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2023/2024
2.
Acerca das Origens do Homem
Tomasello 1999, p. 9
36. Um puzzle e uma hipótese (III)
“Esta compreensão dos outros como seres intencionais como eu mesmo é crucial
para a aprendizagem cultural humana, porque os artefactos culturais e as práticas
sociais – exemplificados de modo paradigmático pelo uso de ferramentas e de
símbolos linguísticos – apontam invariavelmente além deles mesmos, para outras
entidades exteriores: as ferramentas apontam para os problemas para cuja
solução foram concebidos, e os símbolos linguísticos apontam para situações
comunicativas para cuja representação foram concebidos. Por conseguinte, para
aprender o uso convencional de uma ferramenta ou de um símbolo, as crianças
têm de chegar a compreender porque, em relação a que fim exterior outra
pessoa está a usar a ferramenta ou o símbolo; ou seja, têm de chegar a
compreender o significado intencional do uso da ferramenta ou da prática
simbólica – “para” que serve? O que “nós”, os utilizadores dessa ferramenta ou
símbolo, fazemos com eles?”
Tomasello 1999, p. 13
“A evolução cultural cumulativa é, assim, a explicação para muitas das mais 39.
notáveis realizações cognitivas dos seres humanos. No entanto, para Intencionalidade
apreciar plenamente o papel dos processos histórico-culturais na conjunta
constituição da cognição humana moderna, temos de olhar para o que
acontece durante a ontogenia humana. O mais importante é que a evolução
cultural cumulativa assegura que a ontogenia cognitiva humana acontece
em um ambiente de artefactos e práticas sociais sempre novos que, em
cada época, representam algo que se assemelha ao conjunto dos
conhecimentos coletivos de todo o grupo social ao longo de toda a sua
história cultural. As crianças são capazes de participar por inteiro dessa
coletividade cognitiva desde cerca dos nove meses de idade quando, pela
primeira vez, começam a tentar partilhar a atenção com os coespecíficos, e
a aprender, de maneira imitativa, com eles e através deles […]. Estas novas
atividades emergentes de atenção conjunta não representam outra coisa
senão a emergência ontogenética da adaptação sócio-cognitiva unicamente
humana de identificação com outras pessoas, compreendendo-as assim Tomasello 1999, p. 14
como agentes intencionais como o próprio eu.”
“A minha tese, em particular, é que a herança dos humanos, 40. O ser humano e
o ponto de vista
no que se refere ao domínio cognitivo, é muito semelhante à do outro
dos outros primatas. Há somente uma única grande
diferença, que é o facto de que os seres humanos se
«identificam» com os coespecíficos mais profundamente do
que os outros primatas. Esta identificação não é algo de
misterioso, mas apenas o processo pelo qual a criança
humana compreende que as outras pessoas são seres como
ela – de um modo que os objetos inanimados, por exemplo,
não são – e que algumas vezes tenta compreender as coisas
do ponto de vista delas.” Tomasello 1999, p. 21
“A minha hipótese é especificamente que a cognição humana tem as suas 41. O tempo
qualidades próprias, que são únicas da espécie, porque: humano
“● Filogeneticamente: os humanos modernos desenvolveram a capacidade
de se «identificar» com os coespecíficos, o que conduziu a uma
compreensão deles como seres intencionais e mentais como ele próprio.
“● Historicamente: isto permitiu novas formas de aprendizagem cultural e
de sociogénese, o que conduziu a artefactos culturais e tradições de
comportamento que acumulam modificações ao longo do tempo histórico.
“● Ontogeneticamente: as crianças humanas crescem no meio destes
artefactos e tradições social e historicamente construídos, o que lhes
habilita a (a) beneficiar do conhecimentos e das capacidades acumuladas
dos seus grupos sociais; (b) adquirir e usar representações cognitivas,
baseadas em perspectivas, sob a forma de símbolos linguísticos (bem como
analogias e metáforas construídas a partir desses símbolos); e (c)
internalizar certos tipos de interações discursivas como capacidades de
metacognição, redescrição representativa e pensamento dialógico.”
Tomasello 1999, p. 14
“Para todos os mamíferos, incluindo todas as espécies de 42. Herança cultural e
neotenia
primatas, muito da ontogenia pela qual este Bauplan [plano de
construção] vem a ser acontece ao mesmo tempo em que o
organismo em desenvolvimento interage com o seu ambiente. É
claro que o período relativamente longo de imaturidade na qual
esta interação acontece é uma estratégia de vida muito arriscada,
visto que implica que os filhos estão totalmente dependentes,
durante um certo tempo, de um ou dos dois progenitores para a
alimentação e proteção dos predadores. Em compensação, a
vantagem de uma imaturidade longa é que ela torna possíveis
vias ontogenéticas que incorporam quantidades significativas de
aprendizagem e cognição individual que resultam tipicamente em
adaptações comportamentais e cognitivas mais flexíveis.”
Tomasello 1999, p. 20
“Deve-se sublinhar – e repeti-lo se necessário – que a minha 43. Cognição de
conclusão negativa acerca da cognição dos primatas não- causas subjacentes
humanos é muito específica e limitada. Os primatas não- e estados intencionais
humanos têm definitivamente uma compreensão de todos os
tipos de acontecimentos físicos e sociais, possuem e utilizam
muitos tipos de conceitos e representações cognitivas,
diferenciam claramente entre objetos animados e inanimados, e
empregam nas suas interações com os seus ambientes muitas
estratégias complexas e inteligentes de resolução de problemas
[…]. Mas não veem o mundo em termos de «forças»
intermediárias e muitas vezes ocultas, as causas subjacentes e
os estados intencionais/mentais que são tão importantes para o
pensamento humano. Em poucas palavras: os primatas não-
humanos são eles próprios seres intencionais e causais, mas não
compreendem o mundo em termos causais e intencionais.” Tomasello 1999, p. 26
“Eu destacaria também alguns comportamentos sociais que os primatas 44. O humano em
não-humanos não realizam nos seus habitats naturais (embora alguns contraste com
primatas não-humanos
primatas criados em ambientes culturais humanos realizem alguns
deles […]). Nos seus habitats naturais, os primatas não-humanos:
“● não apontam ou gesticulam para os outros em direção a objetos
externos;
“● não seguram objetos para mostrar aos outros;
“● não tentam trazer os outros a localizações onde possam observar
coisas;
“● não oferecem ativamente objetos a outros indivíduos,
apresentando-os;
“● não ensinam intencionalmente novos comportamentos a outros
indivíduos.
“E não o fazem, parece-me, porque não compreendem que o
coespecífico tem estados intencionais e mentais que possam ser
afetados.” Tomasello 1999, p. 28
“Os chimpanzés são muito inteligentes e criativos no uso de ferramentas e 45. Compreensão
na compreensão de alterações no meio ambiente produzidas pelo uso de teleológica e compreensão
ferramentas por parte de outros, mas não parecem compreender o intencional
comportamento instrumental dos coespecíficos do mesmo modo como o
fazem os humanos. Para estes, a finalidade ou a intenção de quem
demonstra é uma parte central do que eles percebem e, de facto, a
finalidade é compreendida como algo de separado dos diversos meios
comportamentais que podem ser utilizados para a alcançar. A capacidade
dos observadores de separar os fins e os meios serve-lhes para destacar o
método ou a estratégia do uso do instrumento pelo demonstrador como
uma entidade independente – o comportamento que ele está a usar na sua
tentativa de realizar a sua finalidade, dada a possibilidade de outros meios
para a realizar. Na ausência desta capacidade de compreender, nas ações
dos outros, o fim e os meios comportamentais como separáveis, os
observadores chimpanzés focam-se nas mudanças de estado (incluindo
mudanças de posição espacial) dos objetos envolvidos durante a
demonstração, em que as ações do demonstrador não são, de facto, mais
do que outros tantos movimentos físicos.” Tomasello 1999, p. 37
46. Sobre a percepção do rosto
Tomasello 1999, p. 65
“[…] Desde cedo após o nascimento, as crianças humanas 47. Protodiálogos
envolvem-se em «protoconversas» com os seus cuidadores.
As protoconversas são interações sociais em que o progenitor
e a criança focam a sua atenção um no outro –
frequentemente face a face, envolvendo olhar, tocar e
vocalizar – de maneiras que servem para expressar e partilhar
emoções básicas. Ademais, esta protoconversas têm uma
estrutura claramente alternante. Embora haja diferenças no
modo como estas interações ocorrem em culturas diferentes –
especialmente quanto à natureza e a frequência de
envolvimentos visuais face a face – de uma maneira ou de
outra elas parecem ser um traço universal da interação
adulto-criança na espécie humana.”
Tomasello 1999, p. 66
“As crianças de seis meses interagem diadicamente com objetos, agarrando-os e 48. Relação
manipulando-os, e interagem diadicamente com outras pessoas, exprimindo diádica
emoções nos dois sentidos, numa sequência alternante. Se as pessoas estão e triádica
próximas quando estão a manipular objetos, as crianças quase sempre as ignoram.
Mas cerca dos nove ou doze meses de idade, começa a emergir um novo conjunto
de comportamentos, que não são diádicos, como esses comportamentos
anteriores, mas triádicos, no sentido em que envolvem uma coordenação das suas
interações com objetos e pessoas, o que resulta num triângulo referencial entre a
criança, o adulto e o objeto ou acontecimento em relação ao qual eles partilham a
atenção. Frequentemente o termo atenção conjunta tem sido utilizado para
caracterizar este todo complexo de capacidades e interações sociais […].
Paradigmaticamente, é nesta idade que as crianças começam a olhar, de modo
flexível e seguro, para onde os adultos estão a olhar (acompanhamento do olhar), a
envolver-se como eles em períodos relativamente extensos de interação social
mediada por um objeto (envolvimento conjunto), a utilizar os adultos como ponto
de referência social (referenciação social) e a agir sobre objetos da mesma maneira
Tomasello
como os adultos o fazem (aprendizagem imitativa).” 1999, p. 69
49. “Ritualização” e gestos deíticos
Tomasello 1999, p. 69
50. Humor e possibilitações intencionais
“Uma criança de dois anos pode apanhar uma caneta e fingir que ela é um martelo. […] No jogo
simbólico inicial, a criança também olha para um adulto com uma expressão jocosa – porque ela
sabe que este não é o uso intencional/convencional desse objeto, e que o seu uso não
convencional é considerado “engraçado”. Uma interpretação deste comportamento é que o jogo
simbólico envolve dois passos cruciais. Primeiro, a criança tem de ser capaz de compreender e
adotar as intenções dos adultos conforme eles usam objetos e artefactos; ou seja, a criança tem
primeiro de compreender como nós, humanos, usamos canetas – as suas possibilidades
intencionais. O segundo passo envolve que a criança «desacople» as possibilidades intencionais
dos seus objetos e artefactos associados, de tal modo que eles podem ser intercambiados e
usados ludicamente com objetos “inapropriados”. Assim, a criança usa uma caneta como
convencionalmente se usaria um martelo, sorrido para o adulto no processo de sinalizar que esse
uso não é estúpido, mas uma brincadeira. Esta capacidade de separar as possibilidades
intencionais dos objetos e artefactos e de os intercambiar de modo relativamente livre no jogo
simbólico é, parece-me, uma prova muito convincente de que a criança aprendeu as
possibilidades intencionais incorporadas em muitos artefactos culturais de um modo semi-
independente da sua materialidade.”
Tomasello 1999, p. 92
“Esta nova compreensão de como os outros sentem a meu respeito 51. O conceito de si:
abre a possibilidade de desenvolvimento da timidez, da auto- o eu como um ele
consciência e um sentido de auto-estima […]. Prova disto é o facto
de que dentro de poucos meses após a revolução social-cognitiva,
cerca do primeiro aniversário, as crianças começam a evidenciar os
primeiros sinais de timidez e vergonha perante outras pessoas e
espelhos […].
“É importante sublinhar que aquilo que acontece cerca do primeiro
aniversário não é a emergência súbita de um autoconceito
totalmente acabado, mas somente a abertura de uma possibilidade.
Ou seja, o que as capacidades social-cognitivas recém-adquiridas
das crianças fazem é abrir a possibilidade de que elas possam
aprender sobre o mundo tomado do ponto de vista de outros, e que
uma das coisas que podem aprender assim são elas próprias.”
Tomasello 1999, pp. 96-97
52. Comunicação linguística, representação simbólica e
aprendizagem cultural
símbolos linguísticos.”
57. A libertação da percepção e metaforização
“Alguns dos efeitos de operar com símbolos desse tipo são óbvios, em
termos de flexibilidade e relativa liberdade em relação à percepção.
Mas alguns efeitos são mais amplos e bastante inesperados, penso eu,
no sentido em que conferem à criança maneiras verdadeiramente
novas de conceptualizar coisas, tais como tratar objetos como ações,
ações como objetos, e miríades de tipos de construções metafóricas
das coisas.”