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A CONSTRUÇÃO DE UMA MEMÓRIA HEROICA DE MANUEL DA NÓBREGA:

UMA ANÁLISE NA OBRA DE SERAFIM LEITE

Autor: Leandro José Paiva1

RESUMO – O padre Manoel da Nóbrega foi uma das figuras mais influentes da relação
Brasil-Portugal durante o século XVI. Foi o primeiro organizador da missão jesuítica na
América Portuguesa, além de ter desempenhado um papel político ativo junto ao governo
geral da nova colônia ultramarina. Logo, dada relevância deste personagem histórico singular,
há certo número de pesquisas a seu respeito dentro da historiografia, sobretudo por parte de
historiadores ligados à Companhia de Jesus. Serafim Leite viveu de 1890 à 1969, era o
historiador oficial da Companhia de Jesus e, como tal, teve acesso ao vasto acervo de
documentos e cartas que foram produzidos pelos jesuítas no Brasil. Em 1955, Serafim Leite
publica a obra Breve Itinerário para uma Biografia do Padre Manuel da Nóbrega: Fundador da
Província de do Brasil e da Cidade de São Paulo. Assim, o artigo pretenderá responder a
seguinte pergunta: como é feita a construção da memória do Padre Manual da Nóbrega na
obra de Serafim Leite?

PALAVRAS-CHAVE: Memoria. Manoel da Nóbrega. Serafim Leite. Herói. Brasil.

ABSTRACT - Father Manoel da Nóbrega was one of the most influential figures in the
Brazil-Portugal relationship during the 16th century. He was the first organizer of the Jesuit
mission in Portuguese America, and played an active political role with the general
government of the new overseas colony. Thus, given the relevance of this unique historical
character, there is a certain amount of research about it within historiography, especially by
historians linked to the Society of Jesus. Serafim Leite lived from 1890 to 1969, was the
official historian of the Society of Jesus and, as such, had access to the vast collection of
documents and letters that were produced by the Jesuits in Brazil. In 1955 Serafim Leite
publishes the Brief Itinerary for a Biography of Father Manuel da Nóbrega: Founder of the
Province of Brazil and the City of São Paulo. Thus, the article intends to answer the following
question: how is the construction of the memory of Father Manual da Nobrega made in the
work of Serafim Leite?

KEYWORDS: Memory. Manoel da Nobrega. Serafim Leite. Hero. Brazil.

1 INTRODUÇÃO

No ano de 1549, na cidade de Salvador, desembarcaram no Brasil os primeiros


missionários da Companhia de Jesus. Vieram juntamente com a armada de Tomé de Sousa,
chefiados pelo padre Manuel da Nóbrega. O grupo inicial era composto apenas por três

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Graduado em Direito e em História. Mestre em Direito da Infância e Juventude pela Universidade Bandeirante
de São Paulo e Mestrando em História Ibérica pela Universidade Federal de Alfenas MG.
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missionários e dois irmãos. Apesar do número pouco expressivo de membros, o número de


missionários foi aumentando ano após ano, de modo que os jesuítas se constituíram em uma
das ordens mais expressivas, em termos de atuação, durante o período do Brasil Colônia.
Cerca de cinquenta anos depois do primeiro desembarque, os jesuítas já possuíam
colégios espalhados em todo o litoral da Colônia, com números expressivos de membros
vindos de Portugal e formandos no próprio Brasil. A atuação dos jesuítas permaneceu
expressiva até 1759, quando em razão do Ideal Pombalino, foram expulsos do Brasil.
Durante seus anos de atuação, os Jesuítas deixaram enorme quantidade de documentos
que, hoje em dia, são uma das mais importantes fontes de estudo dos séculos XVI e XVII. A
Companhia de Jesus era extremamente formal, de modo que toda a comunicação era
sistematicamente escrita e arquivada, formando-se assim um expressivo arcabouço de
informações sobre o Brasil Colonial.
Da vasta documentação oficial da Companhia de Jesus neste período, certamente as
cartas jesuítas são a fonte mais importante e numerosa. Ao escrever cartas, os jesuítas não
faziam de forma intuitiva ou informal. As cartas eram um mecanismo institucionalizado de
comunicação dentro da Companhia de Jesus, de modo que os missionários eram incentivados
a escrever missivas sobre as experiências vivenciadas, para fins de documentação da própria
Companhia. Assim a necessidade de se comunicarem de forma epistolar já se fazia presente
na própria Constituição da Companhia de Jesus.

As Constituições, documento que regula o funcionamento da Companhia de Jesus,


prevêem funções bem definidas para a epistolografia. Apesar de a sua primeira
edição datar apenas de 1558, já em 1547 Inácio de Loyola e Juan Alfonso de
Polanco, seu secretário em Roma, determinaram que as missões passassem a enviar
relatórios minuciosos para Roma. Além de obedecer às várias exigências da Ordem
— difusão dos resultados da catequese, incentivo de vocações, controle do governo
central sobre os membros dispersos e reconfirmação da sua identidade comunitária
—, as cartas eram reguladas por prescrições rígidas, que distinguiam gêneros
epistolares conforme as matérias tratadas e os destinatários. (CERELLO, 2007, p 32)

Ao discorrer sobre os tipos de cartas escritas pelos Jesuítas, o Padre Juan Polanco,
secretário de Inácio de Loyola, dividia as cartas em dois estilos distintos; haviam as cartas de
“letras mostrable” e de “letras de aparte”. Em suma, algumas cartas se dedicavam à difusão
de informações gerais, para pessoas dentro e fora da Companhia de Jesus, outras cartas, por
sua vez, tinham informações que deveriam se limitar exclusivamente aos membros da
Companhia de Jesus.
2

Assim, distingue muito bem os dois gêneros de carta a serem escritas: as “letras
mostrables”, que “como a otros por curiosidad se scriven muy particulares
informaciones, así se scrivan a nuestro Padre, porque mejor sepa cómo se ha de
proveer” 50, e as “letras de aparte”, em que se trocariam as demais informações de
interesse apenas dos particulares, destinatário e missivista. Portanto, a
correspondência dos jesuítas do século XVI cumpre a determinação do envio de
relatórios, aplicando os dois gêneros de carta definidos na instituição da preceptiva
epistolar: negocial (oficial, com matéria argumentativa séria) e familiar
(“particular”, breve e clara) (CERELLO, 2007, p 32)

Serafim Leite viveu de 1890 à 1969, era português e padre da Companhia de Jesus.
Foi um importante historiador português, considerado um referencial nos estudos sobre a
história da Companhia de Jesus no Brasil. Era o historiador oficial da Companhia de Jesus e,
como tal, teve acesso ao vasto acervo de documentos e cartas que foram produzidos pelos
jesuítas no Brasil. No ano de 1954, no IV Centenário de São Paulo, publicou uma famosa
coletânea de cartas jesuíticas escritas no Sec. XVI, em três volumes, que ainda hoje consistem
em importante fonte para pesquisas sobre o assunto. Também é de autoria do Padre Serafim
Leite a obra Historia da Companhia de Jesus no Brasil, obra extremamente extensa e densa,
composta por dez volumes, cujo objetivo foi resgatar a memória da Companhia de Jesus no
Brasil.
Hoje em dia o trabalho de Serafim Leite tem sido bastante analisado. Suas obras
possuem um caráter ufanista, de modo que os missionários são representados de maneira
heroica, como santos e desbravadores do Brasil do Sec. XVI. Serafim objetiva construir uma
memória positiva sobre a atuação dos Jesuítas e, para isso, personagens como Manuel da
Nóbrega e José de Anchieta são sempre adjetivados de forma prosaica, dando-se bastante
relevo aos seus grandes feitos e façanhas.
Em 1955 Serafim Leite publica a obra Breve Itinerário para uma Biografia do Padre
Manuel da Nóbrega: Fundador da Província de do Brasil e da Cidade de São Paulo. O título
do livro, por si só, já dá indícios sobre a maneira como Nóbrega será representado nesta
interessante obra.
Assim, o artigo pretenderá responder a seguinte pergunta: como é feita a construção da
memória do Padre Manual da Nóbrega na obra de Serafim Leite?
A fonte primária será a obra Breve Itinerário para uma Biografia do Padre Manuel da
Nóbrega: Fundador da Província de do Brasil e da Cidade de São Paulo, publicada em 1955.
Serão também usadas as cartas jesuíticas escritas por Manual da Nóbrega. Analisar-se-á
àquelas escritas entre 1549 a 1560, interstício em que Manuel da Nóbrega fora provincial da
Companhia de Jesus no Brasil.
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2 MEMÓRIA

A memória é uma das características da mente humana, consiste, basicamente, na sua


capacidade de reter informações trazendo-as à tona quando necessário. A memoria, nos
dizeres de Le Goff (2013, p. 423) é a “propriedade de conservar certas informações, remete-
nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças as quais o homem pode
atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele presenta como passadas”.
Há memorias que são particulares. A experiência individual de uma pessoa, por
exemplo, poderá gerar uma memória que interessa apenas àquele indivíduo em específico. Por
outro lado, há memorias que são grupais, existem dentro da mentalidade de várias pessoas ao
mesmo tempo e, todos que dela partilham, são, em regra, integrantes de uma coletividade
comum. Este tipo de memória é chamada de coletiva.
É interessante observar que as memorias coletivas não anulam ou excluem as
memorias individuais, ambas coexistem no sujeito, e muitas vezes se inter-relacionam:

Em outros termos, o indivíduo participaria de duas espécies de memórias. (...) De


um lado, é no quadro de sua personalidade, ou de sua vida pessoal, que viriam tomar
lugar suas lembranças: (...) De outra parte, ele seria capaz, em alguns momentos, de
se comportar simplesmente como membro de um grupo que contribui para evocar e
manter as lembranças impessoais, na medida em que estas interessam ao grupo.
(HALBWACHS, 1990, p. 53)

Em regra, as memorias individuais se extinguem com o individuo, ao morrer as


memorias morrem com indivíduo. As memorias coletivas tem uma duração maior, pois, são
alimentadas pelo coletivo. A morte de um não prejudica a existência da memória, já que ela
continua existindo no outro. Assim, a memória coletiva se perpetua no grupo de forma
pujante, de tal modo que é mais fácil trazer à tona as memórias que estão no domínio do
comum:

Na realidade, dos primeiros podemos dizer que estão dentro do domínio comum, no
sentido em que o que nos é assim familiar, ou facilmente acessível, o é igualmente
aos outros. Assim, os fatos e as noções que temos mais facilidade em lembrar são do
domínio comum, pelo menos para um ou alguns meios. (HALBWACHS, 1990, p.
49)

Para que uma determinada memória possa se tornar coletiva é preciso que ela tenha
vários pontos de contato com a individualidade de cada membro. Uma memoria apenas se
torna coletiva quando há identificação. Os membros do grupo tem uma identidade comum,
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um dos elementos desta identidade é o passado que todos compartilham concomitantemente,


eis aí a raiz das memorias coletivas:

Assim, nesse caso, de um lado, os depoimentos dos outros serão impotentes para
reconstituir nossa lembrança apagada: de outro, nós nos lembraremos, em aparência,
sem o apoio dos demais, de impressões que não comunicamos a ninguém. Para que
nossa memória se auxilie com a dos outros, não basta que eles nos tragam seus
depoimentos: é necessário ainda que ela não tenha cessado de concordar com suas
memórias e que haja bastante pontos de contato entre uma e as outras para que a
lembrança que nos recordam possa ser reconstruída sobre um fundamento comum.
(HALBWACHS, 1990, p. 35)

Há memoras que o individuo adquire por si mesmo, são provenientes das experiências
e vivências do sujeito. Porém, a ideia que o individuo faz do antigo, remoto, anterior a sua
existência, também é um tipo de memória; não uma memória vivenciada, mas sim que lhe
fora trazida de alguma forma e, assim, existe dentro do sujeito.
O conhecimento histórico é, neste sentido, uma forma de memória também. A obra
Breve Itinerário para uma Biografia do Padre Manuel da Nóbrega: Fundador da Província de
do Brasil e da Cidade de São Paulo, de Serafim Leite, consiste em uma pesquisa
historiográfica fulcrada em fontes primárias sobre Nóbrega é, neste viés, uma forma de
memória científica, como diz Le Goff (2013, p. 535) “a memoria coletiva e a sua forma
científica, a história, aplicam-se a dois tipos de materiais: os documentos e os monumentos”.

2.1 A construção da memória institucional

As instituições tem necessidade de criar suas próprias memorias. O objetivo destas


memorias é forjar o membro da instituição, dando-lhe uma identidade. Partilhar de uma
memoria comum, de um mesmo passado, é um elemento importante de coesão. Assim, é
importante que os membros da Companhia de Jesus compartilhem, por identidade, da ideia de
um passado comum da instituição que integram, como um verdadeiro elemento de ligação.
A memoria é um território de conflitos. Em regra, podem existir várias memorias
sobre o mesmo acontecimento e, por vezes, estas memorias podem ser disformes. Grupos e
correntes distintas, integrantes da mesma instituição, muitas vezes reivindicam memorias
totalmente contrárias sobre o mesmo acontecimento. Por esta razão, o terreno da memória é
um campo onde eclodem grandes debates ideológicos:

Há grande diversidade de memórias dentro de uma mesma sociedade. Muitas se


produzem paralelamente e, muitas vezes, entram em conflito, quando representam
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identidades contrastantes, grupos com interesses divergentes, diferentes visões de


que seja a sociedade e de qual deve ser seu futuro. (GUARINELLO, 2013, P. 09)

O conflito de memorias se torna ainda mais complexo, quando se percebe que o


terreno da memória não está restrito ao campo científico. De fato, existe uma memoria
científica, produzida pelo rigor metodológico, que consiste na própria ciência histórica.
Porém, há ainda uma memória, que poderia ser chamada de popular, produzida fora do
ambiente acadêmico. Ademais, a memoria individual e coletiva se comunicam, Halbwachs
ensina que (190, p. 51) “ cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva,
que este ponto de vista muda conforme o lugar que ali eu ocupo, e que este lugar mesmo muda
segundo as relações que mantenho com outros meios”.
Mesmo assim, instituições centralizadas e extensas em membros, como a Companhia
de Jesus, seguem na tentativa de construir uma única memoria, evitando conflitos internos e
cizânias. É o que se chama de memoria oficial:

Assim, independentemente da perspectiva coletiva ou individual, a memória pode


ser observada como fonte de referentes identitários, como instrumento atuante na
reconfiguração das identidades na medida em que permite que o sujeito se apodere
de imagens do passado para consolidar uma nova posição identitária. Assim
abordada, a memória remete à reconstrução e à localização das lembranças, podendo
ser vista como a instância reconstituidora do passado (SOUZA, 2014, p. 104)

Esta memória é comum, porque os membros do grupo partilham de uma racionalidade


própria, pensam de uma maneira homogênea. Se a racionalidade grupal se desintegra, as
representações grupais perderão sua natureza coletiva, de tal forma que não mais será possível
falar em uma representação coletiva. É preciso que todas pensem da mesma forma:

Poderíamos dizer, também: é preciso que desde esse momento não tenhamos
perdido o hábito nem o poder de pensar e de nos lembrar como membro do grupo do
qual essa testemunha e nós mesmos fazíamos parte, isto é, colocando-se no seu
ponto de vista, e usando todas as noções que são comuns a seus membros.
(HALBWACHS, 1990, p. 28)

Neste processo de operacionalização da memoria oficial, fatos são exortados e


ufanados, pelas mais diversas vias: desde as lições em livros, até os grandes monumentos
erguidos. Tudo isso tem um único propósito: fazer com que a memoria oficial esteja sempre
presente, que ela seja sempre lembrada pelos homens da sociedade. A memoria oficial não
deve nunca ser esquecida pelo grupo.

3 MANOEL DA NÓBREGA POR SERAFIM LEITE


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Serafim Leite (1955, p. 23) diz que Nóbrega “nasceu a 18 de outubro de 1517, em
Portugal. Reinava D. Manuel I o Venturoso e era ano em que os portugueses chegaram ao
Cantão na China”. Contudo, sobre sua origem “não ficou em memoria qual fosse do nosso
Portugal o logar, villa, cidade ou província em que nasceu E’ descuido mais de notar”.
(FRANCO, 1988, p. 21)
Pouco se sabe sobe a família de Nóbrega, entretanto, há registros de que se tratava de
uma família abastada, já que seu pai, Balthazar de Nóbrega, fora desembargador do Reino.
Ademais, Franco (1988) relata que Nóbrega chegou a ter um tio que atuou como Chanceler-
mór do rei Don João III.
Naquela época o Rei Don João III, na esperança de modernizar o Reino, exercia um
poderoso mecenato estudantil. Muitos jovens eram enviados às principais instituições de
ensino da Europa sob os auspícios da Coroa Portuguesa. Nóbrega tinha a pretensão de estudar
cânones e, usando da influência de sua família junto à Coroa, conseguiu uma bolsa para
estudar em Salamanca:

Entretanto iam os Reis pagando a moços portugueses as despesas de estudo em


Universidades estrangeiras [...] a de Salamanca menos, mas para um minhoto (se
Nóbrega de facto o era) esta, embora caminho áspero, ficava mais à mão e para lá
foi. (LEITE, 1955, p.25)

Não se sabe ao certo os motivos, mas, após quatro anos de estudo em Salamanca “veiu
continuar este seu estudo a Coimbra, onde teve por mestre o insigne Doutor Navarro”
(FRANCO, 1988, p. 22). Nos registros de Coimbra, consta que Nóbrega se matriculou em
cânones a 07 de Novembro de 1538.
Ao concluir sua graduação, Nóbrega tentou, sem sucesso, prestar concurso para ser
lente na Universidade de Coimbra. Segundo Antônio Franco (1988, p. 22), a causa da
reprovação foi que os membros da banca examinadora “tiveram mais conta com a boa prática
do outro que com o saber do padre Nóbrega, por ser gago, e deram sentença contra elle”.
Porém, Serafim Leite, para não deslustrar Nóbrega, aponta como causa da reprovação a
parcialidade do reitor da universidade em prol de outro candidato: “fez um concurso na
Universidade e bem um nem outro dá outra razão, de não ter conseguido a vacatura, senão o
empenho do Reitor em favorecer outros candidatos, protegido seu” (LEITE, 1955, p.27).
Na sequencia, Serafim Leite enaltece Nóbrega, colocando sua reprovação no concurso
como uma obra da providência divina, posto que, no seu sentir, mais honroso que ser
professor universitário em Coimbra seria ser professor da universidade das almas:
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O que houve com certeza foi um destes rasgos da Providência, que só mais tarde se
avaliam bem. Se ficasse em primeiro lugar seria professor universitário, posição
honrada sem dúvida, pouco todavia, se não servisse de degrau para subir mais alto.
Seria em todo caso vocação frustrada, porque à Nóbrega esperava-o o outro mais
alto magistério, a imensa Universidade das Almas. (LEITE, 1955, p.29)

Após a conclusão dos estudos de cânones e a reprovação no concurso de lente na


universidade de Coimbra, Nóbrega optou por continuar “seus estudos em Coimbra algum
tempo e tomou ordens de missa [...] aqueles estudos depois do curso de Direito Canônico, que
continuou em Coimbra, foram de certo os de Teologia, requeridos para ser Padre” (LEITE,
1955, p.28).
No ano de 1542 chegava à cidade de Coimbra o padre Simão Rodrigue, este fora aluno
do Colégio Santa Barbara, em Paris, era amigo pessoal de Inácio de Loyola e Francisco
Xavier, tendo sido um dos co-fundadores da Companhia de Jesus. A missão de Simão
Rodrigues era de organizar a Companhia de Jesus em Portugal. Neste período, Nóbrega já
havia concluído os ensinos de teologia e por não ter conseguido o cargo de professor em
Coimbra, acabou ingressando na Companhia em 21 de novembro de 1544.
Serafim Leite relata o episódio registrando que o dia de ingresso de Nóbrega na
Companhia coincidiu com o dia de Nossa Senhora, como se tal fato tivesse se dado por obra
da inclinação divina: “não tinham se passado 20 meses, quando um dia de Nossa Senhora, a
21 de Novembro de 1544, com 27 anos, se apresentou o Padre Nóbrega para ser Companheiro
dos mais” (LEITE, 1955, p.29).
Na companhia de Jesus, antes de vir ao Brasil, exerceu diversas funções em Portugal.
Os primeiros padres da Companhia eram “mui dados a peregrinação a diversos logares de
devoção. Estes faziam a pé, vivendo de esmolas que pediam pelas portas, ensinando a
doutrina a toda sorte de gente, recolhendo-se de ordinário nos hospitais” (FRANCO, 1988, p.
26). Serafim Leite sublima a fidelidade de Nóbrega ao voto de pobreza. Na peregrinação feita
por Nóbrega à Santiago “peregrinou a pé, acompanhado dum irmão. Em Compostela pediram
esmola, o padre por um lado e o irmão por outro, e só acharam alguns ceitis para matar a
forme” (LEITE, 1955, p. 43).
Onde quer que peregrinasse ou atuasse, não deixava de lado o oficio de pregador.
Serafim Leite avulta que neste oficio era demasiadamente zeloso e destemido ao falar,
pregava sem temores “não renunciava e tomava-se tão insistente que alguma vez correu risco
não apenas de levar empuxões, mas de perder a vida” (LEITE, 1955, p. 41). Quanto à
gagueira, Serafim Leite deixa claro que “não obstante o impedimento da língua Nóbrega
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pregava muito. No começo, ou ouvintes, antes de o conhecerem, faziam pouco dele: no fim
não se riam, afeiçoavam-se e não o queriam largar” (LEITE, 1955, p. 37).
Durante sua narrativa linear, os dons e virtudes de Manuel da Nóbrega são
constantemente destacados. Serafim faz questão de colocar a autoridade de Nóbrega sobre o
diabo, chegando a relatar um caso de exorcismo:

Em uma vez apresentou-se-lhe uma triste mulher que lhe disse ter um demônio
familiar. Fora culpada porque muito tempo antes, sendo moça e casada, desejou
conhecer um desses homens que andam pelo mundo e saber a arte mágica [...] e
representou-se-lhe que via o demônio e que já podia absolver a pobre mulher
quando voltasse a confessar-se. E assim a absolveu. (LEITE, 1955, p. 39)
.
Ainda em Portugal, dentro da Companhia de Jesus, Nóbrega exerceu também a função
de Procurador dos Pobres 2, tendo sido o primeiro a ocupar tal ofício. Para Serafim Leite,
Nóbrega o fez com tamanha correção que, para os ocupantes vindouros do cargo, acabou se
tornando uma espécie de paradigma:

Nóbrega foi o primeiro procurador dos Pobres, e constitui-se molde a todos os que
depois serviam [...] se espelha o caráter de Nóbrega, uma consciência robusta de
jurisconsulto, que estabelece a Justiça acima das inclinações do amor, e é todo um
programa de ética e de governo. (LEITE, 1955, p.47)

Já haviam missionários jesuítas nas Índias, porém, Dom João III, queria também
missionários na América Portuguesa para trabalhar com os nativos e os colonos. A missão
seria chefiada pelo padre Simão Rodrigues, que deveria embarcar para o Brasil e permanecer
em missão por três anos, porém, o “andamento interno das coisas da província portuguesa da
Companhia de Jesus aconselhou o provincial a permanecer e a nomear quem fosse não por
três anos, mas para toda vida” (LEITE, 1955, p.51). Desta forma foi escolhido em substituição
o padre Nóbrega “que em junho de 1548 ainda residia nas margens do Minho (Sanfins) foi
avisado tarde e quando chegou á Lisboa já Tomé de Sousa ia de vela, ficando à sua espera a
nau do Provedor-mor, donde pouco depois, passou para o governador geral” (LEITE, 1955,
p.51).
Aportou na Bahia, junto com a expedição de Governador Geral Tomé de Sousa, em 29
de março de 1549. A missão jesuítica chefiada por Nóbrega era inicialmente pequena, era
composta por mais três padres: Leonardo Nunes, João Azpicueta Navarro e Antônio Pires; e
dois irmãos: Vicente Rodrigues e Diogo Jácome.
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Oficio de confiança. Quem o exercia deveria possuir caridade e conhecimento de Direito para defender a
eficácia causa dos pobres, viúvas, órfãos, enfermos, desamparados e presos da cadeia, contra possíveis injustiças,
por falta de meios para contratarem advogados próprios. (LEITE, 1955, p.45)
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No início Nóbrega não tinha qualquer tipo de autonomia, a colônia estava submetida à
Província Jesuítica de Portugal, cujo provincial era Simão Rodrigues. É por esta razão que a
maioria de suas primeiras cartas são a ele endereçadas. Porém, “no seguinte ano de 1550, lhe
chegou do Reino novo socorro de operários mandados por ordem do Santo Patriarcha, que
fazia ao Padre Nóbrega Provincial do Brasil” (FRANCO, 1988, p. 36). Nóbrega é o primeiro
provincial jesuítico do Brasil, cargo que exerceu até 1559 quando, por motivos de saúde, é
substituído:

Pelos fins do ano de 1559 chegou a patete de nosso Padre Geral Diogo Laynes, em
que fazia provincial dos nossos o padre Luiz da Grã. Achava-se mui enfermo o
padre Nóbrega e lançava sangue pela boca. Ficou alegre por se ver livre do governo,
mas nem por isso se desobrigou de trabalhar (FRANCO, 1988, p. 42)

Mesmo deixando de ser provincial, continuou atuando como missionário da


Companhia de Jesus no Brasil. Morreu em 18 de outubro de 1570, no Colégio Jesuíta do Rio
de Janeiro, que o mesmo ajudou a fundar. Serafim Leite descreve que Nóbrega chegou a
antever sua morte e, alguns dias antes, deambulou pelo Rio de Janeiro despedindo-se de seus
conhecidos. Serafim faz questão de demonstrar o desejo de Nóbrega pela morte e o desapego
pela vida, chegando a reproduzir, de maneira melancólica, as falas do missionário:

Conheceu a hora de sua morte: e dois dias antes de S. Lucas se despediu pela cidade
de muitas pessoas, dizendo-lhes adeus. E perguntando-se lhe, para onde iam porque
no por não estava navio, respondia: a minha ida, meus irmãos, é para o céu –
apontando-o com os olhos (LEITE, 1955, p. 206)

O relato do momento da morte é ainda mais comovente. O historiador transcreve as


últimas palavras do jesuíta, narrando uma morte serena, morte esta que Deus concede apenas
aos justos:

E estando em seu perfeito juízo, dia de S. Lucas, pediu sem demora a Santa Unção,
fazendo a cada coisa a sua oração palavras devotas, que todos provocavam a
lagrimas; e, depois de responder ladainha com muita devoção e espírito, deu graças
a Deus, dizendo: louvado sejais para sempre, que tendes por bem me levar neste
dia! E, com lágrima disse: Bendito sejais para sempre, que morro na Companhia. E,
lançando um pouco de sangue, com muita quietação deu seu espírito ao Criador no
ano de 1570. (LEITE, 1955, p. 207)

A obra de Serafim Leite sobre Manuel da Nóbrega é toda intencional. Não se encontra
no decorrer do livro nenhuma passagem que macule o missionário. As passagens são
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enriquecidas de adjetivos que tem o objetivo de dar relevo às virtudes. Ao analisar a obra de
Serafim Leite, Hansen (201) conclui que:

Embora diga que vai manter-se neutro, afirmando que o material tem “valor próprio,
independente de teorias e tendências”, nunca o é efetivamente, supondo-se que
alguma vez a neutralidade seja possível. Sua interpretação das matérias tratadas nos
textos é feita pela perspectiva do catolicismo como apologia da ação de Nóbrega e
de outros jesuítas. Principalmente quando trata das polêmicas e conflitos que
envolvem os jesuítas, índios, colonos, governadores e outros religiosos do século
XVI, hipervaloriza a ação dos padres portugueses, em detrimento de jesuítas de
outras nacionalidades, como o canarino Anchieta. (HANSEN, 2010, p. 48)

O objetivo de Serafim Leite foi colocar Nóbrega como um herói missionário modelar
da Companhia na América Portuguesa, assim, sua descrição do missionário é toda permeada e
maculada por este objetivo. Talvez não seja possível, a partir das fontes que existem hoje,
reconstruir de maneira fidedigna Manuel da Nóbrega, mas certamente, o descrito por Serafim
Leite é apenas um arquétipo heroico oficial da Companhia de Jesus.

4 CONCLUSÃO

As instituições, inclusive as religiosas, tem a necessidade de cunhar uma memoria


oficial que seja partilhada por seus membros. O objetivo deste processo é gerar coesão do
grupo, por meio da criação de uma identidade. A identidade se dá apenas no plano do
discurso, assim nem sempre a memória oficial tem compromisso com a verdade. A memoria
oficial é uma representação do passado que pode ou não ser fidedigna ao referente.
Porém, a memória é um território de conflitos. Um mesmo fato ou uma mesma pessoa
podem ser representados dentro de memórias distintas, por vezes reivindicadas por grupos
divergentes. Assim, para evitar a desagregação, as instituições costumam impor aos seus
membros uma memoria oficial e institucionalizada.
Serafim Leite foi membro da Companhia de Jesus e foi seu historiador oficial. A
historiografia produzida pelo mesmo eleva a instituição a que pertence, bem como visa
construir um panteão de seus membros ilustres. Serafim Leite é um construtor da memória
oficial da Companhia de Jesus. Neste seu mister (HANSEN, 2010, P. 51) “Serafim Leite
realça os feitos da Coroa e dos padres portugueses para retratar positivamente o caráter e a
ação de grandes vultos lusos da Companhia de Jesus, como Nóbrega”.
Há, pois, uma clara intensão de construir uma memória positiva do missionário, que
possa ser compartilhada e destacada pelos membros da Companhia de Jesus. Reconhecer
erros que, por ventura, Nóbrega tenha incorrido seria o mesmo que reconhecer erros da
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Companhia, assim, o missionário é descrito de forma incólume e escorreita, sendo chamado,


por vezes, de Santo Varão.
Não se nega aqui que Serafim Leite tenha feito consulta às fontes. O trabalho é
permeado de citações e apêndices, que dão prova do apuro do autor na busca de informações
por Manuel da Nóbrega. Porém, sua análise tem um objetivo claro, construir a imagem de um
herói modelar, que se perpetue na memória da Companhia de Jesus. Assim, a análise da
documentação é toda esquadrejada por seus objetivos. O Manuel da Nóbrega de Serafim Leite
é um autêntico herói modelar, um paradigma a ser seguido pelos missionários atuais da
Companhia de Jesus.

5 REFERÊNCIAS

BURKE, Peter. O que é história cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

CERELLO, Adriana Gabriel. O livro nos textos jesuíticos do século XVI, edição, produção e
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