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A visão alegórica: Compêndio Narrativo do Peregrino da América, de Nuno

Marques Pereira.
Rodney José Paolillo
( UNESP – Assis)*
A obra de Nuno Marques Pereira, Compêndio Narrativo do Peregrino da
América, publicada em 1728, foi concebida propositalmente em forma alegórica,
visando a edificação dos leitores segundo as concepções da moral religiosa pregada
pelos jesuítas, grupo responsável pela disseminação impositiva dos ideais contra-
reformistas promulgados no Concílio de Trento.
A presença jesuítica em solo brasileiro, bem como em toda a América
espanhola, é parte de um projeto da Igreja Católica Romana de implantar suas doutrinas
no "Novo Mundo", participando do processo de colonização desde seu início. Aliados
às coroas portuguesa e espanhola, os jesuítas ocupar-se-íam dos assuntos espirituais e da
cristianização das populações indígenas, enquanto Suas Majestades ocupar-se-íam com
a exploração e administração das riquezas naturais encontradas em suas novas colônias.
Vários recursos foram empregados pelos jesuítas para que atingissem seus
objetivos, criaram as reduções, espécie de reserva indígena administrada com total
autonomia pelos religiosos, sem a intervenção dos representantes reais, o que, por vezes,
gerou vários atritos entre os dois grupos; e também fundaram várias escolas em pontos
estratégicos das colônias, formando os filhos dos colonizadores segundo os moldes
intelectuais, morais e espirituais ditados pelo Concílio de Trento. Nuno Marques Pereira
dedica o segundo volume de seu Compêndio Narrativo à apresentação e justificativa
elogiosa das disciplinas ministradas em tais escolas.
Uma das formas adotadas pelo catolicismo contra reformista para evangelizar os
pagãos e edificar os fiéis foi a utilização de imagens. A iconografia barroca brasileira é
abundante e encontramos exemplos significativos deste estilo nas Minas Gerais, Bahia
e Pernambuco, não ignorando as mostras de menor vulto espalhadas pelo restante do
país.
Sendo o barroco uma arte de cunho popular, visando glorificar e exaltar Deus e,
deste modo, intensificar a piedade e devoção dos fiéis, notamos a proeminência da
comunicação como meio de envolver e inflamar seu público.
Na literatura barroca encontramos os discursos religiosos carregados de figuras
retóricas, com sentenças pomposas, trazendo para os textos toda a suntuosidade da
arquitetura e artes plásticas do mesmo estilo.
Para que as obras literárias não fugissem à intenção contra- reformista da
evangelização e edificação, são empregados muitos exemplos com fundo moral e
espiritual nos textos. Chamamos de alegoria a esta forma de construção literária
expressa em dois planos: o da representação figurada, literal e visível, e o da
significação encoberta, sabendo-se que os elementos da primeira correspondem aos da
realidade ocultada, e a correspondência entre os dois planos se dá pelo princípio da
analogia.
João Adolfo Hansen, em sua obra Alegoria, escreve que não se deve falar em
alegoria, e sim em alegorias e apresenta, não negando a existência de outras, duas
formas de construções alegóricas: a dos poetas, voltada para o procedimento
construtivo, uma forma de expressão retórica, e dos teólogos, que se dedica à
interpretação e entendimento de textos sagrados.
A obra de Nunes Marques Pereira enquadra-se no segundo modelo alegórico
apresentado por Hansen, ou seja, o dos teólogos. O Compêndio Narrativo do Peregrino
da América, composto em dois volumes, é estruturado de forma didática. Em ambos, o
Peregrino conta as suas experiências a um ancião que declara ser "o tempo bem
empregado".
No primeiro volume são dadas orientações sobre a humildade, caridade, pecado,
redenção e de forma mais expressiva a apologia dos Dez Mandamentos. Já no segundo
volume, encontramos a apresentação e exaltação das disciplinas oferecidas pelos
colégios jesuíticos, considerações sobre a austeridade que se deve ter na vida, questões
doutrinárias que versam sobre o Juízo Final, o Céu, o Inferno, a vida, a morte, entre
outras. Em ambos os volumes, os temas são tratados através de numerosos exemplos,
óbvios demais em suas intenções de persuasão. O Peregrino sempre está conversando
com alguém que lhe expõe suas dúvidas, logo por ele esclarecidas, sem
questionamentos ou discordâncias posteriores. Todos os exemplos dados pelo
protagonista são sempre suficientes e parecem revestidos de autoridade divina. O
discurso alegórico, assim apresentado, faz eco às palavras de Antonio Candido em sua
obra A Educação pela Noite e outros Ensaios:
De fato, a alegoria é um modo não-ficcional de ver o mundo; é mesmo
antificcional apesar das aparências, na medida em que nela a ficção é um pretexto e um
veículo, a ser dissolvido quanto antes pelos fluidos da noção e da informação
(moralmente condicionados), que devem suplantar a aparência romanesca (p.86).
À semelhança das parábolas evangélicas, o autor recorta acontecimentos
cotidianos para a formulação de seu discurso alegórico, engajando o texto em seu
momento histórico, ou seja, o Brasil- colônia do início do século XVIII. Tal dado possui
implicações assim relatadas por Antonio Candido, no livro supracitado:
Importantes seriam a idéia abstrata ou o princípio ético, integrantes do
sistema ideológico de um dado tempo; e isto faz que a alegoria se torne fetichizadora e
fique presa demais ao seu momento histórico, sendo um código contingente que perde o
interesse para a posteridade, mesmo quando esta possui a chave do segredo.
Exemplificando a forma de Nuno Marques empregar o discurso alegórico,
tomamos o capítulo XI, em que o Peregrino reclama a seu hospedeiro do barulho
produzido pelos negros ao entoar seus calundús enquanto ele dormia. Diz que tais
práticas são abomináveis aos olhos de Deus, ferindo o primeiro mandamento do
Decálogo, e que deveriam ser proibidas, pois o objetivo cristão do escravismo é a
conversão das negros pagãos ao cristianismo. O dono da casa chama os negros para
conversarem com o viajante que lhes explica, recorrendo à etimologia de calundú em
português e latim, que os rituais africanos são diabólicos e quem os pratica está
intimamente comprometido com o Diabo e apartado de Deus. O feiticeiro-chefe é
exorcizado, todos rezam e fazem penitências por seus pecados, inclusive o hospedeiro,
pois permitia que seus escravos realizassem rituais de origem africana. Os instrumentos
dos negros são queimados e todos ficam em paz.
Por este breve resumo já é possível notar que o significado de todo o enredo
é a interpretação, o entendimento religioso, como apresentado por Hansen. O
significado oculto é escancaradamente óbvio; a saber: defesa dos valores religiosos
cristãos sobre todos os demais. O ideal contra-reformista é latente, mostrando o
processo de evangelização dos pagãos, no caso os escravos, e a edificação dos cristãos,
representados pelo hospedeiro.
Nota-se o comprometimento do autor com sua época e, em especial, com as
classes dominantes, tendo em vista a defesa da manutenção da escravatura, essencial
como mão-de-obra nas colônias de exploração, como são as luso-espanholas. Percebe-se
a aliança Igreja-Estado quando o Peregrino defende as bases religiosas cristãs que
devem motivar a escravidão em solo brasileiro, a saber: levar os negros ao
cristianismo.
O estilo barroco se faz representar pela construção de imagens retóricas densas
e, por vezes, forçadas, basta que imaginemos os negros analfabetos de uma senzala
tendo que ouvir um estranho argumentando contra as suas práticas religiosas e culturais,
no caso os calundús, baseando-se na significação que os fonemas da palavra, extraída
do idioma quimbundo, possui em português (calo) e latim (duo). A interpretação
segue o modelo alegórico dos teólogos e transmite uma visão do cristianismo católico
como sendo a única correta e elevada, capaz de aproximar os homens de Deus.
Exemplos como os do capítulo XI se repetem à exaustão por toda a obra de Nuno
Marques.
Concluímos esta comunicação afirmando que a visão alegórica apresentada no
Compêndio Narrativo do Peregrino da América foi aproveitada pelos religiosos do
século XVIII para a catequização dos habitantes da colônia, contando com cinco
edições naquele século, sendo o grande sucesso editorial setecentista.

Notas
*Rodney José Paolillo é mestrando em Literaturas de Língua Portuguesa na
UNESP-Assis, teólogo, professor de Filosofia da Faculdade de Pedagogia de Assis-
IEDA.
Referências Bibliográficas
CANDIDO, Antonio. A Educação pela Noite e outros Ensaios. 2ª ed. São Paulo: Ática,
1989.
HANSEN, João Adolfo. Alegoria – Construção e Interpretação da Metáfora. São Paulo:
Atual, 1986.
PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio Narrativo do Peregrino da América. 6ª ed. Rio
de Janeiro: Academia Brasileira, 1939. v.1 e 2.

Resumo
Nuno Marques Pereira, em sua obra Compêndio Narrativo Peregrino da América
(1728), utiliza o discurso alegórico com a finalidade de transmitir o ideal moral
contrarreformista. Através de um levantamento de situações apresenta problemas que
ferem os dez mandamentos e que acabam solucionados pela orientação espiritual
do protagonista, vencendo sempre, e sem contestação, a visão moralista dominante no
século XVIII.

Unitermos
Literatura Brasileira; Nuno Marques Pereira; Barroco; Compêndio Narrativo do
Peregrino da América; Alegoria.

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