibidos pela igreja e o incentivo à catequese dos povos do Novo Mundo, com a criação de novas

ordens religiosas dedicadas a essa empreitada, incluindo aí a criação da Companhia de Jesus. Outras medidas

incluiram a reafirmação da autoridade papal, a manutenção do celibato, a criação do catecismo e seminários e a

supressão de abusos envolvendo indulgências.

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Fonte:

http://pt.wikipedia.org/wiki/Contrarreforma. Adaptado e revisado,

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A Europa, nesse periodo, foi sacudida por uma série de guerras de perseguição religiosa de uma e de outra parte,

sendo criado um clima de medo e insegurança, percebido nas obras de arte da época.

Após a recuperação do privilégio da razão que trouxe o homem ao centro do interesse e discussão, provocados

pelo Renascimento, a sociedade se vê abalada pelo medo, pela dúvida e pelas incertezas quanto à fé, à

transcendência da alma, à finalidade da vida. Esse periodo recebeu o nome de Barroco.

A Literatura brasileira foi inaugurada, por assim dizer, nesse periodo histórico. Não vivenciamos o Barroco em

concomitância com a Europa, mas recebemos os ecos do movimento, que encontrou no Brasil três vozes: Bento

Teixeira, Padre Antônio Vieira e Gregório de Matos Guerra.

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Para você entender como se sentia o homem barroco, veja a imagem a seguir:

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O painel de azulejos acima se encontra no claustro do Convento de São Francisco, em Salvador.

Sobre ele, encontra-se a inscrição “A morte é certa”.

A morte é representada pela figura cadavérica que distribui moedas a pessoas, organizadas em um fila. Essas

pessoas estão mortas e suas almas precisam da moeda para entregar ao barqueiro Caronte (veja ao fundo da

imagem) figura mitológica que as levará ao reino dos mortos.

Disponivel em:

«http://www. itaucultural.org.br/barroco/obra1.html>.

Perceba que, na fila, encontram-se pessoas de todo tipo: o nobre ( o homem com a coroa), o camponês ( o que

está com a pá), mulheres e crianças. Em outras palavras, a morte é certa para todos, não há escapatória.

Após receberem a moeda, todos se encaminham para a barca.

Veja que, nessa representação, temos a inequivoca certeza de que todos nos igualamos na morte. Essa é a

mensagem transmitida pelo painel.

A morte é tematizada pelo barroco com muita frequência porque o homem dessa época sentia--se dividido entre

a salvação da alma pela fé e a satisfação dos anseios da carne.

A angústia dessa dúvida coloca-o em tensão permanente, refletida nas obras de arte.

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Para Afrânio Coutinho,

“O Renascimento caracterizou-se pelo predomínio da linha reta e pura, pela clareza e nitidez dos contornos. O

Barroco tenta a conciliação, a incorporação, a fusão do ideal medieval, espiritual, supraterreno, com os novos

valores que o Renascimento pôs em voga: o humanismo, o gosto das coisas terrenas, as satisfações mundanas e

carnais. A estratégia pertenceu à Contrarreforma, no intuito, consciente ou inconsciente, de combater o moderno

espirito absorvendo-o no que tivesse de mais aceitável. Daí nasceu o Barroco, novo estilo de vida, que traduz em

suas contradições e distorções o caráter dilemático da época, na arte, filosofia, religião, literatura(...) São, por

isso, o dualismo, a oposição ou as oposições, contrastes e contradições, o estado de conflito e tensão, oriundos do

duelo entre o espirito cristão, antiterreno, teocêntrico, e o espirito secular, racionalista, mundano, que

caracterizam a essência do espirito barroco. Dai uma série de antiteses — ascetismo e mundanidade, carne e

espirito, sensualismo e misticismo, religiosidade e erotismo, realismo e idealismo, naturalismo e ilusionismo, céu

e terra, verdadeiras dicotomias” (COUTINHO, 2001, p. 99).

COUTINHO, Afrânio. Introdução à literatura no Brasil. 17. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. p. 99

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Na Literatura, a tensão é traduzida mediante o emprego de figuras de linguagem, como antitese, paradoxo,

hipérbole, sinestesia, metáfora e metonímia. Mas vale mencionar também o vocabulário rebuscado, hermético,

que recobre a violência de um estado de alma em permanente conflito.

Na Europa, duas poéticas foram percebidas nessa época, no interior do Barroco:

Cultismo

Entende-se por cultismo o jogo de palavras, proveniente do uso excessivo de figuras de linguagem. Trata-se de

influência do poeta espanhol Luis de Gôngora e, por isso, também denominamos gongorismo esse aspecto do

Barroco. Na poética de Gregório de Matos, observamos traços dessa tendência.

Conceptismo

Por conceptismo compreende-se a poética atribuída a Francisco Quevedo, cuja principal característica é o jogo

de ideias, expresso por meio de silogismos. Os sermões de Padre Antônio Vieira apresentam bons exemplos da

influência quevedista.

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Como sabemos, os nossos autores sofreram a influência da literatura ibérica e, por isso, podemos afirmar que

houve “ecos do Barroco” na literatura brasileira, uma vez que não havia aqui a configuração de um movimento

propriamente dito.

Expressão cunhada por Alfredo Bosi, que em História concisa da literatura brasileira, distingue dois momentos

nesse periodo:

“a) ecos da poesia barroca na vida colonial (...)

b) um estilo colonial-barroco nas artes plásticas e na música, que só se tornou uma realidade cultural quando a

exploração das minas permitiu o florescimento de núcleos como Vila Rica, Sabará, Mariana, São João d'El Rei,

Diamantina, ou deu vida nova a velhas cidades quinhentistas como Salvador, Recife, Olinda e Rio de Janeiro”

(BOSI, 2003, p. 35).

BOSI, A. História concisa da literatura brasileira. 41. ed. São Paulo: Cultrix, 2003. p.35)

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Em 1601, a publicação de Prosopopeia, de Bento Teixeira, é considerada o marco inicial do Barroco no Brasil.

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Nascido no Porto, Portugal, em 1561, Bento Teixeira publicou a obra Prosopopeia com intenções encomiásticas,

pois toma por mote louvar o donatário da capitania de Pernambuco, Jorge de Albuquerque Coelho. A influência

de Os Lusíadas, de Camões, é nitida na epopeia escrita em oitavas heroicas, principalmente nas inversões

sintáticas peculiares. No entanto, em dois momentos, a presença da paisagem brasileira assoma no poema, na

referência à cidade de Olinda e na “Descrição do Recife de Pernambuco”.

Vejamos a seguir uma estrofe ilustrativa:

“É este porto tal, por estar posta

Uma cinta de pedra, inculta e viva,

Ao longo da soberba e larga costa,

Onde quebra Netuno a Ffária esquiva.

Entre a praia e pedra descomposta,

O estanhado elemento se diriva

Com tanta mansidão, que uma fateixa

Basta ter à fatal Argos aneixa.”

http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/PesquisaObraForm.jsp

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Também de origem portuguesa, nascido em Lisboa, figura Antônio Vieira, que se radicou ainda menino no Brasil,

trazido pelos pais. Estudou na Bahia, mas foi cedo para Olinda com a incumbência de ensinar no seminário de

Olinda.

Tomou-se pregador em 1634 e o brilho de seus sermões ultrapassaram os púlpitos brasileiros, concedendo-lhe

um papel político de relevância na Colônia e na Metrópole.

A influência conceptista sobressai na parenética de Vieira, cuja verve argumentativa concilia “duas realidades

historicamente dispares: o sistema nacional mercantil, de um lado; e as propostas de fraternidade contidas no

Evangelho, de outro”

BOSI, A. Vieira ou a cruz da desigualdade. In: _______. dialética da colonização. 3. ed. São Paulo: Companhia das

Letras, 2000. p, 128.

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Leia agora o trecho do Sermão da Epifania, pregado em 1662 e, em seguida, a análise de Alfredo Bosi sobre o

trecho:

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“As nações, umas são mais brancas, outras mais pretas, porque umas estão mais vizinhas, outras mais remotas

do sol. E pode haver maior inconsideração do entendimento, em maior erro do juizo entre os homens, que cuidar

eu que hei-de ser vosso senhor, porque nasci mais longe do sol, e que vôs haveis de ser meu escravo, porque

nascestes mais perto?!“ (Vieira apud BOSI, A. Dialética da colonização. p.135).

Veja também um belo trecho do Sermão do Mandato:

“É pois o quarto e último remédio do amor, e com o qual ninguém deixou de sarar: o melhorar de objeto. Dizem

que um amor com outro se paga, e mais certo é que um amor com outro se apaga. Assim como dois contrários

em grau intenso não podem estar juntos em um sujeito, assim no mesmo coração não podem caber dois amores,

porque o amor que não é intenso não é amor. Ora, grande coisa deve de ser o amor, pois, sendo assim, que não

bastam a encher um coração mil mundos, não cabem em um coração dois amores. Daqui vem que, se acaso se

encontram e pleiteiam sobre o lugar, sempre fica a vitória pelo melhor objeto. É o amor entre os afetos como a

luz entre as qualidades. Comumente se diz que o maior contrário da luz são as

trevas, e não é assim. O maior contrário de uma luz é outra luz maior. As estrelas no meio das trevas luzem e

resplandecem mais, mas em aparecendo o sol, que é luz maior, desaparecem as estrelas.”

(http:// www. dominiopublico.gov.br/download/texto/fs000018pdf.pdf)

“O sermão é exemplar como xadrez de conflitos sociais, dados os interesses em jogo, obrigando o discurso ora a

avançar até posições extremas, ora a compor uma linguagem de compromisso. No fundo, o pregador acha-se

dividido entre uma lógica maior, de raiz universalista, tendencialmente igualitária, e uma retórica menor(...)

particularista e interesseira. O efeito é um misto de ardor e diplomacia, veemência e sinuosidade, que define a

grandeza e os limites de nosso jesuita.”

(BOSI, A. Dialética da colonização. P.134)

21 Triste Bahia
Gregório de Matos e Guerra, nascido em 1633, na Bahia, foi inegavelmente, o primeiro poeta brasileiro. A sua

biografia revela um personagem extremamente controvertido, tão paradoxal e surpreendente quanto a sua

poesia.

Saiba mais
Gregório de Matos Estudou em Portugal e formou-se pela Universidade de Coimbra, vindo para
o Brasil quando contava perto de cinquenta anos. Atuou como juiz.
Voltou ao Brasil em 1681, ocupando o cargo de vigário-geral.

Tendo vendido as terras que ganhara como dote ao casar-se com Maria dos Povos, conta-se

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Tendo vendido as terras que ganhara como dote ao casar-se com Maria dos Povos, conta-se
que teria deixado o dinheiro largado em casa e gastado desmedidamente.
“Conta-se que teria, em certo momento da vida, abandonado tudo para vagar como
“cantador itinerante, convivendo com todas as camadas da população” (MATOS, Gregório de.
Poemas escolhidos/ Gregório
de Matos; seleção e organização José Miguel Wisnik. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p.
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No entanto, embora tenhamos notícia de que sua produção poética foi bastante extensa, não se
conhece nenhum poema assinado por ele ou impresso em vida. Reunidos, ao longo do tempo,
por colecionadores, há casos de um mesmo poema apresentar versões bastante distintas.
Além da dificuldade de se estabelecer a originalidade do texto do autor, há que se considerar
as traduções livres de Quevedo e Gôngora, que aumentam a sua bibliografia. Como vemos, a
obra de Gregório suscita, por si só, grande polêmica. No entanto, é importante destacar que a
noção de autoria não tinha no século XVII o mesmo valor que tem hoje.

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Composta por sátiras, poemas religiosos, líricos e amorosos, a obra de Gregório revela sua mestria técnica e

agilidade verbal, inclusive empregando palavras da língua tupi, como podemos observar no poema a seguir:

AOS CARAMURUS DA BAHIA

Um calção de pindoba, a meia zorra,

Camisa de urucu, mantéu de arara,

Em lugar de cotó arco e taquara

Penacho de guarás em vez de gorra.

Furado o beiço, e sem temor que morra

O pai, que lho envasou cuma titara

Porém a Mãe a pedra lhe aplicara

Por reprimir-lhe o sangue que não corra.

Alarve sem razão, bruto sem fé,

Sem mais leis que a do gosto, quando erra

De Paiaiá tornou-se em abaité.

Não sei onde acabou, ou em que guerra:

Só sei que deste Adão de Massapé

Procedem os fidalgos desta terra.

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No poema, observa-se a critica dura e impiedosa aos “nobres” da Colônia, os “caramurus”, os novos-ricos que

detinham o poder econômico e político no Brasil colonial. A verve do esgrimista impiedoso das palavras rendeu-

lhe o apelido Boca do Inferno.

Note também que o ponto de vista de Gregório é o de um descendente nobre de uma família de proprietários de

terras e engenho, cujos bens foram se perdendo, restando-lhes apenas a memória de fidalguia. O poeta assume,

assim, o tom amargo ao expor as suas criticas à mestiçagem, mas também à corrupção e tematiza o rancor de um

reinol de alta estirpe, injustiçado pela ralé que governa a Colônia.

À BAHIA

Triste Bahia! ó quão dessemelhante

Estás e estou do nosso antigo estado!

Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado,

Rica te vi eu já, tu a mi abundante.

A ti trocou-te a máquina mercante,

Que em tua larga barra tem entrado,

A mim foi-me trocando e tem trocado

Tanto negócio e tanto negociante.

Deste em dar tanto açúcar excelente

Pelas drogas inúteis, que abelhuda

Simples aceitas do sagaz Brichote.

Oh! Se quisera Deus que de repente

Um dia amanheceras tão sisuda

Que fora de algodão o teu capote!

“Uma primeira aproximação ao texto, de caráter abrangente, encontra dois movimentos de sentido oposto. Pelo

primeiro, o eu lírico entra em simpatia com o tu, a cidade da Bahia, animada e personalizada. Pelo segundo, vem

a separação: o eu, agora juiz, invoca um castigo para o outro, chamando a intervenção de uma terceira pessoa,

Deus, mediador poderoso e capaz de executar a pena merecida. A primeira onda de significação move os

quartetos; a segunda, os tercetos”(BOSI, 1992, p. 94-95).

BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 94-95.

TEMPO A CIDADE DA BAHIA

A cada canto um grande conselheiro,

Que nos quer governar cabana e vinha;

Não sabem governar sua cozinha,

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E podem governar o mundo inteiro.

Em cada porta um bem frequente olheiro,

Que a vida do vizinho e da vizinha

Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha,

Para o levar à praça e ao terreiro.

Muitos mulatos desavergonhados,

Trazidos sob os pés os homens nobres,

Posta nas palmas toda a picardia,

Estupendas usuras nos mercados,

Todos os que não furtam muito pobres:

E eis aqui a cidade da Bahia

(BUENO, Alexei. Uma história da poesia brasileira. Rio de Janeiro: G. Ermakkoff Casa Editorial, 2007. p. 25)

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Destacam-se, na obra gregoriana os poemas religiosos cujos matizes barrocos podem ser assinalados.

Embora a autoria seja questionada devido à semelhança com poemas de outros autores da época, a beleza dos

versos e a riqueza estilística merecem atenção. Como no poema A Jesus Cristo Nosso Senhor.

A JESUS CRISTO NOSSO SENHOR

Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado,

Da vossa alta clemência me despido;

Porque, quanto mais tenho delinquido,

Vos tenho a perdoar mais empenhado.

Se basta a vos irar tanto pecado,

A abrandar-vos sobeja um só gemido:

Que a mesma culpa, que vos há ofendido,

Vos tem para o perdão lisonjeado.

Se uma ovelha perdida e já cobrada

Glória tal e prazer tão repentino

vos deu, como afirma na sacra história,

Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada,

Cobrai-a; e não queirais, pastor divino,

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Perder na vossa ovelha a vossa glória.

Nesse soneto, é perceptível a tensão barroca mediante o uso de figuras de linguagem como os pares antitéticos:

pecar /perdoar e Lisonja/ofensa. No entanto, a força do poema reside no tom argumentativo com que pretende

convencer Deus de sua salvação.

O eu lírico vai buscar nas sagradas escrituras o exemplo que servirá de precedente: o episódio da ovelha

desgarrada. Por analogia, a salvação de sua alma pecadora seria motivo de glória para Deus; e se pecava tanto,

era por acreditar que seria perdoado, já que a condenação poderia significar a perda da glória divina.

Veja que o tom de oração recobre a petição do “advogado”, cujo talento argumentativo se coloca a serviço da

salvação da alma, conscientemente pecadora.

A lírica amorosa e filosófica de Gregório de Matos conta com significativa produção, em sua maioria de sonetos

de inspiração camoniana. São temas comuns: a transitoriedade da vida, considerações sobre o ciume, o silêncio e

as declarações amorosas.

BUENO, Alexei. Uma história da poesia brasileira. Rio de Janeiro: G. Ermakkoff Casa Editorial, 2007. p. 31.

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AOS AFETOS E LÁGRIMAS DERRAMADAS NA AUSÊNCIA DA DAMA A QUEM QUERIA BEM

Ardor em firme coração nascido;

Pranto por belos olhos derramado;

Incêndio em mares de água disfarçado;

Rio de neve em fogo convertido:

Tu, que em um peito abrasas escondido;

Tu, que em um rosto corres desatado;

Quando fogo, em cristais aprisionado;

Quando cristal em chamas derretido.

Se és fogo como passas brandamente,

Se és neve, como queimas com porfia?

Mas ai, que andou Amor em ti prudente!

Pois para temperar a tirania,

Como quis que aqui fosse a neve ardente,

Permitiu parecesse a chama fria.

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MATOS, Gregório de. Poemas escolhidos/ Gregório de Matos; seleção e organização José Miguel Wisnik. São

Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 222.

A beleza da descrição da lágrima metaforizada

A beleza da descrição da lágrima metaforizada em fogo e neve, expressões antitéticas, desenvolve, ao Longo do

soneto, o lamento do eu lírico que pondera sobre o paradoxo do sentimento amoroso.

A primeira estrofe apresenta, nos dois últimos versos, a estrutura quiasmástica que reforça o contraste,

mediante o espelhamento:

Quiasmátca provém de quiasma, que trata-se de uma figura estilística pela qual pode-se perceber o cruzamento,

formando um movimento semelhante à letra X. (qui, letra do alfabeto grego).

O mesmo procedimento se percebe também nos dois últimos versos da segunda estrofe, onde o vocativo “tu”, a

quem se dirige o poeta, são as lágrimas que sintetizam essa dualidade.

Na terceira estrofe, o questionamento do eu lirico se responde, pois é o Amor que torna possível o paradoxo do

fogo, que simboliza a paixão e o desejo, a ser sublimado pelo sentimento amoroso de castidade e pureza,

representada pela neve - como se lê na quarta estrofe.

Como vimos, a importância da poesia de Gregório de Matos se consolida não apenas pela variedade ou volume de

obras, mas principalmente por apresentar os traços da literatura que inaugura: a hibridez, a intensidade e a

conciliação.

Pensar a literatura brasileira é também refletir sobre a maneira especial, própria da cultura do nosso povo, de

compreender e expressar os sentimentos e angústias humanas. Assim como fizeram os autores do século XVII e

como fazemos nós no século XXI.

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O que vem na próxima aula
• O Barroco no Brasil, ecos da tradição europeia;
• Bento Teixeira e poesia fundadora.

CONCLUSÃO
Nesta aula, você:
• Conheceu o panorama histórico anterior e contemporâneo ao Barroco;
• aprendeu os principais traços característicos do Barroco;
• analisou textos de Bento Teixeira, Padre Antônio Vieira e Gregório de Matos.

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