Você está na página 1de 3

HANSEN, João Adolfo. A civilização pela palavra.

In: LOPES, Eliane Marta Teixeira;


FARIA FILHO, Luciano Mendes de; VEIGA, Cythia Greive. 500 anos de Educação no
Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

Sobre o Autor

João Adolfo Hansen, nasceu em Cosmópolis, cidade de São Paulo no ano de 1942 e possui
formação em letras Anglo Germânica Pontifícia Universidade Católica de Campinas e é
mestre e doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo. Atuou como
professor, também na Universidade de São Paulo, além de exercer as atividades de crítico
literário, pesquisador e ensaísta, sendo um dos principais estudiosos da literatura colonial
brasileira. Publicou diversas obras como por exemplo, A Sátira e o Engenho. Gregório de
Matos e a Bahia do Século XVII (1989), vencedor do prêmio Jabuti no ano de 1990 e o
livro Oó. A Ficção da Literatura em Grande Sertão: Veredas (2000).

Sobre o Artigo

O artigo A civilização pela palavra de autoria de João Adolfo Hansen está presente na obra
500 anos de educação no Brasil, publicado no ano 2000 e organizado por Eliane Marta
Teixeira Lopes, Luciano Mendes Faria Filho e Cynthia Greive Veiga. O livro é resultado
de uma parceria da prefeitura de Belo Horizonte com a editora Autêntica e reúne uma
coletânea de artigos de diversos pesquisadores da história da educação brasileira abarcando
os principais pontos nos primeiros 500 anos após a chegada dos portugueses. O texto A
civilização pela palavra é o artigo de abertura da obra e busca apresentar o contexto
histórico em que a Companhia de Jesus se constitui no seio da contra reforma e os
pressupostos filosóficos que vão pautar a educação jesuítica.

Fichamento

Em 6 de abril de 1546, os padres reunidos na IV sessão do Concílio de Trento declararam


herética a tese sola fide et sola scriptura ("só com a fé e só com a escritura") da teologia
reformada. Com ela, Martinho Lutero tinha determinado que o fiel devia pôr-se em contato
com Deus por meio da leitura solitária da Bíblia, dispensando a mediação do clero e dos
ritos e cerimônias visíveis da Igreja (HANSEN, 2000, p. 19).

Contra a tese, a declaração conciliar confirmou a traditio como fonte autorizada vinda
diretamente "da boca mesma de Cristo" (HANSEN, 2000, p. 19).

[...] o jesuíta Francisco Suárez retomou a noção de "testemunho", afirmando que a tradição
é o alfa do Evangelho de São Lucas e o ômega do Evangelho de São João. s Ambos os
textos fundamentam e autorizam a tradição como um modo de transmissão não-escrita da
Palavra divina confirmado por São Paulo (1, Tessalon. 2): "Quando recebestes de nós a
palavra de Deus dirigida ao ouvido, aceitaste-la não como palavra de homens mas como
realmente é, palavra de Deus" (HANSEN, 2000, p. 20).
2

A redefinição da Igreja católica como comunidade de fé, magistério e autoridade levada a


cabo pelo Concílio prescreveu que a communitas fidelium, a comunidade dos fiéis, incluía
necessariamente todas as populações gentias das novas terras conquistadas por espanhóis e
portugueses, onde as novas ordens fundadas para combater a heresia, como a Companhia
de Jesus, deviam exercer o magistério e o ministério da Igreja segundo a ordem de São
Paulo na Segunda Epístola aos Tessalonicenses (3,15): tenete traditiones, "conservai as
tradições". (HANSEN, 2000, p. 20).

Sabe-se que a tese luterana da sola scriptura foi materialmente condicionada pela
imprensa, que tornava acessíveis os originais dos textos bíblicos. Aliás, o primeiro livro
impresso por Gutemberg foi a Bíblia (HANSEN, 2000, p. 20).

Assim, a Igreja Católica conciliar e pós-tridentina fez a defesa intransigentemente


"tradicionalista" da transmissão oral das duas fontes da Revelação, a tradição e as
Escrituras. Contra a diretiva luterana da leitura individual, determinou que apenas teólogos
autorizados pelas duas fontes da Revelação poderiam ler e interpretar o Antigo e o Novo
Testamento (HANSEN, 2000, p. 21).

Nos séculos XVI e XVII, nas missões jesuíticas do Brasil e do Maranhão e Grão Pará, a
iniciativa de fazer da pregação oral o instrumento privilegiado de divulgação da Palavra
divina pressupunha que a luz natural da Graça inata ilumina a mente dos gentios objeto da
catequese, tornando-os predispostos à conversão (HANSEN, 2000, p. 21).

Em 17 de junho de 1546, tratando da pregação, o Concílio de Trento emitiu o decreto


Super lectione et prae dicatione, determinando que a transmissão da verdade da "tradição"
(e da "Escritura") seria feita pela palavra oral divulgada no púlpito por pregadores
inspirados pelo Espírito Santo (HANSEN, 2000, p. 23).

O povo todo, como um único corpo de vontades unificadas, ou seja, como um "único corpo
místico", aliena-se do poder e o transfere para a pessoa mística do rei, que é pessoa sagrada
porque representativa da soberania popular. Esta doutrina, sistematizada por Suárez, foi
difundida pelos jesuítas na Universidade de Coimbra e nos colégios de Portugal, da África
e do Brasil, até sua expulsão pelo Marquês de Pombal, em 1759. Ela implica que a
educação deve levar os indivíduos a uma integração harmoniosa como súditos no corpo
político do Estado, definindo-se "liberdade" como "servidão livre" ou subordinação à
cabeça real (HANSEN, 2000, p. 25).

Para obter tal "subordinação livre", que interessa ao "bem comum", a educação deve
"tornar mais homem", lema do Ratio studiorum usado pela Companhia de Jesus a partir de
janeiro de 1599. Ou seja, deve dar conta das três faculdades que, segundo a filosofia
escolástica, definem a pessoa humana: a memória, a vontade e a inteligência [...]. Por
outras palavras, é "mais homem" quem aprende a agir segundo a recta ratio agibilium e a
recta ratio factibilium da Escolástica, a reta razão das coisas agiveis e a reta razão das
coisas factíveis, visando o "bem comum" da concórdia e da paz do todo do Estado
(HANSEN, 2000, p. 25).

O Ratio studiorum, publicado pela Companhia de Jesus em janeiro de 1599, especifica que
a Retórica deve dar conta de três coisas essenciais que então resumem e normalizam toda a
3

educação, os "preceitos", o "estilo" e a "erudição"[...]. Nos colégios jesuíticos, a Retórica


ocupava quatro horas por dia, duas pela manhã e duas à tarde (HANSEN, 2000, p. 26).

A "civilização pela palavra" correspondia, no caso, à divulgação católica da Retórica


antiga em duas frentes: de um lado, o ensino específico das técnicas e, ainda, das artes e
das letras em geral segundo o modelo generalizado da Retórica aristotélica e das suas
versões latinas, nos colégios jesuíticos; de outro, o uso particular de seus preceitos, estilos
e erudição pelos pregadores nas variadíssimas circunstâncias do magistério da fé
(HANSEN, 2000, p. 31).

A extraordinária ênfase posta na memória visava a exercitar, pela repetição dos lugares
comuns da erudição, a rapidez da invenção e da elocução, teorizada como "engenho" ou
"perspicácia" (capacidade de penetrar nos assuntos, definindo, analisando e classificando
os temas em tópicos por meio das 10 categorias aristotélicas) e "versatilidade" (capacidade
de substituir e ornar cada definição assim obtida com tropos e figuras, como metáforas e
alegorias agudas que evidenciavam aspectos ainda não conhecidos dos conceitos)
(HANSEN, 2000, p. 31).

O uso de citações latinas evidenciava a discrição letrada do "eu" da enunciação, que falava
constituindo uma audição culta, enquanto reciclava exemplos de poetas (Virgílio, Ovídio,
Horácio, Lucano), oradores e retores (Cícero, Quintiliano, Sêneca, Marciano Capela) e
historiadores (Tácito, Tito Lívio, Suetônio, Políbio) como exemplos e avalistas da
autoridade do que dizia (HANSEN, 2000, p. 33).

Por isso, deve se pensar que, no ato de fala, o autor do sermão se autorizava a si mesmo
como posicionamento hierárquico ao citar autoridades da traditio e das Escrituras que
doavam o sentido ortodoxo do discurso. Em decorrência, o orador compunha seu público
como um "testemunho" da autoridade en carnada na representação e como re presentação
na actio retórica. Justamente por isso, também o "público" da pregação contra-reformista
não pode ser entendido segundo as nossas categorias iluministas, ou seja, como instância
caracterizada pela idéia de livre-iniciativa crítica ou de defesa da particularidade de um
interesse ou de uma "ideologia", que na sociedade de classes contemporânea aparecem
rotineiramente publica dos como conflito ou competição com outros interesses e ideologias
(HANSEN, 2000, p. 35).

Logo, para especificar a natureza, a estrutura e a função da pregação católica pós-tridentina


como "educação" ou "civilização pela palavra", é fundamental retomar mais alguns dos
pressupostos e diretivas onto-teológicos do "corpo místico" da monarquia portuguesa dos
séculos· XVI XVII e XVIII. Foi dito que a "política católica" levada a efeito como
catequese e conquista espiritual das novas terras ocupadas pela expansão mercantilista da
monarquia portuguesa pressupunha a definição do reino como "corpo místico" de ordens
sociais integradas como subordinação à pessoa mística do rei. Na expressão "corpo
místico", convergem duas articulações, uma propriamente teológica, a do corpo de Cristo
(corpus Christi), nome da hóstia consagrada pela Eucaristia e, logo, a concepção do corpo
da Igreja, e outra jurídico política, como a concepção romana da corporação exposta por
Santo Tomás de Aquino em De Regno como teoria do poder monárquico. Segundo a
doutrina, o público da pregação é a totalidade do "corpo místico" da comunidade
(HANSEN, 2000, p. 35).

Você também pode gostar