AMÉRICA I Aula: Sociabilidades na América Hispânica
Prof.ª Rozely Vigas
SERGE GRUZINSKI (1949- ) • Historiador, arquivista e paleógrafo francês. • Formado pela École de Chartes, é professor na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, pesquisador e diretor do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) e curador do Museu do Quai Branly, de Paris. • Autor de vários artigos e livros sobre o México colonial e o Império português. • A Colonização do Imaginário: Sociedades Indígenas e ocidentalização no México Espanhol, sécs. XVI-XVIII; A Guerra das Imagens: de Cristovão Colombo a Blade Runner(1492-2019); O Pensamento Mestiço; As Quatro Partes do Mundo. O PENSAMENTO MESTIÇO • Para o autor, a história pode ser uma disciplina que pensa o tempo e a cultura de modo não linear. Assim, ele também faz análises sobre realidades espaço-temporais recentes. • A partir das obras artísticas encomendadas pelos católicos aos indígenas nahua no México colonial, o principal objetivo do livro é explicar como ocorreu a miscigenação cultural, como ela foi trabalhada pelas elites e pelo povo, o quanto foi preservado do nativo e como as categorias europeias foram assimiladas. • O estudo destaca as qualidades metamórficas das formas híbridas, cujas características mais fortes são a complexidade, a fragmentação, a instabilidade, a imprevisibilidade, a diversidade, a opulência ou o excesso, o mimetismo, a ambiguidade e a fecundidade. O PENSAMENTO MESTIÇO • A harmonização é resultado de uma comunicação entre os estilos, que modela um novo arranjo de formas fértil, dinâmico e vibrante, em busca sempre de adesão. • Vimos que o domínio das culturas nativas da América espanhola foi rápido e violento, marcado pela destruição dos ícones e imagens dessas culturas. Porém, para manter a conquista, ou seja, colonizar, foi preciso estabelecer modos de influenciar a população. • À medida que os espanhóis buscaram replicar o mundo europeu, transferindo seus imaginários e instituições, os indígenas procuraram brechas, que permitissem a expressão de sua própria cosmogonia. O PENSAMENTO MESTIÇO
• Se por um lado, os artistas nativos fizeram uso da mitologia antiga greco-
romana para a divulgação e perpetuação da mitologia ameríndia, adotando o disfarce das próprias representações como tática de autopreservação. • Por outro, os clérigos, em sua maioria, consideraram a mescla de elementos das duas culturas uma influência positiva, sendo uma abertura necessária ao trabalho de evangelização deles. • Gruzinski também busca influências mútuas entre Europa e América, tendo encontrado afrescos na Galeria dos Ofícios, em Florença, nos quais é possível perceber a presença de guerreiros astecas. O PENSAMENTO MESTIÇO
• O autor procura (re)definir conceitos, como o de mestiçagem e de
hibridismo. • Não trabalha com a ideia de choque, justaposição, substituição ou mascaramento. Para ele, o encontro das civilizações gerou “zonas estranhas”, onde a improvisação venceu a norma e o costume. • Constrói ao longo do texto a ideia de “atraidor” que, como um ímã, ajusta entre si peças díspares, reorganizando-as e dando-lhes um novo sentido, possibilitando, assim, a expressão de um pensamento mestiço. A GRUTA DAS SIBILAS • A partir do mito das Sibilas, profetisas da Antiguidade que teriam anunciado a chegada do Messias, encontradas nas pinturas murais na Casa del Deán – o edifício mais antigo da cidade de Puebla, residência de Tomás de la Plaza, decano entre 1564 e 1589 –, Gruzinski trabalha como a relação entre missionários e nativos, no século XVI, criou uma nova cultura, mestiça, híbrida. • Interessante que o autor vai mostrando em seu texto que a própria Igreja esteve na origem de grande parte das misturas que “contaminaram” a sua ortodoxia. • Após o choque da Conquista, as crenças antigas se agarraram aos elementos do cristianismo impostos às populações derrotadas, e a coexistência forçada estimulou por toda parte o aparecimento de mestiçagens. A GRUTA DAS SIBILAS • Uma das prováveis causas da mestiçagem, teria sido o próprio laxismo dos membros da Igreja. A Igreja não perseguiu realmente as misturas e nem atacou a idolatria de forma sistemática. • Foram poucos os que denunciaram as misturas. Não era fácil distinguir o que seriam resquícios pagãos das misturas ocorridas depois da Conquista. • O termo “mistura” para a Igreja era uma concepção de uma justaposição, em que componentes pagãos permaneceriam diferenciáveis dos componentes cristãos, não percebiam que traços cristãos podiam ser reelaborados e imbricados no tecido pagão. • Também houve motivos políticos, já que os regulares não podiam admitir que sua conversão não estava sendo completamente exitosa. Na convicção de seu êxito quase milagroso estava a defesa dos próprios privilégios e posições diante dos bispos e do resto da sociedade colonial. A GRUTA DAS SIBILAS
• Inspirados numa prática europeia de inserir o sentido espiritual em textos
profanos e populares, os religiosos tentaram cristianizar as danças e os cantos dos índios. • Porém, nem sempre perceberam que sua aplicação à matéria indígena modificava-lhe singularmente o alcance, já que mesmo despojada das palavras a música continuava a ser portadora de mensagem pagã, da lembrança dos rituais anteriores à Conquista. • Essas criações foram representadas nas primeiras igrejas e as danças pré- hispânicas, acompanhadas de cantos tradicionais, se tornaram atrações em eventos públicos. A GRUTA DAS SIBILAS • O trabalho missionário também reconverteu as antigas deidades ameríndias. • A obra Psalmodia do franciscano Bernardino de Sahagún, grande denunciador de idolatrias e crítico das misturas, é um ótimo exemplo. • Escrita com a ajuda de índios alfabetizados, entre 1558 e 1560, e publicada em 1583, a obra utiliza as características ameríndias como cenários em que se inserem temas cristãos. O imaginário ameríndio serve para apresentar figuras cristãs, como Jesus Cristo, a Virgem Maria e santos franciscanos. • “Por mais que o vento que refresca a cena e destila seus perfumes se chame Ehecatl, uma das invocações de Quetzalcoatl e da estrela da Manhã, eis-nos em pleno quadro ortodoxo, e aprovado pela Igreja.” A GRUTA DAS SIBILAS • Outros ambientes europeus favoreceram a proliferação da mistura na sociedade colonial. O autor destaca três: • Respeito ao passado: foi permitido aos nobres conservarem seus palácios, códices, costumes, danças e cantos, expurgados das dimensões idolátricas. • Hábitos festivos: as autoridades civis, europeus que amavam festas, incentivavam as apresentações públicas dos nativos, o que estimulou a perpetuação das manifestações tradicionais e de sua adaptação colonial. • Correntes artísticas da Europa renascentista: o teatro, as pinturas renascentistas foram aclimatadas à terra mexicana. Os hieroglifos, as criaturas fantásticas e as alegorias cruzaram o oceano e foram sensíveis ao híbrido. A GRUTA DAS SIBILAS • “As alegorias maneiristas certamente não têm o mesmo sentido nem a mesma substância das formulações ameríndias, mas todas conseguem manter imaginários bastante próximos para que os espectadores indígenas aí se percam e se achem.” • “Alegorias e analogias abundam na poesia religiosa espanhola do século XVI. Essa pedagogia tem seus riscos, pois basta que a intenção seja mal percebida para que as imaginações se embalem. Por menos que um mestiço ou um índio resolva fantasiar o significado da licorne, da fênix ou do elefante, desconhecendo sua natureza de hieroglifo sagrado e ... de cenário teatral, surgirá um Jesus Cristo tão fantástico e polimorfo quanto uma divindade da Índia ou a Serpente Emplumada dos antigos mexicanos.” A GRUTA DAS SIBILAS • A conquista linguística também fomentou ambiguidades, tanto do lado das traduções discutíveis dos religiosos quanto das imaginadas pelos indígenas letrados. • As simples conexões de termos – um espanhol, um náuatle –também atraem os materiais indígenas para a esfera cristã. • Exemplo: a dupla teyolia/anima, equivalentes ao coração ameríndio e à alma cristã. Na origem essas noções correspondem a entidades e crenças sem nenhuma ligação entre si. Na cultura nahua, “a teyolia era uma das três forças vitais que habitavam o corpo do homem, assim como as montanhas e os lagos. Na morte do indivíduo, a teyolia ia para o Michtlan, o Tlalocan ou para o céu do Sol, sem que os méritos terrestres fossem determinar seu destino. Por conseguinte, nada a ver com a alma cristã, a não ser que se caia nas formulações heréticas.” Concluindo... • Os nativos, por muitas vezes, confundiram as imagens cristãs com as “imagens” indígenas. Os pintores (tlacuilos) deram vida nova, com novos significados, aos temas de sua cultura de origem. • “Entre o cristianismo de hoje e o paganismo de ontem aparece claramente um terceiro conjunto de crenças”. • A ocidentalização não foi apenas uma ruptura brutal e normalizadora, foi também criadora de formas mestiças. • Para que a colonização espanhola fosse imposta, foi preciso negociação contínua. As estratégias praticadas pela Coroa e pela Igreja podem implicar tanto a rejeição como a seleção, tanto a extirpação como o reemprego ou o compromisso. Concluindo... • “O encontro de experiências extremamente distantes entre si num contexto de fortes tensões, como foi a sociedade colonial, pôde resultar em bruscas mutações.” • Apesar dos nativos conservarem significados de elementos originais ou interpretarem o cristianismo de modo a se afastarem da ortodoxia católica e reavivarem crenças ancestrais, isso não marca um verdadeiro retorno ao mundo ameríndio, mas sim a coabitação e a interpenetração desses universos de crenças. • “Nem pensar em voltar aos tempos idos, a história é irreversível.” TEXTOS DA AULA: GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. (Capítulo 12 “A gruta das sibilas”)