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NÓBREGA (1517-1570)1
1. Introdução
1
O presente texto é resultado de uma pesquisa de iniciação científica desenvolvida na Universidade Estadual
do Norte do Paraná (UENP) entre agosto de 2013 e julho de 2014. A pesquisa foi financiada pela Fundação
Araucária. Resultados parciais desta investigação foram apresentados em outros eventos.
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Outro escrito importante de Nóbrega é o famoso Diálogo sobre a conversão do
gentio escrito logo depois da morte do bispo Pero Fernandes Sardinha (1496 – 1556),
assassinado pelos caetés. Escrito com o propósito de reanimar seus companheiros, já sem
entusiasmo quanto à catequização dos índios, a obra é importante, pois, a partir dela é
possível analisar o posicionamento de Nóbrega com relação à catequese indígena através
do diálogo estabelecido entre seus personagens.
O estudo acerca das muitas mudanças na formação e na articulação dos modos de
pensar dos inacianos que atuaram na colonização do chamado Novo Mundo pode nos
auxiliar em uma compreensão mais aprimorada da própria formação cultural brasileira,
especialmente porque foram os padres jesuítas que deram forma à primeira educação
institucionalizada nestas terras (Arnaut de Toledo; Ruckstadter, 2003). A partir disso, neste
texto buscamos analisar as práticas catequético-educativas exercidas pelos padres jesuítas
em relação aos indígenas. Assim, nosso intuito foi promover uma análise contextualizada
das fontes; isto implicou considerar a visão do padre Manoel da Nóbrega sobre a educação
dos índios e as dificuldades por ele relatadas nesse trabalho, inseridas no contexto
quinhentista, e como parte de projetos maiores: da própria Companhia de Jesus e da Coroa
Portuguesa.
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Inicialmente, a educação não era a principal preocupação dos jesuítas, mas logo se
tornou sua área de atuação com maior destaque; em pouco tempo, Inácio de Loyola viu na
educação uma importância maior do que apenas a formação de novos membros para a
Companhia. Assim, os jesuítas passaram a abrir escolas para os alunos externos. E seus
colégios obtiveram, em pouco tempo, muito prestígio, seja na Europa, seja nas terras
colonizadas por europeus.
Nos colégios da Ordem, a partir do final do século XVI, os jesuítas possuíam seu
próprio método de ensino; “este método de ensino e organização de estudos foi a principal
marca da ação jesuítica em todos os cantos do mundo. Data de 1599 a promulgação do
documento chamado Ratio atque Institutio Studiorum Societatis Iesu.” (Arnaut de Toledo;
Ruckstadter, 2003, p.258). A criação de um sistema único e exclusivo de ensino para a
Companhia veio da necessidade de padronização de seus métodos, já que a Ordem possuía
missões em várias partes do mundo.2
Antes da Companhia de Jesus chegar as Américas, ela já se encontrava pela Europa
e parte da Ásia; mas antes de vir ao que hoje entendemos como Brasil, a Companhia se
instalou em Portugal, e foi o Rei D. João III (1502 - 1557) quem solicitou ao papa para que
junto do primeiro governador geral Tomé de Sousa, viessem padres jesuítas para cuidar das
questões religiosas na Colônia. Portugal recebeu a primeira província autônoma da Ordem
no ano de 1542, com o Pe. Simão Rodrigues (1510 - 1579), que também foi um dos
fundadores da Ordem. Através do regime do Padroado, além de serem funcionários da
igreja, os Jesuítas também eram funcionários da Coroa; há que se ressaltar que na atuação
da Companhia não havia distinção entre os fins religiosos e os políticos, sendo que sua
atuação era organizada para agradar os interesses da Coroa e os da Igreja (Arnaut de
Toledo; Ruckstadter, 2003).
2
O Ratio Studiorum é um documento que resultou de um esforço de elaboração coletiva dos membros da
Companhia de Jesus ao longo da segunda metade do século XVI. Suas linhas-mestras do foram definidas por
Inácio de Loyola, porém, as experiências educativas desenvolvidas nos vários colégios que a Ordem fundou
em suas missões serviram de base para a redação final do documento. Pelo menos três documentos diversos
circularam pelos colégios da Companhia antes da unificação, compilação e promulgação oficial do Ratio em
1599, pelo Superior Geral, Claudio Acquaviva (1543-1615) (Bertrán-Quera, 1986).
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3. As cartas de Manoel da Nóbrega e a educação indígena3
3
Quando houver referência direta às cartas, seguiremos um padrão que facilite a localização ao leitor nos
originais: Carta do Pe. Manoel da Nóbrega ao (Destinatário) – Data.
4
Com relação ao assunto, veja-se Vainfas, R. (dir.) Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808), verbete
Capitanias Hereditárias (p. 95 - 7) e Governo Geral (p. 265 - 7) ambos de autoria de Maria de Fátima
Gouvêa.
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Dessa maneira, a vinda dos primeiros jesuítas, liderados pelo padre Manoel da
Nóbrega, precisa ser compreendida inserida nesse contexto. A Coroa Portuguesa, em 1549,
decidiu mudar alguns aspectos de seu projeto colonizador, tendo em vista as ameaças
provenientes da terra e do mar. Tanto os indígenas, quanto os franceses se tornaram
ameaças reais ao domínio lusitano nas terras d’além mar. As fontes consultadas na
pesquisa que originou este texto são expressivas quanto a isto.
Porém, antes de aprofundarmos a análise das cartas de Nóbrega, é interessante fazer
um comentário geral sobre elas e sobre a escrita de cartas entre os jesuítas. A importância e
valorização da escrita de cartas surgiram da influência do fundador da Companhia de
Jesus, Inácio de Loyola.
A partir do ano de 1547, o padre Juan de Polanco (1517 – 1576)5 determinou que
todas as Províncias da Companhia mandassem cartas para Roma relatando os
acontecimentos das missões. A troca de cartas passou a ser vista como um “dispositivo
educativo e disciplinar”; garantindo “informações e controle dos superiores”. Polanco
aponta vinte razões para se escreverem cartas. Estas razões podem ser resumidas a quatro
finalidades que são perceptíveis tanto nas cartas de Nóbrega quanto nas cartas de outros
jesuítas: a primeira finalidade é a coleta de informações referente ao contato com outros
povos, nas quais entraria a descrição de todos os seus aspectos para que fosse usado na
confecção de materiais que auxiliassem os missionários; a segunda era para o controle
interno da Companhia, e com isto era uma exigência que as cartas contivessem
informações referentes ao andamento das missões; a terceira, complementando a segunda,
seria o reforço da unidade da Ordem. Para isto, as cartas eram traduzidas, copiadas e
5
Juan Afonso de Polanco nasceu em Burgos, na Espanha, no ano de 1516. Formou-se em Paris e ingressou
na Companhia no ano de 1541. A convite de Inácio, foi para Roma ser secretário da Companhia, auxiliou na
redação das Constituições e na correspondência com as casas da Companhia, sendo que todas passavam por
suas mãos. (Bresciani, 1999, p. 85-7)
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distribuídas para todas as outras missões, para que houvesse conhecimento de uma sobre a
outra, ocasionando um intercâmbio de informações em nível global entre os membros
Companhia; e a última finalidade “é atender a demanda das elites letradas da Europa, que
passam a interessar-se pelas maravilhas do Novo Mundo” (HANSEN, 2010, p.111-112).
As cartas de Nóbrega podem ser separadas em quatro recortes temáticos principais
com subtemas: primeiro é o índio, conferindo todos os aspectos que o padre utilizou para
descrevê-los, sejam eles positivos ou negativos, o índio sempre é mencionado em suas
cartas; o segundo tema é o colono e todas as suas influências para a missão, que vão desde
o seu exemplo ruim para o gentio até as guerras justas; o terceiro tema é o governo, em que
abrange todas as medidas administrativas tomadas pelos governadores gerais e também as
que a própria Companhia tomava; e por último o clero, nas quais contém a crítica à
companhia a outros padres ao seu próprio cotidiano, contendo também o ponto de vista do
autor da carta com relação à missão (Hansen, 2010, p.121 - 122).
No que diz respeito à educação na Colônia, “desde que chegaram ao Brasil, os
jesuítas estabeleceram escolas e começaram a ensinar a ler, a escrever e a contar e cantar”;
o colégio era uma forma de se preparar novos missionários, e foi inicialmente pensado
apenas para os índios. No entanto, já em 1551, começaram a aceitar os filhos do gentio e
cristãos para ensinar e doutrinar (Paiva, 2011, p. 43). A educação para o jesuíta era “uma
forma de alcançar a virtude. Visava uma formação que ia além da leitura e escrita e
buscava formar o caráter e a moral, educar o corpo e a mente, em uma concepção integral
do indivíduo. Em outras palavras, a educação e a instrução andavam de mãos dadas”.
(COSTA; CANTOS, 2012, p.258)
Nas cartas de Nóbrega é bastante nítida a ideia de ensinar como conversão ao
cristianismo (Faria, 2006); quando há alguma referência ao ensino, sempre está presente
alguma referência à doutrinação ou catequese. Quatro cartas são exemplares nesse sentido;
são cartas escritas em 15496, 15507, 15568 e 15599. Nelas, sua concepção de educação se
encontra atrelada à concepção de catequização. Neste caso então “a redução dos índios e a
educação das crianças pressupõe a universalidade do Deus de Roma; logo, a determinação
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Carta do Pe. Manoel da Nóbrega ao Dr. Navarro, seu mestre em Coimbra – 1549.
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Carta do Pe. Manoel da Nóbrega (supostamente) ao Padre Mestre Simão – 1550.
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Carta do Pe. Manoel da Nóbrega ao Padre Ignácio de Loyola – 1556.
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Carta do Pe. Manoel da Nóbrega a Tomé de Sousa – 1559.
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nuclear da catequese e da educação é a teologia-política católica que define e orienta as
práticas colonialistas da monarquia portuguesa” (HANSEN, 2010, p.82).
Para ensinar o catolicismo aos índios, os jesuítas precisaram ser criativos quanto a
seus métodos. O aprendizado da língua nativa desempenhou papel muito importante.
Podemos destacar quanto a este assunto, dois padres contemporâneos de Nóbrega: João de
Azpilcueta Navarro e José de Anchieta. Navarro foi um dos primeiros cinco Jesuítas que
vieram para Colônia; ainda em sua primeira carta, Nóbrega esclarece a importância de
Navarro para a missão “Trabalhamos de saber a lingua delles e nisto o padre Navarro nos
leva vantagem a todos. Temos determinado ir viver com as aldeias, como estivermos mais
assentados e seguros, e aprender com elles a lingua e il-os doutrinando pouco a pouco”
(NÓBREGA, 1931, p. 73)10. Anchieta, por sua vez, chegou à Colônia no ano de 1553 e
“em apenas seis meses conseguiu redigir a Gramática da língua mais usada na costa do
Brasil; esta obra facilitou o contato dos missionários com o índio e, mais tarde, tornou-se
obrigatório aos jesuítas que aportavam no Brasil” (ARNAUT DE TOLEDO;
RUCKSTADTER, 2003, p.261).
O conhecimento da língua facilitava a aproximação da religião com os nativos. Aos
poucos, foram inseridos no vocabulário algumas palavras que faziam menção ao
catolicismo. Em uma carta escrita no ano de 1549, contendo apenas o título de
“Informações das terras do Brasil”, Nóbrega cita um exemplo de palavra indígena
adaptada:
Os que communicam com nós outros até agora são de duas castas, uns se
chamam Topinaquis e os outros Topinambás [...]. Esta gentilidade
nenhuma cousa adora, nem conhece a Deus; somente aos trovões chama
Tupane, que é como quem diz cousa divina. E assim nôs não temos outro
vocábulo mais conveniente para os trazer ao conhecimento de Deus que
chamar-lhe Pae Tupane. (NÓBREGA, 1931, p. 99)
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Carta do Pe. Manoel da Nóbrega ao Pe. mestre Simão Rodrigues de Azevedo – 1549
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guerras, nudez, festas, bebedeiras e afins; estes eram os maiores entraves da empresa
missionária (Faria, 2006).
Com relação à orientação da catequese, ela pode ser dividida em duas: de 1549 até
1556, foi chamada de “pedagogia do amor” e depois foi substituída pela “pedagogia do
medo”. Essa mudança ocorreu devido ao “resfriamento” do entusiasmo dos padres com
relação à catequese dos índios, sendo que a maior dificuldade de realizar a catequização
era justamente a facilidade com que o gentio aceitava o cristianismo (Hansen, 2010, p. 37).
Outra medida tomada por Manoel da Nóbrega foi a criação dos aldeamentos. As
missões dos jesuítas eram itinerantes, mas em função da intensificação das guerras e da
resistência à catequese por parte dos indígenas, foi necessária uma mudança no projeto
inicial. Os aldeamentos consistiam em agrupar um grupo de indígenas perto de um núcleo
português, inserindo-o na ordem administrativa portuguesa; os índios eram catequizados e
ao mesmo tempo se tornavam súditos do rei (Almeida, 2014). Os aldeamentos serviam
para que poucos padres pudessem ensinar a muitos índios. (Nóbrega, 1931)11.
Mais de uma vez, Nóbrega fez pedido para que viesse um bispo para a colônia12,
“para que elle com temor e nós com amor procedendo, se busque a gloria do Senhor”
(NÓBREGA, 1931, p. 78) 13 . Em 1552, chegou a Salvador o bispo Pero Fernandes
Sardinha, que logo entrou em atrito com os jesuítas e principalmente com Nóbrega. “O
bispo Sardinha não só abominava como ridicularizava os métodos catequéticos
empregados pelos jesuítas e, por consequência, os proibia de praticá-los” (FERREIRA
JUNIOR; BITTAR, 2005, p.42).
As discordâncias do bispo se davam em relação à confissão por meio de intérpretes,
à proximidade entre cristãos e índios na igreja, ao uso de cantos e músicas indígenas na
instrução religiosa e até mesmo em reação ao corte de cabelo dos jovens do colégio da
Bahia, que era feito iguais aos dos meninos da terra (SANTOS; VAINFAS, p. 486).
No ano de 1556 o bispo foi morto e comido por seus assassinos, mas a divergência
com Nóbrega foi resolvida antes do episódio:
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Carta do Pe. Manoel da Nóbrega a Tomé de Sousa – 1559.
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Nóbrega faz pedidos formais em duas cartas datadas do ano de 1549.
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Carta do Pe. Manoel da Nóbrega ao Pe. mestre Simão Rodrigues de Azevedo – 1549.
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exercia no âmbito da Santa Sé, determinou a criação da província do
Brasil, em 1555. A partir de então, o bispo perdeu totalmente o controle
eclesiástico sobre os “soldados de Cristo”, uma vez que estes passaram a
dever obediência exclusivamente a Roma (FERREIRA JÚNIOR;
BITTAR, 2005, p. 42).
[...] Serem tam faciles de diserem a tudo si ou pâ, ou como vós quizerdes;
tudo aprovão logo, e com a mesma facilidade com que dizem pâ, dizem
aani. E se algumas vezes chamados dizem neim tia, hé poios não
emportunardes, e mostra-oo bem a obra, que se não hé com o bordão não
se ergem; pera beber nunqua dormem! Esta sua facilidade de tudo lhe
parecer bem, acompanhada com a esperientia de nenhum fructo de tanto
pâ, tem quebrado os corações a muitos. (NÓBREGA, 2010, p.145)
Nugueira representa o padre simples que tenta auxiliar Gonçalo na busca de uma
resposta para o seu pensar acerca do gentio. Em uma de suas falas, ele deixa claro que a
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Segundo Nóbrega “Porque me dá o tempo lugar pera me alargar, quero falar com meus Irmãos o que meu
spirito sente, e tomarei por interlocutores ao meu Irmão Gonçalo Alvarez, a quem Deus deu a graça e talento
para ser trombeta de sua palavra na Capitania do Spiritu Sancto, e com meu Irmão Matheus Nuguera, ferreiro
de Jesu Christo, o qual posto que com palavra nam prega, fa-lo com obras e com marteladas” (NÓBREGA,
2010, p. 143).
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catequese indígena não partia apenas da vontade dos nativos, e sim da motivação e fervor
do padre.
Nugueira: – Porque todas ellas parece que não convem mais, senão que,
já que avemos de trabalhar com esta gente, seja com muito fervor, o que a
todos nos convem muito, pois, segundo a charidade com que
trabalharmos na vinha do Senhor, nos pagará quando chamar à tarde os
obreiros pera lhes pagar seus jornaes, os quais já ouvireis que só derão,
não comforme ao trabalho e tempo, senão ao fervor, amor e diligentia que
se puzer na obra. (NÓBREGA, 2010, p.151)
Outra informação importante que pode ser destacada do Diálogo é quando Gonçalo
questiona Nugueira com relação se o indígena possui alma ou não. A resposta do ferreiro é
“Isso está claro, pois a alma tem tres potentias, entendimento, memoria, vontade, que todos
tem” (NÓBREGA, 2010, p.154).
Nóbrega foi nomeado provincial no ano de 1555, continuando o seu projeto na
Colônia. Mas quatro anos depois, foi substituído pelo padre Luis da Grã, que não
concordava com algumas medidas tomadas por ele tomadas. A divergência se deu por
conta de que para Grã “a Companhia estava se transformando em proprietários de bens
materiais que igualavam aos grandes senhores de terras e escravos no litoral atlântico”. O
atrito entre os padres foi resolvido no ano de 1562, pelo geral da Companhia Diego
Laynes, que através de uma carta, desautorizou as teses defendidas pelo padre Luiz de Grã
(FERREIRA JUNIOR; BITTAR, 2005, p. 43-9).
Ao longo de sua vida, Nóbrega participou de eventos importantes ocorridos no
período em que esteve na Colônia. Fundou vários colégios, contribuiu com a catequese de
muitos indígenas, participou da fundação do que seria hoje a cidade de São Paulo, atuou ao
lado de Anchieta nas tentativas de paz junto aos índios tamoio, entre outros. Nóbrega
morreu no Rio de Janeiro no ano de 1570, aos 53 anos de idade.
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4. Conclusão
Referências
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