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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Educação e Humanidades


Instituto de Artes
Departamento de Ensino da Arte e Cultura Popular

PRÁTICA PEDAGÓGICA EM ARTES III

1. Colonialidade — 2. Cultura Visual — 3. Decolonial — 4. Denegração — 5. Interculturalidade


6. Memória — 7. Narrativa — 8. Renegração — 9. Soberania — 10. Subalterno

Escritas de Si: Professor/Artista/Pesquisador

RESUMO — Escrever é tomar conta do discurso, desenvolver suas narrativas. Neste texto
abordarei os anseios de professores em formação. Professores de artes visuais, que enfrentam a
demanda de desenvolver práticas artísticas junto de suas turmas, paralelamente a projetos escritos para
fomentar o meio acadêmico. Dentro desta caixa, atravessamentos socioculturais que exigem ainda mais
das ações sócio-política, sempre presente na educação.

INTRODUÇÃO — Tomado pelas questões históricas de identidade propostas por Lélia Gonzalez
em seu texto A categoria político-cultural de amefricanidade1, penso na prática de professor enquanto
construtor de memórias. Partindo do pressuposto que memória é criação, podemos perceber a escola
como uma fábrica de criação do imaginário coletivo. Professores e estudantes são operários da fábrica,
sendo professores quem maneja a matéria bruta e estudantes aperfeiçoadores do produto final. Todos no
objetivo de tornar público os jogos de memória criados na fábrica-escola.
Entendendo que toda narrativa é contaminada pelo orador, reconstruir histórias já impregnadas no
imaginário social é tomar posse das narrativas. Sendo professor e estudante da rede pública, quem toma
posse é a classe subalterna. O professor, em sua prática de comunidade, exerce a função de filtrar as
narrativas já institucionalizadas, estabelecendo paralelos e diferenças entre distintos pontos de vista.
Como colônia de Portugal, crescemos numa sociedade baseada nos moldes europeus. Mas esquecemos
das vozes nativas — já existentes nas terras do mito Pindorama2, ou da terra das Palmeiras — e também
dos trazidos pela escravização.
Enquanto povo Latino Americano — ou melhor, Ladino Amefricano por Gonzalez — estivemos na
posição de aceitar o que nos foi imposto pelo árduo processo de colonização da Améfricas. Esta

1
Texto de número um para referencial teórico deste trabalho. Da escritora, mulher negra intelectual, está a discussão voltada para
questões de gênero e raça que atravessam história e nacionalismo. Disponível em
https://negrasoulblog.files.wordpress.com/2016/04/a-categoria-polc3adtico-cultural-de-amefricanidade-lelia-gonzales1.pdf
2
Pindorama Conquistada - Repensando A Questão Indígena No Brasil; Francisco Moonen, 1983. Texto de apoio para
compreensão do processo colonizador que devastou os povos ameríndios no Brasil. Disponível em
http://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/biblio%3Amoonen-1983-pindorama/Moonen_1983_PindoramaConquistada.pdf
Acesso em 05 de Dezembro, 2021.
contaminação das narrativas dos nativos andinos, brasileiros antes da colônia e africanos trazidos para
exploração de seus corpos, serve como instrumento de domínio e soberania. A colonização europeia teve
eficácia em apagar características culturais de todos estes povos, no que Gonzalez apreende como o
processo de denegação3. Ação na qual o indivíduo, embora formulando seus e pensamentos até então
recalcados mantêm suas defesas em alta, negando que tais sentimentos lhe pertençam.
Trago então o entendimento de denegração. O termo alemão Verneinung designa a negação no
sentido de recusa (de uma afirmação que enuncio ou a mim atribuem). Não é um verbo, ação, aparece na
língua como um nome. Assemelha-se ao verbo Verneinen, este que compreende o desmentir, denegar. A
recusa histórica das culturas africanas em território brasileiro é notada por Lélia Gonzalez desde a
produção de linguagem — escravos africanos eram chamados de pretos; os nascidos no Brasil de
crioulos. A partir da língua portuguesa, advinda da colônia europeia, criaram o chamado pretoguês. Uma
desobediência epistêmica, mais a frente explorada na obra de Walter D. Mignolo — por aqueles que foram
obrigados a silenciar sua língua-mãe, em favor da língua oficial da corte Portuguesa. “A língua é
companheira do Império”, Antônio de Nebrija, fundador do sentido de imperialismo linguístico4.
Então denegrar é ceder à opressão do colonizador. Ceder não seria o melhor termo, visto que é da
ordem do inconsciente, mas trataremos do desobedecer enquanto resistência sistematizada. O que foi
denegrado não se apagou como memória líquida, pode ser resgatado pela reconstrução dos imaginários,
como supracitado. Tratar o ensino de artes como este resgate, onde arte-educadores trazem diferentes
corpos para estudo. Corpos de cor que foram invisibilizados pelas cortinas da escravidão; corpos
heterodivergentes, vítimas de fundamentalismo religioso; corpos trans. Concentrar estas distintas
narrativas — não comumente exploradas no meio escolar —, institucionalizando-as como episteme
contemporânea, é superar a denegração. Renegrar os espaços.
Entramos então no conceito de racismo epistêmico. Aliando os escritos de Lélia Gonzalez a Walter
D. Mignolo, entenderemos o racismo intelectual, que apaga conhecimentos desobedientes ao modelo
ocidental. A autora nos traz a discrepância entre as formas de racismo praticadas em diferentes regiões.
Racismo na ideia de supremacia branca como percebido nas sociedades europeias seria o aberto. Já nas
Améfricas temos o racismo disfarçado, por denegação. Neste último, com mecanismos de apagamento
por alienação os colonos fizeram com que os nativos e escravizados perdessem suas características
culturais. Excluindo a individualidade dos corpos, é mais bem mais fácil dominá-los. É perceptível o
desprezo pelos saberes não-eurocentrados, evidenciando o racismo epistêmico na composição de
currículos e referenciais.
Nestas estruturas de segregação, chegamos às práticas de desobediência por Walter D. Mignolo.
Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em política5. O autor trata das
questões de identidade, atreladas à memória e narrativas subalternas. Segundo Mignolo, a prática de

3
Extraído do vocabulário da psicanálise Laplanche e Pontalis; disponível em file:///C:/Users/User/Downloads/Facul/Laplanche-e-
Pontalis-Vocabulario-de-Psicanalise.pdf p. 293-294.
4
Língua, Companheira do Império: Significados Da Educação Ameríndia em Língua Portuguesa, por Ana Rita Leitão; disponível
em https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/33214/1/2015_Ribas%20et%20al.pdf
5
Segundo texto referencial. Mignolo, escritor e crítico literário argentino das práticas decoloniais, vem a tratar dos subalternos em
sua revolta sistemática contra a dominação imposta pelos colonos. Disponível em
http://professor.ufop.br/sites/default/files/tatiana/files/desobediencia_epistemica_mignolo.pdf
Acesso em 05 de Dezembro, 2021.
identidade em política fortalece os grupos segregados, que nunca antes possuíram voz — ou foram
passíveis de escuta — para domínio do discurso. “Por discursos imperiais [...] pode não ser possível
desnaturalizar a construção racial e imperial de identidade no mundo moderno em uma economia
capitalista.” É nítida a necessidade de escutar as vozes subalternas, falando de si, por si. Propor uma
escuta atenta aos corpos divergentes, que tomam posse de suas narrativas. O discurso de si cruza com a
escrita de Gloria Anzaldúa. Seus textos de caráter subjetivo, com potência dos escritos que fogem ao
padrão, exemplificam a identidade em política descrita por Mignolo. Rompem as grades da moderna teoria
política, produzida na Europa, indo muito além das políticas identitárias.
Gloria Anzaldúa — Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo 6
— faz esta quebra de paradigmas ao escrever de maneira clara e direta para mulheres de cor, ladinas
como ela. As pautas identitárias ainda estão presentes. São essenciais para impor a diferença como
contraponto ao padrão. Percebendo-se enquanto mulher de cor, lésbica e ladina, Anzaldúa alcança outras
que como ela foram negadas o discurso. Trabalhar as escritas é ter poder do relato, silenciando quem
antes ditava sua história. Acima de tudo, fazendo-se perceber enquanto relevante e poderosa na produção
de conhecimentos. Quebra do racismo epistêmico. Identidades em política, numa revolução contra as
opressões da soberania. Veja como é potente dominar a narrativa, propiciamente inspirada pelos
referenciais divergentes. Isto é o resgate da memória na sala de aula.
Resgatar a identidade a partir da criação de memórias é o que busco enquanto arte-educador. E
vice-versa, pois identidades também são criadas ao resgatar memórias. Explorando as possibilidades de
ensino além das referências ocidentais de eixo europeu. No ponto de vista de Mignolo, a crítica ao
paradigma europeu de racional- e modernidade é necessária para desprender-se da colonialidade. Mas
não há ignorância ao que já foi institucionalizado, há uma nova visão dos corpos que foram narrados nos
discursos de terceiros. Antes silenciados, tomarão enfoque para percebermos novas narrativas. Pôr a
decolonialidade em prática; no fazer revolução; no fazer da escola. “É por demais reconhecido que a
História de um povo sempre é contada do ponto de vista da parte dominante e que esta História pode ser
reescrita de uma maneira completamente diferente quando esta parte muda.” em Moonen, 1983.
Trazendo à tona ações ancestrais de resistência quilombola, andina ameríndia e caribenha,
fortalecemos a identidade de nação. Por meio do ensino das artes em cultura visual esta ação torna-se
mais efetiva. Visto como o processo de estetização hipermoderna — Gilles Lipovetsky, Jean Serroy [2015]
— é potente para mover toda a sociedade por meio do mercado. Walter D. Mignolo trata do mercado no
conceito de desenvolvimento. “Termo na retórica da modernidade para esconder a reorganização da
lógica da colonialidade: as novas formas de controle e exploração do setor do mundo rotulado como
Terceiro Mundo e países subdesenvolvidos”.
A prática decolonial é consequência de uma reestruturação dos conhecimentos, substituindo a
epistemologia ocidental pela dita primitiva. Ser desenvolvido é estar equiparado aos conhecimentos
ocidentais. Fora isso, você é subdesenvolvido, e ser subdesenvolvido é viver como os primitivos. Os
estudos de cultura visual já tentam dar conta das produções imagéticas dos povos primitivos, ou
subalternos. Entender as mensagens transmitidas por imagens, como numa alfabetização visual, também
6
Terceiro referencial. Anzaldúa, referindo a si mesma como chica latina, lésbica de cor, fez da palavra escrita sua voz. É a maior
fonte de inspiração para desenvolvimento deste trabalho, consequentemente uma força para a atividade de
professor/artista/pesquisador. Disponível em https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/9880/9106
Acesso em 05 de Dezembro, 2021.
está nos empenhos de professor/artista/pesquisador. Distinguindo a evolução qualitativa na História da
Arte de desenvolvimento social, arte-educadores traçam a identidade em política para processo de
decolonialidade.
Gilles Lipovetsky e Jean Serroy tratam em seu livro, A Estetização do Mundo: Viver na Era do
Capitalismo Artista7, da era Transestética, no recente processo de des-definição da Arte. Com a infiltração
das artes na indústria, pós-século XIX e revolução industrial, a apreciação estética está em todos os meios
do mercado e vida comum. Enquanto sociedade de consumo8, fortalecemos o grande mercado, de forma
que a experiência sensível — comprar produtos ou serviços; consumir arte e estética — alcança todas as
classes. Assim, praticamos a subjetivação dos fenômenos estéticos. “o capitalismo não acarretou [...] um
processo de empobrecimento [...] da existência estética, mas sim a democratização em massa”. Então a
arte está pelo simples prazer de sentir arte, ter a experiência estética.
Encerro este relato com mais avidez a respeito das práticas do educador. Operário que atua de
forma comunitária. A partir do resgaste de memórias e identidades, ressignifica as mesmas para criar
novos exemplares. Toma posse do discurso para propor escuta de outras narrativas. Produz escrita,
linguagem e desmonta tudo que viu. É o que vem em mente quando penso educação.

“Aprender a desaprender para poder re-aprender”,


Amawtay Wasi9.

REFERÊNCIAS — ANZALDÚA, Gloria. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do
terceiro mundo. In: MORAGA, Cherríe & ANZALDÚA, Gloria (orgs.). This bridge called my back: writings
by radical women of color. New York: Kitchen Table, p. 165-74. Disponível em
https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/9880/9106 Acesso em 05 de Dezembro, 2021.

GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, n°


92/93 (jan/jun). 1988, p. 69-82. Disponível em https://negrasoulblog.files.wordpress.com/2016/04/a-
categoria-polc3adtico-cultural-de-amefricanidade-lelia-gonzales1.pdf Acesso em 05 de Dezembro, 2021.

MIGNOLO, Walter D. Desobediência Epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade


em política; Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade, n° 34, p. 287-324, 2008.
Disponível em http://professor.ufop.br/sites/default/files/tatiana/files/desobediencia_epistemica_mignolo.pdf
Acesso em 05 de Dezembro, 2021.

LIPOVETSKY, Gilles & SERROY, Jean. A estetização do mundo: viver na era do capitalismo artista.
São Paulo: Companhia das Letras, 2015. Disponível em
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4113494/mod_resource/content/0/A_estetizacao_do_mundo_-
_Lipovetsky_Gilles.pdf Acesso em 05 de Dezembro, 2021.

7
Quarta e última referência textual. Este é o texto que encabeça minha pesquisa final de graduação, Madonna e a estetização das
mídias visuais na era Transestética, no qual desenvolverei melhor os conceitos apresentados no parágrafo. Disponível em
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4113494/mod_resource/content/0/A_estetizacao_do_mundo_-_Lipovetsky_Gilles.pdf
8
Extraído de Vida para Consumo, Zygmunt Bauman, texto de apoio para compreender as propostas de Lipovetsky e Zerroy;
disponível em
https://img.travessa.com.br/capitulo/JORGE_ZAHAR/VIDA_PARA_CONSUMO_A_TRANSFORMACAO_DAS_PESSOAS_EM_ME
RCADORIA-9788537800669.pdf
9
Pluriversidade Indígena Amawtay Wasi (Casa do Saber ou da Sabedoria) se desprende da tradição epistêmica ocidental. Texto
de apoio disponível em https://www.lavaca.org/wp-content/uploads/2016/04/educacion-y-decolonialidad.pdf
Acesso em 05 de Dezembro, 2021.

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