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386 TEORIA PURA DO DIREI TO

dem jurídica internacional. Aquele, para quem a idéia de urna


organizaçdo mundial é mais valiosa, preferirá o primado do Di-
reito internacional ao primado do Direito estadual. Isso nao sig-
nifica, como já foi acentuado, que a teoria do primado da or-
dem jurídica estadual seja menos favorável ao ideal da organiza -
çao mundial do que o primadó da ordem jurídica internacional. VIII
Parece, porém, fornecer a justificaçao de uma política que rejei-
te toda limitaçdo importante à liberdade de açao do Estado. Esta A interpretaçáo
justificaçao baseia -se num sofisma para o qual concorre de ma-
-
neira funesta a ambigüidade do conceito de soberania por um
lado, autoridade jurídica suprema, por outro, liberdade de açao.
Mas este sofisma é agora - como se mostrou - uma sólida par-
te integrante da ideologia política do imperialismo, que opera corn 1. A essência da interpretaçáo. Interpretaçáo

O mesmo vale dizer -


o dogma da soberania estatal.
mutatis mutandis
à preferência do primado da ordern jurídica
- relativamente
internacional. Este
autêntica e náo-auténtica

Quando o Direito é aplicado por um órgao jurídico, este ne-


nao é mais desfavorável ao ideal da soberania (o mais possível) cessita de fixar o sentido das normas que vai aplicar, tern de in-
ilimitada, no sentido de liberdade de açao do Estado, do que o terpretar estas normas. A interpretaçao é, portanto, urna opera -
primado da ordem jurídica do Estado singular; mas parece justi- çao mental que acompanha o processo da aplicaçao do Direito
ficar, melhor que o primado da ordem jurídica estadual, urna no seu progredir de um escaldo superior para urn escaldo infe-
substancial limitaçao da liberdade de açao do Estado. Também rior. Na hipótese em que geralmente se pensa quando se fala de
irto é urn sofisma; mas também este sofisma desempenha, de fa- interpretaçáo, na hipótese da interpretaçao da lei, deve responder-
to, um papel decisivo dentro da ideologia política do pacifismo. se à questao de saber qual o conteúdo que se há de dar à norma
A Teoria Pura do Direito, ao desmascarar estes sofismas, individual de uma sentença judicial ou de uma resoluçao admi-
ao retirar -lhes a aparência de demonstraçóes lógicas que, como nistrativa, norma essa a deduzir da norma geral da lei na sua apli-
tais, seriam irrefutáveis, e ao reduzi -los a argumentos políticos caçao a um caso concreto. Mas há também urna interpretaçao
aos quais se pode obviar com contra- argumentos da mesma es- da Constituiçao, na medida em que de igual modo se trate de apli-
pécie, desimpede o caminho para o livre desenvolvimento de um
ou outro destes pontos de vista políticos, sem postular ou justifi-
car esta- no processo legislativo, ao editar decretos ou outros
atos constitucionalmente imediatos - a urn escaldo inferior; e
car qualquer deles. Como teoria, ela fica perante eles completa- urna interpretaçdo dos tratados internacionais ou das normas do
mente indiferente. Direito internacional geral consuetudinário, quando estas e aque-
les têm de ser aplicados, num caso concreto, por um governo ou
por um tribunal ou órgao administrativo, internacional ou na-
cional. E há igualmente urna interpretaçdo de normas individuais,
de sentenças judiciais, de ordens administrativas, de negócios ju-
rídicos, etc., em suma, de todas as normas jurídicas, na medida
em que haj am de ser aplicadas.

- Mas também os indivíduos, que têm - nao de aplicar, mas


de observar o Direito, observando ou praticando a condu-
ta que evita a sançao, precisara de compreender e, portanto, de
determinar o sentido das normas jurídicas que por eles hdo de ser

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observadas. E, finalmente, também a ciencia jurídica, quando des - cuçäo, é, em parte, determinado pelo Direito e, em parte, indeter-
creve um Direito positivo, tern de interpretar as suas normas. minado. A indeterminaçäo pode respeitar tanto ao fato (pressupos-
Desta forma, existera duas espécies de interpretaçäo que de- to) condicionante como à conseqüência condicionada. A indeter-
vem ser distinguidas claramente urna da outra: a interpretaçäo do minaçäo pode mesmo ser intencional, quer dizer, estar na intençäo
Direito pelo órgäo que o aplica, e a interpretaçäo do Direito que do órgäo que estabeleceu a norma a aplicar.
nao é realizada por um órgäo jurídico mas por uma pessoa privada Assim, o estabelecimento ou fixaçao de urna norma simples -
e, especialmente, pela ciencia jurídica. Aqui começaremos por to-
mar em consideraçäo apenas a interpretaçäo realizada pelo órgäo desta norma geral - -
mente geral opera -se sempre em correspondencia corn a natureza
sob o pressuposto de que a norma individual
aplicador do Direito. que resulta da sua aplicaçäo continua o processo de determinaçäo que
constitui, afinal, o sentido da seriaçäo escalonada ou gradual das
a) Relativa indeterminaçäo do ato de aplicaçao do Direito normas jurídicas. Uma lei de sanidade determina que, ao manifestar-
se urna epidemia, os habitantes de urna cidade têm de, sob comina-
A relaçäo entre um escaldo superior e um escaldo inferior da çäo de urna pena, tomar certas disposiçóes para evitar um alastra-
ordern jurídica, como a relaçäo entre Constituiçao e lei, ou lei e mento da doença. A autoridade administrativa é autorizada a de-
sentença judicial, é urna relaçäo de determinaçäo ou vinculaçäo:
a norma do escaldo superior regula - como já se mostrou -o ato
através do qual é produzida a norma do escalâo inferior, ou o ato
terminar estas disposiçóes por diferente maneira, conforme as dife-
rentes doenças. A lei penal preve, para a hipótese de um determina-
do delito, urna pena pecuniária (multa) ou urna pena de prisäo, e
de execuçäo, quando já deste apenas se trata; ela determina nao deixa ao juiz a faculdade de, no caso concreto, se decidir por uma
só o processo em que a norma inferior ou o ato de execuçäo sao
postos, mas também, eventualmente, o contendo da norma a esta-
-
ou pela outra e determinar a medida das mesmas podendo, para
esta determinaçäo, ser fixado na própria lei um limite máximo e um
belecer ou do ato de execuçäo a realizar. limite mínimo
Esta determinaçäo nunca é, porém, completa. A norma do es-
caldo superior nao pode vincular em todas as direçoes (sob todos
os aspectos) o ato através do qual é aplicada. Tern sempre de ficar c) Indeterminaçao nao- intencional do ato de aplicaçao do Direito
urna margem, ora maior ora menor, de livre apreciaçao, de tal for-
ma que a norma do escaldo superior tern sempre, em relaçäo ao Simplesmente, a indeterminaçäo do ato jurídico pode também
ato de produçäo normativa ou de execuçäo que a aplica, o caráter ser a conseqüência nao intencional da própria constituiçäo da nor-
de um quadro ou moldura a preencher por este ato. Mesmo urna ma jurídica que deve ser aplicada pelo ato em questäo. Aqui ternos
ordern o mais pormenorizada possível tern de deixar àquele que a em primeira linha a pluralidade de significaçóes de uma palavra ou
cumpre ou executa uma pluralidade de determinaçóes a fazer. Se de urna seqüência de palavras em que a norma se exprime: o sentido
o órgäo A emite um comando para que o órgäo B prenda o súdito verbal da norma nao é unívoco, o órgäo que tem de aplicar a norma
C, o órgäo B tern de decidir, segundo o seu próprio critério, quan- encontra -se perante várias significaçóes possíveis. A mesma situa-
do, onde e como realizará a ordern de prisäo, decisóes essas que çäo se apresenta quando o que executa a norma crê poder presumir
dependem de circunstancias externas que o órgäo emissor do co- que entre a expressâo verbal da norma e a vontade da autoridade
mando nao previu e, em grande parte, nem sequer podia prever. legisladora, que se há de exprimir através daquela expressâo verbal,
existe urna discrepância, podendo em tal caso deixar por completo
de lado a resposta à questäo de saber por que modos aquela vantade
b) Indeterminaçao intencional do ato de aplicaçäo do Direito pode ser determinada. De todo o modo, tern de aceitar -se como pos -
sível investigá-la a partir de outras fontes que nao a expressäo ver-
Dal resulta que todo o ato jurídico em que o Direito é aplicado, bal da própria norma, na medida em que possa presumir -se que esta
quer seja um ato de criaçâo jurídica quer seja um ato de pura exe- nao corresponde à vontade de quem estabeleceu a norma.

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Que a chamada vontade do legislador ou a intençao das par- se bem que apenas urna delas se
tes que estipulara um negócio jurídico possam nao corresponder
às palavras que sao expressas na lei ou no negócio jurídico, é urna
órgao aplicador do Direito - torne Direito positivo no ato do
no ato do tribunal, especialmente.
Dizer que urna sentença judicial é fundada na lei, nao significa,
possibilidade reconhecida, de modo inteiramente geral, pela ju- na verdade, senno que ela se contém dentro da moldura ou qua-
risprudência tradicional. A discrepancia entre vontade e expres-
sao pode ser completa, mas também pode ser apenas parcial. Es-
-
dro que a lei representa nao significa que ela é a norma indivi-
dual, mas apenas que é uma das normas individuais que podem
te último caso apresenta -se quando a vontade do legislador ou ser produzidas dentro da moldura da norma geral.
a intençao das partes correspondem pelo menos a urna das várias A jurisprudência tradicional crê, no entanto, ser lícito espe-
significaçôes que a expressao verbal da norma veicula. rar da interpretaçao nao só a determinaçao da moldura para o
A indeterminaçao do ato jurídico a pôr pode finalmente ser ato jurídico a pôr, mas ainda o preenchimento de urna outra e
também a conseqüência do fato de duas normas, que pretenden -e
valer simultaneamente
mesma lei -,
- porque, v. g., estao contidas numa e
contradizerem total ou parcialmente.
mais ampia funçao tem tendência para ver precisamente nesta
outra funçao a sua principal tarefa. A interpretaçao deveria de-
senvolver um método que tornasse possível preencher ajustada-
mente a moldura prefixada. A teoria usual da interpretaçao quer
fazer crer que a lei, aplicada ao caso concreto, poderia fornecer,
d) O Direito a aplicar como uma moldura dentro em todas as hipóteses, apenas urna única soluçao correta (ajusta-
da qual há várias possibilidades de aplicaçi o da), e que a "justeza" (correçao) jurídico -positiva desta decisao
é fundada na própria lei. Configura o processo desta interpreta-
Em todos estes casos de indeterminaçao, intencional ou nao, çao como se se tratasse tao-somente de um ato intelectual de cla-
do escaldo inferior, oferecem-se várias possibilidades à aplicadao rificaçao e de compreensao, como se o órgao aplicador do Direi-
jurídica. O ato jurídico que efetiva ou executa a norma pode ser to apenas tivesse que pôr em açao o seu entendimento (razao),
conformado por maneira a corresponder a urna ou outra das vá- mas nao a sua vontade, e como se, através de urna pura atividade
rias significaçôes verbais da mesma norma, por maneira a cor- de intelecçao, pudesse realizar -se, entre as possibilidades que se
responder à vontade do legislador -a determinar por qualquer apresentam, urna escolha que correspondesse ao Direito positi-
-
forma que seja ou, entao, à expressao por ele escolhida, por for-
ma a corresponder a uma ou a outra das duas normas que se con -
vo, urna escolha correta (justa) no sentido do Direito positivo.

tradizem ou por forma a decidir como se as duas normas em contra -


diçao se anulassem mutuamente. O Direito a aplicar forma, em e) Os chamados métodos de interpretaçao
todas estas hipóteses, urna moldura dentro da qual existen vá-
rias possibilidades de aplicaçao, pelo que é conforme ao Direito Só que, de um ponto de vista orientado para o Direito posi-
todo ato que se mantenha dentro deste quadro ou moldura, que tivo, nao há qualquer critério corn base no qual urna das possibi-
preencha esta moldura em qualquer sentido possível. lidades inscritas na moldura do Direito a aplicar possa ser prefe-
Se por "interpretaçao" se entende a fixaçao por via cognos-
citiva do sentido do objeto a interpretar, o resultado de urna in-
rida à outra. Nao há absolutamente qualquer método
de ser classificado como de Direito positivo - - capaz
segundo o qual,
terpretaçao jurídica somente pode ser a fixaçao da moldura que das várias significaçôes verbais de urna norma, apenas urna pos -
representa o Direito a interpretar e, conseqüentemente, o conhe-
cimento das várias possibilidades que dentro desta moldura exis-
sa ser destacada corno "correta" - desde que, naturalmente, se
trate de várias significaçôes possíveis: possíveis no confronto de
tem. Sendo assim, a interpretaçao de urna lei nao deve necessa- todas as outras normas da lei ou da ordern jurídica.
riamente conduzir a uma única soluçâo como sendo a única cor-

--
Apesar de todos os esforços da jurisprudência tradicional,
reta, mas possivelmente a várias soluçôes que na medida em nao se conseguiu até hoje decidir o conflito entre vontade e ex-
que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar têm igual valor, pressao a favor de urna ou da outra, por urna forma objetiva-

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mente válida. Todos os métodos de interpretaçáo até ao presente pécie de conhecimento do Direito preexistente, é urna auto- ilusáo
elaborados conduzem sempre a um resultado apenas possível, nun- contraditória, pois vai contra o pressuposto da possibilidade de
ca a um resultado que seja o único correto. Fixar-se na vontade urna interpretaçáo.
presumida do legislador desprezando o teor verbal ou observar

-
estritamente o teor verbal sem se importar corn a vontade - quase
A questáo de saber qual é, de entre as possibilidades que se
apresentam nos quadros do Direito a aplicar, a "correta ", nao
sempre problemática
do Direito positivo -- do legislador tern do ponto de vista
valor absolutamente igual. Se é o caso de
duas normas da mesma lei se contradizerem, entäo as possibili -
é sequer - segundo o próprio pressuposto de que se parte -
questäo de conhecimento dirigido ao Direito positivo, nao é um
problema de teoria do Direito, mas um problema de política do
uma

dades lógicas de aplicaçäo jurídica já referidas encontram-se, do Direito. A tarefa que consiste em obter, a partir da lei, a única
ponto de vista do Direito positivo, sobre urn e o mesmo plano. sentença justa (certa) ou o único ato administrativo correto é, no
É um esforço inútil querer fundamentar "juridicamente" urna, essencial, identica à tarefa de quem se proponha, nos quadros da
corn exclusäo da outra. Constituiçäo, criar as únicas leis justas (certas). Assim como
Que os habituais meios de interpretaçáo do argumentum a da Constituiçáo, através de interpretaçáo, nao podemos extrair
contrario e da analogia sao completamente destituidos de valor as únicas leis corretas, tampouco podemos, a partir da lei, por
resulta já superabundantemente do fato de que os dois condu- interpretaçäo, obter as únicas sentenças corretas.
zem a resultados opostos e nao há qualquer critério que permita De certo que existe urna diferença entre estes dois casos, mas
saber quando deva ser empregado urn e quando deva ser utiliza- é urna diferença somente quantitativa, nao qualitativa, e consis-
do o outro. Também o principio da chamada apreciaçáo dos in- te apenas em que a vinculaçáo do legislador sob o aspecto mate-
teresses é tao -só urna formulaçáo, e nao qualquer soluçáo, do pro- rial é urna vinculaçáo muito mais reduzida do que a vinculaçáo
blema que aqui nos ocupa. Nao fornece a medida ou critério ob- do juiz, em que aquele é, relativamente, muito mais livre na cria-
jetivo segundo o qual os interesses contrapostos possam ser en- çáo do Direito do que este. Mas também este último é um cria-
tre si comparados e de acordo com o qual possam ser dirimidos dor de Direito e também ele é, nesta funçáo, relativamente livre.
os conflitos de interesses. Especialmente, tal critério nao pode ser Justamente por isso, a obtençáo da norma individual no proces-
retirado da norma interpretanda, da lei que a contém ou da or- so de aplicaçáo da lei é, na medida em que nesse processo seja
dem jurídica global, corno pretende a teoria chamada da ponde- preenchida a moldura da norma geral, urna funçäo voluntária.
raçáo dos interesses. Corn efeito, a necessidade de uma interpre- Na medida em que, na aplicaçáo da lei, para além da neces-
taçáo resulta justamente do fato de a norma aplicar ou o sistema sária fixaçáo da moldura dentro da qual se tern de manter o ato
das normas deixarem várias possibilidades em aberto, ou seja, a pôr, possa ter ainda lugar uma atividade cognoscitiva do órgáo
nao conterem ainda qualquer decisáo sobre a questáo de saber aplicador do Direito, nao se tratará de urn conhecimento do Di-
qual dos interesses em jogo é o de maior valor, mas deixarem an- reito positivo, mas de outras normas que, aqui, no processo da
tes esta decisäo, a determinaçáo da posiçáo relativa dos interes-
ses, a um ato de produçáo normativa que ainda vai ser posto
à sentença judicial, por exemplo.
- criaçáo jurídica, podem ter a sua incidencia: normas de Moral,
normas de Justiça, juízos de valor sociais que costumamos de-
signar por expressóes correntes como bem comum, interesse do
Estado, progresso, etc. Do ponto de vista do Direito positivo, na-
da se pode dizer sobre a sua validade e verificabilidade. Deste pon-
2. A interpretaçáo como ato de conhecimento to de vista, todas as determinaçóes desta espécie apenas podem
ou como ato de vontade ser caracterizadas negativamente: sao determinaçóes que nao re-
sultam do próprio Direito positivo. Relativamente a este, a pro -
A idéia, subjacente à teoria tradicional da interpretaçáo, de duçáo do ato jurídico dentro da moldura da norma jurídica apli-
que a determinaçáo do ato jurídico a pôr, nao realizada pela nor- canda é livre, isto é, realiza -se segundo a livre apreciaçáo do ór-
ma jurídica aplicanda, poderia ser obtida através de qualquer es- gáo chamado a produzir o ato. Só assim nao seria se o próprio

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Direito positivo delegasse em certas normas metajurídicas como reito, desde que o ato deste órgâo já nao possa ser anulado, des-
a Moral, a Justiça, etc. Mas, neste caso, estas transformar- se -iam de que ele tenha transitado em julgado. É fato bem conhecido
em normas de Direito positivo. que, pela via de urna interpretaçáo autêntica deste tipo, é muitas
Se queremos caracterizar nao apenas a interpretaçâo da lei
pelos tribunais ou pelas autoridades administrativas, mas, de mo-
vezes criado Direito novo
tima instancia.
- especialmente pelos tribunais de úl-

do inteiramente geral, a interpretaçáo jurídica realizada pelos ór- Da interpretaçâo através de um órgâo aplicador do Direito
gáos aplicadores do Direito, devemos dizer: na aplicaçâo do Di- distingue -se toda e qualquer outra interpretaçáo pelo fato de nao
reito por um órgâo jurídico, a interpretaçáo cognoscitiva (obtida ser autêntica, isto é, pelo fato de nao criar Direito.
por uma operaçäo de conhecimento) do Direito a aplicar combina- Se um indivíduo quer observar urna norma que regula a sua
se corn um ato de vontade em que o órgâo aplicador do Direito conduta, quer dizer, pretende cumprir um dever jurídico que so-
efetua urna escolha entre as possibilidades reveladas através da- bre ele impende realizando aquela conduta a cuja conduta opos-
quela mesma interpretaçáo cognoscitiva. Com este ato, ou é pro - ta a norma jurídica liga urna sançáo, esse indivíduo, quando tal
duzida urna norma de escaldo inferior, ou é executado um ato conduta nao se encontra univocamente determinada na norma
de coerçáo estatuido na norma jurídica aplicanda. que tem de observar, também tem de realizar uma escolha entre
Através deste ato de vontade se distingue a interpretaçâo ju- diferentes possibilidades. Porém, esta escolha nao é autêntica. Ela
rídica feita pelo órgáo aplicador do Direito de toda e qualquer nao é vinculante para o órgáo que aplica essa norma jurídica e,
outra interpretaçáo, especialmente da interpretaçâo levada a ca- por isso, corre sempre o risco de ser considerada como errônea por
bo pela ciência jurídica. este órgâo, por forma a ser julgada como delito a conduta do in-
A interpretaçâo feita pelo órgâo aplicador do Direito é sem- divíduo que nela se baseou.
pre autêntica. Ela cria Direito. Na verdade, só se fala de inter-
pretaçâo autêntica quando esta interpretaçáo assuma a forma de
uma lei ou de um tratado de Direito internacional e tern caráter 3. A interpretaçáo da ciência jurídica
geral, quer dizer, cria Direito nao apenas para um caso concreto
mas para todos os casos iguais, ou seja, quando o ato designado Sobretudo, porém, tem de distinguir -se rigorosamente a in-
como interpretaçâo autêntica represente a produçâo de uma nor- terpretaçáo do Direito feita pela ciência jurídica, como nao au-
ma geral. Mas autêntica, isto é, criadora de Direito é -o a inter- têntica, da interpretaçâo realizada pelos órgáos jurídicos.
pretaçáo feita através de um órgáo aplicador do Direito ainda A interpretaçâo científica é pura determinaçáo cognoscitiva
quando cria Direito apenas para um caso concreto, quer dizer, quan- do sentido das normas jurídicas. Diferentemente da interpreta-
do esse órgáo apenas crie uma norma individual ou execute uma çâo feita pelos órgâos jurídicos, ela nao é criaçáo jurídica. A idéia
sançáo. A propósito importa notar que, pela via da interpreta- de que é possível, através de urna interpretaçâo simplesmente cog-
çáo autêntica, quer dizer, da interpretaçâo de uma norma pelo noscitiva, obter Direito novo, é o fundamento da chamada juris-
órgâo jurídico que a tem de aplicar, nao somente se realiza uma prudência dos conceitos, que é repudiada pela Teoria Pura do
das possibilidades reveladas pela interpretaçâo cognoscitiva da Direito. A interpretaçâo simplesmente cognoscitiva da ciência ju-
mesma norma, corno também se pode produzir urna norma que rídica também é, portanto, incapaz de colmatar as pretensas la-
se situe completamente fora da moldura que a norma a aplicar cunas do Direito. O preenchimento da chamada lacuna do Direi-
representa. to é uma funçâo criadora de Direito que somente pode ser reali-
Através de uma interpretaçáo autêntica deste tipo pode criar- zada por um órgáo aplicador do mesmol; e esta funçâo nao é
se Direito, nao só no caso em que a interpretaçâo tem caráter ge- realizada pela via da interpretaçáo do Direito vigente.
ral, em que, portanto, existe interpretaçáo autêntica no sentido A interpretaçâo jurídico- científica nao pode fazer outra coi -
usual da palavra, mas também no caso em que é produzida uma sa senáo estabelecer as possíveis significaçoes de urna norma jurídi-
norma jurídica individual através de um órgáo aplicador do Di- ca. Como conhecimento do seu objeto, ela nao pode tomar qual-

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396 TEORIA PURA DO DIREITO

quer decisäo entre as possibilidades por si mesma reveladas, mas à exigência técnico -jurídica de uma formulaçäo de normas jurí-
tem de deixar tal decisäo ao órgäo que, segundo a ordern jurí- dicas o mais possível inequívocas ou, pelo menos, de urna for-
dica, é competente para aplicar o Direito. Um advogado que, mulaçäo feita por maneira tal que a inevitável pluralidade de sig-
nificaçóes seja reduzida a um mínimo e, assim, se obtenha o maior
no interesse do seu constituinte, propae ao tribunal apenas uma
grau possível de segurança jurídica.
das várias interpretaçóes possíveis da norma jurídica a aplicar
a certo caso, e um escritor que, num comentário, elege uma
interpretaçäo determinada, de entre as várias interpretaçóes pos -
síveis, corno a única "acertada ", nao realizam urna funçäo
jurídico- científica mas urna funçäo jurídico -política (de política
jurídica). Eles procuram exercer influencia sobre a criaçäo do
Direito. Isto nao lhes pode, evidentemente, ser proibido. Mas
nao o podem fazer em nome da ciencia jurídica, como freqüen-
temente fazem.
A interpretaçäo jurídico- científica tern de evitar, corn o má-
ximo cuidado, a ficçäo de que urna norma jurídica apenas per-
mite, sempre e em todos os casos, urna só interpretaçäo: a inter-
pretaçäo "correta ". Isto é urna ficçäo de que se serve a jurispru-
dência tradicional para consolidar o ideal da segurança jurídica.
Em vista da plurissignificaçäo da maioria das normas jurídicas,
este ideal somente é realizável aproximativamente.
Nao se pretende negar que esta ficçäo da univocidade das nor-
mas jurídicas, vista de uma certa posiçäo política, pode ter gran-
des vantagens. Mas nenhuma vantagem política pode justificar que
se faça uso desta ficçäo numa exposiçäo científica do Direito posi-
tivo, proclamando como única correta, de um ponto de vista cien-
tífico objetivo, uma interpretaçäo que, de um ponto de vista político
subjetivo, é mais desejável do que urna outra, igualmente possível
do ponto de vista lógico. Neste caso, corn efeito, apresenta-se fal-
samente corno uma verdade científica aquilo que é tao- somente
um juízo de valor político.
De resto, urna interpretaçäo estritamente científica de urna
lei estadual ou de um tratado de Direito internacional que, ba-
leada na análise crítica, revele todas as significaçóes possíveis,
mesmo aquelas que säo politicamente indesejáveis e que, porven-
tura, nao foram de forma alguma pretendidas pelo legislador ou
pelas partes que celebraram o tratado, mas que estäo compreen-
didas na fórmula verbal por eles escolhida, pode ter um efeito
prático que supere de longe a vantagem política da ficçäo do sen-
tido único: E que uma tal interpretaçäo científica pode mostrar
à autoridade legisladora quäo longe está a sua obra de satisfazer

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