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RESUMOdc

História de Portugal Medieval

2019/2020 – O ano da Pandemia

Alexandre João Bento Pereira

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1096-1325

AS ESTRUTURAS DA ORGANIZAÇÃO SOCIOPOLÍTICA DO REINO

Existem dois modelos fundamentais que é necessário ter em conta para definir as
estruturas fundamentais da sociedade medieval portuguesa de antes do século XIV: o modelo de
organização senhorial e o modelo de organização concelhio.

Sociedade Feudal Senhorial

 Caracterizar, em termos geográficos e demográficos, a área nuclear de


implantação do regime senhorial.

O espaço.

O Entre Douro e Minho. Área muito acidentada, com proximidade da costa, com terras
altas, entrecurtada por cursos de água, com serranias, vales e colinas. Muito beneficiada pelas
chuvas é a mais húmida de todo o terrritório nacional.

Espécies vegetais existentes: carvalho alvarinho, castanheiro, ulmeiro, choupo ou


pinheiro bravo; favorável nos seus muitos vales ao aparecimento de prados e cultura intensiva de
cereais de regadio, plantas hortículas e de árvores de fruto.

A região minhota dos vales, planícies e colinas é muito compartimentada e recortada e


contrasta com a das montanhas que a circundam. Numa e noutra vivem comunidades muito
diferentes entre si, embora perto umas das outras.

Na 1ª (dos vales, planícies e colinas) vivem comunidades que praticam uma agricultura
intensiva em zonas demográficas muito densas; mas os camponeses estão distribuídos por
pequenas unidades de exploração familiar autónoma. Estas comunidades são as predominantes. É
aqui que se vai implantar mais cedo o regime senhorial. A densidade demográfica e a fertilidade
do solo desde cedo proporcionaram a criação de excedentes, os quais foram apropriados por uma
minoria, tendo como consequência uma hierarquização social.

Na 2ª (das montanhas) estão as comunidades que vivem do pastoreio de gado miúdo, em


terras pobres, juntando-se em aldeias, praticam agricultura intermitente/sazonal e necessitam
manter fortes laços de solidariedade, tendo muitas vezes instrumentos comuns (os mais caros)
como o forno, o moinho e o lagar. O nivelamento social não é propício ao aparecimento de
hierarquização social. Situam-se em geral na periferia, mais perto das serras.

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Apertada rede de transporte terrestres e fluviais, no entanto, a região está isolada do resto
da Península. Era mais fácil entrar na região através das vias fluviais; as terrestres não eram
muito frequentadas. As montanhas a leste formavam uma barreira natural não facilitando os
contactos.

Camponeses e senhores desenvolvem com certa autonomia ( devido ao isolamento) as


relações sociais que os uniam entre si.

Densidade humana --» fragmentação da propriedade. Excesso demografico é uma


característica permanente; desenvolvem-se regras sucessórias que rejeitam parte dos membros da
comunidade, pobres e nobres. Estes vão procurar a subsistência ou sucesso fora da terra.

Estabelecem-se pólos de dominação --» a \supremacia é traduzida pelo poder sobre áreas
especialmente férteis ou mais densamente povoadas e no controle das vias de comunicação que
unam essas áreas entre si. Os seus detentores extraem o Poder da abundância de bens ou da
concentração de homens nos lugares que dominam, ou do domínio das vias de comunicação.

Os pólos de dominação são os solares e os castelos mas também as cidades e povoações


mais importantes. Entre Douro e Minho tem neste época pouca componente urbana. Nas
povoações prevalecem os bispos com o seu cabido, e os mercadores. Os mercadores não se
integram nas estruturas feudais mas dominam a circulação de bens e os instrumentos de troca, e a
sua existência torna-se necessária; adaptam-se às estruturas feudais.

Os mosteiros (apesar da sua natureza diferente baseada na função religiosa e simbólica)


são também detentores do poder regional, tanto quanto os castelos e os solares.

 Relacionar os pólos físicos de dominação do território (castelos, solares, cidades


e mosteiros) com o sistema de comunicações s e o relevo de Entre Douro e
Minho.

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No mapa pode-se verificar a posição dos solares e castelos e a sua relação com os
caminhos e por outro lado com o relevo.

Os castelos, as povoações e a organização social do espaço. Os castelos situam-se


geralmente nos montes e colinas que dominam os vales e os caminhos. Os castelos são muitas
vezes construídos nas ruínas dos antigos castros da Idade do Ferro e deles se vigiam as estradas.
Assim verifica-se que o grande número de torres e castelos não coincide com as encruzilhadas.

Muitos deles permanecem em meados do séc. XIII como centros administrativos ou


militares das circunscrições territoriais e dão-lhes os nomes. Mas os senhores não habitam neles
permanentemente, fixando-se e tomando o nome de “honras” noutros lugares. Deve existir uma 1ª
fase em que se ocupavam os castros e outra posterior em que neles se deixavam guarnições e se ia
viver para os paços, quintãs ou centros dominiais. A fase de transição foi a 1ª metade do séc. XIII.

Na 2ª metade do séc. XIII o domínio de cada circunscrição territorial deixa de se fazer


dos castelos e passsa a fazer-se das cidades. Mas já nos séc. XI e XII há precedentes desta
organização do espaço, não em torno dos castelos mas de povoações que dominam o território
circundante – o termo.

Cruzamento de vias fluviais terrestres nas principais cidades do Norte de Portugal

No séc. XIII os termos encontram-se concentrados numa mancha que abrange Lanhoso,
Braga, Guimarães e Lousada.

Em torno desta mancha, para o litoral, a Norte do Cávado, e no vale do Tâmega, usa-se o
nome de – terra.

Os julgados são ainda raros, apenas 2.

As terras associam-se mais frequentemente a castelos do que os termos. Por outro lado,
os castelos nem sempre dão o seu nome à terra, o que significa que muitas terras existiam antes
de nelas dominarem os respetivos castelos. Eram talvez áreas sem centros definidos como por
exemplo os vales da zona do Cantábrico do Douro. Situarem-se na mancha da zona de termos de
1220 parece confirmar essa hipótese.

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Assim os castros e castelos contribuíram para a ordenação do território segundo áreas de
influência, as quais se sobrepõem a um ordenamento anterior. É imposto o domínio senhorial a
espaços que se organizavam de formas diferentes.

Povoamento. O Entre Douro e Minho era densamente povoado, mas dentro do seu
território existiam diferenças consideráveis. A rede de igrejas da arquidiocese de Braga e do Porto
mostra que estas atingem a sua densidade máxima numa mancha que coincide com a dos termos.

Está situada entre a zona de montanhas e o litoral; de maior pluviosidade, onde se


encontram os afloramentos graníticos e entre estes terras fundas e abundantes em húmus.

A densidade das igrejas volta a aumentar entre a Foz do Ave e a Foz do Douro, ou seja,
na Maia, até ao Porto, onde mais uma vez aparecem solos graníticos. Este tipo de solos existe
para sul do Douro até às montanhas do Vouga, aí aliados aos xistos.

Uma conjugação semelhante de pluviosidade, solo granítico e terras fundas, embora a


altitudes superiores às do Minho encontra-se em Santa Maria, Castro Portela, Paiva, Arouca,
Zebreiro, Penafiel de Covas e Lafões, até Lamego e Viseu. Uma carta de 1943 mostra que aí é
onde se encontra a maior concentração de lugares ainda antes do séc. XI.

Resumindo: a associação:

Solo granítico + terras fundas + pluviosidade alta

está relacionada com a densidade demográfica – onde se encontra esta associação é onde vamos
encontrar maior densidade demográfica.

 Estabelecer correspondência entre a densidade populacional das zonas situadas


no interior de Entre Douro e Minho e os níveis de poder dos senhores que as
dominavam.

A terra e o regime senhorial. Foi nestes viveiros humanos que se desenvolveu o regime
senhorial.

Uma grande quantidade de senhores prospera, à custa de sujeitarem pelas armas e pelo
serviço de poderes públicos uma grande massa de camponeses. Para sustentar a sua superioridade
apropriam-se da capacidade produtiva dos camponeses.

Na periferia os senhores são mais poderosos.

O seu poder parece, portanto, não se basear tanto na posse de terras de cultivo, mas no
domínio público sobres vastos territórios, sustentado por forças militares capazes de percorrer
rapidamente longas distâncias a cavalo, de exigir prestações pela administração da justiça e pela

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proteção militar, não só de agricultores, mas também de pastores e caçadores das áreas
montanhosas. Exemplos: senhores de Sousa e de Bragança.

Já os da Maia talvez devessem a sua prosperidade ao poder militar que lhes permitia fazer
incursões para sul, em terras não cristãs, e ao seu domínio sobre as vias de comunicação em torno
do Porto.

Nas regiões mais densamente povoadas existe uma enorme quantidade de nobres, mas em
geral de nível médio e inferior. É possível que a acumulação de muitas famílias nobres
neutralizasse os concorrentes e impedisse a emergência de famílias mais poderosas. A sorte dos
camponeses nem por isso foi melhor aqui, pois a magreza de recursos dos senhores fazia-os mais
exigentes. Uma outra característica desta área é a presença considerável de comerciantes,
burgueses e intermediários, que promove as trocas e investe os seus lucros em terras e assim
contamina, com a sua independência das estruturas feudais, as relações de dominação existentes
entre senhores e camponeses.

 Identificar os mecanismos de expansão do regime senhorial para fora de Entre


Douro e Minho.

O regime senhorial fora de Entre Douro e Minho. Algumas comunidades rurais na


zona mais acidentada do Marão e no vale médio do Douro vêm reconhecidos no séc. XIII o
privilégio poderem escolher os seus protectores – os seus senhores, formando assim - beetrias.

Em Trás-os-Montes algumas comunidades mantiveram a sua própria organização até ao


séc. XII mas depois submeteram-se à vaga invasora dos nobres que se apropriaram dos direitos
senhoriais.

Na Beira Alta aconteceu o mesmo desta vez apropriando-se dos direitos senhorais
principalmente os monges cistercienses de Tarouca e de Salzedas e senhores como os Cunhas e
os Lumiares.

Nas abas ocidentais da serra da Estrela estabeleceram-se cavaleiros de Coimbra, uns eram
de origem estrangeira, francos ou asturianos, outros eram da própria região, moçárabes.

Mais tarde tiveram aí os seus coutos e senhorios os Crúzios, o cabido e o bispo de


Coimbra.

Mais a sul, o rei entregou aos Templários terras à volta de Pombal e uma região no vale
do Zêzere com o intuíto de estes assegurarem a defesa de Lisboa e Santarém.

Aos cistercienses de Alcobaça permitiu a criação de senhorios que eles tornaram muito
produtivos.

A vaga senhorial avançou para sul do Tejo, com concessões às ordens militares.

Depois da conquista de Alcácer do Sal, em 1217, o Alentejo torna-se zona de latifúndios,


pertencentes sobretudo à ordem de Sant’Iago, mas também do Crato e do Templo.

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O rei, por sua vez, também se adapta ao regime senhorial. Estende as exacções
senhoriais aos herdadores, isto é, aos descendentes de cultivadores livres ou proprietários de
alódios que ainda viviam à margem dos senhorios. Exige deles prestações de ordem pública como
se fossem senhoriais (a fossadeira, a voz e a coima). Confia aos mordomos e juízes, depois aos
meirinhos a administração senhorial dessas terras.. Organiza as inquirições para fixar os seus
direitos senhoriais.

O rei torna-se o promotor da expansão senhorial e usa-a para seu benefício. O facto de ser
responsável pelo poder público altera a natureza das suas relações senhoriais com os dependentes.
Este facto, que é o mais sério obstáculo à senhorialização, mostra-se mais nas cidades e centros
urbanos, onde a concessão de cartas de foral preserva ou cria instituições de direito público, as
quais no 1º caso prolongam organizações comunitárias anteriores e, no 2º caso, as imitam,
fazendo de todos eles a principal base do processo de centralização régia.

Os priores das ordens militares, os eclesiásticos e alguns leigos que se fixaram no Centro
e Sul, levados pela necessidade de colaboração militar, enquanto foram terras de fronteira, depois
pela prosperidade dos concelhos urbanos de dependência régia e pela necessidade em atrair
povoadores, concedem cartas de foral idênticas às que o rei atribuía, garantindo certa autonomia
aos minicípios emantendo uma uniformidade regional das instituições concelhias.

Assim se ciou um regime híbrido, em que se associa o regime senhorial com o concelhio.

 Reconhecer as bases da superioridade social dos nobres e matizá-las de acordo


com as várias categorias de senhores.

Os senhores.

No fim dos séc. XI o regime senhorial estava já profundamente enraízado em Entre


Douro e Minho e iniciou a expansão para leste e para sul.

O processo de extensão geográfica do regime senhoral faz-se em detrimento de formas de


organização comunitária predominantes no interior e no Centro do país.

Para compreender o funcionamento do regime senhorial durante os séc. XII e XIII, temos
de compreender a natureza dos privilegiados – dos nobres. Verifica-se que as bases da
superioridade estão no sangue, na força das armas, no poder económico e na autoridade sobre os
outros homens.

As famílias de nobres associam-se a uma outra instância que não possui força militar mas
que é detentora de superioridade social e que a elas é parcialmente assimilada – o clero.

O Sangue. No fim do séc. XI já existiam o Entre Douro e Minho senhores cuja


superioridade social não se devia a uma autoridade delegada pelo rei, mas que exercem poderes
pessoais e transmissíveis aos seus descendentes – os infanções. Até meados do séc. XII é mais
corrente serem chamados filii benenatorum. Tanto uma expressão como outra são abandonadas
quando aparece o termo – fidalgo, no séc. XIII o qual se torna o mais corrente para designar

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nobres por nascimento. ---» Estes são os vocábulos que se utilizam para indicar a categoria social
que se transmite pelo nascimento.

- Vocábulo que engloba poder herdado e não herdado - boni homines - termo
utilizado quase sempre a sul do Douro, pressupõe que o Poder não é necessariamente herdado,
mas próprio e pode referir-se a pessoas de todas as categorias, desde os cavaleiros-vilões dos
concelhos até aos condes. Utiliza-se até às primeiras décadas do séc.XIII.

O uso de – nobilis começa por se fazer como adjectivo; no fim do séc. XII aparece como
substantivo e é precedido da expressão nobilis homo como sinónimo de – rico-homem. Em
considerável número de textos é reservado para nobres da corte régia ou condal. Nos séculos
seguintes é usado novamente como adjectivo.

Verifica-se que existe um pequeno grupo que está no topo da escala, perto do poder
régio, e que representa o modelo para todos os outros da mesma classe, mas situados mais abaixo.
Estes são mais numerosos, obviamente, e formam um grupo que se opõe aos homens comuns e
transmite a sua superioridade através da hereditariedade.

As armas. Os termos que designam a profissão das armas, miles e cabalarius, podem
tambem ser usados com conotação social.

Em forais do conde D. Henrique usa-se miles para indicar cavaleiro-vilão. No início do


séc. XII o termo é utilizado a sul do Douro com qualificativos de bonus, vilanus, etc, o que
significa que há altura o termo não era por si só sinal de nobreza, e os qualificativos permitem
distinguir os cavaleiros nobres dos que não o são.

No final do séc. XII indica um membro da nobreza mas de condição inferior e que vive
da profissão das armas. Aliás, « Cavaleiro» será, até meados do séc. XIII, um termo que não
inclui as categorias mais altas da nobreza de sangue. A condição de cavaleiro só tem sentido para
estabelecer a diferença entre o nobre e os não previligiados. O seu uso só interessa, portanto, a
nobres de categoria mais baixa que não querem ser confundidos com cavaleiros-vilões.

A osmose social, favorecida pela participação dos vilões na guerra, nas fronteiras com o
Islão, acaba por dar lugar ao “fechamento” social da nobreza, 1º com a intervenção das ordens
militres, depois com a transferência dos combates mais para o sul e, finalmante, com a conquista
definitiva do território

O poder. O modelo de nobreza aplicava-se a um grupo restrito de senhores que


rodeavam o rei ou os condes. A multiplicação dos delegados do rei e dos nobres leva a que se dê
uma proliferação de centros de poder e à difusão do regime senhorial.

Todavia, a ligação dos senhores com a terra e os agricultores implica um tipo de poder
público com uma componente mais administrativa que militar, ou seja, mais «policial».

O vínculo inicial com o poder régio justifica que o espaço do domínio fundiário atribuído
pelo rei ao seu delegado, para recompensar e justificar o poder público se chame honor, termo
que também designa a própria autoridade pública. Este é um fenómeno interessante do regime

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senhorial português: o termo passa a indicar o domínio principal de uma família nobre, aquele
que lhe dá o nome, o que é transmitido ao herdeiro principal e que está imune das prestações
devidas ao rei.

Assim honra significa não só a qualidade superior de quem deve ser venerado e
respeitado por desempenhar uma função pública mas também o domínio nobre por excelência.

O regime senhorial vê a «honra» como a qualidade do nobre, que se transmite


herditariamente. A sucessão da função e domínio ( a «honra» no sentido concreto ) faz-se numa
linha única, o que leva cada linhagem cultive a sua «honra» como se se tratasse de um dom
específico, que caracteriza os seus membros e os diferencia dos das outras famílias, embora da
mesma categoria social.

Por estas razões, o modelo de nobreza que até ao fim do séc. XIII transparece da
terminologia é mais o do “detentor do poder” do que o do “guerreiro” (miles), o que significa
que a sociedade não considera a força das armas, só por si, como justificadora do poder e
superioridade. O termo que melhor os exprime é senior que signigfica o mais velho, o patriarca, o
chefe da linhagem; aparece não como guerreiro ou rei, mas como o que tem poder sobre a sua
domus, isto é, não só na sua casa mas todos os que nela habitam, ou seja, aparece como o dono da
“casa”, que estende sobre os seus descendentes, sobre o seu domínio e nas terras em redor um
poder de patriarca: gere os bens materiais, dá as filhas em casamento para selar alianças, escolhe
o herdeiro, envia os mais novos para a guerra, protege a igreja ou mosteiro familiar.

Podemos estabelecer uma relação entre os termos senior e domnus. Em meados do séc.
XIII donus e dom não eram ainda exclusivos dos nobres; aplicava-se a proprietários que
suscitavam respeito aos outros membros da comunidade, assim como ao rei ou a membros da alta
nobreza. Mais tarde usa-se a palavra como título reverencial que se vai estender a todos os
membros da nobreza.

Resumindo: o que sobressai na linguagem utilizada para indicar os membros da nobreza


senhorial, até ao fim do séc. XIII, não é tanto o seu carácter militar, mas a capacidade de gerir,
administrar e comandar, como se se misturasse nas mentes de então, o modelo do delegado do rei
e o dos outros grandes proprietários da época imperial, senhores das villae. A posse de muitas
terras habitadas e cultivadas constitui condição fundamental para se ser “senhor”, essa é a base
efectiva do poder, aquela que dá a capacidade de ter homems de armas ao seu serviço, o poder de
julgar, de oferecer benefícios, de escolher alianças matrimoniais prestigiantes, de ter um paço.

A conjugação do modelo do”senhor” com o de “conde” (enquanto detentor de um poder


público delegado pelo rei) que os infanções do séc. XI queriam imitar, encontra-se na sua maior
pureza em Entre Douro e Minho.

À medida que se avança para sul, prefere-se, para indicar a superioridade social, o
qualificativo bonus, que denota prosperidade material (boni homines), e identifica-se os potentes
com os milites. Aqui a relação entre a superioridade social e o nascimento é secundária. A
osmose social é maior e os cavaleiros vilãos equiparam-se aos infanções no território do concelho
em que dominam.

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Esta distinção geográfica verifica-se no séc. XII.

No séc. XIII a ideia de que a verdadeira nobreza implica não só o sangue herdado de
antepassados já nobres, mas também a profissão de armas e o poder efectivo sobre uma terra com
os seus homens estende-se a todo o reino.

Acentuam-se as diferenças regionais. A classe dominante é-o cada vez mais de todo o
território nacional e constitui um modelo único e tem de ter todos os 3 elementos: o sangue, as
armas e o Poder.

 Definir os conceitos de cavaleiro, infanção e rico-homem à luz de textos


jurídicos do séc. XIII.

As categorias. A nobreza portuguesa divide-se em três categorias hierárquicas diferentes:


cavaleiros, infanções e ricos-homens. Esta divisão encontra-se nos textos legais a partir da 2ª
metade do séc. XIII mas a realidade social é mais fluida.

Cavaleiro – é o que vive do serviço militar. Em época tardia indica o que recebeu a
investidura das armas em oposição ao escudeiro, podendo indicar, em especial se for jovem
alguém de alta nobreza. Em geral, aplica-se aos nobres sem fortuna que vivem na dependência de
outrem e o servem no seu séquiro militar. Membro da categoria mais baixa da nobreza portuguesa
a qual se dividia tradicionalmente em 3 categorias.

Infanção – membro da categoria intermédia da nobreza portuguesa a qual se dividia


tradicionalmente em 3 categorias. Estavam abaixo da categoria dos ricos-homens e acima da dos
cavaleiros. Eram nobres de linhagem Mais tarde esta designação é substituída por fidalgo.

Rico-homem - membro categoria mais alta da nobreza portuguesa a qual se divide


tradicionalmente em três categorias. São aqueles que receberam do rei “pendão e caldeira”, isto é
são os seus representantes como governadores de terras, e que, por isso, têm para com ele uma
dependência vassálica. Mais tarde identificam-se com os nobres poderosos, independetemenete
de qualquer função pública ou relação de vassalagem com o rei.

 Enunciar a evolução que conheceu a relação de dependência entre a nobreza e o


rei, à luz do estabelecimento de hierarquias no interior desse grupo.

Até ao fim do século XII a monarquia guerreira tem dois tipos de vassalos:

- Uma nobreza de serviço, de categoria modesta, porque composta sobretudo por nobres
sem fortuna, que vivem do serviço das armas na estrita dependência do rei (entre os quais os
filhos segundos de famílias poderosas).

- Os Ricos-homens, a quem o rei confia o governo das terras e que possuem um poder
próprio efectivo, com o qual o podem contestar e até combater.

A partir de Afonso II (1211-1223), ou seja, a partir da 1ª década do séc. XIII, a nobreza


de serviço torna-se cada vez mais importante:

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1º - como o principal grupo executante da centralização régia, e isto torna-a rival da
nobreza senhorial, ou seja, dos ricos-homens governadores de terras, com poder para fazer face
ao rei, e dos nobres mais modestos que vivem nas suas honras e que tentam aumentar o seu poder
à custa do património régio;

2º - com Afonso III (1248- 1279) a nobreza de serviço torna-se cortesã, isto é, igualmente
dependente do rei, mas com uma cuidada superioridade simbólica, cultivada através do vestuário,
fala, das boas maneiras e da manipulação do código ambíguo da vassalidade com os seus
processos de submissão ao senhor e de participação no seu poder superior.

A partir desta altura, a nobreza da corte procura apresentar-se como um modelo de toda a
sua classe o que traz como consequência o desprezo dos rudes nobres de província.

Este processo conduz também a uma recomposição da nobreza e da sua hierarquia. Até
meados do séc.XIV ela não aceita o que o rei pretende impor-lhe e resiste através das armas ou
através da ridicularização dos vassalos muito submissos.

Mas o rei passa a dominar a hierarquia mais diretamente ao criar a nobreza titular, desde
a nomeação do 1º conde de Barcelos em 1298 ---» inicia, assim, uma nova classificação
aristocrática, que nos séculos XIV e XV define de forma mais nítida os escalões superiores. Dá-
lhes mais prestígio, mas agrava a dependência em relação ao rei.

 Explicar a forma como os bispos e os monges desempenharam a função de


instrumentos de senhorialização.

Monges e sacerdotes. As famílias nobres procuravam as boas graças dos monges e


clérigos ou submetiam-nos à sua proteção para melhor garantirem a sua “honra”.

Os monges e sacerdotes desempenhavam outra função social mas eram “senhores” como
os nobres, porque não trabalhavam pessoalmente a terra e sujeitavam os camponeses, seus
dependentes, a uma autoridade semelhante.

O clero não se pode confundir com uma classe social. Tanto fazem parte dele os bispos e
abades, que são efectivamente “senhores”, quer pelos seus poderes quer muitas vezes pelo
sangue, como os párocos e monges que vivem modesta ou até pobremente. Não podemos, pois,
falar do clero como de um conjunto unitário. Temos de distinguir nele diversos componentes.

Monges. Os monges têm uma relação mais íntima com a nobreza senhorial.

Desde o fim do séc. XI e durante todo o séc. XII, houve uma concentração das
comunidades monásticas de Entre Douro e Minho. A região tinha até ao fim do séc. XI muitos
pequenos mosteiros. Estes desapareceram e tornaram-se igrejas seculares, dependentes de
mosteiros maiores, ricos em propriedades fundiárias e com organização senhorial. Tanto as
autoridades eclesiásticas, como as civis e a aristocracia favoreceram este movimento que criou
abadias poderosas. Estas comunidades religiosas tornaram-se poderosos instrumentos de
senhorialização. Conhecedores da escrita podiam acumular bens de geração em geração e registar

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os foros a pagar, assim como podiam guardar os títulos de propriedade e exibi-los quando fosse
necessário.

Bispos. Os bispos foram eficazes instrumentos de senhorialização. Entre o fim do séc. XI


e o fim do séc. XII acumularam enormes patrimónios fundiários.

Mosteiros
fundados no
Norte de
Portugal entre
o século IX e
o século XIII.

Observando a concentração dos mosteiros de Entre Douro e Minho nos séc. XI e XII
verificamos:

- uma impressionante diderença entre o Minho com abundância de mosteiros e Trás-os-


Montes com escassez destes.

- uma enorme multiplicação na zona minhota da arqueodiocese de Braga durante o séc.


XI por oposição ao número de fundações existentes no Alto Minho, que se dá sobretudo no séc.
XII.

- uma distribuição regular de fundações na diocese do Porto, durante os 3 séculos


considerados.

Concluímos o seguinte:

- considerando que houve um paralelismo entre o movimento fundacional e o


comportamento demográfico da região, então confirma-se a concentração populacional Entre
Douro e Minho;

- a proliferação deu lugar a uma enorme redução de comunidades monásticas no séc.


XIII, sobretudo entre o Cávado e o Ave, e também na diocese do Porto, sobretudo na Terra de
Santa Maria e entre o Ave e o Sousa.

- as fundações do séc. XII são quase todas anteriores a 1150, sendo mais resistentes do
que as anteriores. Estas representam comunidades mais organizadas e que conseguem absorver
muitas fundações anteriores.

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Assim verifica-se que a concorrência religiosa tem limites: os da própria saturação das
instituições eclesiásticas, que, a partir de certo momento entram em oposição com a própria
estrutura senhorial aristocrática. De facto, a região que acumula o maior número de famílias
diferente é também aquela onde a rede paroquial é mais densa, a que tem mais mosteiros e onde a
terra é mais fecunda.

Outro fenómeno interessante é a relação entre os mosteiros e as famílias patronais:

- a maioria dos mosteiros protegidos pelos nobres mais ligados à corte condal e das
primeiras décadas afonsinas, sendo de fundação antiga, deixam os seus usos hispânicos para
adoptarem a regra beneditina e os costumes cluniacenses.

- os mosteiros protegidos por nobres de categorias inferiores, hesitam mais em abandonar


as observâncias peninsulares tradicionais e acabam por receber no 1º terço do séc. XII a regra de
Santo Agostinho, embora o seu modelo senhorial seja semelhante ao dos beneditinos.

- os Cistercienses, ficam ligados à alta aristocracia.

Os mosteiros de inspiração beneditina (cluniacense) exercem uma influência


determinante no modelo de sociedade que mais se adapta ao regime senhorial. O esplendor do
culto, a oração pública, a profusão de sufrágios pelos mortos, com destaque para os da família
patronal, tornava a relação entre os nobres e os monges uma associação proveligiada.

A visão do mundo dos Cluniacenses atribuía um lugar próprio às forças políticas e à


guerra, ao trabalho produtor dos camponeses e à função régia, à luta contra os infiéis, aos deveres
dos senhores e dos camponeses, a à vida e à morte. Mesmo sem corresponder por completo às
expectativas, esta visão triunfa no seio da sociedade senhorial.

Os monges são o instrumento intelectual dos nobres, ao fornecerem-lhes a vantagem da


escrita, ao receberem alguns dos seus membros que depois promovem a postos hierárquicos, ao
sustentarem a noção de permanência das linhagens.

Mas se é necessário resistem aos nobres, reivindicam a sua “liberdade” como coisa
sagrada, ameaçam-nos com maldições e castigos divinos, aliam-se aos bispos, pedem a protecção
da cúria romana, queixam-se ao rei quando os nobres abusam da sua força.

 Estabelecer a função das estratégias matrimoniais e sucessórias na preservação


de grupos no interior da nobreza.

Solidariedade e parentesco. Quando a autoridade régia é distante, para os inferiores é


necessário buscar protecção e para os do mesmo nível é necessário precaver-se por meio de
alianças as quais se estabelecem essencialmente pelo matrimónio. Este tem regras destinadas a
assegurar o equilíbrio social, a regular as estratégias de reprodução ou de acumulação
patrimonial.

As regras matrimoniais conjugam-se com as sucessórias. Isto é importante por se adoptar


uma estrutura linhagística agnática e vertical que na sucessão inferioriza os filhos segundos e as
fêmeas.

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Este sistema foi primeiro utilizado por famílias de governadores de terras nas regiôes
periféricas de Entre Douro e Minho, para imitar o modelo sucessório da monarquia e depois
generalizou-se durante a 2ª metade do séc. XII.

Daí que adopte o hábito de preterir os filhos segundos, mandando-os servir o rei ou um
senhor poderoso, alistando-os nos exércitos da reconquista, fazendo-os entrar num mosteiro ou
proibindo-os de casar e sustentando-os como cavaleiros do senhor da linhagem.

Para as filhas, o seu casamento servia para selar alianças com outras famílias, sobretudo
daquelas de quem se esperavam serviços. As outras tinham ou de ficar celibatárias na casa
paterna ou iam para mosteiros professar como monjas. Isto levou a um aumento considerável de
fundações monásticas femininas a partir da 2ª metade do séc. XII sob a Regra de S. Bento e
depois, sob a refroma cisterciense, no séc. XIII das Clarissas ou Dominicanas.

Assim se explicam fenómenos frequentes das genealogias medievais: a inferiorização


social das linhas colaterais perante a principal, a barragenia dos filhos segundos, o grande número
de filhos ilegítimos, a ocupaçãos dos jovens e bastardos como cavaleiros e trovadores, a caça às
viúvas e às jovens herdadeiras de famílias sem varões pelos membros da nobreza inferior.

A estratégia da restrição linhagística de linha única parece dar resposta a uma situação de
grande aumento de natalidade, a qual ocorre no Ocidente europeu nos séc. XI e XII, e
particularmente a de Entre Douro e Minho.

Quanto ao matrimónio, este é reconhecido como um elemento prestigiante, e é praticado


um regime matrimonial de “circulação de mulheres”, isto é, agrupamentos de famílias unidas por
matrimónios frequentes ao longo de várias gerações.

São 6 os grupos que se uniram por matrimónios preferenciais: em 1º lugar a nobreza de


corte (anterior à guerra civil de 1245) e a família real com seus bastardos. A seguir o grupo dos
ricos-homens da nobreza tradicional, também ligados à corte, mas que foram, na sua maioria,
afastados dela desde Afonso III ( 1248-1279 ). Finalmente a nobreza regional.

Verifica-se que as alianças têm orientações preferenciais: os chefes de linhagem cortesã


procuram 1º mulheres do mesmo grupo e, depois, as ricas-donas do 2º grupo; esporadicamente
casam com senhoras da nobreza média, de implantação regional. Os primogénitos dos ricos-
homens procuram 1º damas da corte e, depois, as das sua própria categoria. As suas mulheres,
porém, aliam-se frequentemente com primogénitos da nobreza regional, o que sugere que o
casamento pudesse selar relações de carácter vassálico.

 Avaliar a função dos laços de vassalidade no fortalecimento de solidariedade e


estruturação no grupo de senhores.

Solidariedade e vassalagem. Outro processo de criação de laços de solidariedade é o de


vassalagem. Também ela constitui uma forma de estruturar a classe nobre e de lhe permitir
manter a sua posição dominante.

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A vassalagem foi objecto de negação pela historiografia portuguesa mas é tde tal forma
um ideal dominante para a mentalidade aristocrática, que fazia da fidelidade pessoal o mais
sagrado princípio da vida social e política, como também um conjunto de instituições que,
embora menos codificada do que em França ou na Catalunha, nem por isso é menos efectiva.

A provar esta situação temos os seguintes factos:

- Encontram-se frequentes referências a fideles, ou cavaleiros de senhores.

- Concessão de honores, isto é, de funções públicas ou dos seus rendimentos.

- Concessão de tenencias, (benefícios fundiários) em inicios do séc. XII.

- Concessão de castelos mediante homenagem e implicando fidelidade vassálica por


outros nobres.

- Sub-enfeudação de castelos.

- Entrega de atondos, iste é de benefícios compensatórios do serviço de um fidelis.

- Uso dos termos, prestamum, aprestamum ou prestimonium com o sentido de benefício


feudal em inícios do séc. XII.

- De séquitos de senhores compostos por nobres que lhes faziam serviço de cavaleiros ou
outras funções domésticas.

Estes testemunhos provam, pois, que existiu feudalismo entre nós. Todavia apenas cria
vínculos ténuos, fragentários e instáveis, faz da vassalagem um serviço marcado por uma efectiva
inferioridade e nunca chega a ligar os grandes senhores entre si.

Os serviços vassálicos são frequentemente compensados por doações plenas, que não
mantém o vínculo feudal, ou por benefícios em dinheiro, panos ou outros bens móveis, que
aproximam o vassalo do mercenário.

A terminologia institucional é imprecisa ou ambígua, pois chama “vassalo” ao que é


simples súbdito, “préstamo” a contratos precários de camponeses, “homenagem” a um mero
juramento, “senhor” a quem não tem vassalo nenhum, etc.

---» A debilidade do sistema vassálico português explica-se pelo facto de em Portugal


não se terem nunca chegado a formar casas senhoriais suficientemente poderosas para terem
vassalos de alguma categoria e riqueza.

O seu desenvolvimento foi impedido quer pela perda de varonia das linhagens principais,
quer pela concorrência da coroa, que a partir de Afonso II (1211-1223) procurou sempre impedir
a proliferação de casas senhoriais fora do seu território de origem. Quando existe a possibilidade
de se deselvolverem nas regiões do Centro e Sul, têm de competir com as ordens militares e
monásticas com os concelhos e sobretudo com o rei. Poucos conseguem vencer estes obstáculos.

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Quando finalmente se constituem casas senhoriais no Centro ou Sul, já a monarquia está
tão solidamente implantada que só o podem fazer com a sua ajuda e na sua dependência. Assim,
nenhuma consegue vassalos suficientes para recompensar vassalos poderosos, nem para reunir
mesnadas capazes de os dominar quando hesitam em manter a fidelidade.

Assim, os vassalos “criados” nas casas senhoriais são sobretudo filhos segundos de
parentes modestos, que não podem fazer exigências, mas que, não tendo muito a perder,
facilmente abandonam tal proteção para procurar outra mais vantajosa. Os vassalos devem ser
quase todos domésticos e raramente dotados de préstimos fundiários: os seus benefícios são em
bens móveis, panos ou dinheiro.

Apesar do ideal de fidelidade, é provável que os laços de solidariedade mais eficazes


fossem os de parentesco. A vassalagem, apesar de ser de natureza diferente, não faz mais do que
reforçá-los e hierarquizá-los.

E de facto o rei é o único grande senhor feudal: o que tem muitos vassalos, força para lhe
exigir fidelidade, terras e “contias” para os recompensar e hostes para os castigar.

 Discutir a evolução dos valores que sustentam a ideologia nobiliárquica.

Ideologia. A nobreza estrutura-se não só pelos laços de parentesco e de vassalidade,


como também pela consciência de classe.

Esta manifesta-se como um sentimento de superioridade em matéria de gostos, de valores


e de crenças e também por costumes peculiares.

Esses costumes funcionam como valores e inspiram actividades como a caça, a guerra, a
familiaridade com o clero, o gosto pelas hierarquias que se espelham nos sinais exteriores em
especial vestuário e armas, o culto das tradiçoes, a defesa da honra, a valorização da vingança,
etc.

Até meados do séc. XIII predominaram costumes ancestrais que valorizavam os laços
que prendiam o senhor a um espaço concreto e aos homens e mulheres do senhorio ou da sua
parentela, às rivalidades e conflitos com os vizinhos, à rebeldia para com o rei. Nessa altura a
força prevalece sobre a cultura (no sentido de cultura intelectual).

A partir de Afonso III ( 1248 -1279 ), a corte torna-se mais poderosa e com maior
prestígio e concentra a prática dos valores “de cortesia”, baseados na repressão da violência e no
culto da palavra, no domínio da aparência e no jogo da obtenção do Poder pelo serviço e
submissão ao rei.

Passa a ditar o gosto, as opiniões, os valores, as preferências e difunde tudo isto através
de agentes da palavra – os trovadores e jograis. Torna-se, então, determinante na construção da
ideologia nobiliárquica.

Os nobres sentem desprezo pelos vilões ( justificando-o pelo seu mau cheiro, a pele
escura, os cabelos desgrenhados e precocemente brancos, a abundância de pêlos, o vestuário
miserável) não pelo camponês cuja distância é tão grande que ele só muito raramente aparece no

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seu horizonte, mas sim pelos cavaleiros vilões que pretendem imitá-lo, mas no exército do rei se
apresentam com cabelos e barbas animalescos, vestuário ridículo, armas rudes, cavalos mal
aparelhados. Só servem para acompanhar os transportes de rectaguarda não para entrar em
batalha pois têm medo dos ginetes mouros. Além do mais são ignorantes, deixam-se enganar e
engam os seus senhores, desconhecem as barreiras sociais e assim expôem-se ao desprezo de
todos.

Assim são difamantes os casamentos com mulheres de condição inferior. A diferença


social manifesta-se até na onomástica, sendo que até ao fim do séc. XII nenhum nobre se chama
Domingos, Bento, Tomé ou Bartolomeu. As alcunhas são para gente inferior, filhos segundos ou
nobres de segunda categoria.

Os nobres consideram a estabilidade social como um princípio quase absoluto, tal como a
própria ordem cósmica. As categorias sociais devem manter-se estáveis e separadas. Não dve
haver transferências de umas para outras. Ainda os favoritos sejam feitos nobres pelo rei não
basta isso para se saberem vestir ou combater como os nobres da velha cepa.

Todos devem, portanto, comportar-se como está prescrito, segundo os costumes e regras
de conduta que a sus posição social impõe. É esse o segredo da preservação da ordem que Deus
estabelecu no Mundo e que nele deve reinar até ao fim dos tempos.

 Caracterizar as diversas categorias de dependentes o estatuto e funções de que


gozavam no âmbito do sistema senhorial.

Dependentes. Os privilégios da nobreza são por si só suficientes para compreender que


quem não os possui dependerá dela: a nobreza apropria-se não só da riqueza mas também de
todas as formas de poder sobre os homens – autoridade pública, julgar, comandar guerreiros,
cobrar impostos, ditar a lei.

Aqueles cujas prerrogativas se fundam apenas na posse dos seus corpos e terras têm de
fatalmente se sujeitar.

O sistema senhorial acaba não só por multiplicar os senhores, mas também por lhes
equiparar o rei e tornar o seu poder análogo ao deles. Os dependentes do rei terão também um
estatuto semelhante: deixam de ser livres para ficarem sujeitos a ele.

Por outro lado, o sistema tende a nivelar os dependentes, apesar de procederem de


categorias diferentes, dotadas ou não de liberdade.O modelo de dependente é o servo e o que
uniformiza a sua classe é o facto de todos se dedicarem a actividades produtivas.

A unidade de classe não pode fazer esquecer as categorias que a compõem. As


actividades dos dependentes são bastante variadas.

As categorias.

Herdadores - Apesar da tendência para o nivelamento, distinguem-se entre os vilões,


como priviligiados os herdadores. Conhecemos o seu estatuto através das inquirições de Afonso
II e Afonso III, onde já não se podem classificar como livres, porque são homens do rei

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(considerado como “senhor”). Nota-se aí que a sua dependência é recente: pertencem ao rei
porque todo o homem tem de ter senhor (como dizem as leis de 1211).

Na sua maioria estavam estavam obrigados à voz e coima e, como foros, pagavam apenas
a fossadeira e não outras prestações senhoriais. O primeiro indicava que eram julgados no
tribunal público e não no do senhor da terra; o segundo, considerado até aqui como substitutivo
do fossado, ou serviço militar (que só obrigava os homens livres), deve ser antes interpretado
como um imposto público sobre a terra, equivalente à jugada da Beira. Normalmente não pagam
uma porção do vinho e do cereal que as suas terras produzem, nem as miunças ou «direituras »,
que correspondem à ocupação da casa e do quintal. A terra pertence-lhes: herdaram- na dos
antepassados. Em algumas freguesias, conseguem preservar o direito de eleger o pároco - outro
vestígio da sua antiga liberdade -, embora tenham de o sujeitar à confirmação real. Um certo
número deles paga prestações senhoriais, como a pousadia ou jantar, mais raramente a ramada, a
entroviscada, a anúduva. Não se conhecem as razões para as inúmeras situações que se encontram
em Entre Douro e Minho, a não ser admitindo que se devam aos diferentes factores que
determinaram a implantação do sistema senhorial em cada lugar.
Colonos - Não existe um termo para designar os vilãos que não trabalham terra própria,
mas a que o senhor lhes entregou. Chamemos-lhes «colonos». O facto de não serem
originariamente livres explica que, em geral, não paguem fossadeira nem voz e coima. Cultivando
terra alheia, pagam por ela uma parte da produção de vinho e de cereal, e produtos caseiros
(miunças ou direituras) pelo uso da casa e do quintal. São a maioria dos cultivadores dos
«reguengos».

Servos - Mais dura devia ser a dos antigos escravos. Apesar do processo de libertação ter
decorrido entre no Baixo Império e o século X, a maioria deles não recebeu a liberdade total: foi
colocada no domínio e dotada de terras, passando à categoria de servos. Com a Reconquista
multiplicaram-se os escravos mouros, que se dedicavam normalmente a trabalhos domésticos e
artesanais, mas também foram muitas vezes colocados no domínio e dotados de um casal ou
unidade de exploração familiar. No fim do século XIII os mouros que permaneceram eram
considerados propriedade do rei e dedicavam-se normalmente a trabalhos artesanais ou à pesca.
Aparentemente, a condição dos antigos escravos é muito semelhante à dos «colonos». A
tendência niveladora pode ter funcionado em seu favor, fazendo esquecer a antiga inferioridade.

---» As três categorias: herdadores, colonos e servos, parecem englobar a


maioria dos dependentes na ruralidade senhorial.

Intermediários - A necessidade de assegurar a administração dominial leva a


atribuir uma considerável importância a um grupo minoritário: os que servem de
intermediários entre os senhores e os dependentes, sendo eles próprios dependentes e
mesmo, porventura, escravos de origem.

Mordomos - O mais importantes são os mordomos. Recebem pousadia e jantar


quando visitam os casais, medem o grão na eira e o vinho no lagar, vigiam os moinhos e
os gados, juntam os homens para as diferentes tarefas, exigem o serviço da carraria para a

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entrega das rendas ou para enviar mensagens. Dotados de poderes quase discricionários,
são odiados pelos camponeses e tiram proveito da sua situação para prosperarem. Não se
sabe, todavia, até que ponto podiam tornar-se completamente livres e investir os seus
ganhos em propriedades suas.

Juiz - Outro intermediário é o juiz. Se exerce o seu ofício nas terras da coroa
pode até ser eleito pelos herdadores; este caso é raro no Minho, mas frequente em Trás-
os-Montes. Não sabemos como evoluiu a sua figura no século XIII. As inquirições e o
desenvolvimento da justiça régia parece terem-lhe dado prerrogativas consideráveis, e
mesmo um papel na luta anti-senhorial, mas o relevo cada vez maior dos mordomos
régios, com funções judiciais nos reguengos, pode ter produzido o efeito contrário. De
qualquer maneira, o juiz régio parece ser diferente do juiz senhorial, que, pelo menos nos
coutos, aplicava a justiça em nome do senhor e que devia ser tão odiado como o
mordomo.

Arrendatários - Mencionemos os arrendatários, que promovem desbravamentos


e que tomam casais de outrem, mediante pagamento de uma renda. Conhecem-se
negócios destes feitos por cavaleiros, mas provavelmente houve-os também realizados
por mercadores.

Assalariados - Mencionemos ainda os assalariados. Dentro destes os cabaneiros,


numerosos na periferia das cidades. Vivem miseravelmente do trabalho sazonal nos
domínios das redondezas. Os assalariados permanentes vivem em casa do senhor: são
jovens solteiros e fazem trabalhos domésticos ou tratam dos animais.

Distingamos, finalmente, os trabalhadores que se dedicam à caça, à pesca ou a


colher a cera e o mel silvestres. Vivem numa certa marginalidade e abundam nas terras
altas, onde existem bosques e montes não cultivados.

 Discriminar os referentes da solidariedade campesina, no âmbito do


sistema senhorial.

Solidariedades campesinas. O panorama de um sistema senhorial dominado pelas


relações verticais entre senhores e dependentes, com inteira servidão destes, é demasiado
esquemático para dar conta de uma realidade em que intervêm factores muito variados. Pode
considerar-se razoavelmente próximo da realidade nos coutos e honras, mas distante em muitas
outras situações. É o caso de, na mesma aldeia, viverem dependentes de vários senhores que, em
virtude das partilhas, dividem as rendas da mesma exploração; esta situação é frequente
sobretudo na área mais densamente povoada de Entre Douro e Minho. Assim o regime senhorial
nem sempre impede a solidariedade campesina, que pode associar-se para muitas questões de
interesse colectivo.

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Embora fosse do interesse das comunidades rurais o reforço dos laços familiares, só se
encontram testemunhos de um sistema de parentesco unilinear, como o que prevaleceu para a
nobreza, embora a sucessão campesina não seja sempre por via masculina. Os próprios senhores
tendem a impor aos seus caseiros a transmissão numa linha única, para evitar a divisão das
explorações, ou então impõem que haja um responsável pelo pagamento das rendas: o cabeça-de-
casal. Nos contratos rurais (prazos) vai-se impondo a fórmula em «três vidas»: vigente durante a
vida do contraente, do cônjuge e de um filho. Mas em certas zonas, onde o crescimento
demográfico é maior, estas precauções não impedem a proliferação de casais, e a sua divisão em
fracções. As necessidades de associação e de controlo da sucessão devem ter contribuído para
tornar frequente o sistema de circulação de mulheres, à semelhança do que acontecia com a
nobreza.

A maré senhorial foi destruindo as organizações comunitárias de cultivadores, primeiro


nas áreas mais férteis, depois nas mais agrestes. Em meados do século XIII estas eram ainda
vigorosas em Trás-os-Montes e isso permitia-lhes fazer face à imposição de prestações
senhoriais. Muitas conquistavam o direito de escolher o seu senhor, formando beetrias, como
aconteceu na transição do Minho para Trás-os-Montes ou, quando pertenciam ao rei, procuravam
a concessão de forais que reconhecessem algumas prerrogativas da colectividade.

A igreja paroquial constituiu um elemento vinculador da comunidade vicinal. Daí a


importância dos casos em que os herdadores mantêm o direito de eleger o cura. O papel
ordenador da igreja reforça-se mais tarde com as confrarias, que aparecem primeiro nas cidades,
mas alastram no meio rural durante o século XIII.

As comunidades rurais, quer pela sua natureza, quer pelas restrições geográficas, quer
pelas imposições do regime senhorial, não criam qualquer vínculo umas com as outras. Pelo
contrário, cultivam a rivalidade e a concorrência. O único elemento que permite ultrapassar a sua
compartimentação são as romarias a santuários situados no cruzamento dos caminhos, em
lugares ermos. Aqui preservam-se formas de culto quase pré-histórico, que a igreja oficial tolera e
que seduzem não só os camponeses, mas também os nobres. Ao fornecerem lugar para a
celebração de feiras, onde a troca de bens tem uma conotação quase religiosa, abrem caminho a
uma das mais conhecidas formas de ligação dos últimos vestígios da Pré-História com as novas
formas da economia.

A ESTRUTURAÇÃO DO PODER DA COROA E A RELAÇÃO COM OUTROS


PODERES TERRITORIAIS
Os Concelhos

As estruturas de organização sóciopolítica do reino: os concelhos.

O espaço próprio do regime feudal e senhorial era o Entre Douro e Minho: o dos
concelhos, o resto do País. O esquema é artificial. Queremos reconstituir um modelo e para tal
procurámos as situações mais típicas. Neste caso são os concelhos do interior do país; mas é
necessário, logo de seguida, considerar as cidades do litoral e Sul, que adotam igualmente a
organização municipal.

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Convém não esquecer que, mesmo no território tipicamente concelhio, se fez sentir um
domínio que, em alguns pontos, não coincidia com a organização municipal, ou seja, que o
feudalismo contaminou, em fórmulas variáveis conforme as épocas e os poderes prevalecentes, o
território fora de Entre Douro e Minho. Mas o resto do país nem por isso deixou de manter o
sistema concelhio como organização de base.
A vastidão do espaço concelhio obriga a fazer outras distinções, já que o meio geográfico
condiciona decisivamente as formas dos respetivos concelhos. De facto, as condições do litoral
diferem das do interior e as do Norte opõem-se em muita coisa às do Sul. Assim, verifica-se uma
série de características fundamentais nas quatro áreas, mas no seu interior encontram-se outras
ainda mais específicas, que as recortam em áreas menores; em algumas predomina o carácter de
zonas de transição, noutras os caracteres são nitidamente antagónicos. Assim o que se diz do
Alentejo não se aplica ao Ribatejo, etc. A divergente evolução histórica de cada uma destas
regiões acentuou frequentemente as diferenças impostas pelo meio físico ou climático.

 Enunciar as características geográficas do território que contribuem para


diferenciar as soluções concelhias encontradas no reino.

O espaço.

Montanha e Planície. São enormes as diferenças entre a região a norte do sistema


montanhoso da Estrela, com uma altitude média acima dos 400 m e com uma pluviosidade
superior a 1000 mm, e o resto do território português, onde estas são inferiores. Mas ambas
diferem do Entre Douro e Minho, cujos solos podem alimentar muita gente: nem numa nem
noutra se verifica grande concentração populacional, quer devido ao solo rochoso e acidentado,
quer devido à escassez de água. Exceptuam-se o litoral estremenho e a costa algarvia, onde há
condições mais propícias à fixação dos homens.

Na maior parte deste


Centros Urbanos Medievais território, o meio geográfico
e Aglomerados – fins do séc. adverso e a guerra permanente
XIII. contribuiu para concentrar a
população em aldeias ou
Podemos ter uma ideia da
cidades. Tanto uma razão como
grandeza relativa dos centros
a outra contribuem para reduzir
urbanos da época.
a área do terrádego às vinhas,
Vemos onde predomina o hortas e aos cereais. Mais longe
habitat disperso e o habitat situava-se uma zona onde se
concentrado. faziam culturas temporárias, os
campos sujeitos a longos
pousios e depois o monte
selvagem, onde se podia caçar,
apanhar lenha, colher o mel e a cera silvestres, pescar nos rios ou levar o gado a pastar. A caça e a
pesca eram actividades subsidiárias na economia das aldeias, mas a pecuária era de grande valor.

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Assim, formavam-se no interior do país comunidades concentradas sobre si mesmas, com
sistemas colectivos de defesa, preservando os laços de solidariedade, fortemente tradicionais,
propensas à violência, dotadas de códigos penais muito cruéis. Estas características verificam-se
mais no interior do que no litoral. Os hábitos sociais são muito mais estáveis e persistentes nas
comunidades do interior do que nas do litoral.

Aí, no litoral, a maior fertilidade da terra atrai homens de outras regiões, a facilidade das
comunicações propicia os contactos, mistura as tradições culturais, permite aos mais
empreendedores triunfar e abre caminho ao individualismo. No interior, mesmo quando as
oligarquias municipais alteram os processos de domínio social, os hábitos de controlo colectivo e
de vigilância mútua mantêm-se: são precisos séculos para se alterarem, mesmo quando
desaparece a pressão da guerra. Nas cidades do litoral, pelo contrário, tudo muda rapidamente.

As condições adversas e a tecnologia rudimentar não permitem modificar facilmente o


panorama da implantação populacional. Os séculos XI a XIII são uma época de crescimento
demográfico, de que resultaram desbravamentos em locais antes desertos. Muitos deles
transformaram-se em povoações estáveis; outros, porém, revelaram tal fragilidade que tiveram de
ser abandonados ainda no século XIII ou durante a depressão dos séculos XIV e XV.

 Contrapor o mundo rural e o mundo urbano enquanto formas estruturantes de


organização da sociedade.

Campo e cidade. Perante a total ausência de dados acerca da população dos centros
urbanos nos séculos XII e XIII, teremos de limitar-nos a observações elementares.

Verificamos:

- 1º uma distribuição das cidades apenas na área litoral, numa faixa contínua de sentido
norte-sul. O interior tem apenas centros de dimensão reduzida.

- 2º alteração das suas funções ao deixarem de estar integradas em dois grandes espaços
económicos – o cristão e o muçulmano – passando a formar o eixo fundamental de todas as
relações económicas e políticas do espaço nacional definido em 1249.

- 3º importância da evolução urbana condicionada pelo desenvolvimento das


comunicações, da circulação económica e da difusão da moeda.

- 4º a oposição entre uma evolução rápida e profunda das cidades e a estabilidade dos
campos, ao mesmo tempo que as cidades têm uma influência progressiva sobre os campos.
A geografia urbana de Portugal revela um grande contraste entre o litoral e o interior.As
cidades com alguma dimensão situam-se num eixo norte-sul paralelo à costa, tendo como pólos
principais Braga, Guimarães, Porto, Coimbra, Santarém, Lisboa e Évora. Daqui bifurca-se para
Badajoz e para o Guadiana, que permite alcançar o Mediterrâneo a partir de Mértola. No extremo

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Norte, este eixo segue para Santiago de Compostela. Até ao fim do século XII era um dos mais
importantes meios de comunicação entre o mundo cristão e o muçulmano. Os entrepostos
principais foram Coimbra, Lisboa e Évora. Lisboa passa a desempenhar o papel de grande
entreposto do comércio marítimo nas trocas entre o Atlântico e o Mediterrâneo.

A guerra obrigava os centros urbanos a tirar partido dos seus próprios recursos. Quando
as condições militares se alteraram e foi possível organizar os transportes, as cidades
desenvolveram-se rapidamente, sobretudo as que estavam perto do mar, já que a deterioração das
vias terrestres e a compartimentação do espaço favorecia o transporte fluvial ou marítimo. As
cidades a norte do Mondego beneficiaram com a peregrinação a Santiago e com as cruzadas; a
conquista de Lisboa transferiu para aí o comércio marítimo atlântico; a de Évora deu-lhe um
papel fundamental nas comunicações da área atlântica, a partir de Lisboa, com a mediterrânica. A
conquista do Algarve assegurou melhor o domínio destas vias, mas teve mais impacte sobre a
circulação marítima do que sobre a terrestre.

A relação entre a cidade (vila) e o espaço circundante (termo) foi sempre fundamental. A
cidade não podia existir sem esse espaço e vivia em grande parte do domínio fiscal que sobre ele
exercia. Mas a prosperidade urbana dependia ainda mais das relações que estabelecia com centros
económicos mais distantes e de grandes dimensões. O crescimento destes pólos, por sua vez,
levou à multiplicação de núcleos-satélites à sua própria volta, como foi o caso do Porto, Coimbra,
Santarém, Lisboa, Évora e Silves. As manchas urbanas são tanto mais densas quanto mais
habitados os pólos de que dependem.

Mais para o interior, a situação é diferente: a dificuldade dos transportes torna moroso o
processo de desenvolvimento urbano, tanto mais que a guerra santa criou uma zona de combates
constantes, onde a economia se baseava quase exclusivamente na pecuária e na pilhagem. Só
depois da conquista de Cáceres, Mérida, Badajoz e de Sevilha é que ela se alterou. Reconstituídos
os eixos de comunicação norte-sul no interior da Península, desenvolveram- se os pólos
principais na meseta ibérica e a seguir as vias transversais, que a pouco e pouco, os foram ligando
ao litoral português. Assim aconteceu com Bragança e com a Guarda. Assim se explica o quase
desaparecimento de Egitânia, que tinha sido diocese na época romana e visigótica. Viseu e
Lamego, que exerceram uma função militar importante, desenvolveram-se com dificuldade.
Constantim de Panóias, importante no fim do século XI, quase desapareceu, para ressurgir em
Vila Real. Beja definhou, para voltar a recuperar lentamente no século XIV.

A função económica das cidades foi determinante para o seu destino. Dependeu da sua
posição dentro de uma rede comercial, que assegurasse o abastecimento e que concentrasse os
compradores e outros serviços necessários.
Mas a função política não foi menos importante. Como pólos de transmissão de Poder,
fixaram a corte régia e concentraram as autoridades intermédias, as forças militares e os serviços
burocráticos que permitiam estender a justiça e a fiscalidade régia a todo o reino. A sua eficácia
baseou-se principalmente na sua capacidade de concentrar uma grande força económica.

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O contraste entre a evolução rápida das cidades e a estabilidade dos campos é um aspecto
da fundamental diferença de comportamento entre ambos.

Assim é bom acentuar certos fenómenos como as ordens mendicantes, as confrarias, as


catedrais, as escolas, o mercado permanente, as judiarias e mourarias, os banhos públicos, a
prostituição, as ruas de mercadores só existem em povoados com um certo grau de vida urbana.
Aí se concentra a mão-de-obra assalariada e especializada, aí se aglomeram os pobres e
marginais. Mesmo quando há quintais e hortas no meio do tecido urbano, a cidade é um mundo
diferente do campo, porque nela o tempo tem outro significado e os ritmos sazonais provocam
menos alterações no quotidiano. Na cidade, o parentesco cria laços menos estreitos ou é
substituído pelas confrarias e outras associações. Os privilégios da fidalguia esbatem-se, os pesos
e medidas uniformizam-se, os sistemas de financiamento aperfeiçoam-se, o controlo da escrita
está mais presente em todas as relações sociais e económicas.

O mundo rural, pelo contrário, é o espaço da sujeição às mutações climatéricas e


sazonais, aos ritmos cósmicos, da solidariedade contra os anos maus e as intempéries. Daí o peso
das relações de parentesco e, pelo menos nos aglomerados aldeãos, das oligarquias, cujos
membros se protegem, se associam para construir moinhos, lagares e azenhas, organizar a defesa
e os abastecimentos, guardar os rebanhos, proteger os desfavorecidos, preparar as festas, manter a
justiça.
A fragilidade das estruturas preserva as técnicas de eficácia conhecida, seja nas
sementeiras, na matança do porco, na construção das cabanas. Como a fecundidade depende dos
caprichos da Natureza, multiplicam-se os rituais, onde se misturam a arte, a sabedoria acumulada
de geração em geração e a crença nos poderes ocultos.
Os chefes de família não perdem nunca por completo a sua autoridade. Raramente faltam
os «homens de virtude» respeitados por todos e as mulheres continuam a transmitir entre si o
segredo das rezas e encantamentos. A experiência pessoal e os sentimentos contam pouco: o
indivíduo apaga-se perante o grupo. A única forma de lhe escapar é a imigração.

A cultura urbana é tendencialmente uniformizadora. A aglomeração humana, a


independência da natureza, o individualismo, as relações com outras cidades, tornam as cidades
semelhantes entre si.

A função política contribui mais do que tudo para acentuar a uniformização: os agentes
do monarca regem-se pelos mesmos princípios, têm a mesma linguagem, aferem pelos mesmos
padrões. Estendem estes princípios aos campos, tornando-se, com os bispos e os mercadores, os
agentes de expansão da mentalidade urbana no meio rural.

A administração régia partilha a mentalidade subjacente à aristocracia dos concelhos, que


considera a vila como superior ao termo e os seus habitantes dotados de um estatuto superior. Por
isso, a maior parte da documentação régia pressupõe uma mentalidade urbana, pois apenas dá
conta do que se passa nos centros urbanos e esquece a massa rural, que, mergulhada na sua
cultura de transmissão oral, é ignorada pelos que usam a escrita.

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 Identificar o contributo da cultura islâmica na organização do mundo concelhio
e, através deste, do reino.

A Cristandade e o Islão. No início da formação da identidade portuguesa e da


nacionalidade, existia uma ausência inicial de uma identidade cultural comum ao território
português. O que se expõem seguidamente acerca da cultura islâmica acentuará as diferenças já
apontadas e mostra as dificuldades de assimilação mas também se encontraram pontos de
contacto entre o norte e o sul que possibilitaram a unificação e que levam a excluir a hipótese de
ela se dever a um processo de colonização propriamente dito.

---» Deu-se então uma verdadeira síntese de culturas diferentes. A área em que ela se
processou foi mais a concelhia mas a sua resultante depois refluiu sobre a área senhorial, na
mediada em que foi particularmente assumida pelos agentes da centralização régia, que a
difundiram por toda a parte.

Os moçárabes são os cristãos da área ocupada pelos Muçulmanos: são populações


autóctones do Centro e do Sul da Península e herdeiros da cultura hispano-romana que, para
sobreviverem, adoptaram a língua e a cultura árabes. Os muladis são os autóctones convertidos ao
islamismo. Interessa aqui o duplo fenómeno da preservação da cultura hispano-romana e da
assimilação da cultura árabe pelos autóctones, pelo que não é importante distinguir móçarabes de
muladis (salvo excepções).

O facto de os islâmicos tolerarem os cristãos mediante o pagamento de um tributo pode


ter contribuído para a preservação de muitas comunidades cristãs, pois a sua conversão diminuiria
os rendimentos do poder islâmico. Mas manteve-o também numa situação de inferioridade e de
debilidade económica e cultural.

Nas regiões situadas na área de fronteira oscilante entre o Douro e o Tejo, as populações
de cultura moçárabe devem ter obtido uma certa liberdade. Quer os seus chefes fossem
moçárabes quer muladis, adoptaram numerosas instituições, técnicas e costumes de origem árabe,
constituindo, assim, o meio onde a assimilação cultural foi mais precoce e efectiva. Aí, e mais a
sul, adoptaram-se muitas palavras árabes: na pecuária, na vida marítima e em tudo o que diz
respeito à civilização urbana, como por exemplo, vestuário, tecidos, pesos, medidas, etc. Não
faltam os elementos de origem moçárabe na nossa cultura artística: a produção literária de Santa
Cruz de Coimbra e de São Vicente de Fora é inspirada pela cultura hispano-romana veiculada por
moçárabes. Acrescente-se a cultura científica, a medicina, a astronomia, a geografia.

Tudo isto são fenómenos da área concelhia do País, sobretudo da que sofreu a influência
islâmica; assim, não se pode atribuir à visão do mundo senhorial o principal papel na formação da
cultura portuguesa, tanto mais que as instituições do Sul deram um contributo mais decisivo para
a centralização régia do que as do Norte, onde imperavam as concepções feudais. Não admira,
por isso, que a monarquia tenha utilizado a linguagem institucional, os conceitos e as técnicas
vigentes no Sul e assimilado rapidamente o direito de Justiniano, principal suporte teórico-
jurídico da centralização régia.

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Judeus. O papel dos judeus na sociedade portuguesa medieval assenta na vida financeira,
o que lhes permitiu activar a economia monetária, serem utilizados pelo rei na organização do
fisco e como arrendatários da cobrança de rendas. Não se pode atribuir-lhes nenhum contributo
específico noutras actividades, com excepção da medicina e da astronomia, devido ao facto de, a
partir da segunda metade do século XIII, os clérigos terem deixado de cultivar estes
conhecimentos. A sua habilidade para a especulação financeira fez com que fossem invejados e
se tivesse criado um antagonismo latente para com eles desde a época de Afonso III. De qualquer
maneira, as comunas judaicas proliferaram de sul para norte desde a conquista de Lisboa. A sua
presença num aglomerado urbano é claro indício do respectivo grau de urbanização, juntamente
com a presença de conventos mendicantes e de confrarias. Os judeus contribuem assim para
uniformizar a fisionomia urbana do País.

 Explicitar a interpretação de José Mattoso sobre a origem dos concelhos e sobre


os seus diferentes tipos.

Origens e definição

O processo de formação dos concelhos. Antes de abordarmos a descrição da sociedade


concelhia, analisemos a sua natureza e a sua relação com o regime senhorial, o que leva a colocar
a questão da sua origem.

Descartemos a ideia jurisdicista que atribui ao Estado a fonte de toda a legalidade e que
os concelhos foram criados por decisão régia. A investigação tem mostrado cada vez mais a
capacidade organizativa dos grupos humanos independentemente de qualquer autoridade ou
sancionamento superior. Temos de conceber a formação dos concelhos como um processo
autónomo.
De facto, na perspectiva do Prof. Mattoso o que constitui a sua natureza própria é
precisamente a sua capacidade autónoma. O foral ou o sancionamento régio resultam muito mais
de um pacto entre a autoridade superior e a comunidade local do que de uma autorização
unilateral do soberano.

Os estudos mostraram que no norte da Península se foram criando durante os períodos


visigótico e asturiano-leonês vários tipos de comunidades rurais, independentemente de qualquer
autoridade superior. Quer as comunidades derivadas de grupos que sobreviveram à dominação
romana, quer as que se foram criando depois, preservaram formas primitivas de organização e de
solidariedade, tais como as penas para as ofensas à coesão comunitária, a relação com as
comunidades vizinhas, a regulamentação do uso de bens comuns (o bosque, as pastagens, o
moinho e as águas), o papel das solidariedades criadas pelo parentesco.
De facto, entre os séculos VIII e XII, quer a comunidade ocupe um espaço vasto sem nele
ter uma implantação fixa, quer se concentre em aldeias, tem muitas vezes de subsistir sem o apoio
de uma autoridade superior. Esta situação foi-se tomando cada vez menos vulgar, mas era,
decerto, a mais comum no princípio deste período, exceto em lugares controlados pela autoridade
régia.

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As condições em que se foi difundido o regime senhorial, a situação de guerra
permanente e a implantação lenta da autoridade régia permitiram a algumas destas comunidades
preservar vestígios das suas prerrogativas autonómicas mesmo depois da expansão do regime
feudal, e a outras, que haviam subsistido em zonas de fronteira graças à sua intervenção na
guerra, negociar com os soberanos o sancionamento dos seus direitos, mediante o
reconhecimento da autoridade real.
-----» historicamente falando, houve concelhos porque antes deles existiram comunidades
autónomas que conseguiram sobreviver à implantação do regime senhorial e da autoridade
monárquica.

Os diversos tipos de concelhos. Nestas circunstâncias, é


pertinente procurar os vestígios das tais comunidades
«primitivas». O desaparecimento do estado visigótico e o
vazio de poder que se lhe seguiu em territórios não ocupados
efectivamente pelo Islão tornaram as assembleias populares
essenciais à sobrevivência das comunidades.

A maioria das comunidades que se criaram na Galécia


acabou por ser absorvida pelo regime senhorial, mas não se
pode ignorar que muitas subsistiram com capacidade para
eleger os seus juízes e os seus párocos, sobretudo em Trás-os-
Montes, e que dessas organizações resultaram formas
híbridas, como as beetrias e os chamados concelhos
imperfeitos ou concelhos rurais. Nestes, os forais que os que
legalizam destinam-se principalmente a responsabilizar um
«mordomo» ou «juiz» local pela cobrança das rendas que o
senhor deve receber.

Nas povoações de fronteira, o rei tinha que contar


com comunidades fortemente estruturadas e dominadas por
oligarquias de cavaleiros vilãos. Foi necessário pactuar com
elas e reconhecer-lhes uma efectiva autonomia. Muitos dos
forais adoptaram modelos de outros concedidos a cidades
mais bem estruturadas, como Coimbra (dado a povoações da
Beira ocidental) o de Salamanca (às da Beira interior) e o de
Ávila (às do Alentejo e Beira Baixa).

As vantagens da criação de um regime legal para a organização municipal foram


reconhecidas, pelo que o rei o aplicou a outras povoações, já não em virtude da sua função militar
mas económica, para atrair mercadores, estimular as atividades e garantir o fluxo monetário e
comercial.
Este tipo de concelhos existiu sobretudo nos burgos criados na zona do «Caminho de
Santiago», como é o caso de Guimarães e do Porto. Mais a sul, podemos considerar como casos

27
híbridos os de Santarém, Coimbra e Lisboa, depois aplicados a povoações da Estremadura e
Alentejo. Estes forais continham prescrições de ordem económica, mas também privilégios
destinados a favorecer os cavaleiros vilãos, pois nessa altura a zona do Tejo estava ainda em
situação de guerra.

A instituição foralenga foi também posta ao serviço do povoamento. O soberano atraía


povoadores a um lugar, onde desejava criar apoios à administração régia ou à defesa, oferecendo
privilégios análogos aos das terras de fronteira ou dos burgos e cidades.

Até aqui referimos o caso típico e predominante dos concelhos sujeitos ao rei, que
podiam considerar-se mais independentes do regime senhorial. Vejamos agora as variantes
introduzidas no sistema quando o senhorio era um particular:

- em algumas cidades a estrutura urbana entra em conflito com ele, como acontece por
várias vezes no Porto e em Leiria;

- noutras, dificulta o desenvolvimento urbano, como sucede em Braga, Lamego ou Viseu;

- noutras, ainda, o regime senhorial favorece a constituição de verdadeiras empresas de


produção agrícola, como em Alcobaça, noutros mosteiros cistercienses, em alguns domínios de
ordens militares e de senhores nobres.

Estas distinções são importantes para perceber a relação entre as normas jurídicas de cada foral,
geralmente copiadas e com poucas modificações de um modelo anterior, e as características da
povoação. Mas estas nem sempre se podem deduzir do foral, visto que ele é geralmente copiado,
com poucas modificações, de um anterior, que reproduz modelos criados para povoações com
características diferentes.

 Comparar as bases de organização social do regime concelhio e do regime


senhorial.

Os concelhos e o regime senhorial. Para compreender até que ponto o regime concelhio
constitui ou não um sistema peculiar de organização social, é importante examinar em que pontos
se afasta do regime senhorial. Podemos apontar os seguintes:

1 - capacidade «deliberativa» do concelho, com o direito de eleger os seus magistrados,


de criar um direito próprio (o costume), de estabelecer um regime fiscal e um regime
judicial e de organizar as forças militares;

2 - garantia de os seus vizinhos serem «titulares» dos instrumentos de produção;

3 - exclusão dos privilegiados ou, pelo menos, do exercício das suas prerrogativas
dentro do território do concelho.

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Como o regime senhorial se tornou hegemónico em todo o território nacional, apesar de
inicialmente vigorar apenas numa pequena parte dele, (mas a mais habitada e dotada de maior
capacidade de expansão) não admira que tivesse também alastrado sobre os concelhos. Em que
pontos?
Em primeiro lugar, devido ao facto de se ter generalizado a ideia de que não havia
homem sem senhor. O senhor dos homens dos concelhos era, portanto, o rei. Sendo assim, as
prestações que ele cobrava podem-se considerar como senhoriais: não só as propriamente ditas
(pousadia, o quinto dos despojos de guerra, o monopólio dos instrumentos de produção), como
também as de origem pública (voz e coima, fossadeira, jugada).
Além disso, o rei podia exercer a sua autoridade por meio do senhor da terra ou de um
prestameiro, e controlava a administração da justiça através do alcaide ou alcaldes e como
instância de apelo.
Por fim, os homens livres dos concelhos estavam sujeitos às prestações clericais,
sobretudo ao dízimo.

Por outro lado, no próprio interior do sistema concelhio encontram-se formas de


relacionamento social e económico de inspiração senhorial, que beneficiam a oligarquia
dominante. São exemplos a equiparação dos cavaleiros vilãos aos infanções para efeitos judiciais,
a sua isenção da jugada que recai unicamente sobre peões, a distinção entre peões e cavaleiros
para efeitos de serviço militar, a inferiorização dos habitantes do termo em matéria de direitos e
multas judiciais, a menoridade jurídica dos dependentes, ou seja, dos assalariados, solarengos e
mesteirais que trabalham por conta de outrem. Podemos ainda referir a intervenção abusiva do rei
na autonomia dos órgãos locais ( que se tornou mais frequente no séc. XIV), os abusos da
pousadia em favor dos fidalgos e eclesiásticos, os excessos dos nobres que se tornaram vizinhos e
que impunham a eleição de apaniguados seus para as magistraturas, a cedência forçada de terras a
senhores, ordens militares, bispos ou conventos.

Apesar disso, não se pode esquecer que o sistema concelhio permite aos mesteirais,
mercadores e proprietários rurais exercerem um papel no desenvolvimento da economia de
produção e consumo, o que constitui o principal fator de desagregação do regime senhorial, e
favorece o progresso da centralização régia, que prenuncia o Estado moderno, fazendo dos
concelhos uma “ponte” entre o regime coletivo pré-feudal e a modernidade pós-medieval.

 Definir, à luz das normas consignadas em forais e costumes municipais, as


categorias de vizinho, cavaleiro vilão e peão.

 Avaliar a distância que separa a cristalização das categorias sociais no direito


municipal e das que “na realidade terão existido”, mercê de condicionalismos
vários.

As categorias Sociais. Partindo do princípio de que a autonomia é o elemento essencial


do regime concelhio, podem considerar-se os concelhos do interior como sendo os que mais se
aproximam do modelo ideal.

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Esta interpretação é confirmada pelo facto de as designações das categorias sociais nos
concelhos se inspirarem na terminologia militar: peões e cavaleiros, o que pressupõe um estado
normal de guerra na época da formação do regime municipal. Àquelas duas categorias deve-se
acrescentar a dos dependentes, que, por não terem praticamente direitos jurídicos, surgem em
lugar à parte na legislação municipal.

Os vizinhos. O que confere direitos aos habitantes dos concelhos é morarem na sua área
e terem bens suficientes para pagarem os tributos. São habitualmente designados como vizinhos
(em Ribacoa também se chamam «posteros» e em Santarém «raigados» ou «soldadeiros». A
quantidade de bens necessária para serem contribuintes chamava-se em Ribacoa a «valia»), tanto
em concelhos do interior como no litoral e no Sul do País. Os costumes municipais pressupõem
que viviam em casa própria e com família constituída.

Só os vizinhos tinham direitos; os de outros concelhos podem ter direitos noutros lugares,
mas não ali, são “fora da lei”. Como é evidente, a sobreposição do direito régio sobre o
municipal alterou este princípio; foi o ponto de partida para que se atribuissem direitos e
deveresaos cidadãos, qualquer que fosse o lugar onde moravam. Isto não altera, porém, o facto de
as prescrições próprias dos concelhos ignorarem esta circunstância ou mencionarem
expressamente os não moradores como não podendo exercer nele qualquer direito.
Existiam outras categorias de homens livres, como caçadores, pescadores, cabaneiros e
jornaleiros. Mas o direito concelhio ignora-os ou apenas os considera por referência aos vizinhos
«normais». Na lógica do regime eram categorias marginais, ou admitia-se que as suas actividades
eram praticadas em acumulação por quem possuía terra e casa.

O espaço concelhio não era uniforme. Os vizinhos são propriamente os que vivem na vila
ou centro do concelho. Os que só têm casa no termo, ou alfoz, têm menos direitos. Assim, as
multas pagas por quem pratica um crime sobre o morador do termo são muito menores do que as
que reprimem quem agride o morador da vila. Os moradores da vila ou centro do cencelho estão,
portanto, muito mais protegidos do que os outros do termo ou alfoz. Além disso, para ser
cavaleiro exige-se a quem vive na vila uma quantia de bens superior do que a quem vive no
termo. As diferenças parecem, por vezes, tão marcadas que se pode perguntar se os habitantes do
alfoz participavam nas assembleias em pé de igualdade com os outros vizinhos.

Os cavaleiros vilãos. A distinção social de base é a que separa o cavaleiro do peão. Para
se ter cavalo, o que é simultaneamente um direito e um dever, os forais estabelecem normalmente
um rendimento-limite, que em Ribacoa se calcula em moeda, e nos forais do tipo de Ávila em
bens móveis e fundiários. Mas, em ambos, dá-se uma importância fundamental ao gado, o que
mostra a importância da pecuária nos concelhos do interior.
Dado o elevado preço do equipamento militar, incluindo o cavalo, nos séc. XII e XIII, é
evidente que os seus possuidores formavam uma verdadeira aristocracia.A sua superioridade
social e económica confirma-se pelo facto de possuírem normalmente armas de ferro e, inclusive,
armaduras, de terem escudeiros e dependentes (em Ribacoa chamam-se «aportelados») e
depossuírem terras em lugares distantes da vila e mesmo fora do concelho.

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Os cavaleiros têm numerosos privilégios: não sofrerem penas corporais, castigam-se os
que os atiram abaixo de suas montadas, são julgados como se fossem infanções (isto é, têm
direito a multas e reparações idênticas e o seu testemunho vale tanto como o deles), não pagam
jugada nem fornecerem pousadia e, pelo menos a partir de 1273, não pagam anúduvas.
Encontram-se frequentemente prescrições destinadas a proteger os cavaleiros velhos ou doentes,
os que perdem o cavalo, bem como as suas viúvas.

Para evitar a concorrência, os cavaleiros vilãos recusavam aos nobres o direito de


habitarem no concelho, a não ser que renunciassem a exercer nele os seus privilégios senhoriais.
Se algum construía o seu paço na vila, como sabemos ter acontecido sobretudo nas cidades
importantes, tinha de aceitar colocar-se ao nível dos cavaleiros vilãos. Norma ilusória, mas que
teve alguns resultados práticos, como, por exemplo, o de os nobres não desempenharem cargos
concelhios. A exclusão do exercício de direitos senhoriais nas áreas municipais foi expressamente
exigida por uma lei de D. Dinis de 1311.

Os cavaleiros vilãos formavam uma verdadeira oligarquia. Este facto resulta da


superioridade social e também de se apoderarem dos cargos e magistraturas municipais, chegando
a exercê-los em quase monopólio. Assim, os costumes municipais destinam-se principalmente a
garantir aos cavaleiros a manutenção da sua posição e a criarem uma estrutura que possam
dominar. É por isso que os textos que nos restam ignoram quase por completo os peões, ao
contrário do que acontece com os dependentes, apesar de serem de categoria inferior. Este
fenómeno explica-se pelo facto de os inferiores dependerem dos cavaleiros e não dos peões, que
não têm fortuna para os sustentar. Este quase vazio dos costumes municipais acerca dos peões
criou a ilusão de que a maioria dos habitantes dos concelhos eram cavaleiros e os peões pouco
numerosos.

O facto de muitos cavaleiros só terem a fortuna mínima exigida para o serem, obrigou- os
a criarem laços de solidariedade para manter o estatuto. Daí as prescrições foralengas que
garantem a sucessão numa linha masculina única e que protegem as viúvas que transmitam a sua
condição a um parente. Ajudando-se, formavam germanitas, como lhe chamam os de Ribacoa, e
procuram, por meio da manutenção de uma estrutura cognática do parentesco, proceder à
constante redistribuição dos bens, de forma a evitar a sua concentração nas mãos de um dos
membros do grupo. O sistema de «bandos», a vingança privada, o controlo do casamento e da
herança dos menores completavam o quadro de uma sociedade dominada por uma elite que
buscava normas para subsistir.

O dever de solidariedade e o cuidado em evitar a acumulação de bens não funcionava nas


cidades, dominadas pelo individualismo e pela mobilidade social. Aqui, as prescrições sobre as
viúvas justificam-se por razões de decência, acumulam-se normas sobre o pagamento da jugada,
aparece a dízima sobre as transacções, encontram-se regras sobre o mercado e o comércio, fi-
xam-se as condições em que o cavaleiro pode ser dispensado do serviço militar e usar o cavalo
em trabalhos agrícolas. Nota-se que interessa mais transmitir a fortuna aos filhos do que restringir
a sucessão a uma linha única. Tudo isto pressupõe maior mobilidade social, onde se chega a
garantir aos mercadores a categoria de cavaleiro, mesmo que não possuam montada. Depois da

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guerra com o Islão, a designação de «cavaleiros» para a aristocracia municipal tornou-se obsoleta
e difundiu-se o conceito de «homem-bom», que evocava a riqueza e a honra e não a função
militar. A partir desta altura, a oligarquia municipal deixa de imitar a nobreza, adquirindo
consciência de que a sua condição não depende já das armas, mas da riqueza e dos cargos
públicos.

Nas terras do interior os cavaleiros vilãos só podiam exercer os seus direitos no próprio
concelho, onde perdiam um pouco a sua individualidade, pois o que contava era o grupo. Nas
cidades, pelo contrário, os mercadores contactam com outras comunidades e têm, muitas vezes,
um papel de relevo em vários concelhos. São sobretudo estes que começam a adquirir uma
consciência do seu papel na sociedade do reino e a procurar formas de associação não integradas
nas estruturas municipais. A bolsa de mercadores do reino, sancionada por D. Dinis, é disso um
sinal importante. A legislação régia também contribui para normalizar a hierarquização social da
gente dos concelhos, levando em conta os sinais externos das categorias na fixação das custas nos
tribunais régios.

Quanto às obrigações militares dos cavaleiros vilãos para com o rei, temos de distinguir
duas situações:
- Uma, que abrange todos os cavaleiros e peões, obrigados a responder, sem
contrapartida, a uma convocatória geral por força da prescrição foralenga de «ir ao exército do
rei», tal como têm de participar no fossado.
- Outra, que afecta os que têm de combater no exército régio com cavalo e armas como
contrapartida da concessão da cavalaria, e que consiste na atribuição de bens fundiários. Os
detentores de cavalarias, em princípio, não pagavam prestações sobre o rendimento do respectivo
prédio. Embora as cavalarias fossem concedidas a título precário, tornaram-se hereditárias e
passaram a serem transaccionadas como se de bens próprios se tratassem.

A prestação do serviço militar em virtude das cavalarias foi caindo em desuso, apesar de
ainda requerida na primeira metade do século XIV. A instituição dos besteiros do conto tornou-a
inadequada na nova organização militar, que exigia uma preparação quase profissional e obtinha
uma eficácia muito superior. Os besteiros, que passaram a ser a tropa convocada pelos alcaides,
gozavam de isenção da jugada, mas mantinham a categoria de peões: os seus privilégios não os
equiparavam a cavaleiros vilãos. Eram pagos em dinheiro, o que os aproximava da condição de
mercenários, e parece terem sido recrutados entre os homens que viviam da caça.

Os peões. Constituem a grande massa dos habitantes dos concelhos. Os forais e costumes
só falam deles para os apresentar como contribuintes: têm de pagar a jugada, dar a pousadia e
estão obrigados a algumas prestações militares. Para além dos besteiros, falados imediatamente
atrás, os peões tinham outras categorias.

Constata-se que a grande maioria dos proprietários cultivava terras exíguas e,


provavelmente, os seus rendimentos eram demasiado baixos para alimentar famílias de mais de
quatro pessoas, pelo que viveriam em condições de mera sobrevivência e de frequente
subnutrição. Assim, tinham de alugar a sua força de trabalho como jornaleiros nas quintas

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vizinhas, nas épocas dos trabalhos mais intensos. Só em anos de maior produção teriam alguns
excedentes, mas, nestes, a baixa dos preços impossibilitava-os de conseguirem alguns lucros. Os
seus filhos engrossam os grupos marginais e os que procuram a sobrevivência nas cidades e em
terras novas.

Nas cidades e seus arredores, alguns peões conseguem melhorar um pouco os seus
problema trabalhando como mesteirais. Aí, contam com o rendimento do trabalho artesanal e com
a produção de hortas e vinhas. Nos poucos casos em que conhecemos a distribuição profissional
de áreas urbanas e rurais, verificamos que a maioria dos mesteirais vivia nas povoações. Os mais
numerosos parecem ser os sapateiros e a seguir os alfaiates. Juntam-se em ruas ou bairros
próprios e raramente exercem magistraturas municipais. Os que possuem melhores rendimentos
são os almocreves e os de mais baixa condição são os pescadores. Entre eles contam-se também
os caçadores e os ferreiros, relevantes nas povoações do interior e em tempo de guerra. Com o
tempo a sua importância decresce, pois as armas passam a ser fabricadas pelo alfageme ou
importadas.

A última categoria dos peões é formada pelos cabaneiros, cavões, mancebos por soldada
jornaleiros, etc., que deviam ser mais numerosos do que se poderia esperar, mesmo em meios
rurais. Na periferia de zonas mais densamente habitadas viviam em grupo, em cabanas (daí o seu
nome). Descobrem-se manchas deles na periferia do Porto, ao serviço de mosteiros como Santa
Cruz de Coimbra e Grijó. Aumentam constantemente, apesar de uma lei de Afonso II tentar
absorvê-los nas estruturas senhoriais da época, ao determinar que todo o homem devia ter senhor
que por ele respondesse.

Dependentes. Nos concelhos do interior existe grande variedade de dependentes dos


cavaleiros vilãos, o que prova que dispõem de posses para os sustentar. Podemos distinguir os
jugueiros, que em Ribacoa guardam os bois do senhor, lavram as suas terras, semeiam terras de
cultura temporária (barbecho) e dão-lhe ao algumas jeiras em trabalho. Por isso recebem uma
compensação em cereais, sal e sapatos. Não se podem confundir com os homens que pagam
jugada ao concelho (que são os peões proprietários); são provavelmente os que cedem as suas
terras a cavaleiros, pagando-lhes um quinto da produção e algum trabalho braçal, em troca da
cedência de uma junta de bois e de cereal para semear. A sua categoria tende a confundir-se com
a mais ampla dos solarengos, que moram e trabalham no solar (a terra do cavaleiro), e deviam
corresponder aos colonos das terras senhoriais. Pouco sabemos das condições em que viviam: no
caso de se incluírem na categoria genérica de «aportelados de amo de Ribacoa, pode-se presumir
que a sua dependência era de tal ordem que o dono lhes podia mandar cortar uma das mãos,
recebia metade da coima se alguém os matava ou forçava a mulher ou a filha, e pagava a multa se
ele roubava alguém; não pagavam qualquer tributo e não tinham direitos nem deveres, a não ser
para com o próprio amo.

Os colaços devem designar uma categoria sinónima dos solarengos, segundo uma
terminologia corrente em território castelhano e leonês e pouco usada em Portugal. Alguns dos
dependentes deviam ter um estatuto próximo do do criado rural, como acontecia com os

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hortelãos, que trabalhavam na horta do senhor, mas moravam em casa fornecida por ele e podiam
semear terra dele com sementes suas.

A última categoria de dependentes nas terras do interior é a dos mouros, que trabalham
em serviços domésticos e artesanais (que são, em geral, capturados em expedições de guerra) em
condições cuidadosamente regulamentadas.

Nos concelhos do tipo de Ávila (Alto Alentejo e Beira Baixa), o nome genérico do
dependente é vassalo de solar ou vassalo de herdade. Aqui aparecem também os solarengos e os
hortelãos. Outras designações são específicas destas regiões. Assim, os quarteiros, que
correspondem talvez aos jugueiros de Ribacoa, admitindo-se que pagassem um quarto da
produção, em vez de um quinto; os mancebos, ou criados de lavoura; e os conductarios, ou seja
os jornaleiros pagos com uma ração de comida (conductos).

Pela abundância de menções aos mancebos pode-se presumir que os trabalhadores à jorna
são numerosos no Sul e que a sua condição é próxima da dos proletários. É o amo que responde
pelos seus dependentes: recebe a coima se alguém os matar; mas se um deles matar alguém fora
da vila e fugir, o senhor é dispensado da respectiva multa.

Nas cidades, pelo menos nas que adoptavam os foros de Santarém, o senhor é
responsável pelos prejuízos ou roubos do seu mancebo, excepto em caso de assassinato; pode
castigá-lo corporalmente e negar-lhe o salário. Mas há pequenas restrições às suas
arbitrariedades: não pode «tolher-lhe» nenhum membro; se o expulsar sem razão, tem de lhe
pagar a soldada até ao fim do ano; se é ferido pelo amo, não tem de compensar os danos a ele
causados. Os vínculos que o unem ao senhor são mais frouxos nas cidades do litoral do que nas
zonas do interior, tanto a norte como a sul. Tal é o resultado das relações sociais que se instauram
em meios urbanos, mais marcados pelo individualismo e pela mutabilidade dos vínculos sociais.

Existe também nas cidades um grande número de mouros, mencionados no foral de


Santarém-Lisboa-Coimbra, que trabalhavam sobretudo como ferreiros e sapateiros. O emprego de
escravos mouros no artesanato foi uma das causas do tardio desenvolvimento das corporações de
mesteres em Portugal. Nas cidades também viviam comunidades de mouros forros, isto é, livres,
mas obrigados a pagar imposto ao rei. Afonso I deu foral aos de Lisboa, Almada e Alcácer, e
Afonso III aos de Évora. Estes mouros, embora vivessem em condições análogas às dos judeus,
distinguiam-se deles pela sua maior debilidade económica, por as suas terem menor unidade e
pelo facto de terem sido assimilados sem grande dificuldade pela maioria cristã antes do séc. XV.

Como se vê, apesar de alguns pontos comuns, a situação dos dependentes é


consideravelmente diferente conforme a região onde vivem, podendo distinguir-se o Norte, o
Centro e o Sul e as cidades do litoral. Além do mais, enquanto a vinculação dos dependentes dos
cavaleiros do interior tendia a manter-se inalterada, afectada apenas pela lenta desagregação das
oligarquias, nas cidades o estatuto dos dependentes foi-se tornando progressivamente mais
próximo do do proletariado, afrouxando-se os laços entre o amo e os mancebos e dissolvendo-se
os contornos da escravatura.

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 Reconhecer traços simbólicos e processuais da existência dos concelhos
enquanto entidade colectiva.

As funções

Solidariedade e colectividade. Nos concelhos do interior encontra-se uma expressão


mais acabada do ideal de solidariedade colectiva do que nos das cidades. Não admira, por isso,
que desde sempre as leis gerais do reino designem os concelhos por communitates e que eles
ostentem símbolos que exprimem a sua unidade nas bandeiras, nos selos e nos escudos. Estes
símbolos são as muralhas, o guerreiro a cavalo, a águia, o touro junto a uma muralha, a árvore, o
barco ou a ponte. Como seria de esperar, os primeiros encontram-se mais no interior e os
segundos mais no litoral. Quando algum concelho se destacava de outro, havia acordos sobre a
bandeira que cada qual devia usar. Por exemplo, o concelho de Castelo Branco ostentava a da
Covilhã quando combatia contra cristãos, e a dos Templários quando combatia contra mouros. É
também um símbolo da colectividade e representação material da justiça o pelourinho. Era junto
dele que se executavam as sentenças do tribunal local.

Ao contrário do que acontece a partir do século XIV, são raros ou mesmo inexistentes os
edifícios da câmara municipal. A reunião da assembleia faz-se num espaço aberto: a «praça do
concelho», um carvalho, o adro da igreja ou um claustro. Avisados por pregão, todos tinham de
comparecer, por vezes sob pena de multa. Essas reuniões não serviam só para deliberar acerca de
assuntos que a todos interessavam, como a marcação de expedições militares, o início dos
grandes trabalhos agrícolas, as posturas municipais, a reparação das muralhas, a eleição de novos
alcaldes e outros magistrados. Era aí também que se julgavam os delitos, se proclamava a
vindicta contra os aleivosos do concelho, se leiloavam os escravos mouros, se repartiam as presas
de guerra.

A assembleia devia ter um carácter bastante diferente nas povoações do interior e nas
cidades do litoral. Com efeito, ali o poder dos laços de parentesco era enorme, ao passo que aqui
o individualismo diluía as imposições. De facto, ali as regras da aliança cognática e uma certa
endogamia contribuíam para criar grupos de solidariedade que podiam opor-se entre si e criar um
estado de tensão permanente. Os crimes eram julgados pelo sistema de «conjuradores», isto é, de
pessoas que juravam solenemente pela inocência do acusado ou pela razão do acusador e
depreende-se que pertenciam ao bando de cada um deles. Os alcaldes limitavam-se a vigiar a
formalidade do processo, e as causas mais graves eram decididas, segundo parece, pela maior ou
menor força dos grupos em presença. Se não era possível chegar a uma sentença aceite pelas
partes, recorria-se ao duelo entre acusador e acusado ou entre os seus respectivos representantes.
Nas cidades usava-se a prova das testemunhas; o processo era desencadeado pelo queixoso; a
mulher era menos dependente da família; a parentela exercia uma influência diminuta em matéria
judicial.

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Dada a enorme coesão dos concelhos do interior, é surpreendente a aparente facilidade
com que se recebiam estranhos que pretendiam aí fixar-se, mesmo quando eram criminosos
perseguidos noutros lugares. Mas compreende-se: o direito municipal era exclusivo do próprio
concelho e, portanto, nada tinha a ver com crimes cometidos fora dele. Por outro lado, os que
chegavam só podiam integrar-se na massa anónima dos peões ou procurar a protecção de um
cavaleiro vilão, como dependentes. Vinham reforçar o potencial militar e a mão-de-obra
disponível, sem perturbar o poder instituído.

A forte coesão levava ao quase total desinteresse pelo que se passava nos concelhos
vizinhos: não se permitia à justiça alheia perseguir nenhum criminoso no território; se alguém
prendesse ou matasse um proveniente do território vizinho a multa seria leve se o fizesse sem
razão, e nula se a tivesse. A resolução dos pleitos entre duas comunidades era tentada mediante a
reunião das duas assembleias num local de fronteira, (medianido). Mesmo assim, as lutas entre
concelhos podiam ser violentas e mortíferas.

Não admira também que as relações económicas entre os concelhos fossem débeis,
inexistentes ou mesmo antagónicas. A tendência geral favorecia a importação de bens e onerava a
exportação, o que mostra que o grande problema era o abastecimento da população local. Nas
cidades, porém, as prescrições acerca do comércio tornam-se frequentes, à medida que as relações
económicas se intensificam.

 Discriminar os motivos que estão na base dos conflitos verificados entre as


autoridades dos concelhos e as autoridades eclesásticas.

Religião. Apesar de a organização concelhia ter um carácter civil, os problemas


religiosos são fundamentais, sobretudo nas sociedades do interior. O pároco faz parte da
comunidade e tem privilégios idênticos aos dos cavaleiros vilãos. A tendência autonómica do
concelho leva-o a desconfiar das autoridades eclesiásticas, sobretudo quando insistem em impor
aos vizinhos a cobrança de direitos, que eles vêm com maus olhos.
A reforma gregoriana, segundo a qual o clérigo devia ter costumes e cultura diferentes
dos leigos, também não agrada aos homens dos concelhos. Apesar disso, esta foi-se difundido
lentamente a partir de áreas de regime senhorial mais próximas das sedes diocesanas, e acaba por
penetrar no interior do País, contribuindo para que o pároco venha a ser considerado um vizinho à
parte. Assim, deixa de ser o oficiante de ritos arreigados na mentalidade popular para se tornar o
instrumento da religião oficial, ou então vai desempenhando o seu papel com recurso a práticas
sincréticas, que o bispo vai tentando purificar ao longo de toda a Idade Média.

De facto, sempre existiram práticas mágicas e supersticiosas, como se deduz de


prescrições do século XIII que condenam os costumes em que se usavam os óleos sagrados, a
água benta, a hóstia e o vinho consagrados, bem como a conivência do clero inferior na sua

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execução. As fontes mostram que os encantamentos e as acções divinatórias eram correntes entre
os nobres e nas cidades, pelo que é de crer que fossem mais frequentes no campo. Não admira
que nas regiões do Norte se guardem respeitosamente as porcas da época castreja, que nas
ermidas se misturem antigos cultos com os recentes, e que as romarias tenham preservado rituais
de origem pagã.
Outras vezes o sagrado cristão é invocado em acções judiciais, como a celebração da
missa antes dos duelos, ou nos juramentos e maldições, cujas fórmulas de sabor pagão se
misturam com as de origem cristã, ou ainda a utilização de objectos sagrados e de imagens de
santos para a protecção contra os maus espíritos, que os clérigos identificam cada vez mais com
demónios.
Perante estas tendências, os bispos insistem na instrução dos clérigos, que conheçam o
latim, vistam com decência, não usem armas, não pratiquem nem deixem praticar encantamentos,
não exerçam profissão secular.
Em segundo lugar, sem contestar, de início, a eleição dos párocos pelas comunidades, os
bispos exigem que os concelhos reconheçam a sua autoridade em matéria eclesiástica, que os
clérigos sejam julgados em tribunal diocesano e, finalmente, que o pároco, qualquer que seja a
sua forma de nomeação, receba a ordenação sacerdotal e seja confirmado pelo bispo. Tudo
apoiado numa norma clara, o Decretum de Graciano, redigido em Itália em meados do séc. XII,
que recebeu o sancionamento papal e constitui a base do direito canónico, permitindo um
procedimento uniforme em todo o lado e uma grande eficácia a longo prazo.
Noutros pontos, a acção dos bispos foi mais lenta: no combate ao divórcio e na difusão
do casamento sacramental, uma vez que a forma matrimonial corrente para os vilãos dos
concelhos continuava a ser a da simples coabitação ou do casamento «de juras». Aqui, a acção da
legislação régia foram decisivas, ao insistir na noção de contrato legal por oposição ao
concubinato e à barregania, e como critério de legitimidade da prole.

A invocação das forças ocultas e da magia foi combatida por meio da atribuição de todas
as práticas mágicas ao demónio. Isto permitiu associá-lo à actuação das almas do outro mundo e
encorajar os sufrágios pelos defuntos como forma de libertar as suas almas das penas e de evitar a
perturbação que causavam no mundo dos vivos.

A vigilância episcopal sobre o clero paroquial foi-se aperfeiçoando com a intensificação


da visita à diocese, com a reunião de sínodos que congregavam o clero da diocese, com a criação
de instâncias intermediárias (arciprestados e arcediagados) e, finalmente, com a evolução da cúria
diocesana e do tribunal eclesiástico.

A burocracia diocesana aperfeiçoou de cobrança do dízimo, o que teve fortes incidências


nos concelhos, pois levou à delimitação rigorosa das paróquias evitando que os habitantes da
periferia não pagassem. A imposição do dízimo desencadeava resistências violentas por parte dos
paroquianos, com o apoio das autoridades municipais; verificava-se uma escalada de
agressividade, que acabava por envolver o próprio rei e o papado. Mas o dízimo acabou por se
generalizar.

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Paralelamente, a implantação simultânea da justiça régia e dos tribunais eclesiásticos
durante o século XIII, com casos reivindicados por ambos os poderes, levava também os
magistrados dos concelhos a intervirem contra as exigências da cúria diocesana.

Finalmente, os concelhos opunham-se à implantação de senhorios eclesiásticos, ou


mesmo às aquisições fundiárias por clérigos poderosos, porque assim ficavam privados de
rendimentos, devido ao privilégio eclesiástico de isenção fiscal.

 Caracterizar as várias estruturas que sustentam a reliogiosidade concelhia.

No aspecto religioso há a mencionar as confrarias, que se multiplicam a partir do fim do


século XII. Conservam-se poucos estatutos anteriores a meados do século XIII, mas sabe-se que
se destinam a organizar a ajuda mútua e a beneficência: a esmola aos membros pobres, a ajuda
mútua na doença e na morte e uma solene refeição pelo menos uma vez por ano. São uma forma
de parentesco artificial, necessária quando as migrações ou o individualismo citadino desagregam
as estruturas familiares, e que se revela até na criação de estruturas judiciais para resolver os
conflitos entre os membros, evitando assim o recurso à justiça secular. Reúnem categorias
profissionais ou sociais, devotos de um mesmo santo ou de uma mesma prática religiosa, como os
pedreiros de Coimbra ou os sapateiros de Guimarães. Podem ser o meio de defesa de um grupo,
como acontece com os clérigos de Leiria perante as exigências do Mosteiro de Santa Cruz de
Coimbra. São também o lugar privilegiado das ordens mendicantes, que aí difundem os
ensinamentos da Igreja em matéria de honestidade, de castidade e de virtudes familiares .

Os mendicantes implantaram-se nas cidades, sobretudo nas mais populosas e com mais
marginais. A sua organização, instrução e dinamismo punham em causa a autoridade do clero
diocesano. Explica-se assim uma rivalidade que, todavia, acabou por dar lugar a uma convivência
menos conflituosa a partir do fim do século XIII, quando os mendicantes deixaram os seus
humildes santuários para construírem imponentes igrejas góticas à beira das muralhas, no meio
dos bairros de gente pobre que afluía às cidades. Em algumas delas, como Coimbra, Lisboa e
Leiria, os Franciscanos competiram com os tradicionais Cónegos Regrantes de Santo Agostinho.
Na Beira Alta e na Estremadura implantam-se os Cistercienses durante o repovoamento. No
Centro e Sul muitos concelhos ficam sujeitos às ordens militares do Templo, Santiago, Avis e
Hospital, de que resultou a perda de uma parte da sua autonomia. Parece, contudo, que isso não
provocou conflitos violentos, pelo menos antes de meados do século XIV .

Em algumas zonas, sobretudo na Beira e na Estremadura, apareceram durante todo o


século XII fundações eremíticas nas encruzilhadas dos caminhos e na periferia das zonas
habitadas. Estes eremitérios não sobreviveram muito no tempo, porque foram geralmente
absorvidos por ordens monásticas ou desapareceram, dando lugar a igrejas paroquiais. No século
XIII tornam-se raros e preferem a periferia das cidades.

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O clero urbano encontra, sobretudo nas cidades mais próximas do litoral, uma forma de
organização intermediária entre a vida diocesana e a religiosa. São as colegiadas de cónegos
seculares, fundadas entre os séculos XII e XIII, para receber clérigos que queriam viver em
comum mas sem adoptarem a estreiteza da vida religiosa. Apareceram em Cedofeita, Santarém,
Torres Vedras e em outras cidades, tendo normalmente várias igrejas dependentes. Este fenómeno
relaciona-se com o crescimento demográfico da época e o recurso dos celibatários impedidos de
casar pelas estruturas familiares, a estas instituições. Enquadram-se no mesmo contexto as
capelas, que sustentavam um ou mais capelães e os hospitais para clérigos pobres.

 Reconhecer os concelhos enquanto entidades autónomas que integram um


sistema político, judicial e bélico de maiores dimensões.

Guerra e paz. A situação de guerra contínua condiciona as instituições municipais e o


princípio da autonomia. Entre meados do século XI e o fim do seguinte a situação de guerra era
determinante na vida dos concelhos do interior e dos mais próximos das fronteiras do Mondego e
do Tejo. A forma mais corrente do combate ofensivo era a da cavalgada, chamada também azaria
ou almofala, mais raramente fossado. Nelas, os cavaleiros vilãos chefiados por um adail,
enquadravam pequenos grupos de cavaleiros das aldeias ou de peões. Destinavam-se à pilhagem
de gado, escravos, cavalos e objectos de luxo. Daí as numerosas prescrições foralengas sobre a
repartição dos despojos: primeiro os feridos, os prejudicados com perda de armas e cavalos e os
que se tivessem distinguido; depois retirava-se o quinto do rei; finalmente, repartia-se o
remanescente, havendo quinhões especiais para os alcaldes. A distribuição dos mouros
aprisionados privilegiava quem tivesse algum parente cativo no campo inimigo. Daí a
importância dos alfaqueques, intermediários na troca de prisioneiros e escravos. O comércio de
armas, cavalos e víveres era, porém, severamente proibido.

As expedições aconteciam na Primavera e no Verão, quando os inimigos também


atacavam. A aproximação destes era detectada por meio das torres de atalaia, colocadas em
pontos estratégicos (o serviço de vigilância chamava-se também anúduva). Em caso de ataque
convocavam-se todos os vizinhos, mesmo os admitidos há menos de um ano; quem não
comparecia ou fugia era castigado com penas humilhantes como arrancar a barba ao peão e cortar
o rabo do cavalo do cavaleiro. A gente dos concelhos foi, decerto, a que mais efectivos forneceu
aos bandos de marginais que actuaram nas zonas de fronteira, como o que foi comandado por
Geraldo, Sem Pavor.

A partir das violentas incursões almóadas a situação modificou-se, pois só as ordens


militares puderam responder eficazmente. O rei passou a requerer os vilãos sobretudo para a
reparação de muralhas, invocando a obrigação da anúduva, mesmo em povoações tão longe da
fronteira como Guimarães. Os vilãos desabituados da guerra, passaram a utilizar os cavalos como
montadas de almocreves ou para trabalhos agrícolas. Os cavaleiros do alcaide foram sempre
separados dos do concelho. Era ele também quem recrutava os besteiros do conto. Passada a

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época de guerra permanente, tornou-se o responsável por serviços de carácter mais policial do
que militar.

A justiça parece ter estado nas mãos dos magistrados. O código penal é feroz: abundam
as penas de enforcamento, de fustigação, a quebra dos dentes, o arrancar da barba, o cortar de
uma das mãos. Para vários crimes vigora a vingança privada; para outros conta a justiça familiar e
não o tribunal público. Nos concelhos do Centro e do Sul, as autoridades judiciais têm uma
actuação mais vasta, a parentela menos influência e procura-se restringir a vingança privada. Com
o decorrer do tempo verifica-se uma maior intervenção da justiça régia, sobretudo desde Afonso
III, com a reivindicação da execução dos condenados à morte, embora a sentença pertença aos
juízes concelhios. Foi este rei quem criou os meirinhos-mores para assegurar a ordem e D. Dinis
quem instituiu os corregedores, incumbidos de vigiar os tribunais concelhios. Finalmente, este
mesmo rei instruiu os magistrados régios e municipais a comunicarem entre si, de forma a
perseguirem os criminosos que fugiam para outros concelhos. Terminava assim o princípio da
independência de cada concelho em matéria penal.

Embora a administração da justiça constituísse a principal função dos órgãos concelhios,


estes exerciam outras funções. Os magistrados mais importantes eram sempre juízes, quer
tivessem este nome, quer o de alcaldes ou alvazis, quer fosse um só, quer actuassem como um
órgão colegial. Tinham como dependentes os encarregados de execuções judiciais e fiscais
(meirinhos), da administração dos bens concelhios (mordomos), da superintendência económica e
obras públicas (almotacés), da distribuição e vigilância das terras (sesmeiros). Menciona-se
finalmente o alcaide, que não é, em princípio, um funcionário do concelho, mas aquele que
representa a sua autoridade real no local, assim como o almoxarife, encarregado de cobrar os
direitos régios, e o mordomo do rei, que administra os domínios da coroa existentes dentro de um
ou mais concelhos.

Embora os concelhos fossem inicialmente espaços autónomos e independentes das


comunidades vizinhas, a realidade evolui para uma situação diferente. A dependência do rei
obriga-os a terem cada vez mais em conta a sua integração num organismo político mais vasto.
Os do interior, como os de Ribacoa, relacionam-se com ele como um poder externo, mas os do
litoral adquirem rapidamente a noção de que fazem parte do «reino». A presença dos oficiais
régios e as reuniões de cortes, tornam esta ligação evidente. Além disso, têm de aceitar a
separação de povoações do seu termo que, por aumento de população e de poder, obtêm do rei o
reconhecimento da sua autonomia.

Quanto à influência de outros poderes externos, como os senhoriais, os concelhos, em


geral, recusam a constituição de honras nos seus termos, mas, por abusos ou por cedência mais ou
menos extorquida, a implantação de senhorios é frequente. No entanto, os fidalgos muito
raramente desempenham magistraturas; quando muito fazem eleger os seus homens de mão. Num
campo a luta foi quase sempre perdida pelos concelhos: o das pousadias, ou aposentadorias.

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1325 - 1480

A CONSOLIDAÇÃO DA MONARQUIA E A UNIDADE


POLÍTICA

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CONDICIONANTES BÁSICOS

A ORDEM

 Identificar as premissas em que se baseia a ordem social e política, no reino de


Portugal, na Baixa Idade Média.

A certeza do sentido. Haverá algum sentido no poder, na submissão, na diferença e na


desigualdade? Estas interrogações remetem para o problema da razoabilidade da dominação e da
legitimidade do Estado e estão subjacentes a todas as soluções relativamente à ordem. Ordem
social e política obviamente. A resposta portuguesa nos séculos XIV e XV foram as Ordenações
Afonsinas de meados do século XV, (Livro II, título 40) as quais, sinteticamente, proclamam:

a) A desigualdade natural das criaturas, tanto racionais como irracionais;

b) A origem divina, e logo inquestionável, da desigualdade social;

c) A desigualdade de méritos, que induz a desigualdade política;

d) Que os méritos individuais podem ser um veículo para a promoção política – mas tão-só
dentro de cada «grau», nunca para transgredir a ordem estatutária fundada por Deus;

e) Que a reivindicação social, quando exercida em transgressão da hierarquia dos estados, é


subversão da ordem, arrogância e pecado.

Nessas mesmas ordenações, noutro texto (Livro I, Título 63) verificamos a utilização do
modelo dos 3 estados, ou ordens, ou como a partir de 1477 se lhes chamará também, os 3 braços
da sociedade : oradores, defensores e mantenedores: clero, nobreza e povo.

Este modelo, surgido na época de Carlos Magno, como justificativo da ordem feudal, é de
uma impressionante fixidez, e vigorará durante 1000 anos, até à revolução Francesa. É o
fundamento ideológico do Antigo Regime.

Nos séc. XIV e XV, dadas as transformações sociais, culturais e políticas verificadas a partir
dos séc. X e XI, este modelo já não traduzia bem os factos. Era mais um referencial de juristas do
que um espelho da sociedade. No entanto, as grandes linhas eram essas: 3 ordens às quais

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estavam distribuídas 3 funções. Mesmo sendo verdade que as 3 ordens não eram mais estanques
nem as funções exclusivas. E se o “trabalho” a “nobreza” e o “clero” e a oposição “leigo-clérigo”
não eram já a mesma coisa, e se em muitos lados a própria estratificação social parecia mais de
configuração vertical, em pilares, do que horizontal, em pirâmide, quando era útil um apelo ao
sentido social, o velho modelo surgia como o ideal da ordem.

Havia um sentido na ordem social hierárquica: um sentido ancorado no inexplicável. A partir


do momento em que o direito romano é descoberto, os legistas chamam a si a função de
interpretar a ordem, o que os transformou num grupo privilegiado, mas dessacralizou o seu
discurso. Não é mais um discurso profético, mas técnico, racional e dedutivo. Por isso, eles serão
os pioneiros dos Estados laicos. Embora seja verdade que “o fundamento do Estado é igual ao da
religião” cada vez mais o Estado e a ordem se torna matéria de discussão aberta a profanos e
surgem “certezas de valores” pragmáticas e universais, apoiadas na racionalidade de um direito
comum. É um código mínimo em seus grandes valores: o serviço de Deus, o interesse do reino, a
conveniência da razão e a submissão as leis gerais. É com este conjunto de valores que os
deputados das cortes se encontram com o monarca face a face, quando recriminam e reivindicam;
é aí que a argumentação dos seus discursos vai buscar autoridade; e é aí que os reis se refugiam
para negar deferimentos e para decidirem a favor de um estado contra outro.

 Enunciar as características de um dos instrumentos de controlo social activados


pelos poderes formais na Baixa Idade Média Portuguesa: o Direito.

Os instrumentos de controlo social. Em sentido amplo, «instrumentos de controlo


social » são os modos e meios que visam aculturar as pessoas segundo os padrões aceites pelas
maiorias. Família, igreja, procissões, vestuário, opinião pública, gestos e provérbios. Tudo isso
existe para enquadrar os indivíduos dentro de uma «aura de comunidade», para robustecer a
coesão e manter a identidade do grupo. São modos e meios conservadores por natureza: elogiam
o conformismo e desconfiam das novidades.

Mas quando se fala em instrumentos de controlo social está-se a pensar, antes de tudo,
em corpos de leis e de penas, bem como nas instituições encarregadas de as fazer aplicar.

O «controlo social», enquanto garantia da ordem, é tema vasto. Falemos apenas das leis
(do direito) como instrumento ordenador do País.

Em 1325 já muito tinha sido feito nesta matéria. Havia um território bem demarcado e
uma população que se ia habituando a ser dirigida por leis emanadas da coroa. Clero, nobreza e
concelhos sentiam que a centralização do Poder nas mãos do rei era definitiva.

D. Afonso III e D. Dinis foram os artífices do Estado português, mas só puderam levar a
cabo o seu trabalho porque se apoiaram numa elite de legistas e no direito romano. A partir de
Afonso III a receptividade ao direito romano começa-se a processar com continuidade. Isso
deveu-se ao conhecimento do Corpus Juris Civilis, de Irnério, e à aceitação de obras castelhanas
que estavam impregnadas da letra e do espírito do direito romano, nomeadamente, as Flores de

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las Leyes, o Fuero Real e as Siete Partidas. Quando se funda a Universidade de Lisboa, por volta
de 1289, uma das razões da sua fundação é a necessidade de estudar esse direito, o direito civil.

Paralelamente ao direito civil funcionou em Portugal o direito canónico, ou direito da


Igreja. O Corpus Juris Canonici compila a legislação pontifícia (Decretais), bem como as leis
canónicas codificadas por Graciano (Decreto)

Portanto, no período em estudo, há dois direitos na Cristandade: o direito civil romano e


o direito canónico da Igreja - Os especialistas do direito civil são os legistas e os do direito
canónico são os canonistas (decretistas ou decretalistas, conforme a sua especialização no
Decreto ou nas Decretais).

Paralelamente ao direito romano funcionou em Portugal o direito canónico e o trabalho


de D. Afonso III e de D. Dinis consistiu em travar a preponderância do direito canónico sobre o
direito romano.

D. Afonso III publicou mais de 200 leis, as quais acusam inspiração romano-canónica; os
reis seguintes prosseguiram o afã legislativo, promulgando «leis», «decretos», «posturas»,
«ordenações». Ia-se assim formando um acervo de «leis régias» nacionais, que, juntamente com
os «forais», os «costumes» e as «concórdias» estabelecidos com o clero, compunham um todo
disperso e nem sempre harmonizável.

A par de privilégios e particularismos de regiões ou grupos, tentava-se construir uma


ordem jurídica nacional dirigida e tutelada pelo rei, cada vez mais universal. A tendência era no
sentido de impor no reino, um direito comum inspirado no romano, tal como tinham feito os
Papas na Cristandade e tal como era a intenção de todos os países europeus. As relações
internacionais, designadamente as de ordem comercial, exigiam-no. Os séculos XIV e XV
marcam o declínio dos “direitos próprios”, tanto no interior dos países como a nível internacional.

Nas cortes do séc. XV os povos apelam a que os comportamentos sociais do clero e da


nobreza sejam regidos pelo direito comum. Só que nem sempre é fácil decifrar que direito é esse.
Na boca dos clérigos trata-se do direito canónico - comum a toda a igreja; na dos povos, umas
vezes trata-se da legislação geral do reino, contida nas Ordenações Afonsinas, de 1447, outras
vezes de leis seguidas na Europa, designadamente em matéria comercial e financeira; na boca dos
reis, conforme os destinatários, esse direito comum pode ser as três coisas. A classe nobre
prefere, de modo geral, o “direito próprio” e apelar aos seus antigos costumes, honras e
privilégios.

Enfim, de um estado de particularismos jurisdicionais e de caos jurídico, pouco a pouco,


os reis, apoiados no principio romanista de que os monarcas são imperadores nos seus reinos,
irão impondo a unidade, a centralização e a ordem, isto contra o clero, contra a nobreza e contra
os municípios. Por detrás de tudo, como suporte racional, o espírito do direito romano, finalmente
feito direito comum. O direito e a sua aplicação em nome dos reis constituíram os grandes
instrumentos do controlo da ordem sobre a população e o território.

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 Reconhecer a língua e o sentimento de pertença a um território enquanto traços
de identidade do reino de Portugal nos finais da Idade Média.

Os vectores da unidade. Os vectores ou “sacramentos”, causas-efeitos, da unidade do País e da


Nação foram fundamentalmente três: a língua, a terra e o rei.

A língua

A língua é o traço mais eficaz de uma identidade. Em 1325 a língua portuguesa estava
praticamente feita. As outras línguas novilatinas, comparadas com as suas formas actuais,
estavam muito mais atrasadas. O português é essencialmente galego-português enriquecido de
vocabulário e fonética moçárabes. Excluindo a reduzida área do mirandês, ocupou todo o
território. No período do nosso estudo, o português é a língua do quotidiano, das leis, da escrita,
dos tratados, da literatura e da poesia. Enfim, uma língua madura. Em 1500 a sua fisionomia está
fixada.

A terra

Depois da língua, a terra, outro vector da unidade nacional. Os naturais da terra eram os
«nossos», por oposição aos estrangeiros. De «naturais» far-se-á a ideia de «nação» e daí a de
«pátria». Isto é, a ideia de terra que os « avós» moldaram e transmitiram aos netos. Toda a
Crónica de D. João I respira o sentimento forte e indefinido de pátria. Vê-se que é um sentimento
eminentemente popular, ou seja, gerado e desenvolvido no meio do terceiro estado. O clero,
«classe supranacional» pelos seus altos representantes, e a nobreza, internacionalizada por
casamentos, não estariam preparados para se deixarem invadir por sentimentos de puro
patriotismo. Com o povo e as franjas inferiores das outras duas classes era diferente. O
sentimento de nacionalidade e de patriotismo é gerado por efeito de oposição a um estrangeiro,
naturalmente quando guerras e invasões põem em perigo a «nossa» terra, a «nossa gente», a
«nossa» história. Quando é que se detecta em Portugal esse sentimento? Fernão Lopes atribui-o
ao povo que fez a revolução de 1383-1385. Logo, terá surgido durante as guerras da
independência, ou alguns anos antes, durante as guerras fernandinas. Mas temos de admitir que o
cronista poderia ter projectado na época que narrava os sentimentos que ele e os seus
contemporâneos experimentavam. Nomeadamente, o que todos experimentaram na «revolução»
de 1439, altura em que outra vez o povo, notoriamente o de Lisboa, teve de intervir na política
para apoiar um herói (infante D. Pedro) e preservar a nação de perigos estrangeiros.

O sentimento patriótico apoia-se em símbolos: a bandeira, o hino, a imagem do território,


o presidente ou o rei. Na Idade Média os suportes simbólicos eram mais fluidos. Não existia
bandeira ou hino; só a figura e o nome do monarca reinante. Os suportes do sentimento patriótico
estavam reduzidos a palavras: «Portugueses», «Portugal», «el-rei».
“Portugueses” e “Portugal” parecem ter constituído palavras-símbolos da unidade
nacional sentida, finalmente tornada consciente. E traduzem ambas a “terra”. Nomes-sacramentos
de identidade patriótica. “El-rei”, também, como adiente se verá.

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O nome «Portugueses», como designativo comum dos habitantes de Portugal e do
Algarve não ocorre com muita frequência, a não ser nas crónicas de Fernão Lopes. Os textos
preferem dizer «naturais», «moradores», englobando nestes conceitos todos os habitantes não
estrangeiros, sejam eles do clero, da nobreza ou do povo.

Das referências a «portugueses» nos capítulos das Cortes extrai-se:

(1) A expressão aparece durante o período das guerras com Castela, pelo menos no
Parlamento.

(2) Essa expressão foi usada para distinguir os naturais de Portugal dos castelhanos:
significou os «nossos», por oposição aos «outros», os adversários.

(3) Refere-se a pessoas radicadas no território, súbditas do mesmo rei, com a mesma
história, empenhadas no mesmo destino, falantes da mesma língua e comprometidas com a
mesma identidade - se bem que pessoas diferentes do ponto de vista étnico, religioso, social,
económico e geográfico.

Em 1325 a nação existe, tem já a sua coerência e a sua autonomia, os seus caracteres
próprios, a sua capacidade de resistência, mas a consciência deste facto é sentida apenas por uma
minoria, geralmente próxima do poder político. Ou seja, há um corpo-nação, mas não há
nacionalismo ou consciência colectiva de uma identidade nacional. Há um território que define e
demarca os “naturais” em relação aos estrangeiros, ou seja, um espaço comum – o espaço
geográfico, que encerra uma unidade política e cultura ao qual se associa uma comunidade de
referência e pertença.

Mas em 1385 a consciência de nacionalidade parece estar adquirida, pois a expressão


«portugueses», com todas as implicações, é utilizada nas Cortes de 1385, onde o Mestre de Avis é
escolhido como rei.

Em conlusão: o vocábulo “portugueses”, pode e deve ser encarado como idea-símbolo


de sentimento patriótico e, logo, como conceito da unidade nacional. O mesmo se pode dizer da
palavra “Portugal”, com uso idêntico e idêntica carga semântica – Terra Nostra.
A palavra «Portugal» desde os primórdios da monarquia entrou na titulatura dos reis. Tal
como sucedeu com a expressão «português», que passou a designar todos os «naturais» dos
reinos de Portugal e Algarve, assim também «Portugal» passou a designar todo o território, desde
o Minho ao litoral algarvio.

45
 Avaliar o avanço das formas de centralização enquanto um dos vectores de
unidade do reino nos séc. XIV e XV.

O rei

O rei é o terceiro e o mais importante vector da unidade da nação e da ordem. “El-rei” a


palavra-figura-símbolo. Omnipresente nos textos legislativos, nas sentenças dos tribunais, nos
acordos de cortes, nos salvos- condutos, nas moedas. Primus inter pares até D. Afonso II,
timidamente imperator com este monarca, domines e rex com Afonso III, chefe de Estado com D.
Dinis o qual se purga de estorvos feudais. A partir daí cada vez mais o monarca é uma instituição
que resume o País, e não mais o insigne companheiro dos nobres, nem o equivalente temporal do
papa e dos bispos.

Em 1325, a nação pode ainda não ter uma consciência clara de si, mas a igreja, os nobres
e os municípios sabiam que havia um poder central, um Estado cujo vértice e denominador era o
rei. . Com D. Dinis e D. Afonso IV o rei tornou-se definitivamente «cabeça e senhor» do reino, e
o referencial da ordem do País e da unidade da Nação. Será a cabeça e o senhor da nação e dos
seus habitantes, clero, nobreza e povo, ou seja, a palavra polarizadora da unidade e da ordem.
Afonso IV e seus sucessores não fizeram senão acentuar essa convicção.

A centralização prosseguiu e com ela a afirmação do rei como figura e símbolo da nação;
qualquer prática de condescendência feudal era encarada como fraqueza. Os povos importunavam
os reis e essa prática existia tanto no Parlamento como na rua, em revoltas. O Parlamento traduzia
a convicção generalizada das forças municipais, ou seja, das camadas superiores do povo, por sua
vez representativas da maioria esmagadora da nação. “El-rei” era uma instituição e uma pessoa
colectiva.
A partir de Afonso IV o poder monárquico beneficia de uma valorização revolucionária.
O rei passa a ser imperator no seu território. Centralizar era a palavra de ordem, pôr olhos,
ouvidos e mãos do rei em todo o lado. Exemplos são as inquirições, os juízes de fora, os
corregedores, os tabeliões, os besteiros do conto, as apelações, e muitos outros mecanismos,
instituições e leis que fizeram com que os monarcas se vissem e fossem vistos, como símbolos e
figuras de um poder que se sobrepunha a todos os outros. Não mais um rei se equipara a um
senhor feudal como primeiro entre iguais. Com D. Dinis e D. Afonso IV o rei torna-se “cabeça e
senhor” do reino, e simultaneamente o referencial da ordem do País e da unidade da Nação.

Conclusão. Nos séculos XIV e XV Portugal é um «território» definitivo e uma


«população» ontogonicamente definitiva também. Houve também uma «ordem» que civilizou o
meio e as gentes.

Nesses dois séculos valia quem era. Quem era por nascimento ou segregação imposta por
ritos sagrados, aqueles que produziam clérigos e cavaleiros. Portanto: clero, nobreza e povo.

46
Mas a moeda irrompera e irá subverter tudo e gerar outra ordem, já no século XV, com a
desactualização da ideologia trinitária da sociedade e com as contradições dos estatutos socio-
profissionais. O burguês, o nobre de toga e o fidalgo mercador surgirão nessa estrutura em
viragem.

Portanto, uma população ordenada, mas em mutação irreprimível. O território, observado


como expressão sócio-política, também. Os reis, apoiados num direito ressuscitado para os servir,
irão domesticar, a pouco e pouco, um mosaico de reguengos, coutos, honras, alódios, concelhos.
Uns no plano económico, outros no financeiro e todos no judicial e político. Ao fim de 200 anos,
um heptaneto de Afonso III, D. João II, já pode enviar os seus corregedores a todas as terras do
País, obrigar os maiores senhores a jurá-lo e proclamar que ele não tem de jurar manter os foros,
costumes e privilégios adquiridos pelos seus súbditos nos reinados anteriores ao seu. Porque,
disse, um rei só se compromete perante Deus e a sua consciência. O ano: 1481. Mensagem: O
feudalismo acabou.

1325 -1480. A SOCIALIDADE


(Estruturas, Grupos e Motivações)

Procuramos conhecer Portugal e os portugueses dos séculos XIV e XV: homens ou


grupos humanos que, solidários ou não, cônscios e inconscientes, moldaram a Nação e
construíram o País.
No século XIV a realidade «Portugal», País-Nação, era já interpretada como a
concretização de um destino. Paralelamente revela-se que ao País e à Nação se junta, também no
século XIV, uma nova dimensão: a de Pátria. Esta surge após as guerras fernandinas ou durante
as da independência e condensa-se na expressão «os portugueses» - designativo de comunidade
nacional que engloba todos os naturais do País: do Norte ou do Sul, do Reino de Portugal ou do
Algarve. Nos finais de Trezentos a palavra «Portugal» designa uma entidade geopolítica madura:
Pátria-Nação-País.

A distribuição dos actores

A população portuguesa no período em estudo oscilou entre um milhão quinhentos mil e


oitocentos milhares de almas, que se distribuiu segundo modos variados e densidades irregulares.
Desses valores, o clero ocupou 1 % e a nobreza pouco mais 0,5 %. O povo dominou, mas
somente em número, pois, lógica do feudalismo, ele foi dominado por aquelas minorias. E como
é que tal lógica logrou vigorar durante tantos séculos? A resposta era sabida: a ordem, a
inquestionável e imprescindível hierarquia.

47
 Reconhecer o modelo de divisão da sociedade em ordens como um quadro
mental de referência generalizado.

Os membros do grupo mais elevado em Portugal, nos séculos XIV e XV, foram os
clérigos, os letrados e os agentes da monarquia feudal. Verificamos a arrumação clássica: clero,
nobreza e povo. Ou seja, a arrumação da sociedade em ordens.

Todavia, a classificação merece debate, que pode centrar-se na interrogação: qual o


modelo que melhor exprime a realidade social portuguesa dos séculos XIV e XV? Ou ainda, que
categorias sociológicas deverão utilizar-se para traduzir essa realidade: Ordens, Estados ou
Classes?

Ordens. A sociedade de ordens é um tipo de agrupamento societal, diferente de país ou


nação ou pátria, em que os membros se repartem por categorias hierarquizadas estanques,
definidas segundo critérios ideológicos miticamente protegidos, a que se tem acesso por
nascimento ou por rituais de sagração. Trata-se de um tipo de sociedade pluripartida, cabendo a
cada parte uma função específica e estabelecendo-se para cada uma um grau hierárquico de
importância relativa. É de admitir que seja estritamente funcional a razão última deste modelo de
sociedade.

A sociedade portuguesa nos séculos XIV e XV era pensada em termos de sociedade de ordens,
trinitária e trifuncional: clero, nobreza e povo. Mas pensada e não vivida. Era um modelo ideal
para juristas e políticos; um refúgio argumentativo contra inovações prejudiciais, a que todos
recorriam quando convinha - cleros contra povos, povos contra cleros, nobres contra os dois. Mas
precisamente porque todos invocam o modelo quando discursam, e todos o desacatam quando
vivem a vida, ele revela-se como um resíduo ideológico meramente mental.

Testemunhos

Registámos entre 1325 e 1484 duas dezenas e meia de alusões à sociedade de ordens,
como sendo a que vigorava ou devia vigorar. A ideia é pelo menos tão familiar e tão antiga
quanto as assembleias dos estados que, iniciadas em 1254 ou antes, foram estruturadas em
conformidade com o modelo trinitário da sociedade. Os procuradores dos concelhos, que só
excepcionalmente integravam clérigos e altos letrados, mostram-se tão familiarizados com a
teoria trifuncional, como reis, cronistas e homens de leis. Isso faz pressupor que a teoria fazia
parte do saber comum, popular até, inculcado pelas mais variadas formas: pregação, entradas
régias, teatro de rua, folclore.
Faz sentido com o que dissemos: nos séculos XIV e XV o modelo de sociedade em
ordens havia-se tornado referência ideológica, um estereótipo mental, e a sociedade era
imaginada por toda a gente como dividida em três ordens.

Era um esquema ideológico extremamente conservador, clero e nobreza e povo, ou


oradores e defensores e mantenedores, ou eclesiásticos e militares e lavradores - os nomes
interessam pouco, o que conta é a ideia de tripartição conexa com a de trifuncionalidade e ambas

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com a de hierarquia e desigualdade necessária e tudo com a de mando-sujeição destino. Exemplo:
texto das Cortes de 1418, cap. 20 “ Os lavradores com os seus trabalhos, mantêm os oradores e
defensores...”.

Resumindo: a sociedade portuguesa nos séc. XIV e XV era uma sociedade de ordens?
Em termos globais sem dúvida que não; mas era uma sociedade que se penasva segundo esse
modelo. Digamos assim: uma mentalidade colectiva com propensão para ver ordens onde
realmente funcionavam estados (ver mais à frente – estado). Pelo menos nas cidades.

 Explicitar a legitimação do discurso da desigualdade no interior da 3ª ordem.

Hierarquias

Desde o século XIII, pelo menos, que o pressuposto da desigualdade hierárquica, à


imagem da sociedade de ordens, se estendia para o interior de cada uma delas. Melhor dito, se
estendia para o interior da 3ª e se intensificava no da 2ª.
A razão foi o dinheiro: o grande devastador das ordens e dos status.

À medida que as ordens se desfasam da realidade (que já não é a feudal, digo eu) a
superestrutura ideológica que as informava manteve-se e passou a aplicar-se ao interior de cada
uma, sempre na sua função de justificar as injustiças, explicar as desigualdades, manter o status
quo.

O povo utiliza a ideia de ordem social hierárquica, e de tudo o que ela implica, para
combater “inovações subversivas”, temidas “desordens”, não já na sociedade global, mas no
interior de um estado – o 3º.

As outras ordens tinham mecanismos para proteger as suas cúpulas de discursos


idênticos, mas não a ordem do povo, onde a mola de promoção era o dinheiro e este estava,
teoricamente, ao alcance de todos.

 Distinguir os conceitos de ordem e de estado de acordo com a estrutura mental


do século XV.

Estados. Uma sociedade de estados não é a mesma coisa que uma sociedade de ordens.
«Ordens» evoca o sagrado, a arquitectura divina.

A tripartição trifuncional da sociedade foi, no Ocidente, a solução óbvia do esforço de


entender a ordem. Onde quer que haja sociedades de ordens, trinitárias ou não, a sua explicação
assenta na vontade de Deus e no mito. Ideologia dos detentores do poder religioso e mágico, ou
seja, dos oratores.

E é precisamente aqui que radica a diferença entre sociedades de ordens e de estados. A


primeira é sacral e hierarquizada verticalmente; a segunda é profana e com hierarquia horizontal.

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Os estados surgem na Europa por volta de 1200, em face da inadequação do conceito de
«ordem» em exprimir a realidade sociológica, designadamente a popular e urbana. Estado tem
conotação socio-profissional.

É invenção do homem. Ou do Diabo – “Deus fez os clérigos, os cavaleiros e os


lavradores; o demónio fez os burgueses e os usurários”. – sermão inglês séc. XV.

As circunstâncias e os factores éticos, religiosos e culturais que estão na base da divisão


societária em estados são o renascimento urbano, a divisão e especialização das actividades
produtivas, a nobilitação do trabalho manual, a afirmação da burguesia comercial, a assimilação
das artes mecânicas às liberais, a subjectivação da noção de culpa e pecado.

Não se pode inferir linearmente o número de grupos sociológicos a partir da enunciação


dos grupos-estados. Por exemplo, no primeiro capítulo dos gerais das Cortes de 1385 diz-se que o
«estado é partido em prelados, fidalgos, letrados e cidadãos». Face a este dizer, os historiadores
têm concluído que nessa altura a sociedade portuguesa se entendia quadripartida. Cremos que o
contexto não permite tal conclusão. Primeiro, porque «estado», no sentido de corpo social e
político da nação, era conceito desconhecido e, depois, porque o tema do capítulo é o
aconselhamento do rei. Donde tratar-se de uma quadripartição social de conselheiros e não de
uma quadripartição da sociedade global.

Testemunhos e sua interpretação.

A palavra “estados” é empregada, no período do nosso estudo, em diferentes acepções.

Pode significar categoria social semelhante à de «ordem»; pode indigitar gradações de


prestígio; pode designar ofício ou profissão, de modo absoluto ou em conjunção com o
significado anterior; pode referir graus de disponibilidade económica, apreensíveis por estilos de
vida; pode significar escalão hierárquico de natureza militar, nobiliárquica ou clerical; pode ainda
exprimir «situação real de», da justiça, da administração, etc. etc..

Assim, «estados» e «estado» eram, nos séculos XIV e XV, palavras muito ambíguas e,
por regra, são os contextos que revelam os exactos sentidos. Mas algumas vezes sucede que,
apesar de todo o esforço hermenêutico, as ambiguidades persistem, podendo o mesmo texto ser
interpretado com igual rigor de diferentes modos. De modo que é pertinente pôr as questões: das
acepções de «estados», quais são as mais frequentes nas fontes? Será possível escaloná-las
segundo prioridades? Por aquilo que sabemos, afigurasse-nos inteiramente credível o seguinte
escalonamento:

1. Estados-estatutos
2. Estados-ofícios ou profissões
3. Estados-riqueza
4. Estados-ordens

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5. Estados-situações
6. Estados-graus

Por regra são os contextos que revelam os exactos sentidos.

Este escalonamento baseia-se nos capítulos gerais do clero, da nobreza e do povo


apresentados em cortes e, secundariamente, nas crónicas e corpos legislativos. Trata-se de uma
seriação adequada em termos de testemunhos parlamentares e plausível em termos de fontes
historiográficas gerais.

Estados-estatutos

Nos séculos XIV e XV a palavra «estados» denota prioritariamente estatutos sociais,


graus de prestígio. Traduzem-se em vocábulos adjectivos - «bons», «grandes», «honrados»,
nobres», «vis», «menores», «comunais». Os estatutos, na medida em que impõem uma
hierarquização horizontal a despeito das ordens, agrupam lado a lado membros de cada uma delas
e, por esse efeito, podem situar, por exemplo, indivíduos da terceira acima de indivíduos da
segunda e da primeira. Encontramos configurações desse tipo em sociedades concelhias do século
XV. E acerca de estatutos diga-se que sempre que uma sociedade os considera a despeito das
ordens, ou seja, sempre que uma sociedade os respeita e venera, não obstante eles questionarem a
ordem considerada ortodoxa, isso significa que a realidade não se revê mais nessa ordem dita
ortodoxa. Foi isso o que se verificou nos séculos XIV e XV em Portugal: uma alteração lenta, que
já vinha de trás, dos fundamentos do sistema social baseado no conceito de ordens; e uma tomada
de consciência colectiva dessa alteração - revelada, sem dúvida, na tendência para qualificar as
pessoas por estados-estatutos.

Estados-ofícios ou profissões

Os ofícios e profissões, divisão e especialização do trabalho, significam a desintegração


da ordem dos laboratores. A unidade e coesão desse grupo imenso explodiram com a explosão
das cidades nos séculos XII e XIII. A cidade tornou-se «indústria», distribuição e serviços,
especializadamente, concorrencialmente; ao contrário do campo, onde todos continuarão a ser
tudo, em concórdia e reciprocidade. No campo o trabalho é agricultura. Afora alguns ferreiros,
pedreiros e carpinteiros não há profissões especializadas. Faz-se o necessário para manter a
«fazenda» de pé - desde a casa da família à roupa de cada um. Depois, os artefactos mais difíceis
compram-se na feira. É claro que havia campo e campo. Campo de povoamento disperso e campo
de povoamento concentrado. Campo vizinho de vilas e cidades e campo esparso por ermos.
Campo ao lado de estradas e campo ínvio de raros almocreves. O que vale a dizer que houve
sociedades rurais puramente agrícolas e outras contaminadas por outros modos de vida. Daí que
seja, porventura, mais exacto falar de socialidades rurais. Apesar das contaminações referidas, a
verdade é que a sociedade rural se caracterizou pelo monolitismo das actividades produtivas e
pelo imobilismo das inovações laborais. Nos campos o tempo era cíclico. No campo há uma
profissão, a de lavrador, e uma infinidade de tarefas que ele executa. Profissão polivalente,
alegoria da ordem. Ordem? Estado? A diferenciação não é clara. E não é porque o campo nos

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séculos XIV e XV, é uma estrutura de espírito feudal. Não é assim a cidade. Aí, tarefa é
profissão.

Estados-riqueza

A riqueza dava estatuto. Não admira, por conseguinte, que no período do nosso estudo
«estados» signifique riqueza. Para a mentalidade burguesa não se devem ostentar «maiores
estados» do que os permitidos pelas posses. Um princípio que achamos nos discursos
parlamentares dos concelhos e que é enunciado tanto contra oficiais régios, como contra
mesteirais e gente do campo: chega-se a sugerir que os vilãos sejam proibidos de vestir como
vestem os das vilas e cidades. Os burgueses defendem esta visão porque entendem que estes usos,
ao nível do terceiro estado, irão consagrar a distinção que vem da riqueza, a discriminação
vil/honra - o segundo um critério plutocrático. Entre o povo, ter “estado" é ter bens. E não se
entende abusivo ostentar riqueza, se efectivamente riqueza se possuir. Mas uma mentalidade
formada no apego à sociedade de ordens, mentalidade fidalga, tomaria aquele princípio
exactamente ao contrário: cada um deve mostrar o estado a que pertence, apesar da riqueza -
riqueza que compete ao rei assegurar, mediante ofícios, tenças, casamentos. Duas mentalidades
opostas, que no século XV colidem abertamente.

Estados-ordens, Estados-situações e Estados-graus

Sobre a acepção de «estados» como «ordens» já dissemos até aqui o suficiente: quando aparece e
em que contextos deve entender-se. É provável que ocorra, de forma explícita, nos séculos XIV e
XV, mais frequentemente do que a acepção anterior, a de riqueza. Mas, de forma implícita, não.
«Estados» no sentido de «situações» significa relato do panorama judicial, administrativo,
económico e criminal de uma terra ou região. Aparece muitas vezes nas fontes, tanto na
expressão «estados da terra» como na de «estados» somente, como até na de «estados gerais».
Esta acepção tem muito pouco a ver com o ordenamento social e rigorosamente nada com
ideologias ou utopias societárias.

Estados-graus de um cursus - judicial, eclesiástico, militar ou honorífico, significa graus de uma


carreira hierarquizada. Sabe-se que existiram no estado eclesiástico e dos letrados e no militar.
Sabemos que «estados-graus» ocorre nos manuais de confessores. Aí os agentes da justiça são
distinguidos conforme a sua posição jurisdicional. E sabemos que isso sucede devido a gradações
de responsabilidade moral ditadas por correspondentes gradações de responsabilidade social.

Em conclusão

A palavra procurada para traduzir realidades sociais atinentes a distinções de grupos e de pessoas
é «estado» e «estados». Muito mais que «ordem», «ordens» ou outra qualquer. Só que essa
palavra é extremamente polissémica e fluída. Tentámos repartir, com base nos textos e
respectivos contextos, as diversas acepções em categorias distintas. E achámos seis, dos quais
quatro são sociologicamente muito pertinentes e historiograficamente muito reveladoras: estados-

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estatutos, estados-ofícios/profissões, estados-riqueza/ ostentação e estados-ordens. Apesar de
estas categorias terem sido inferidas de discursos parlamentares dos deputados do povo, cremos
que traduzem esquemas perceptivos da «razão sociológica» da época, comuns a todos os
contemporâneos. Por isso, iremos utilizá-los no esboço de sistematização da sociedade trecentista
e quatrocentista.

 Definir a noção de classe social no âmbito do modelo de apreensão da sociedade


enquanto espaço de relações.

Classes. Abrir um subcapítulo designado Classes a respeito da sociedade portuguesa dos


séculos XIV e XV afigurar-se-á cometimento académico. Mas não é doutrina assente que a
sociedade de classes sucedeu à de estados no século XVIII? Não é exacto que uma estratificação
social em classes – em horizontes hierarquizados em função dos factores de produção, do lucro,
da renda e do trabalho, em necessário conflito - é historicamente recente? Mais: que supõe, da
parte dos agentes, a consciência da sua classificação diferenciada, e nos explorados a auto-
advertência de desapossados da «mais-valia» e, por efeito, a imposição da luta contra os
exploradores? Não é verdade que tudo isto é inconcebível numa sociedade corporativista, feudal,
de mentalidade qualitativa e reconhecidamente organizada em estados?
Depois das pugnas marxistas-antimarxistas dos anos 60 do nosso século, os intelectuais passaram
a rever a ortodoxia das conceptualizações sociológicas e a ideia de «classe social» alterou-se.
Tudo parte da resposta a esta pergunta: o que é a sociedade? Agentes e interacções de agentes ou
espaço de relações?

Se encararmos a sociedade como um espaço de relações, estaremos a optar por um


modelo de análise que, recusando privilegiar o economicismo e o objectivismo, rompe com o
modelo marxista. Com efeito, a análise social preocupar-se-á em descrever grupos existentes,
seus membros, seu número, suas características distintivas e verá no económico uma dimensão
entre muitas outras, importante sem dúvida, mas não exclusiva. Dará estatuto de objecto de
inquérito aos valores simbólicos, imaginário social – forças que legitimizam as hierarquias
humanas.

Em suma, uma abordagem da sociedade enquanto espaço de relações é


multidimensional. E eis porque considerar um subcapítulo intitulado «Classes» não é
cometimento académico. É tentar averiguar se nesse período os espaços sociais portugueses, para
além de revelarem posições traduzíveis em «ordens» e «estados», admitiram ou não outras
formas, irredutíveis a essas, as quais devamos exprimir como «posições de classe».
Antes, porém, esclareça-se o que a «teoria do espaço social» entende por «classe».
(Classe social – Pierre Bourdieu pag. 407 do Mattoso, em baixo na pag.) Na nossa ideia resulta
que um grupo social será tido por «classe social» se:

a) Os seus membros partilharem condições de vida análogas, as quais lhes imponham


comportamentos psicossociais semelhantes;

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b) Os ditos membros detiverem, cada um, uma soma de capital reconhecida por todos como
dentro da média necessária - capital económico (terras, meios de produção, rendas ou dinheiro) e,
simultaneamente, capital cultural (político, social, simbólico).

Testemunhos

Para respondermos à interrogação - houve ou não classes sociais? - fixem-se as


designações da época relativas às modalidades exclusivamente populares. Das outras não há nada
digno de nota, mas do povo há estas 4. Encontramos quatro: «burgueses» e «homens-bons»;
«mesteirais» e «oficiais mecânicos». Estas designações rotulam dois grupos reais: aristocracia
urbana ou concelhia, e gente dos mesteres, urbana e concelhia também. O primeiro grupo é
«classe social»; o segundo, depende. Examinemo-los em separado.

Burgueses

A palavra burgueses é raríssima nas fontes que temos estudado. Só aparece uma vez: em
Fernão Lopes, na Crónica de D. João I, atribuída a cidadãos do Porto. No contexto, a palavra
refere-se à elite local distinguida pela riqueza, prestígio e exercício do poder municipal. Homens
do burgo (da parte nobre da cidade ou da vila), livres de submissões prelatícias (submissões
económicas, que não honoríficas), os mais ricos do lugar, os mais prestigiados e, por isso,
detentores, efectivos ou reconhecidamente efectiváveis, da governança municipal.
Burgueses não são apenas mercadores, nem são indivíduos exclusivamente acantonados
em cidades mercantis, como Lisboa, Porto ou Guimarães. Burguês não é um grupo profissional
determinado. É, antes de tudo, riqueza. É um conjunto de abastados, os «bons», os «honrados»,
os «nobres» dos lugares. Então, dir-se-á que existiram tantos grupos de burgueses quantas as
cidades e vilas do País. Se o fundamento distintivo é a riqueza, que houve de comparável entre
um cidadão rico de Braga e um de Lisboa? A resposta é esta: a riqueza que fazia grupos
burgueses no Norte, Centro, Sul, Litoral ou Interior não se media em cifrões, número de cabeças
de gado ou hectares de terra. Em cada localidade, talvez isso funcionasse, mas não em termos de
macrogrupo nacional. Contava a riqueza que proporcionasse liberdade, independência,
disponibilidade política, status. Quer dizer, o macrogrupo «burguesia» foi formado, nos séculos
XIV e XV, por subgrupos diferentes em razão do capital material, função da geografia
económica, mas análogos em termos de capital político, social e simbólico. São, pois, os critérios
superstruturais que justificam falar-se de classe social burguesa na Idade Média.

Os burgueses não são ordem, porque a sua função social não cabe no esquema trinitário
da arrumação dos homens: os do trabalho, os da defesa e os do oradores. Os burgueses não são
nada disso. Mesmo que sejam lavradores e criadores de gado, não é por o serem que se definem
como burgueses onde quer que vivam.

Os burgueses também não são um estado-ofício/profissão. Entre eles há mercadores,


funcionários públicos superiores, proprietários e até mesteirais enriquecidos, como ourives e
outros. Burguês implica estatuto, mas não estatuto vinculado a uma profissão ou ofício
específico. É um estatuto que advém da posição no campo social.

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Por isso, burgueses são uma classe social.

 Discriminar a quantidade de condições/ofícios que se integram no conceito de


burguês e os seus traços de identidade à escala do reino.

A identidade burguesa

Identidade de condições de vida geradora de comportamentos análogos.

Isto verifica-se no interior de cada grupo burguês local: no Porto, Braga, Guimarães. E
adivinha-se que poderá verificar-se em Lisboa, Coimbra, Lamego. A nível supra-local, constata-
se a mesma coisa. Por exemplo, no Algarve. E a nível nacional, mudando a palavra «identidade»
para a de «equivalência», tira-se a mesma lição.
Donde se pode concluir que os burgueses foram, no século XIV e sobretudo no século
XV, uma classe urbana de abrangência nacional, multifacetada, mas coerente e mobilizada como
um bloco. A força mobilizadora dessa classe assentou no seu egoísmo e egotismo, e revela-se no
seu léxico, especialmente o da moral. As projecções dos seus medos fazem-se nos mesteirais, nos
ricos dos arrabaldes e nos lavradores de extramuros. Muito mais veementemente do que nos
fidalgos, clérigos ou gente miúda. E isto porque aqueles detêm posições vizinhas e fortes no
«espaço social». É numa estratégia de jogo em que devem ler-se as diatribes dos burgueses contra
os seus próximos vizinhos, assim como as suas ocasionais simpatias e vozes de protecção a favor
de escudeiros fidalgos. Estes, com efeito, tal como a ralé, não constituíam ameaça para o seu
poder e prestígio. Os burgueses eram animados por um «inconsciente de classe» e actuavam, nas
localidades e nos parlamentos, em conformidade com isso. Uma classe mobilizada, real.

Capital social da burguesia

Também não faltavam aos burgueses as outras propriedades, as de capital, que se exigem
a um grupo, em conjunto com a de identidade de modos de vida e de comportamento, para ser
uma classe social. Os burgueses, ou «homens-bons» das cidades e vilas, eram os moradores mais
ricos e abastados, tirando clérigos e fidalgos, ou judeus onde os houvesse. Mas a riqueza variava
de localidade para localidade, quer em montante quer em qualidade. Assim, resultaram
assimetrias enormes no seio da «classe». Um grande de Braga seria meão no Porto, ou dito de
outra forma, um homem-bom de Braga poderia ser um vil mesteiral no Porto.. Donde se
depreende que o capital económico e o capital social dos burgueses é função da geografia humana
concreta.

Em suma, os burgueses detiveram capital económico e social, sem dúvida; mas segundo
quantitativos e especificidades variáveis de cidade para cidade e de vila para vila. Em todo o caso,
o que os distingue e aproxima é essa consciência de apropriação material, o serem os melhores,
os mais ricos e os mais honrados dos lugares. Característica que até estava institucionalmente
objectivada nas cortes e nas câmaras municipais. O que quer dizer que o seu capital económico e
social era acompanhado por capital político.

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Capital que eles não largam. Todos os mecanismos de acesso ao poder local foram
concebidos em benefício deles, para os perpetuar à frente dos concelhos e das instituições
dependentes das câmaras. A história do poder municipal nos séculos XIV e XV é a história da
aliança ou divórcio monarcas/burgueses. O que significou degradação das autonomias locais e
cerceamento da promoção política do comum dos moradores. Contra este efeito há vozes, só que
essas vozes vêm de excluídos do Poder, mesteirais e lavradores marginalizados. Enfim, capital
económico, capital social e capital político constituíram os três grandes esteios da classe burguesa
medieval. Mas é de crer que o lado político tenha sido o mais distintivo, aquele que a nível
nacional mais tenha contribuído para a emergência e manutenção de uma identidade classista,
apesar das enormes diferenças económicas relativas. O capital simbólico da burguesia, que
dimana dos outros três capitais e se acumula de geração em geração, constituiu uma propriedade
de classe, não menos definitória dela do que a riqueza ou o Poder. Por isso não faltam casos em
que o grupo tenta salvar, em membros seus, esse tal capital simbólico, destituídos, embora, esses
membros, por culpa ou desgraça, de todas as outras formas de capital. Realmente, a perda de
capital simbólico implicava o encaminhar da classe para a autodestruição.

 Identificar as alterações verificadas na estruturação da sociedade portuguesa


através da evolução do tema parlamentar mesteirais.

Os mesteirais

Voltemo-nos para os mesteirais, ou escalão médio dos moradores urbanos. Classe social
também ou gente aglomerada em estados-profissões? É o que vamos tentar discernir.

Para começar, torna-se importante distinguir perspectivas de análise a respeito desse


grupo urbano que ocupava no campo social posição intermédia relativamente aos burgueses e aos
braceiros e serviçais. Essas perspectivas seriam, em princípio, três: eles vistos por si mesmos; eles
vistos pelos burgueses; eles vistos por nós.

Vistos por si mesmos revelam-se muitíssimo mal pois ao contrário da nobreza, do clero e
da burguesia, os mesteirais praticamente não falam de si. Eles pertencem enquanto grupo social, a
uma multidão imensa que não teve acesso nem à escrita nem ao direito – o povo.
Realmente, só conhecemos sete textos em que eles fazem discurso na primeira pessoa. E,
pior, desses sete só um é assumidamente de mesteirais. Donde, saber o que pensavam de si os
mesteirais do País é tema historiográfico destituído de fontes. Um tema insusceptível de
conclusões seguras, mas abordável.

Podemos dizer, por exemplo, que os mesteirais de Santarém e de Évora, provavelmente


também os de Coimbra, se imaginavam melhores defensores do povo do que os respectivos
oligarcas «homens-bons».
São opositores do status quo municipal, mas não no sentido de desejarem subtituir-se no
Poder às oligarquias burguesas. O que realmente pretendem é ser nas câmaras municipais olhos,

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ouvidos e voz dos miudos, dos excluídos e dos marginalizados. Querem ser fiscais da “república”
dizem. Ou quando muito parceiros.

Portanto, convicção de que são as pessoas mais idóneas para entender o povo simples e
zelar pelos seus interesses e, por conseguinte, os do reino e do rei. Como? Vigiando a governança
e denunciando os abusos aos agentes da monarquia, os corregedores. É tímida a sua ambição de
poder, a sua auto-estima política é mínima. Classificam-se a si próprios como de pouco valor e de
pequenos. Os mesteriais tinham consciência do seu baixo capital político, face ao que detinham
os homens-bons ou os burgueses.

Os poucos textos de que dispomos não permitem dar uma resposta satisfatória à pergunta
«Que pensavam os mesteirais de si mesmos como grupo socio-político?». Somos, portanto,
levados para as outras duas perspectivas da análise.

Os mesteirais vistos pelos burgueses.

O assunto «mesteirais» só se torna parlamentar no século XV. Por outras palavras, e uma vez
que os mesteirais aparecem sempre hostilizados, é nesta centúria que eles preocupam os
burgueses. Isso pode significar duas coisas:

a) que houve modificação das elites concelhias a partir dos finais do século XIV;

b) ou que por essa altura se verificou, nas cidades e vilas, uma afirmação social deles, a qual
levasse os clãs das autarquias a temerem-nos.

Provavelmente, as duas coisas ao mesmo tempo.

Que houve uma alteração do perfil socio-económico das elites concelhias ressalta da
leitura das temáticas parlamentares. Em 1331, por exemplo, mercadores e mesteirais são postos
lado a lado como categoria de gente cúpida, prejudicial a todo o reino. Este modo de ver não dá
sinais de mudança senão em 1389, ano em que se regista nas Cortes de Lisboa o primeiro
requerimento dos concelhos favorável aos mercadores e, a partir daí, o tom irá sempre em
crescendo a favor da mercancia e dos homens que a asseguram, contrariamente àquele que se usa
para com os mesteirais.

O tom mudou porque o comércio tornou-se actividade de ponta, tanto que foi necessário
proibi-lo ao clero, à nobreza e aos corregedores. Por seu turno, Lisboa e Porto afirmam-se como
cidades mercantis e Portugal virou marítimo e urbano, comercial e expansionista. O Portugal
afonsino rural virou para o Portugal marítimo e urbano, comercial e expansionista de Avis. Como
não podia deixar de ser, as elites municipais acompanharam a viragem.

Ao mesmo tempo, e por idênticas razões, o trabalho alterou-se nos centros urbanos: de
trabalho ligado à terra desliza para trabalho de mester. As oficinas e as tendas multiplicam-se, as

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ruas tomam nomes de especializações laborais, a paisagem física e humana distancia-se da
ruralidade, as imigrações urbanas sucedem-se, afligindo os poderes. Os mesteirais ganham força
em número e importância social.

Os mesteirais aparecem sempre hostilizados nos discursos concelhios. No Portugal


afonsino e rural os mesteirais foram malquistos pela sua cupidez material, por serem raça urbana
conotada com os mouros e judeus, por seduzirem e distraírem da terra os serviçais, por
subverterem os preços das coisas e da mão-de-obra.
Depois, já no Portugal de Avis, urbano, eles passam a ser vistos pelos poderes municipais
instalados como presumíveis rivais, como classe donde podem surgir a cada momento caudilhos e
novos ricos, isto é, homens dotados de capacidades para destronar as oligarquias - que agora são
constituídas por mercadores, altos funcionários civis, homens de negócio, enfim, filhos e netos de
antigos mesteirais.

Os clãs camarários do séc. XV combatem os mesteirais por medo; o medo de perder o


monopólio do poder.

A hostilidade dos burgueses para com os mesteirais teve da parte destes sentimentos
correlativos. Não são conhecidas movimentações espontâneas dos dos mesteres em prol de
burgueses.

Em prol do reino e das cidades ou vilas sim, quando entendem que a “república” e os
interesses deles estão em causa, existem movimentações espontâneas dos mesteres.

A visão burguesa dos mesteirais.

Os mesteirais foram ou não vistos como classe social pelos burgueses?


A questão centra-se, em última análise, na existência ou não de uma heteroimagem
burguesa do mesteiral, mesteiral-grupo.

Para os burgueses os mesteirais foram classe, pelo menos na segunda metade do século
XV. Uma classe odiada porque temida.

Pelos comportamentos exarados em discursos de cortes, os burgueses imaginam o grupo


dos dos mesteres como uma classe de pessoas heterogéneas do ponto de vista profissional, mas
homogéneas socio-culturalmente. Era um grupo urbano, aberto, produtor de artefactos e serviços
e alimentador fundamental em gente e bens dos encargos municipais: militares, policiais,
judiciários e fiscais.

Efectivamente, era sobre esse grupo intemédio, situado entre os homens-bons e os


serviçais, que recaía o peso das talhas, bestaria do conto, aposentadorias, transporte de presos e
curadorias de órfãos. Era esta classe que suportava literalmente, dentro das cidades e vilas, o lado
mau da autonomia municipal. Os burgueses eximiam-se quanto podiam – obtendo cartas de
privilégios, fazendo-se vassalos do rei, acostando-se a fidalgos e prelados ou simplesmente

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controlando as câmaras. De modo que ficavam os mesteirais e os pequenos lavradores, que urgia
manter disponíveis e obrigados, a fim de que a máquina municipal funcionasse.

É dentro deste contexto que se devem interpretar as reclamações burguesas contra a


inflação de privilégios dados pelos reis e pelos senhores aos mesteirais e «meãos», assim como as
suas críticas constantes à outorga do título de vassalos do rei a homens dessa classe social. No
fundo, pensavam na preservação da classe mesteiral como reserva de pagantes e serventes.

Em conclusão: para os burgueses «homens-bons», ao menos os das cidades e vilas


mercantis, os mesteirais foram classe social. Porque, segundo eles, detinham capital económico e
capital social e lutavam por obter capital político. Atrás viria o simbólico. Ora, é precisamente
para evitar que isso suceda - que o capital político deles cresça e se institucionalize e que o capital
simbólico se distinga e enalteça - que os burgueses multiplicam os discursos junto do rei depois
da morte de D. João I.

 Contrapor a imagem veiculada em cortes sobre os mesteirais à imagem


construída pelos historiadores actuais.

Vistos por nós.

Vistos por nós, os mesteirais afiguram-se um grupo muito heterogéneo e difuso. Não é
fácil arranjar um critério classificativo claro e distinto que os arrume, independentemente das
circunstâncias geoeconómicas e jurídicas dos espaços em que viviam, ou mesmo das
circunstâncias ético-religiosas. Há, com efeito, mesteirais cristãos, mouros e judeus;
independentes ou adstritos ao rei, aos prelados, a fidalgos, aos municípios e às igrejas; ligados à
indústria, ao comércio e aos transportes; nacionais e estrangeiros. Até mesmo clérigos, vassalos e
nobres.

Quando ouvimos falar os burgueses, a classificação parece fácil: são mesteirais os


moradores do terceiro estado das cidades e vilas que não são «homens-bons» ou «cidadãos
honrados», nem lavradores, nem serviçais. O critério é económico-laboral e político.
Comparados com estes discursos de cortes, os outros texto que dispomos primam pela
confusão. Assim, por exemplo, «os dos mesteres» que em 1475 foram no Porto «ordenados pera
procuradores» integram cidadãos burgueses ao lado de ourives, marinheiros, albardeiros. Quer
dizer, profissionais da indústria e de serviços, independentemente dos seus status político-
administrativos. Entretanto, nessa mesma altura e no Porto também, em texto do mesmo escrivão,
afirma-se taxativamente a diferença entre burgueses e mesteirais: «Ordenarem de se escolherem
certos homens-bons cidadãos e outros dos mesteres.». Este, de resto, é o estilo das «actas de
vereações» portuenses: distinguir as duas categorias, mesmo que na segunda fiquem arrumados
mesteirais socialmente influentes, ricos e até «vizinhos» da cidade. Logo, capital económico e
capital social não foram base de distinção. Nem mesmo capital incorporado, simbólico.

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Para maior confusão, uma carta régia exarava: «muitos lavradores, peões, besteiros e
mecânicos e gente outra miúda que vassalos nem escudeiros não são». Leia-se: os mesteirais
eram todos gente miúda, a menos que houvessem adquirido títulos nobilitantes.

Confusão há ainda na classificação hierárquica dos grupos da sociedade global proposta


por D. Duarte. Cinco «estados», diz ele: oradores, defensores, lavradores e pescadores, oficiais e,
quinto, homens de artes aprovadas e de mesteres. Os dois primeiros grupos são ordens; os três
restantes são estados-ordens e estados-ofícios/profissões. Só o último grupo é especificamente
urbano. Faltam os assoldadados rurais e os braceiros e serviçais urbanos; além de que fica sem se
saber onde arrumar os mercadores e os cambistas. Apesar de todas as incoerências e da falta de
exaustividade dos classificandos, uma coisa parece certa: os mesteirais distinguem-se de
lavradores e pescadores por serem gente que não trabalha na terra nem no mar; e distinguem-se
também dos profissionais de actividades liberais e, enfim, dos pilotos, arrais, mestres e outros
profissionais da marinha. Resulta, por exclusão, que os mesteirais são gente «mecânica», homens
que transformam matérias-primas em artefactos e os vendem na oficina, em tendas ou nas feiras.
E, então, os barbeiros? Depende: se produzem os instrumentos do seu ofício são mesteirais; se
apenas se dedicam à arte de tonsurar e fazer cirurgia serão homens das tais «artes aprovadas» de
que fala D. Duarte. Quanto aos almocreves, a classificação é mais complicada, como a profissão
também o é. Podem ser alugadores de bestas à jorna, bestas que eles acompanham e tangem;
podem ser arrematadores de transportes; e podem ser regatões ambulantes. São três modalidades
distintas.

O que se disse de barbeiros e almocreves valerá com certeza para outros profissionais.
Até porque na Idade Média, tal como ainda hoje sucede em vilas e cidades rurais, muitos homens
desempenharam, sem dúvida, mais que uma profissão ao mesmo tempo. O que torna
extremamente difícil falar de classes sociais.

 Discutir a acuidade da aplicação do conceito de classe social aos mesteirais.

Interpretação histórica

E com isto voltamos ao nosso ponto de interrogação: foram ou não os mesteirais uma classe
social? Eis a nossa opinião:

a) Em termos nacionais, e até regionais, nada prova que o tenham sido. Considerando-os
como grupo urbano adstrito ao sector secundário da economia, vemo-los demasiadamente
circunscritos aos seus espaços geográficos, mesmo em 1383-1385 e 1439, quando
assumiram atitudes revolucionárias de impacte nacional, e na onda de contestação
antiburguesa verificada em 1459. Dir-se-á: se houve convergência e consonância de
atitudes e comportamentos, e visto que os sujeitos eram todos mesteirais, estamos perante
uma classe real, tanto mais que até se revela mobilizada. Não é, porém, líquido, porque
de todas essas vezes nem só mesteirais convergiram e foram consonantes. Também
legistas, clérigos, fidalgos, burgueses e lavradores. De modo que não se pode tirar desses
casos fundamentos da existência de uma classe trabalhadora urbana dita «de mesteirais».

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Aliás, faltaria ainda averiguar a homogeneidade a nível nacional do quantum de capital
material e incorporado dessa hipotética classe trabalhadora enquanto classe. E o que é
que se veria? Extremas assimetrias. Norte, Centro e Sul. Mas isso também sucedeu com a
classe burguesa, objectar-se-á. Não. Na classe burguesa o capital económico foi, de facto,
assimétrico, mas o capital incorporado - social, político e simbólico - não foi. E, depois, a
classe burguesa teve modos de se relacionar nacionalmente, o que não aconteceu com os
mesteirais. Por isso, fale-se deles como classe, mas «uma classe no papel».

b) E agora os mesteirais no âmbito das suas cidades e vilas, perspectivados em relação com
os respectivos «homens-bons». Posta a questão nestes termos seríamos levados a
responder com toda a espontaneidade: os mesteirais foram e não foram classe, depende.
Depende dos perfis sócio-económicos e político-demográficos das diversas vilas e
cidades. Em Lisboa e no Porto, por exemplo, a afirmativa não repugnaria, como não
repugnaria a inversa aplicada a Braga, Vila Real ou Beja. Tais respostas fluiriam do
conhecimento das lutas perseguidas pelos dos mesteres no sentido de lucrarem presença e
voz nas vereações municipais, lutas coroadas de êxito em Lisboa, Santarém, Évora,
Porto. Não repugnaria, em princípio, que nestas localidades os mesteirais tenham
constituído no século XV uma classe social análoga e paralela à dos respectivos
burgueses. Não repugnaria, mas não é líquido. É que os mesteirais não constituíram um
agrupamento homogéneo em termos de capital material e de capital incorporado. Houve
enormes diferenças de profissão para profissão, de oficina para oficina, de trabalhador
para trabalhador dentro de cada oficina. De um alfaiate a um correeiro ia uma grande
distância. Ora, tais desigualdades, económicas, sociais e estatutárias, devem ter actuado
no seio do grupo como factores impeditivos da formação de uma homogeneidade de
ethos e habitus entre eles, ethos e habitus comuns, específicos e distintivos - condição
necessária para que grupos de natureza socioprofissional sejam classe. Pomos, por
conseguinte, sérias dúvidas à ideia de uma classe social de mesteirais nos séculos XIV e
XV. E a opinião dos «homens-bons» contemporâneos? A tal auto-imagem burguesa?
Cremos que essa auto-imagem foi isso mesmo, uma imagem, uma projecção.
Confundiram elites de mesteirais com mesteirais simplesmente. Porque era realmente a
essas elites e só a elas que os burgueses temiam. Sem embargo de o imaginário deles,
burgueses, apontar para uma visão dos mesteirais como se de classe se tratasse. Mas
classe real, não.

Conclusão

A sociedade baixo-medieval portuguesa foi uma sociedade de estados, hierarquizada;


estados-estatutos, estados-profissões, estados-ordens e estados-riqueza. É muito difícil classificar,
de modo exaustivo e coerente, os actores de sociedades sujeitas a transformações qualitativas
aceleradas, porque essas transformações se revelam ao nível dos valores que distinguem e
arrumam as pessoas e os grupos.

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Assiste-se, já no século XIV mas mais visivelmente no XV, à insinuação do valor
dinheiro, enquanto motivo de distinção estatutária. Ele assume cada vez mais o papel de
instrumento dissolutivo das barreiras sociais centradas no nascimento. A onda do quantitativo a
todos atrai: reis, fidalgos, clérigos, burgueses e mesteirais. Todos apostam no monetário para ser
e para subir; mas todos o sentenciam de aviltante.

Verifica-se uma contradição particularmente flagrante nas mentalidades burguesas. Os


burgueses, que o são pelo dinheiro, que reivindicam ao clero e à nobreza a propriedade exclusiva
do mundo dos negócios como coisa do povo, recriminam os mesteirais, tão povo como eles, de
quererem o mesmo. E, ao passo que o fazem, forcejam por entrar no escalão da nobreza ou dele
aproximar-se, tornando-se cavaleiros, escudeiros e vassalos do rei; e, paralelamente, vituperam os
mesteirais que tal estatuto alcançam ou desejam alcançar. E que dizer dos fidalgos de benfeitoria,
dos de toga e dos usurpadores de fidalguia, todos eles povo que enriqueceu, que na riqueza se
apoia e que dela cora e se purga? Contradição de uma socialidade que muda e não sabe ainda
assimilar as diferenças.

 Avaliar as dificuldades em caracetrizar a sociedade portuguesa na Baixa Idade


Média.

Nos séculos XIV e XV, mais neste do que naquele, a sociedade portuguesa apresenta-se
como uma confusão. Rigorosamente, é ordens, estados e classes. Mais correctamente, são
estados-ordens, estados-ofícios/profissões e uma classe, incipiente mas nítida, a dos burgueses.

Para se pôr arrumação nisto, comecemos por distinguir meios urbanos de meios rurais, e
contemplar em cada uma plurivisão de critérios. Será assim:

- a sociedade rural dos séculos XIV e XV portugueses é uma sociedade conservadora,


ainda tripartida, arcaica, de ordens: clero, nobreza, lavradores e pescadores. Ao nível do clero e
da nobreza não parece haver dúvidas. O clero continua a ser a ordem dos oratores, dos que rezam
e dos que sabem falar, sejam eles pobres curas ou monges aristocratas. A nobreza rural, abastada
ou pelintra, vive a correnteza dos dias na soberba do seu sangue, que, em nome de prosápias mais
ou menos antigas e históricas, exige preitos e serviços dos lavradores seus vassalos. O povo,
lavrador e pescador, trabalha sem cuidar de especialização, nem de golpes de fortuna. Ambições?
Sim. Para os filhos. Nas cidades ou nos paços.

- nas cidades foi diferente. Em todas houve clero, regular e secular, rivalizante, entendido
como ordem. Clérigos administradores, ensinantes de letras, misseiros, benzedores. Houve de
tudo. Desde os simples tonsurados até aos arcebispos e bispos das urbes. Uns eram pobretanas e
néscios, casados até e proletários, outros senhores poderosíssimos, com lugar cativo nas cortes e
no conselho do rei. Enfim, uma chusma de machos, sumamente hierarquizados, díssonos no
prestígio, riqueza, influência e modos de viver e parecer, mas todos irmanados nessa coisa
extremamente importante que era a da transnacionalidade jurídica e, logo, a do privilégio forense

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e fiscal. Estado acima do Estado e dentro dele. Mas, mesmo desconjuntado das suas funções
ideais, era ordem. E todos como tal a viam.
Da nobreza pode dizer-se a mesma coisa: ordem. Ordem dos defensores. Análoga
hierarquia e análogas dissimetrias internas.
Na grande categoria do povo é que se verificaram as maiores e mais profundas
transformações. Nos séculos XIV e XV o povo urbano não é mais uma ordem. É um aglomerado
de estados-ofícios/profissões, divididos por critérios de riqueza-prestígio-poder em grupos mais
ou menos demarcados: os «homens-bons», ou burgueses - uma classe; os mesteirais - um estado
socio-profissional; e os braceiros e serviçais - ralé sociologicamente indefinível. Esta enorme
massa de moradores urbanos só teoricamente revela unidade quando contraposta ao clero e à
nobreza. O que acontece nos dispositivos jurídico-administrativos e nos rituais, como o das
procissões do Corpus Christi, rituais tipicamente urbanos, onde desfilavam as «ordens» e os
«estados-profissões» hierarquicamente, por ofícios e categorias. Dezenas e dezenas de ofícios. Na
prática, ou seja, no quotidiano vivido, impera a indefinição dos limites, com clérigos e nobres
abaixo de burgueses e mesteirais a confundirem-se com todos.

 Caracterizar a ordem dos eclesiásticos atendendo à hierarquização interna,


poder e costumes.

As direcções e os sentidos da acção

Nas páginas anteriores procurámos discernir os actores das realizações e realidades sociais
portuguesas dos séculos XIV e XV. Agora tentaremos responder a esta pergunta: que socialidade:
de consenso ou de conflito? De integração ou de luta?

Eclesiásticos. Como se viu, os eclesiásticos constituíram uma ordem social – a dos


oradores. Uma ordem já desvirtuada da sua primordial função, contaminada pela apropriação de
funções nobiliárquicas e plebeias. Hierarquizada, antes de mais. E hierarquizada plurivocamente:
por efeito de sagração, de dignidade, de jurisdição e de observância religiosa. Tudo
interpenetrado, formando uma rede extremamente complicada e suscitando problemas que
extravasavam para o mundo civil.

Configuração social

Na «Hierarquia de prestígio» a mais alta categoria corresponde o alto clero, com os


cardeais, arcebispos, bispos, abades, mestres e priores.

Na categoria seguinte estão vigários, arcediagos e cónegos. São clérigos de alto nível
socio-cultural, muitos deles em trânsito para o episcopado. Provêm de boas famílias e vivem de
pingues rendas.

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Depois amontoa-se o baixo clero (párocos, prescíteros, monges, freires, frades, diáconos,
subdiáconos).

Por fim vinham os tonsurados por oportunismo, minoristas casados, das mais variadas
profissões e modos de vida, juntamente com candidatos às ordens sacras, provisoriamente
colocados nessa categoria transitória.

Assim, na «Hierarquia de prestígio», à frente, os cardeais. No período do nosso estudo


houve cinco cardeais portugueses e, à excepção do último, todos eles exerceram o seu prestígio e
dignidade no estrangeiro. Assim, a ambição do mais alto clero, grupo transnacional, apontava
para Roma como meta sublime da carreira.

Passemos aos arcebispos e diga-se que havia dois: o de Braga (também chamado primaz
das Espanhas, em rivalidade com Toledo e exasperação de Compostela) e o de Lisboa. Se a
origem do de Braga se perde nas brumas do tempo, a do de Lisboa é datada de 1393. Em matéria
de precedências, primeiro Braga e só muito depois Lisboa.

Bispos houve muitos. Os bispos eram os titulares de dioceses portuguesas e seus


auxiliares. Braga, por exemplo, além do arcebispo teve mais três auxiliares bispos. O mesmo se
deve ter verificado noutras dioceses do País. (houve 11 dioceses, ver pag. 428 pdf.)

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Se bispos houve muitos, abades houve muitos mais. Porque do Mondego para norte
poucas terras terão existido sem a sombra de um mosteiro, especialmente no Entre Douro e
Minho. Mosteiros beneditinos, antes de mais; tanto os de observância cluniacense como os da de
Cister, logo seguidos pelos dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho. Abades eram os
superiores dos primeiros e priores os dos segundos. Só que os abades, peso da tradição e dos
coutos, manter-se-ão sempre à frente nas escalas do prestígio.

A seguir aos abades os mestres. Os mestres antes dos priores, precedência que não era
pacífica. Até porque o prior do Hospital (ou do Crato) era homólogo dos mestres de Cristo, de
Avis e de Santiago. Depois, eram também priores os responsáveis pelas colegiadas e pelas
claustras dos Agostinhos e dos Beneditinos, além dos superiores conventuais dominicanos e
franciscanos.

Os vigários eram clérigos adstritos à administração eclesiástica das dioceses, colocados


pelos bispos e arcebispos e com poderes delegados mais ou menos amplos. Os mais importantes
eram os vigários gerais. Os vigários aparecem aos olhos dos laicos como figuras ubíquas e
temerosas, os executores das arbitrariedades prelatícias. Os prelados são todos os detentores de
jurisdição eclesiástica sobre pessoas e territórios. Mas jurisdição própria, não delegada.

Sobre arcediagos e cónegos nada de especial há a dizer.

Os párocos, também designados por «curas» e «reitores», aparecem geralmente nos


documentos sob o designativo de «clérigos beneficiados». Beneficiado era o presbítero que
usufruía de um benefício em razão do qual era obrigado a certo ofício e certas obrigações, como,
por exemplo, dizer missa, administrar sacramentos e rezar as horas. Advirta-se que monges e
frades podiam ser párocos, desde que autorizados pelos respectivos prelados. É evidente que,
sendo párocos, esses religiosos subiam na escala do prestígio social.

Finalmente, freires são os clérigos das ordens militares, e os diáconos e subdiáconos são
o segundo e o primeiro graus da hierarquia das ordens maiores, geralmente ignorados pelos textos
civis, se bem que muito referidos nos eclesiásticos. São categorias destituídas de impacte social
tanto como os minoristas em trânsito para o presbiterado.

A «hierarquia de sagração» tem oito estádios que integram o sacramento completo da


ordem. De baixo para cima: ostiário, leitor, exorcista e acólito - as ordens menores, geralmente
administradas numa só cerimónia ao mesmo candidato, quase sempre imediatamente antecedidas
nessa cerimónia pelo ritual da tonsura. O tonsurado ficava clérigo. Por analogia, as monjas e
freiras, que eram submetidas aquando da tomada de hábito religioso a um simulacro de tonsura,
ficavam também equiparadas aos clérigos em matéria de isenções e imunidades canónicas, se
bem que nunca tenham acesso a nenhum grau do sacramento da ordem.
Completando o que estávamos a dizer sobre os graus hierárquicos do sacramento da
ordem: a seguir aos quatro dos minoristas, seguiam-se outros quatro, ditos «ordens maiores» ou
«sacras»: os de subdiácono, diácono, presbítero e bispo. Como hoje, os diversos patamares

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tendiam para estacionar no presbiterado, pelo que, de uma perspectiva meramente estatística, a
hierarquia sacerdotal cristã é esmagadoramente presbiterial.

Uma palavra sobre capelães. Eram clérigos de ordens sacras, presbíteros certamente,
adstritos a um mosteiro, convento, corte, paço ou casa. Os seus serviços eram variados, desde os
de capelania até o de escrivães particulares e confessores. Os reis tiveram tantos, que formavam
uma categoria cortesã, os clérigos d'el-rei, capelão-mor à frente. Ser capelão d'el-rei era
credencial para boa carreira, certamente votada a filhos segundos de nobres. Os capelães
constituíram um grupo de clérigos numeroso e privilegiado.

Configurações sociais

Tirando os minoristas e meros tonsurados, não teriam atingido 1 % da população global,


coisa como 7000 ou 8000 homens nos meados do século XV. Mas uma minoria que detinha a
posse de cerca de 20% do território nacional. E, sobretudo, uma minoria que senhoreava o
monopólio daquilo que hoje se designa como mass media, nas praças, nos púlpitos, nos altares e
nos confessionários. Os clérigos dominaram, praticamente sem opositores, os meios de produção
da opinião pública. E mais, os meios de acesso às consciências, fossem elas de reis ou do mais
humilde trabalhador braçal.

A norma moral e a prática

Diz-se que os clérigos tiveram uma vida moral péssima nos séculos XIV e XV. E tal
parece ter sucedido. Imoralidade, sim; ateísmo, não. O homem medieval, clérigos à frente, é
estruturalmente religioso. Há fiéis e infiéis, santos e pecadores, bruxas e feiticeiros - mas ateus
não há, no exacto sentido que a palavra tem. Nem sequer existia na linguagem corrente palavra
que dissesse ateísmo. Bem no interior de cada homem medieval, clérigo ou não, cristão ou não,
alojava-se esta certeza, freio de muitos crimes: toda a imoralidade será castigada. Por isso, a
religião cristã, ou muçulmana ou judaica, teve um papel insubstituível enquanto mecanismo de
controlo social. E os respectivos cleros também, apesar de todos os seus vícios.

Mas que vícios? Os da luxúria, antes de mais. Vício corrente e corruptor da ordem social
naquilo que ela tem de mais necessário: a família, o parentesco, a linhagem, o ordenamento
segundo a hereditariedade do sangue. Por isso, nenhuma sociedade pode absterse de controlar o
uso do sexo e o «comércio» das suas mulheres. O que faz definindo as formas de incesto, as
regras de casamento, os tabus sexuais e punindo os desviacionistas. Cremos que no período do
nosso estudo a repressão dos desmandos sexuais, incluindo adultérios e sacrilégios, nunca foi
levada a efeito de modo convicto e persistente. Pelo contrário, a sociedade afigura-se-nos
extremamente permissiva.

Com efeito a prostituição é vulgar e aceite. Pode crer-se que floresceu, e não só nas
cidades e vilas, onde o «trabalho» estava regulado pelas câmaras e pagava o soldo ao alcaide-
mor. Também nas guarnições militares, nas casas de nobres e até em mosteiros. Houve pedidos
vários para a sua regulação mas não para o seu desaparecimento.

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A «barregania», outro caso. Fenómeno generalizado em todos os grupos sociais. Na
grande nobreza, a começar pelos reis e infantes, foi coisa desculpada e desculpável. No povo,
camadas superiores obviamente, ter manceba por conta era concubinato e deveras pecaminoso.
Com o clero passou-se a mesma coisa: um sacrilégio, crime religioso, canónico, pelo que à Igreja
competiria julgá-lo. Mas não há dúvida de que os clérigos de ordens sacras não podem ser ditos
como exemplares respeitadores do voto de castidade.

Esta conclusão, que é válida para a moral do sexo, aplica-se aos outros vícios: arrogância,
cupidez, ociosidade. Enfim, os vícios dos poderosos. E quanto mais se sobe na hierarquia mais
os vícios são evidentes. Porque os arcebispos, bispos, abades e priores, afinal, não eram mais do
que fidalgos que buscavam na Igreja o prestígio e a riqueza que lhes minguavam no século. Por
isso, não admira que lhes tenham faltado, em geral, aquelas virtudes que o seu estado requeria.

 Distinguir os factores de conflituosidade interna à ordem dos eclesiásticos e


desta face à de outros grupos.

Convivialidade social

Os clérigos dos séculos XIV e XV revelam-se um grupo com muitos conflitos internos.
Bispos contra cabidos, uns e outros contra monges e frades, regulares contra seculares.

Razões: económicas, jurisdicionais, de prestígio.

Sentenças, recursos, autos de execuções enxameiam tombos de catedrais, de colegiadas,


de mosteiros e de conventos. São conflitos de ordem económica, jurisdicional, de prestígio. A
imagem que se colhe da leitura dos documentos a respeito das relações interclericais nos séculos
XIV e XV é de rivalidade e não de concórdia.
Iniciativas de “irmandade” entre clérigos seculares e regulares ou regulares de diversas
obediências, destinadas a ter efeito no interior do grupo, não se conhecem nenhumas.

Privilégios

Contrariamente, o medo de perder privilégios levou o clero a unir-se e a funcionar coeso


face ao rei e a outros grupos. Nisto soube unir-se e funcionar concordemente. Estado dentro do
Estado, mostrou saber distinguir e separar conflituosidades internas de questões que o poderiam
lesar enquanto bloco.

Desde as «concordatas» de D. Dinis a impressão é a mesma: prelados, cabidos e ordens


sempre unidos, insistentes, combativos. Parecem um partido político contemporâneo – discussões
internas, externamente unidade e força.

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Existem no período do nosso estudo, 1325 a 1484, 180 capítulos gerais de clerezia. Estes
importantes documentos, incorrectamente designados de concordatas, são a voz das cúpulas
eclesiásticas do País e revelam as estratégias do grupo face ao poder civil, corporizado nos reis.
São estratégias de um grupo que se sabe transnacional e que a todo o custo quer manter-se como
isso. A táctica é nunca largar mão das isenções, das competências, dos privilégios, das
jurisdições; e, perdidos alguns ou minguados outros, nunca abdicar deles, nem deixar que se
transformem em direitos adquiridos do poder secular. E em nome de quê? Do bem comum, do
serviço d'el-rei? Não. O clero move-se noutros parâmetros: o bem da Igreja-Cristandade, o sentir
do papa, o direito canónico.

Vejam-se, por exemplo, os capítulos gerais levados às Cortes de 1456 (Lisboa). As


grandes áreas das reivindicações clericais desde D. Dinis e D. Pedro I estão aí quase todas:
beneplácito régio, padroados das igrejas, testamentos. Os argumentos jurídicos apelam
invariavelmente para o direito canónico, dito «comum» (comum da Cristandade), e para decisões
conciliares, igualmente universais, ecuménicas e supranacionais. O direito pátrio, ou o direito
romano, não só não são invocados como até são combatidos. Para as mentes clericais, a ordem
jurídica só pode ser a canónica, aquela que Roma dita. E rei que imponha o contrário desmerece
de católico. Só que os príncipes não são mais submissos – até porque o Grande Cisma e as teorias
conciliaristas pregam outra linguagem. A teocracia acabou.

O clero tem-se como um grupo especial de portugueses, aliás pouco preocupado em


esclarecer se é português ou não. Mas isto não quer dizer que se ponham à margem dos negócios
nacionais. Sabe-se que em todas as conjunturas políticas, expansionistas e militares eles estão lá.
Como estiveram nos conselhos régios, na educação dos príncipes e nas embaixadas régias.
Obviamente, como homens de saber, de linhagem e de poder. Mas nunca segundo o modo de
estar popular e burguês.

O sentido e a direcção do actuar colectivo da clerezia verificaram-se segundo motivações


que não podiam originar consciência de nação e sentimentos patrióticos. Por outras palavras, os
modos e vias da eclosão e fortelecimento da consciência colectiva de nacionalidade e patriotismo
devem procurar-se fora dos territórios rigorosamente clericais.

E o médio e baixo clero: os párocos, frades e monges? Este clero mentalmente é povo. De
concordatas não sabia nada. Esse clero de direito, ética e filosofia política sabia nada. Conhecia
os seus privilégios fiscais, forenses e sociais e exigia o seu respeito. Mas fazia-o
pragmaticamente, sem arrogância, com a espontaneidade de quem defende direitos seus só por
serem seus direitos. O clérigo comum, quase analfabeto e oriundo do povo, sabia-se distinto por
ordenação e função, por vínculo a um bispo ou mosteiro, tudo nacional e local e não por
referência a Roma ou ao papa.

Conclusão

O clero português dos séculos XIV e XV afigura-se-nos como um grupo social


multifacetado e extremamente desigual. Há o alto escol, constituído por prelados e dignidades

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capitulares, gente instruída e poderosa, rica e influente, supranacional de ideias e motivos,
incómoda para os reis e para as autoridades concelhias.
Esta gente viveu de honras e soberbas, alimentou entre si conflitos e discórdias, mas,
agredida ou contrariada do exterior, soube formar ala coesa e ser estado dentro do Estado. Roma,
o papa e os cânones habitaram suas mentes, de modo que Portugal, o rei e o direito pátrio não
acharam nelas grande espaço. Depois o médio e baixo clero. Clérigos oriundos de toda a espécie
de povo actuaram e sentiram em conformidade com o meio. Rurais entre os rurais e urbanos entre
os urbanos, esfumam-se na história da noite. Foram povo.

 Caracterizar a nobreza atendendo à hierarquização, poder, valores e


sustentáculos materiais de sobrevivência.

Nobres. Nos séculos XIV e XV os nobres são um grupo social tão poderoso quanto
reduzido. Menos de 1 % da população. Um grupo, porém, extremamente heterogéneo, de modo
que o epíteto «poderoso» cabe somente a um reduzidissimo escol – o mesmo que verificámos
atrás a respeito dos clérigos. Ver quadro.

A nobreza é um grupo a que se acede por nascimento, por promoção e, indevidamente,


por auto-equiparação. No primeiro caso, o critério é o parentesco, o sangue ou a linhagem; no
segundo, é administrativo-político; no terceiro, é socio-psicológico, de apropriação de um status
franqueado pelo capital económico e social. É evidente que esta última nobreza «oficialmente»
não o é, pois só o rei, ou quem ele autorizasse, podia fazer nobres.

Mas o facto de haver nobres «por decreto» significou desvirtuamento dessa ordem. No
acreditar no sangue, que foi social e político, se baseou a ordem, a inacessibilidade do grupo, a
sua coesão, a justificação dos seus privilégios.

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As Ordenações afonsinas classificam de fidalga a linhagem invocada e atribuída durante
quatro gerações, pelo menos. Isto para esconjurar usurpações, pois, argumenta-se, para cima de
bisavô poucos são os que podem guardar memória. Se conseguirem guardá-la, escrita ou por
outro modo, tanto mais sobem de honra quanto em número de graus.

Sejam quais forem os critérios de nobreza e nobilitação - sangue, benfeitoria ou


usurpação - do ponto de vista antropológico-histórico eles são perfeitamente iguais. Só do ponto
de vista político ou jurídico podem ser distinguidos.
Assim, a nobreza é uma ordem- estado teoricamente aberta, pois o rei pode nobilitar os
que quer, e aqueles que têm modo de estado cortesão, porque na corte moram e com os nobres
frequentam, podem usurpar a nobreza que não possuem, dizendo-se fidalgos da casa d'el-rei,
cavaleiros ou escudeiros. Deste modo, a ordem-estado nobre, em teoria aberta, terá sido na prática
invadida.

Categorias

Os designativos dos nobres de linhagem foram muitos. Nos séculos XIV e XV


sobressaem: ricos-homens, grandes, vassalos, barões, cavaleiros e escudeiros fidalgos. A duas
últimas categorias, e que arrumavam os maiores efectivos, podiam dever o seu estatuto mais às
contias e criação do que à linhagem. Crê-se que em meados do século XIV as linhagens não
ultrapassariam as 150 e que 100 anos depois teriam descido para a casa de 130, o que daria, no
século XV, um total de 1000 famílias. Diminuíram de número nos dois séculos do nosso estudo.
Pestes, guerras, mudança dinástica, obediências e traições, alianças matrimoniais foram causas e
motores de grande mobilidade no interior do grupo.Contas feitas, durante os 100 anos que
decorreram entre D. Pedro I e o bisneto D. Afonso V, houve 19 linhagens que se afundaram e 22
que emergiram. No quadro das ilustres apenas 7 se mantiveram.
Com efeito, muito buliu a nobreza, porque muito buliram os tempos e as políticas: as
guerras de D. Fernando, a eclosão de Avis, a expansão para Marrocos, D. Pedro e Alfarrobeira -
tudo isso deu que pensar à nobreza. Pensar, fazer cálculos e arriscar. E não só os de carácter
político, mas também os de natureza económica. Ruralidade? Renda? Lucro? Negócio? Ser
linhagem ilustre e manter-se, exigiu muita prudência, discrição e táctica. O só uma escassa meia
dúzia a soube ter.

Ricos-homens

De todos os designativos que enumerámos para significar gente de nobre sangue,


ricoshomens merece atenção. É uma designação de alta nobreza muito corrente nos tempos
anteriores ao século XIV, tal como infanções, mas mais alto que estes últimos. No nosso período
só ocorre em textos jurídicos.
Foi o escalão mais alto e persistiu até mais ou menos 1350. A partir daí cai em desuso.
Passam a preferir-se sinónimos como «vassalos», «grandes», «vassalos grandes», «vassalos
maiores», «poderosos», «grandes senhores» e «barões». Todos “Dom”. Entretanto, vão-se
multiplicando os títulos nobiliárquicos: primeiro, o de conde, dado 1º sem carácter hereditário, até
meados do séc. XIV, depois os duques, marqueses, barões e viscondes, já no século XV. Ora, o

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uso daqueles sinónimos e a proliferação dos títulos deverão interpretar-se como causa do
esvaziamento da expressão «ricos-homens», a qual continuará, todavia, até ao século XVI, mas
com profundas alterações de sentido. Quando é que «ricos-homens» deixa de significar escol da
alta nobreza? Data certa não se sabe. Trata-se, provavelmente, de um processo derrapante e
indagável em termos de cronologia precisa. Processo que se detecta em 1361 e que parece
ter produzido efeito completo antes de 1418. De tudo isto se tira:

a) Os «ricos-homens» são categoria social reconhecida, tanto pelos reis como pelo povo,
como escalão superior da nobreza, ao qual se segue o escalão médio dos cavaleiros e o
baixo dos escudeiros;

b) Esse escalão superior é de natureza sociológica e não especificamente política,


administrativa, militar ou económica. É tudo isso junto, indistintamente, enquanto penhor
de prestígio e privilégio, leia-se de poder – “poderosos” são chamados. É poder, e que as
mulheres também detêm:suas esposas ou viúvas, as «ricas-donas». Poder outorgado em
razão do parentesco, da linhagem. Os «ricos-homens» são ainda nos finais do século XIV
um grupo exclusivamente integrado pelos membros da alta nobreza. Mas o nome já não
designa senão isso, um estatuto de prestígio. O que quer dizer que já está despido das
antigas denotações administrativas e militares.

Em 1418 os «ricos-homens» parecem terem perdido a sua tradicional coloração linhagística,


pois detectam-se arrivistas, criados por decisão régia. «Rico-homem» vira título honorífico,
distinção que nem parece elevada. Vejam-se as seguintes hierarquizações:

«Infantes, condes, fidalgos, ricos-homens e povo» (1433);

«Duques, condes, barões, ricos-homens, fidalgos, cavaleiros e outros vassalos» (1476);

Vê-se bem quanto é fluída a posição dos ricos-homens quatrocentistas no contexto da


nobreza. Distinguem-se dos fidalgos de título e vagueiam entre as categorias restantes, ora atrás,
ora à frente de “fidalgos” e “cavaleiros”.

Vendo o quadro acima verificamos então que: “ricos-homens” são os grandes fidalgos de
linhagem, mesmo infantes ou titulados de conde, até meados do séc. XIV e provavelmente até
princípios do seguinte. A partir daqui, mais oou menos 1415, não. O termo deixa de ter
significado de alta nobreza e é reservado para distinguir pessoas promovidas por benevolência
régia. É um título honorífico.

O processo degradativo é um fenómeno do séc. XV.

«Grandes»

«Grandes» preencheu a função antigamente cumprida por «ricos-homens». Em 1472 os


deputados populares eram explícitos: entendiam por «grandes» os infantes, duques e condes. E,

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embora não o digam, também os marqueses, que hierarquicamente eram mais «grandes» do que
os condes. Assim, «grandes» no século XV é alta nobreza. Mas saiba-se que essa alta nobreza,
quando de si própria fala, não se diz por esse nome. Prefere autodesignar- se por «fidalgos e
vassalos», «vassalos e fidalgos», «fidalgos e cavaleiros» e simplesmente «fidalgos».

À cabeça dos «grandes» estão os infantes, como seria de esperar. A partir de 1415 terão
título: o de duque. Embora os infantes prefiram o “infante” a “duque”.
Diga-se que no século XV os bastardos de reis parecem excluídos do direito de chamar-se
infantes.
Os «grandes» foram sempre no período do nosso estudo um grupo reduzido de pessoas.
Cálculos apontam para 500 a 600 indivíduos, cerca de 10% dos nobres todos. Mas esta minoria
senhoreou, juntamente com o clero (e, à parte, o rei), o território, a economia e o poder político
do País. Duques, marqueses, condes, viscondes e barões, com os Braganças à frente. E como o
poder gera abusos, nunca se viu tamanha soltura da arrogância como nos anos que vão de 1451 a
1477.

Cavaleiros

“Cavaleiros” é o nome da média nobreza: os textos de Trezentos dão-no-los a seguir aos


«ricos-homens». Noutros contextos, ideológicos ou jurídicos, «cavaleiros» são todos os que
acederam à ordem da cavalaria, quer por acto solene, quer por decisão administrativa ou por
simples reconhecimento de pares.
O cavaleiro do século XV era um escalão social e muitos iam às praças marroquinas no
intuito de o atingir, e com isso obter a inscrição no livro dos cavaleiros da corte, e o acesso às
contias. Outro modo de o atingir foi administrativo e há-de ter contemplado letrados, funcionários
régios e até burgueses. Outro modo ainda terá sido o reconhecimento tácito, conforme se disse;
porventura o mais corrente: filho que sucede a pai, por exemplo.

Tudo isso fez com que os cavaleiros dos finais do século XV fossem em número, perfil e
obediência muito diferentes dos dos princípios do século XIV. Em 1305, ser cavaleiro era uma
alta distinção, que só o rei podia conferir, e conferia-a mediante a cerimónia da investidura. A
proliferação e aviltamento da categoria acentuou-se na centúria quatrocentista, efeito de três
factores: conquistas do Norte de Africa, burocratização da administração central e incremento do
comércio marítimo.

Enfim, os «cavaleiros», média nobreza, constituíram o grupo mais numeroso dos


fidalgos. É mesmo provável que para o povo eles tenham sido os fidalgos sem mais. Grandes,
poderosos e senhores eram os outros, os da alta nobreza. E os da ínfima espécie são ditos
«escudeiros», «acostados» e «apaniguados», ou «homens de».

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Vassalos

“Vassalo” havia significado homem que servia o rei na guerra com corpo e haveres e
que, por esse serviço, beneficiava de contrapartidas. Por isso, todos os nobres, de cavaleiro para
cima, eram vassalos e recebiam «contia» ou «tença».
No século XV, depois da conquista de Ceuta, «o estado dos vassalos» é invadido por
plebeus. As contias deixaram de se pagar, até porque aos plebeus bastavam os privilégios fiscais e
as isenções de muitos encargos concelhios que o estatuto outorgava - coisas que não contavam
para os vassalos fidalgos, que, por serem fidalgos, já as usufruíam. Assim, ser «vassalo» no
século XV só interessou aos do povo. Assim compreende-se que os nobres tenham deixado de se
autodesignar desta maneira.

Então inventam-se modos de gratificar as novas distinções dos «grandes», dos


«titulados», dos «cavaleiros» e dos «escudeiros», pelo que às «contias» desvirtuadas sucedem-se
os «assentamentos», as «moradias» e os «casamentos». Tudo pago a nobres. As tenças
continuarão a ser pagas a fidalgos e plebeus, homens e mulheres, leigos e clérigos, escolares
e moços fidalgos. Sendo recompensas régias, havia-as obrigatórias e por graça, vitalícias e
temporárias. Os povos acham que os fidalgos de benfeitoria, que o rei cria «em desordenada
regra», são ruína do erário público. D. Afonso V, em princípio, concorda com os povos. Diz que
vão cessar. Mas introduz uma figura que vai minar tudo: os «contentamentos».
«Contentamentos» eram prendas, obséquios materiais. Podiam ser dados sob a forma de tenças,
essas precisamente que os povos pretendem abolir.

Com D. João II as «tenças» continuaram e entrarão pelo século XVI dentro. Razões?
Económicas, financeiras, políticas. Mas também ideológicas. O rei tinha a obrigação de ser
magnânimo, largo na dispensa de bens. Ora, as tenças eram o modo de ele exercer e mostrar a sua
magnanimidade junto dos clérigos e dos povos. Inclusive dos concelhos. Pois os subsídios
restantes, «assentamentos», «moradias» e «casamentos», eram específicos de nobres ou de
moradores de suas casas, como dos da corte do rei. Não admira, portanto, que D. João II, um
monarca tão atento à sua imagem, tenha mantido essas despesas que o povo rotulava de sobejas,
desarrazoadas e até pecaminosas.

Os assentamentos eram pagos a nobres de título, a começar pelo rei, príncipes e infantes
ou infantas. Trata-se de um subsídio ordinário. Os assentamentos foram instituídos para que a
mais alta nobreza e os jovens que se emancipavam pudessem manter o seu estado. Face a esta
interpretação, os assentamentos não foram criados para substituir as contias, já que estas eram
concedidas por motivo militar e aqueles por motivo socio-político ou de exigências de estatuto.
As contias entraram em desuso no primeiro quartel do século XV, mas só porque os vassalos
depois de Ceuta se multiplicaram desmesuradamente. D. João II estabeleceu um número certo de
vassalos em todo o reino, que rondaria os 2000, aos quais garante pagamento de contias. São um
corpo militar análogo ao dos besteiros, popular por condição e caracterizado pela obrigação de ter
cavalo e armas adequadas à guerra de cavalaria. De resto, as próprias contias não têm outro
significado senão o de subsídio para manter o cavalo.

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Há, por conseguinte, uma grande diferença entre assentamentos, contias e tenças. Os
assentamento, tendo começado pelos infantes da Inclita, revestiram-se de um significado
distintíssimo. Em 1473 os assentamentos exauriam 70% do orçamento do Estado e
contemplavam, além do rei, o príncipe herdeiro, a sua mulher, a irmã, os duques, os condes, o
condestável, os capitães das praças marroquinas, o bispo do Porto e diversos outros.

Moradias e casamentos

As «moradias» eram subsídios concedidos por razão de morada. Pagavam-nas os reis e os


senhores. Quem trouxesse em sua casa fidalgos, desde cavaleiros a moços, pagava-lhes esse
subsídio. Dado que sempre foi obrigação alimentar e vestir os da casa, fossem quem fossem, as
«moradias» são pagamentos para lá desta obrigação. As da corte (que são as únicas que
conhecemos) eram despesas extremamente vultuosas, a ponto de o rei as negociar com
mercadores. Era o chamado «trauto das moradias». O negócio consistia em pagar aqueles
subsídios em panos, pelo que o rei comprava por grosso e «vendia» a retalho, economizando a
diferença, que devia ser grande. Lucrava ele e o mercador arrematante, não sendo prejudicados os
beneficiários das moradias, os quais, se preferissem, eram pagos em dinheiro ou noutros géneros.

Os «casamentos» eram subsídios, em dinheiro ou em géneros, pagos pela corte aos


moradores dela e servidores do rei, fossem fidalgos ou não, homens ou mulheres, quando eles
fundavam casa própria por motivo de matrimónio. Era uma instituição generalizada e mesmo os
burgueses ricos davam «casamentos» aos seus serviçais. Tratava-se de um acto de generosidade
imposto pela moral e pela honra. Velar pelos servidores e servidoras, quando o serviço findava -
por mudança de estado deles ou por morte do senhor -, era um imperativo primário. As despesas
com casamentos, dado o número de beneficiários, nunca atingiram os montantes das moradias.
Mas, apesar disso, foram despesas avultadas, as quais todos os anos ocorriam, com maior ou
menor frequência.

Em suma, os fidalgos, grandes e pequenos, da corte ou de fora, constituíram para o rei e


as finanças do Estado um peso fortíssimo. Era a custa da fidelidade; o penhor da magnanimidade,
da senhoria, da alteza e da majestade. Por isso os reis eram tratados e reconhecidos por esses
nomes evocativos do «dom»: «vossa senhoria», «poderoso senhor», «vossa alteza», «real
majestade». Ser pródigo era preciso. E todos o foram, uns mais, outros menos. Apesar das vozes
do povo pagante. Antes de passarmos adiante, pensemos na verba assombrosa das
magnanimidades. Com D. Afonso V, o Porto precisaria de 493 anos e uns meses para juntar verba
equivalente. E com a condição de não gastar um centavo. Por aqui se vê quanto custava à nação,
às forças produtivas dela, a nobreza que a defendia.

A honra e o proveito

Grupo heterogéneo o da nobreza, integrado por infantes, duques, marqueses, condes e por
aí abaixo até aos pelintras de espada a cinta. Irmanava-os uma ideia: a de serem superiores ao
comum dos Portugueses. Para a nobreza do século XV, o proveito cifra-se no dinheiro. Preparam-
se os tempos do fidalgo-mercador e são precisamente os mais altos, reis à frente, que os estão a

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preparar. Na segunda metade do século XV, a mercancia já não avilta e a corrida ao lucro
proporcionado pelo comércio entusiasma a nobreza, a qual segue os seus modos de sempre,
subjugando, oprimindo, coutando. A antiga noção, «proveito-terras-jurisdições» continua ainda,
sem dúvida. É prestígio, honra palpável. Mas a mobilidade social e geográfica, a transferência da
qualidade de vida para as cidades, o apreço cada vez maior do luxo, a compulsão para ter
escravos, tudo isso virou a cabeça dos nobres. Uns acompanham a história e revêem os
tradicionais valores; outros enquistam, ruralizam-se cada vez mais e contemplam as novidades
dos séculos com o desdém dos virtuosos. Todos fidalgos de segunda. Ficarão pelo Minho e pelas
Beiras, sempre iguais, quase até aos nossos dias.

A auto-imagem dos nobres

Conhecidas as categorias dos nobres, tentemos perscrutar os sentidos e direcções do seu


agir como grupo. Ou, por outras palavras, os modos da convivialidade que prosseguiram uns com
os outros e com os de fora. Para sabermos isso o melhor é ler os discursos colectivos que fizeram
e os dos outros grupos nos itens em que deles se fala. Discursos de nobres chegaram poucos.
Sabemos que foram oradores assíduos a respeito de tudo junto dos reis, em conselhos e cortes,
mas pouco ficou.
Em 1361, os nobres pedem e reverentemente admoestam que não sejam metidos a
tormento, excepto nos casos tradicionalmente previstos. Nem que sejam encerrados em cadeias
«entre os vis e refeces homens» por feitos de nada, desses que não implicam pena corporal. Mas,
ainda assim, distintos, pergaminhos na mão. Sentem-se escol.

Em 1398 o discurso dos nobres traduz receio. A guerra acabara e os fidalgos regressados
às terras dão-se conta de mudanças processadas por todo o lado. Umas reais, outras imaginárias.
Reais eram diversas medidas de natureza fiscal, como as sisas que pesavam sobre toda a gente.
Também uma inflação galopante consumia o valor da moeda, envilecendo as rendas e os tributos
em numerário, ao mesmo tempo que tornava insuportáveis os custos dos géneros e da mão-de-
obra. Ainda o panorama social, a bem dizer novo, pois o povo das grandes cidades e muitas vilas
obtivera regalias que conflituavam com os privilégios deles. De modo que os nobres
imaginavam-se perseguidos, cerceados nos antigos foros, usos e costumes do seu estado.

De qualquer modo, a nobreza que fala em 1398 é uma nobreza orgulhosa e exigente.
Reivindica em todas as direcções, no económico, no político-administrativo, no fiscal, no
jurisdicional. Exige actualização das rendas de dinheiro, isenção de sisas e portagens, pagamento
atempado e íntegro das contias, fruição plena do privilégio de aposentadoria e comedoria, isenção
jurisdicional completa nas suas terras face às justiças régias e concelhias. Reivindicam contra os
concelhos, os oficiais régios e a clerezia; enfim, contra o próprio rei. E em nome de quê? Do
«seu» direito, e dos «seus» privilégios.

Nas Cortes de Évora de 1408, os fidalgos voltaram a fazer discurso. É pena não ter ficado
o teor original dos fidalgos, mas sim resumos da chancelaria. Sabemos que se sentiam agravados
dos corregedores, do rei e de diversos funcionários da monarquia. Quer dizer, dez anos sobre

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1398, os receios nobiliárquicos estão confirmados e a sua arrogância submetida. Tanto que aquilo
que se pede é praticamente o devido. O próprio rei aparece agora a moderar o ímpeto zeloso dos
seus oficiais. Que não excedam os seus regimentos e competências, que respeitem os direitos e
privilégios dos fidalgos. Depois disto, só voltamos a ouvir a voz dos nobres em 1472-1473. Muita
coisa sucedeu entretanto: tomada de Ceuta, desastre de Tânger, histeria de Alfarrobeira, as
navegações e o alargar da economia, a afirmação da classe burguesa, a multiplicação dos
mesteirais, o apelo das cidades e, enfim, a complexificação da estrutura nobiliárquica - nobres de
título, nobres de sangue, nobres de benfeitoria, nobres de usurpação. E, para completar, vive-se
em Portugal o apogeu do neo-senhorialismo, que Afonso V deixa andar.

Estão aí os Braganças e os Viseus, além de condes. Não há arrogância nem medo, mas
segurança, tranquilidade e indisfarçada complacência no tocante ao rei. As cortes visavam
reformas, mas os fidalgos pensam sobretudo em si, nos privilégios do seu grupo. Os nobres não
querem reformas estruturais, ao contrário do que desejam os deputados concelhios. Querem
privilégios, acrescentamento dos que têm e recuperação de perdidos: exclusivo de familiaridade
com o rei, tenças e assentamentos, aposentadorias gratuitas, total isenção nas suas terras
relativamente aos corregedores, acompanhamento das inquirições que lhes digam respeito. E
mais: presença nas câmaras municipais; revogação de todos os capítulos de cortes feitos sobre
eles, de que eles não tiveram prévio conhecimento; imprescindibilidade de serem ouvidos antes
de qualquer acto legislativo a seu respeito, seja de quem for a iniciativa ou proposta. Razões para
isto tudo: antiquíssimos foros e costumes, a honra, o proveito, o prestígio.

 Estabelecer os factores de conflito interno da nobreza.

Antagonismos internos

Grupo coeso e harmonioso, o dos nobres? Leva-nos a pensar que, por debaixo do tom
harmonioso e consensual dos discursos nobiliárquicos em cortes se escondia um fervilhar de
invejas e rancores, desaguisados e forças, orgulhos e desmesuras, rivalidades e ódios. A
convivialidade da nobreza, com efeito, parece ter discorrido sob o signo da discórdia. É ver as
guerras, as vindictas, as intrigas e as traições.

Credibilidade social

A nobreza de Portugal, nos finais da Idade Média, foi um grupo detestado pelo povo. Em
todo o período do nosso estudo, 1325 a 1484, a imagem dos povos a respeito dos nobres não pára
de enegrecer. Ano após ano. Eram aposentadorias e empréstimos forçados, impostos e tributos
privados, malfeitores protegidos, casamentos forçados e abusos sexuais, portagens e passagens,
preços de géneros desrespeitados, usurpações de toda a espécie. E, acima de tudo, abusos da força
e das jurisdições.

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E de nada valeram as medidas régias publicadas nem a sua consagração nas Ordenações
Afonsinas. Nas suas terras e pelos caminhos, o fidalgo abusava - ele pessoalmente e a cáfila que o
seguia: escudeiros e até assassinos a monte que ele arregimentava como guarda-costas e testas-
de-ferro. A soltura fidalguesca atingiu tais cúmulos que os povos chegaram a solicitar ao rei duas
coisas excessivas: primeira, mobilizar as populações quando fosse preciso ir às terras dos fidalgos
e obrigá-los a cumprir as leis; segunda, que as pessoas, de dentro de suas casas, pudessem «sem
coima» atirar à besta sobre os homens dos fidalgos publicamente reconhecidos como assaltantes e
violadores. À primeira, o rei, aliás o infante D. Pedro, disse que sim - desde que as populações
fossem mobilizadas e dirigidas pelos corregedores e justiças municipais; à segunda, D. Afonso V
disse nada.

Recapitulando, os fidalgos dos séculos XIV e XV foram um grupo heterogéneo,


minoritário, muito rico e instável. Altos, médios e baixos, três escalões percorridos de cima para o
fundo e do fundo para cima segundo golpes de sorte e azar - políticos, militares, económicos,
matrimoniais, culturais e de ofício. Linhagem e lealdade aos reinantes foi o segredo do êxito, o
que exigiu saber perscrutar os tempos e os partidos, ser prudente. Erros de cálculo houve que se
cifraram em exílio e má morte. Ser fidalgo não foi fácil.

A alta nobreza foi um grupo rico em terras, rendas, direitos, investimentos, tenças e
assentamentos. A média, foi mais ou menos. E a baixa, pobre na sua generalidade, dependente
das outras duas e de prelados, alienada de posses e vontade, foi formada de escudeiros. Muitos
misturavam-se com os assassinos que os amos acolheram e cumpriam missões punitivas,
dissuasoras ou de mero espavento. Eram os proletários da fidalguia. Esses a quem, mais que
nenhuns, o povo temia e odiava.

 Traçar uma panorâmica sobre o “estrato do trabalho” tendo em conta a sua


heterogeneidade.

Povos. Os povos foi o grupo social mais heterogéneo nos séculos XIV e XV. É
extremamente difícil estabelecer-lhe os contornos. Invadiu franjas dos clérigos através dos
tonsurados e minoristas casados e invadiu a nobreza mediante os vassalos d'el-rei e a fidalguia de
usurpação, para não falarmos já dos escudeiros e cavaleiros burgueses, títulos destituídos de
conotação militar, e dos amos e colaços de fidalgos, parentela extra-linhagística cumulada de
distinção e privilégios. Além do mais, há que meter no seu seio os judeus, os mouros, os
estrangeiros e os escravos.

Configuração social

Atrás distribuímos os povos sociologicamente em duas grandes categorias: estados-


profissões e classes. Mas agora, que buscamos sentidos e direcções da acção, modos de
convivialidade social, essa arrumação afigura-se demasiado genérica. Com efeito, o povo pode
ser contemplado tomando perspectivas distintas, tais como laboral, militar, política, religiosa,
estatutária. Falaríamos então de mercadores, funcionários, mesteirais, mendigos e muitos outros.

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Ou então por sectores: primário, secundário e terciário. E mais: honrados, meãos e baixos;
afazendados, remediados e pobres; urbanos e rurais; cidadãos, vizinhos, homens de outrem e
escravos.

Para a nossa intenção de momento bastaria desvendar dois tipos de socialidade: a urbana
e a camponesa. Mas desde logo se vê que isso é trabalho insano, porque não houve uma
socialidade rural face a outra citadina. Houve muitas. Porto e Braga, por exemplo, tão próximas
na geografia, ambas cidades bispais, quão diferentes!

O trabalho

O grupo do povo define-se pelo trabalho. «Trabalhar» em todo o século XV é sofrer. Mas
o labor dos campos, passou para as cidades e mudou. Fez-se indústria, serviço e negócio. É
dinheiro ou riqueza, emblema e chave de poder. Por via dele os povos entram nas cúrias régias e
são inventadas as cortes. Por causa dele se vai esfacelar a teoria das ordens e a dos estados. Ele
foi a razão e o medo dos burgueses e a esperança dos mesteirais. Foi a oportunidade de os
concelhos falarem alto aos reis. Não queremos com o exposto afirmar que o dinheiro seja a
explicação de tudo no período que nos ocupa. Mas não podemos deixar de advertir que onde
houve explicações a dar, ele lá esteve. E, como cada vez mais foi produto do trabalho, o trabalho
virou direito do povo. Especialmente o trabalho dito «negócio», que era o mais lucrativo.

A dignificação das actividades laborais tem seu início no Ocidente durante o século XII.
Essa teologia foi pensada nas cidades e para servir a Cidade. Como é que as suas lições são
remetidas para o campo? Porque o trabalho por excelência, esse que mais aproxima o homem da
Natureza e de Deus, é o da agricultura. É de crer que esta atribuição de sentido dignificante à
lavoura tenha tido consequências na socialidade rural. Assim, é de suspeitar que a excelência do
rústico tenha transitado da posse da terra para o engenho de saber aproveitá-la.

Fora das cidades e vilas era o mundo dos lavradores, que se caracterizou pelo
monolitismo profissional: muitas tarefas, uma só profissão. Certamente que se distinguiam uns
dos outros, e cremos que a distinção, mais do que assente na propriedade da terra, se baseava na
extensão e qualidade dos espaços aproveitados, ou seja, na quantidade de riqueza apropriada. Por
isso, pôde o dono de uma propriedade ser menos na escala social aldeã do que o foreiro de uma
grande quinta. Eram as terras que se «faziam», próprias ou alugadas, que ditavam a importância
social relativa dos lavradores.

A distinção dos lavradores pelo usufruto predial era contemplada pelo fisco, pela
organização militar e pelo sistema político-judicial. A propriedade de bois de trabalho e seu
número decidia os escalões fiscais, a obrigatoriedade de ter cavalos de guerra e éguas de marca e
de ir ou não na hoste e com que arma; e ainda sobre posicionamento face ao direito penal,
aposentadorias passivas e obtenção de coutadas de pasto. O critério de ter ou não ter bois de
trabalho acabou por ser o melhor distintivo da «profissão», muito mais do que lavrar terra própria
ou alheia.

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Pode-se então concluir que nos campos não houve especialização laboral, que todos
viviam da terra e para a terra e que, excluídos os senhores, as distinções assentavam na
quantidade e qualidade das lavras? A resposta afirmativa é válida para as regiões do País
eminentemente agrícolas e de preferência caracterizadas pelo povoamento disperso. Para as
outras zonas há que estabelecer matizes. O Entre Douro e Minho, a Estremadura e a Beira
atlântica caberiam no quadro; Trás-os-Montes, Beira transmontana e Alentejo provavelmente
não; o Algarve litoral talvez sim, contrariamente ao Algarve da serra. Numa palavra, para a
compreensão das socialidades rurais há que contar com diversas variáveis, tais como: agricultura,
pesca, pastoreio, agricultura-pesca, agricultura-pastoreio, povoamento disperso-concentrado,
pastos-prados, pastos-campos e pastos-serras. A diferença agricultura versus pastoreio desde logo
implica diferença de necessidade de mão-de-obra, inclusive em termos de família e parentesco e
de valorização ou desvalorização do trabalho feminino. Por seu turno, a diferença povoamento
disperso versus concentrado, seja qual for a actividade económica, irá originar esquemas de
relações vicinais distintos, com efeitos na convivialidade global.

Ter ou não braços coadjuvantes era uma questão fulcral para os lavradores, tanto mais
premente quanto maior a extensão e qualidade das lavras, a qual se procurava resolver por modos
diferenciados: filhos, parentes, criados, jornaleiros e reciprocidades comunitárias. É bom de ver
que só o modo da parentela era seguro e barato. O das soldadas andou muito dispendioso nos
séculos XIV e XV, devido à crise demográfica posterior à peste negra e à fuga dos trabalhadores
para as cidades. Por seu turno, o processo das reciprocidades comunitárias era incapaz de
satisfazer ambições pessoais. Daí a disputa de órfãos - que a legislação municipal e central tenta
corrigir, especialmente no século XV; daí também a procura matrimonial de viúvas com filhos
menores; daí a ruína de bons lavradores a quem mortes repentinas arrebataram familiares. Três
ideias nítidas: primeira, a imprescindibilidade de vasta mão-de-obra para as fainas agrícolas;
segunda, a carência e carestia dela depois da peste negra; terceiro, o vale-tudo para a sua
obtenção.

Foi para resolver a carência, temperar a carestia e pôr ordem naquele vale-tudo que se
produziu uma vasta legislação atinente ao trabalho, a qual incide em dois itens: fomento da mão-
de-obra agrícola e sua subordinação aos patrões. Com o tempo, segunda metade do século XV,
veio acrescentar-se um terceiro: controlo do proletariado urbano, ou contenção das clientelas de
mesteirais. Trata-se de uma política repressiva da mobilidade socioprofissional estatutária e
geográfica, inspirada, primeiro, pela aristocracia rural e, depois, pelos aristocratas urbanos, a
qual, se bem que encabeçada pelas elites municipais, encontra sem dificuldade o apoio dos
fidalgos, do clero e dos reis.

A legislação laboral portuguesa é posterior à tragédia da peste negra de 1348. A primeira


lei geral conhecida que se debruça sobre questões laborais data de 1349 e aponta logo os
parâmetros acima evocados. A partir daí pode-se afirmar que praticamente não houve cortes em
que a matéria «trabalho» não fosse abordada. Mas nem todos se reportam ao trabalho do campo:
há aí matéria de mesteirais, mercadores, ourives, pastores e serviçais das cidades e vilas. Todavia,
o tema «lavradores e assalariados rurais» é o mais assíduo, o que denota duas coisas: primeira,
que a questão foi tida por muito importante pelos homens da governação concelhia; e segunda,

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que o mundo do trabalho teimava em fugir às orientações que lhes impunham, ou seja, à política
de fixação dos trabalhadores ao modo de vida dos pais, submissão a salários estabelecidos
administrativamente, sujeição a tempos de serviço mínimos às ordens do mesmo patrão e
interdição de transitar de localidade para localidade.

Podemos afirmar que os monarcas mais liberais para com os trabalhadores foram D.
Duarte e D. João II, como também podemos afirmar que os maiores «inimigos» do trabalhador
rural e urbano foram os aristocratas municipais.

Contradições

Tira-se do exposto que o grupo popular, em termos de conflitualidades internas e de


relacionamento com os nobres e os clérigos, seguiu a regra geral, seja na cidade seja no campo:
divisão e efervescência. Burgueses contra mesteirais, os de intramuros contra os dos arrabaldes,
todos contra os aldeãos e os aldeãos a suportá-los, só porque precisavam de subsistir. Uma
socialidade de atritos, que duas forças parecem manter em equilíbrio instável: a necessidade e o
medo. Necessidade uns dos outros e medo das justiças, mais das humanas do que das divinas.
Porém, quando a necessidade virava raiva ou o medo quebrava os grilhões, a violência explodia.
Isso sucedeu muitas vezes por toda a Europa e em Portugal. Revoltas de camponeses, revoltas de
mesteirais, as duas em simultâneo, ciompi florentinos, jacques franceses, labourers da Inglaterra,
da Flandres e da Alemanha. Em Portugal, as insurreições verificaram-se pela mesma altura, ou
seja, durante o reinado de D. Fernando. Os judeus, habitualmente bem consentidos, não
escaparam. Diga-se, porém, que isso aconteceu raramente e que os motivos despoletadores foram
mais de natureza económica e social do que de natureza religiosa. É de crer que o ódio ao judeu
só foi crónico, no período do nosso estudo, entre os clérigos e os burgueses. Nos primeiros,
porque tal desejavam os cânones e o credo e, nos segundos, por invejas e rivalidades
administrativas e económico-financeiras.

De modo que as direcções e sentidos da actuação popular nos séculos XIV e XV tiveram
por razão o trabalho e a segurança. Que nas camadas mais baixas se bastava subsistir; e nas mais
altas se sublimavam no lucro, no prestígio e no poder. Mentalidades pequeninas, as primeiras;
mentalidades abrangentes, as segundas, abertas à largueza do País e ao confronto com o mundo.
As primeiras são autárcicas e bairristas; só as segundas são realmente nacionais. Mas quando há
perigos externos todos se unem na defesa das searas e das vinhas, das casas e dos currais, das
oficinas e dos armazéns, das mulheres e dos filhos, das igrejas e dos castelos, de Portugal e do rei.

Conclusão. Dissemos no princípio deste capítulo que iríamos tentar responder a estas questões:
Que socialidade? De consenso ou de conflito? De integração ou de luta? Depois de termos
passado em revista os nobres, os eclesiásticos e os povos, tentando perscrutar-lhes as atitudes e as
imagens, os modos de convivialidade e o relacionamento de uns com os outros, parece-nos poder
responder assim: a socialidade dos Portugueses naqueles dois séculos caracterizou-se pelo
conflito e a luta. Isso tanto no interior dos grupos como nos grupos entre si. São séculos de crise e
de rápida transformação. Guerras, pestes, fomes, centralização monárquica, tudo isso aliado a
uma contiguidade territorial com Castela portadora de ameaças e tentações, fizeram com que o

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clero, a nobreza e o povo geralmente andassem desavindos e usassem uns contra os outros as
armas que possuíam. Claro que os mais pobres foram os mais atingidos - que é como quem diz, o
povo. Nomeadamente esse povo que vivia submetido a senhores, laicos e eclesiásticos, ou
labutava em regiões de poder concelhio frágil e displicente. A clerezia tinha prestígio, autoridade,
privilégios e anátemas; a nobreza tinha armas, riqueza, regalias e poder; o povo tinha o trabalho e
o medo, ou então, aristocracia mínima, o dinheiro, as cidades, a força da denúncia. Os mesteirais,
e quase só os de Lisboa, depois de efémeras conquistas em 1383-1385, tiveram de se acomodar à
sua condição de proletários submetidos e vigiados. De modo que só um grupo parece ter
conseguido superar as conflitualidades internas, unir-se nacionalmente e formar classe de facto -
actuando politicamente de modo consensual e eficaz. Foi o grupo dos burgueses, homens ligados
ao comércio. Serão eles os principais geradores da ideologia não guerreira do interesse e valor
nacionais. Logo, do sentimento de patriotismo para uso quotidiano.

Mas não fica tudo dito. É que essa socialidade geral de luta e divisão conheceu
parênteses. Aqueles que as guerras abriram e fecharam. Pois nessas alturas, apartados os
Portugueses em dois grupos, amigos e traidores, os cleros, as nobrezas e os povos formaram
bloco coeso. Nessas alturas quebraram-se as barreiras das ordens e dos estados.

Conclusão geral

A socialidade portuguesa dos finais da Idade Média não foi simples. A gente procura
perscrutar-lhe as estruturas, as direcções e os sentidos e vê-se a cada passo desprovida de
instrumentos conceptuais adequados. Ordens? Estados? Classes? E depois: qual o sentido exacto
de cada uma destas categorias sociológicas? A sociedade portuguesa dos séculos XIV e XV já
não é de ordens. Mas gosta de pensar-se como tal. O velho modelo da tripartição trifuncional
virou topos retórico que toda a gente utiliza - cronistas, deputados, moralistas. Não passa, porém,
de um referencial irrealista, nem sequer ideológico. Mesmo nas cortes, cujos membros parecem
distribuir-se segundo o modelo, não há ordens, mas estados ou braços. É ver como as respectivas
funções se misturam e todos discutem tudo. Ora, não sendo sociedade de ordens, não tem
interesse falar-se de tripartição social nos séculos XIV e XV. De modo que as expressões «clero»,
«nobreza» e «povo» não passam de categorias lógicas, classificações sociologicamente ambíguas
- se bem que cómodas para arrumar discursos de primeiras abordagens.

Nos finais da Idade Média a sociedade portuguesa distribuiu-se por estados. Mas estados-
estatutos e estados-ofícios-profissões. O saber e a riqueza, ou o sucesso pessoal e de família,
insinuam-se cada vez mais como verdadeiros motores da mobilidade social, invadindo atribuições
anteriormente exclusivas do parentesco de filiação. A técnica rivaliza com o sangue. E assim
vimos que filhos do povo, graças aos estudos, se tornam técnicos das leis, dos cânones, dos dois
direitos, da medicina, da teologia e chegam a cónegos, a bispos, a ricos-homens. E vimos também
mesteirais que, dominando a técnica da escrita, se fizeram escrivães, porventura funcionários
superiores. E pense-se noutras técnicas promovedoras, desde a da contabilidade comercial até às
dos mestres de oficina, passando pelas dos ourives, pintores e músicos. É o trabalho, intelectual e
manual, a fazer estalar as fronteiras da sagração e do sangue. O trabalho a enobrecer o
trabalhador? Não própria nem imediatamente. Porque imediata e propriamente foi o prestígio do

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saber e o lucro do fazer, ambos traduzidos em riqueza, que fez o enobrecimento, ou a subida de
estado-estatuto. Mas há um grupo que escapa a isto: o dos burgueses.

Burgueses, recorde-se, homens de burgos, cidades e vilas, livres de submissões directas


económicas, os mais ricos dos lugares, detentores actuais ou potenciais do poder das autarquias,
intérpretes oficiais do povo e vozes reconhecidas junto de todos os outros poderes. Estes homens
distribuíram-se por muitos ofícios e profissões, mas são homólogos quanto ao estado-estatuto.
Que não é clerical nem fidalgo, nem popular simplesmente. É estatuto de «homem-bom»,
«honrado da terra», «nobre do lugar». Estes homens, se bem que procurem incorporar no seu
perfil emblemas de distinção nobiliárquica e intelectual, como grupo diferenciam-se radicalmente
de nobres e clérigos até porque, no xadrez social, se distinguem por oposição a eles, oposição
desejada e advertida. Não rejeitam a excelência do ter. E se temem os mesteirais, fazem-no
precisamente por isso, porque sabem que o dinheiro é razão de poder e prestígio. Compreende-se
assim, que, ao contrário de outros grupos, eles não tenham complexo em dizer-se tanto «bons»
como «afazendados», tanto «ricos» como «honrados». Ora isto é específico dos burgueses – não
importando o local onde residem, cidade ou vila mercantil ou rural, nem a geografia da
residência, litoral ou interior, Norte ou Sul, nem o modo de vida profissional predominante de
localidade para localidade. Os burgueses formaram verdadeiramente uma «classe». A única de
âmbito nacional nos séculos XIV e XV.

Não estranhamos que tenham sido eles os reais catalisadores dos sentimentos nacionais
que cristalizam em «patriotismo». Reais catalisadores, porque só eles puderam reunir em cortes
com povo de todo o País, de modo assíduo, e tratando questões do reino todo. Patriotismo é
sentimento que pode nascer no bairro, mas tem de ser levado até aos limites do território e das
fronteiras da língua e corporizar-se em símbolos que irmanem a população, herdeira da mesma
história, empenhada no mesmo presente e apostada no mesmo futuro. E quem pôde fazer esse
trabalho? Alguém que se sentisse intérprete do povo, que pudesse dizer «Portugal» e
«Portugueses» com conhecimento do País e dos seus problemas e ansiedades, tanto os de
natureza intestina como os desencadeados por inimigos externos. Alguém que fosse capaz de
fazer a síntese local-regional-nacional e visse nessa síntese uma «ideia» diferente de estrangeiro
ou inimigo. É evidente que só um grupo podia ter feito isso: os burgueses.

Não podia ser os clérigos? Não os altos, que eram gente de motivações supranacionais,
com seu direito, suas obediências e sua sensibilidade acima de Pátria. Faça-se, porém, a excepção
dos mestres das ordens militares e priores do Hospital. Só que estes homens eram nobres e como
nobres pensavam e agiam. Cabem na categoria daqueles que actuavam por amor da «honra e
proveito». O médio e o baixo clero, no que toca a este assunto, foram povo. E como tal hão-de ser
«responsabilizados».

Os nobres, por outros motivos, correram parelhas com os clérigos. Não já em nome de
uma obediência supranacional, mas em nome de uma ética que não conhecia fronteiras: «a honra
e o proveito». Foi a honra e o proveito que atraiu fidalgos franceses, ingleses, castelhanos e
outros a Ceuta e todo o Marrocos, como também foi o mesmo motivo que levou portugueses aos
reinos da Cristandade. A honra e o proveito foram a pátria da nobreza. E só quando o proveito

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vira lucro burguês é que vemos os nobres atentos ao território, às ilhas e às navegações. Os
nobres fizeram a Pátria, sem dúvida, mas sem sentir o que faziam. Mesmo que por fidelidade o
tenham feito, tratou-se de fidelidade jurada a homens, sempre susceptível de se anular, ditassem-
no as conjunturas. Ora, o patriotismo não se compadece de conjunturas nem se fixa em
indivíduos. A genuína mentalidade nobiliárquica, votando sempre na honra e proveito,
considerava os sinais dos tempos e jogava no oportuno. Ao contrário, a mentalidade patriótica,
ancorada em valores considerados absolutos, desprendia-se de oportunismos e jogava no risco.

Poder-se-á crer então que o sentimento patriótico eclodiu entre o desespero e a raiva, só
em momentos de crise? E só no ínfimo povo? Lendo Fernão Lopes, poder-se-á dizer que sim.
Mas há que saber interpretar o cronista. Se ele viu patriotismo nas revoltas dos mesteirais de
1383-1384, ele que escreve por alturas da «revolução» de 1439, então o patriotismo é dele. É uma
experiência que ele retroprojecta nos primórdios da dinastia para branquear modos e mitificar
efeitos. Uma experiência que ele bebe, não em comportamentos do ínfimo povo, mas em
actuações de burgueses - precisamente aqueles que meteram o infante D. Pedro no governo do
País. Como historiador, Fernão Lopes interpreta, presente no passado, o sentir popular de 1383. E
chama-lhe «patriotismo». Mas não teria sido mais patriótico o discurso dos burgueses nas Cortes
de 1385? Exactamente aí, em que eles, com os interesses nacionais nos olhos, apontam medidas,
recriminam processos oportunistas - dos mesteirais, precisamente -, oferecem dinheiro e
acautelam a ordem da revolução e o futuro da dinastia? São eles, burgueses, que transformam as
emoções caóticas dos de baixo em força contra os invasores de Portugal. Porque, com efeito, em
1385 a revolução não é mais «liderada» pela arraia-miúda. Os movimentos emotivos e «de
bairro» não se identificam necessariamente com patriotismo. Podem ser o explodir de uma
retaliação. E, então, o patriotismo dos mesteirais e arraia-miúda, gente demasiado atracada à sua
terrinha e respectivos horizontes, é análogo, por paradoxal que pareça, ao dos prelados e dos
fidalgos. Rigorosamente nenhum.

O patriotismo é sentimento popular, sim. Mas burguês. Diz-nos a análise dos textos,
nomeadamente os das cortes, de todas as cortes ocorridas entre 1325 e 1484. Não propriamente os
assuntos versados, mas o aparato argumentativo de cada um deles - honra de Deus, serviço do rei,
bem da «república», proveito da terra e interesse do povo. Motivos retóricos, obviamente. Mas
proferidos como supremas razões - e isto é que importa, porque são razões centradas num
consenso: o consenso da indiscutibilidade dos valores «pátria» e «nação». Dos quais Deus era o
garante e o rei o símbolo. Ora esta ideologia não a achamos nos clérigos nem geralmente nos
fidalgos. É burguesa.

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Realizações Memoráveis

Existem memoráveis realizações entre 1325 e 1484. São feitos actos marcantes e
significativos que se traduzem em rumos duráveis para o reino.
Tais realizações podem ser agrupadas por categorias: realizações administrativas,
económicas, financeiras, fiscais, judiciais, jurídicas, militares, políticas, religiosas e sociais.

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Mas vamos abordar tudo isto através de certas questões: chegados a 1484 e olhando para
trás, Portugal é-nos revelado como quê? Que perfil mostra ter construído enquanto
individualidade geopolítica desde D. Dinis até aí? Que avanços? Que direcções?
A resposta a estas qustões parece ser assim: Portugal é um Estado e uma Pátria – uma
estrutura geopolítica e social madura ou adulta.
Logo duas memoráveis realizações: estado e Pátria e passos seguros na criação do
império. Vamos abordar o Estado visto que já falámos da pátria quando falámos da ordem, e não
falemos do império pois será tema que virá depois.

O Estado

Entendemos por Estado uma sociedade política, cuja unidade se revela permanente no
tempo e estável num espaço geográfico; que é dotada de instituições persistentes e impessoais; e
onde vigora a aceitação colectiva de uma autoridade suprema, à qual as pessoas se subordinam
por sentimentos de lealdade. Logo: história e território; mecanismos de autoridade e poder;
governo centralizado e consentido.

História e território. Em 1325 Portugal conta seis gerações de história e uma de


território definitivo. É um facto que para a maioria da população nada diz. O que era para esta a
história ? Relatos heróicos, canções de feira, nomes de reis. E tudo isso transmitido oralmente,
gerações sobre gerações.

A memória colectiva dificilmente existiria ao nível do grande público. E quanto ao


território, o que é a estabilidade de uma geração?

O território português, «Reino de Portugal», seria uma referência abstracta, a que só o rei
podia emprestar alguma consistência sensível. De modo que a ideia de unidade política
subsumida numa história e num espaço não existia no imaginário colectivo. A nação existe, tem
já a sua coerência, a sua capacidade de resistência, mas a consciência deste facto encontra-se
apenas na mente de uma minoria próxima do poder político. Portanto, em 1325 não há ideia de
Estado tal como o definimos atrás. Mas há duas condições fundamentais para que o Estado
irrompa: uma história e um território.

 Discutir os conceitos de poder e autoridade, aplicando-os a estruturas existentes


no reino de Portugal em finais da Idade Média.

Mecanismos de autoridade e poder. Por autoridade entende-se a virtude reconhecida


pela sociedade a alguém para interpretar os seus interesses e apontar caminhos e destinos, de
modo imperativo e absoluto. Poder é sujeitar, ou seja coagir, forçar, impor. O poder é força e a
autoridade persuasão.

Nas estruturas da autoridade temos as cortes e os conselhos;

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nas do poder o direito, a justiça, a fiscalidade, a diplomacia e a guerra.

 Enunciar as características das cortes – ao nível da sua natureza e processo de


funcionamento – enquanto estrutura do sistema político medieval português.

As cortes derivam das cúrias régias extraordinárias e terão começado quando


representantes dos concelhos participaram nelas pela primeira vez como membros efectivos.
Discute-se o ano preciso em que isso se verificou, mas o de 1254 continua a ser o que reúne mais
consensos, pelo que as Cortes de Leiria desse ano se mantêm como sendo as primeiras da história
parlamentar portuguesa.

A instituição só existia enquanto funcionava, isto é, foi uma instituição identificada com
assembleia actuante. Nascia e renascia todas as vezes que o Poder, convocados os membros dela,
tratava com eles os negócios que entendia propor-lhes ou outros que aceitava discutir. Todavia,
pode falar-se do parlamento medieval como uma instituição virtualmente permanente. É devido
ao facto de as cortes só terem existido realmente enquanto funcionavam que é costume designá-
las, para as individualizar, exarando «anos (locais)»: assim 1385 (Coimbra), 1390-1391 (Évora),
1433 (Leiria-Santarém).

A periodicidade das cortes nunca foi taxativa. Houve diversas propostas nesse sentido,
sempre oriundas dos povos, mas jamais coroadas de sucesso prático. Reuniram quando reis ou
regentes as convocaram pressionados por motivos conjunturais, de natureza financeira as mais
das vezes. Dir-se-ia que os concelhos as desejavam e que os governantes as aborreciam. De modo
que as convocatórias foram o instrumento jurídico que lhes dava existência real e legitimidade.

Reunidas, as cortes mantinham-se em acto, geralmente no mesmo local, até se esgotarem


os negócios a tratar, despedindo-se os seus membros, clero e nobreza e povo, uns mais cedo,
outros mais tarde, conforme se fossem concluindo os respectivos trabalhos. Em média, as cortes
duravam um mês.

O parlamento medieval português nunca teve um regulamento escrito. Verificamos, ao


estudar as cortes celebradas entre 1385 e 1495, que nenhuma praxe foi seguida sem excepções.
Isto faz da instituição uma entidade de estudo difícil.

As cortes eram integradas pelos detentores do poder monárquico e seus áulicos, pela
fidalguia, pelos prelados e delegados capitulares e por deputados dos concelhos. Mas isso não era
suficiente: importava que as convocatórias dissessem que a assembleia era de natureza
parlamentar ou os negócios da agenda o inculcassem. Assim, uma assembleia convocada para
jurar um príncipe herdeiro podia não ser de cortes, muito embora reunisse maior número de
pessoas e delegações do que o habitual nos parlamentos. Mais: podia suceder, e sucedeu, que
após a sessão inaugural uma ordem da sociedade fosse embora. Isso não prejudicaria o carácter
dos trabalhos posteriores.

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Em contrapartida, não há nenhum caso, parecer ou afirmação que dê estatuto
parlamentar a uma assembleia reunida sem a presença de delegados do povo. E isto é
extremamente importante para caracterizar o parlamento medieval português, e não se estranhe a
nossa insistência em qualificar as cortes como areópago do povo. O clero e os nobres dispunham
de outras assembleias para «trabalhar» com os reinantes. O povo, isto é, os representantes dos
concelhos congregados como corpo social representativo do terceiro estado, não.

A abertura das cortes fazia-se por uma sessão solene, em plenário. Todos os membros
estavam presentes, desde o rei e seus áulicos até aos delegados dos concelhos mais humildes. Se
o Parlamento servia também para jurar um rei acabado de subir ao trono, o cerimonial procurava
incutir nos participantes, sem pressa, faustosamente, a ideia da ordem social querida por Deus.

Nas sessões inaugurais, havia a «oração de proposição», que um letrado escolhido ou


uma pessoa de muita autoridade pronunciava em nome do rei. Nela se comunicava, muitas vezes
em primeira mão, o porquê da assembleia. Seguiam-se depois as sessões de trabalho, cada estado
em seu sítio. Dessas reuniões separadas resultavam os pareceres e decisões do clero, da nobreza e
do povo sobre os temas agendados e ainda as reivindicações, propostas e queixas que cada grupo
houvesse por bem formular. O rei, mediante delegados especiais, respondia depois a tudo. O
resultado destes trabalhos chegou até nós parcialmente, nos capítulos gerais de cortes e em
acordos diversos. Resolvidos os assuntos, ou chegados os trabalhos a impasse, e desembargados
os capítulos de agravos eventualmente requeridos, as cortes terminavam.

Com o príncipe D. João, regente na ausência de D. Afonso V, tomou-se a iniciativa, em


1477, de fazer reunir conjuntamente o clero, a nobreza e os concelhos em sessões de trabalho
sobre os negócios da agenda. A ideia era forçar os três estados a trabalharem em comissão
paritária na resolução dos grandes problemas nacionais, com patriotismo, harmonia e eficácia. Os
povos abraçaram a ideia, mas os outros não.
O parlamento medieval foi uma instituição político-administrativa de enorme
importância. Isso tira-se das suas funções. Umas ditas «primárias atribuídas»: apresentação de
propostas, petições e recursos; concessão de empréstimos aos reis; votação de guerra e paz;
eleições de reis e regentes; resoluções de questões monetárias. Há aí funções legislativas, técnicas
e políticas, mas foram as actividades de natureza legislativa e técnica que caracterizaram a
instituição.
Outras funções podem ser designadas como «primárias invocadas», ou seja, como
funções que os participantes, nomeadamente o povo, entenderam devidas, mas que o Poder nunca
ratificou. Por exemplo: que as decisões parlamentares não pudessem ser abolidas senão com o
acordo do próprio Parlamento, e ainda que declarações de guerra ofensiva não tivessem valor sem
o consentimento da assembleia. Estas funções, se bem que invocadas apenas e não outorgadas,
mostram expectativas dos deputados, rumos desejáveis, prestígio da instituição e existência, a
nível dos concelhos ao menos, de uma genuína «mentalidade parlamentarista».
Mas há mais: aquelas funções que designamos «secundárias», essas que o Parlamento
cumpre pelo facto de funcionar. Umas «manifestas», outras «latentes». Por exemplo, a
propaganda do rei, no primeiro caso, e a educação política dos deputados e dos concelhos, no
segundo.

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As cortes foram uma estrutura política dotada, não de poder, mas de autoridade, que
advinha de serem a instância solene onde a vontade e os desígnios da Nação se exprimiam
buscando a conjugação.

 Reconhecer o processo evolutivo da estruturação do conselho régio.

Durante o período do nosso estudo deu-se muita importância aos conselhos e aos
conselheiros e inculca-se que os fracassos e sucessos dos reinantes se devem fundamentalmente a
eles.
Os reis e todos aqueles que por função ou missão deviam decidir sobre pessoas e
empresas eram obrigados, moral e politicamente, a tomar conselhos; a saber pesá-los, utilizando a
sua discrição pessoal e a autoridade de quem os dava; a seguir os de maior peso. É claro que este
modo de pensar não é exclusivo do nosso período histórico: onde quer que haja sociedades com
um mínimo de governo e de Estado aí achamos fatalmente conselhos e conselheiros.

Datam da época de D. Afonso III os primeiros indícios de um conselho destacado da


cúria ordinária. Não se trata, porém, de um órgão já constituído: é um grupo reduzido de pessoas,
cujo modo de actuar se desconhece, que o monarca escolhe entre oficiais da corte, fidalgos,
clérigos e letrados, e a que ele recorria quando julgava necessário.

Com D. Afonso IV assiste-se a progressos na organização do Conselho, com uma maior


responsabilização dos conselheiros.

Com D. Pedro I, diminui a ênfase das fontes na sua colegialidade, em benefício da


identificação dos membros, ao passo que se afirma a diversificação das suas competências.

D. Fernando preferiu assessores a vozes autorizadas da comunidade nacional.

Com D. João I, o conselho régio vai incluir clérigos, fidalgos, letrados e cidadãos, de
modo a traduzir o pensar da comunidade. Intervirá mais decididamente nos negócios da
governação e admitirá, quando se julgar momentoso, vozes de «especialistas» consultados ad
casum. Mas à medida que o reinado avança, voltar-se-á ao modo de D. Fernando: o conselho
régio como grupo de assessores.

A partir de D. João I, o assunto está por estudar. Com que atribuições, competências,
composição? Não se sabe. Uma coisa é certa: em todo o período do nosso estudo houve uma
instituição consultiva, permanente, adstrita ao poder monárquico, chamada «Conselho D'el-Rei».
Foi uma instituição de autoridade.

 Traçar uma panorâmica sobre os mecanismos de aplicação da justiça,


nomeadamente tribunais e agentes da coroa, aos níveis regional e central.

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O poder judicial andou misturado com o legislativo e o executivo, e disperso em muitas
mãos: as dos reis, as dos senhores e as dos autarcas municipais. É dispersão característica dos
sistemas feudais, contra a qual vão lutar os monarcas, apoiados no direito romano e,
simultaneamente, na razão que lhes advém da força. Assim: o rei pretende ser o guardião e
defensor da lei, e que o seu primeiro papel seja manter e impor a justiça. E se porventura outros a
aplicam, é na qualidade de delegados régios que a devem aplicar.
Isto na teoria, porque na prática o que se verifica é os senhores das terras, laicos e
eclesiásticos, deterem jurisdição cível e crime, que exercem fora da interferência dos agentes
judiciais do monarca.
Por outro lado, os concelhos, agarrados a tradições autonómicas, porfiam em manter
máquina judicial própria, gerida pelos homens-bons, segundo critérios tecnicamente muito frustes
e politicamente dispersivos da unidade da Nação e do Estado.
O trabalho da monarquia vai ser a criação dum direito comum nacional e lentamente
controlar e gerir a sua aplicação por todo o lado. Escapar-lhe-á a Igreja, mas ela verá reduzido e
«fiscalizado» o campo da sua jurisdição específica.

Os mecanismos judiciários que se foram inventando são os órgãos e ofícios, tribunais e


funcionários ou magistraturas. Todos ligados ao poder central. A Casa do Cível, a Casa da
Justiça da Corte, a Audiência da Portaria, Corregedorias, Ouvidorias e Juizados.

A Casa do Cível era um tribunal superior fixo, supostamente instituído por D. Afonso IV,
integrado pelos sobrejuízes e dois ouvidores, com alçada sobre feitos cíveis e feitos crimes. Feitos
cíveis de todo o reino, excepto do sítio onde estivesse a corte e das localidades a cinco léguas daí,
e dos feitos crimes de Lisboa e seu termo - isto a partir do momento em que o tribunal ficou
sediado em Lisboa.

A Casa de Justiça da Corte era o tribunal supremo que acompanhava o rei por onde quer
que ele andasse.
Tinha competência sobre apelações e agravos de natureza civil ou criminal provenientes
de um raio de cinco léguas do local onde a corte eventualmente se encontrava e, no que toca ao
crime, dos que provinham de todo o País, exceptuando Lisboa e seu termo.Tratava, além disso, de
todos os feitos que escapavam à alçada específica da Casa do Cível.
Digamos que a Casa de Justiça da Corte simbolizava e cumpria a dimensão judicial do
poder régio e que a Casa do Cível significava um distanciamento da função judiciária
relativamente à figura do soberano. Compreender-se-á então que o tribunal de última instância
por excelência tenha sido a Casa da Justiça da Corte, também chamada «Casa da Justiça d'el-
Rei», «Casa da Justiça» e «Casa da Suplicação». E compreender-se-á por que é que no tempo de
D. Pedro I, por amor da rapidez e porventura do temperamento do monarca, a Casa do Cível
perca prestígio em proveito da outra.

Já não se compreenderá tão bem, a não ser por razões de eficiência administrativa, que a
Casa da Justiça, estando a corte em Lisboa, não absorva os feitos crimes dessa cidade e seu
termo, deixando-os à Casa do Cível.

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A Casa da Justiça da Corte tem a sua origem no desmembramento da cúria em dois
tribunais e, portanto, embora herdeira directa do prestígio e simbolismo daquela, é
contemporânea da Casa do Cível. As duas, provavelmente fundadas por D. Afonso IV, denotam,
por um lado, progresso administrativo e autonomização rei/funções régias. E, por outro, esforço
de controlo centralizador do País ao nível da justiça.

Outro tribunal superior foi a Audiência da Portaria, ao qual presidia o porteiro-mor e


que tinha competência sobre pleitos atinentes à Fazenda real, direitos reais, impostos e mouros ou
judeus. Por volta de 1370, os ouvidores da Portaria passam a designar-se por vedores da Fazenda,
continuando com as suas funções simultaneamente judiciais, fiscais e económico-financeiras.

Corregedorias e Ouvidorias são magistraturas eminentemente judiciárias. As primeiras


devem o nome aos corregedores, que foram exclusivamente oficiais régios; as segundas, aos
ouvidores, que tanto podiam ser régios como senhoriais.
E havia ainda as judicaturas, ou juizados, a que presidiam juízes, régios, senhoriais e
concelhios, ordinários e especiais, da terra ou de fora. Interessam-nos aqui os magistrados
adstritos ao poder central, nomeadamente corregedores, ouvidores e juízes de fora
designados pelo rei. De todos estes, cremos que os corregedores foram os mais importantes em
termos socio-políticos.

Antes dos corregedores existiram os meirinhos-mores e antes ainda os tenentes das


terras.
Os primeiros corregedores apareceram durante o reinado de D. Dinis, mas será com D.
Afonso IV que eles se vão tornar regulares e sujeitos a um regimento específico.
No reinado de D. Afonso V verificar-se-á uma enorme confusão com a introdução dos
«adiantados», «governadores» e «regadores da justiça», todos fidalgos, os quais recordam os
antigos meirinhos-mores dionisinos.
As propostas dos povos em cortes foram sempre no sentido de os corregedores serem
os magistrados superiores das correcções ou comarcas, exercendo por si e não por ouvidores, com
alçada nas terras de jurisdição privada, letrados e de modo algum fidalgos nem clérigos. Pelas
queixas dos povos, fidalgos e clérigos vê-se bem quanto estes magistrados significavam de
presença da justiça régia por todo o País e, logo, de «opressão» para os privilégios judiciais dos
senhores laicos e eclesiásticos, bem como de obstáculo aos desígnios autonómicos dos
municípios.
Com D. João II a intervenção dos corregedores coincidirá com Portugal inteiro.

Dissemos que os corregedores eram magistrados judiciais colocados à frente das


correições e comarcas. Foram seis essas circunscrições administrativas: Entre Douro e Minho,
Trás-os-Montes, Beira, Estremadura, Além-Tejo e Algarve. As delimitações oscilaram com os
tempos e não é muito fácil estabelecê-las até ao pormenor. Um mapa minucioso há-de ter em
consideração que os corregedores procuravam pessoas, de modo que os limites comarcãos teriam
sido mais as montanhas e ermos. Por outro lado, houve terras que tiveram, devido à sua
importância demográfica, corregedor privativo, como Lisboa e Santarém algumas vezes.

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Para se ter uma ideia de como os povos entendiam em 1433 as funções dos
corregedores, resume-se o que eles apresentaram ao rei nas cortes desse ano: que o ofício de
corregedor seja andar pela sua correcção, de lugar em lugar, a reprimir abusos, despachar
agravos, fiscalizar a actuação dos juízes e tabeliães e prender malfeitores. O rei não aceita e
insiste em que as funções sejam as especificadas no Regimento de 1418, as quais eram muito
mais vastas, pois integravam alíneas que tinham a ver com obras públicas e administração local.
Assim as competências e atribuições desses funcionários, fundamentais para o poder central,
foram no sentido da expansão e não no inverso. Mesmo com D. Afonso V, o qual só cometeu o
desarranjo, perverso em matéria de centralização, de meter no ofício grandes fidalgos, mudando,
embora, o nome deles para «adiantados», «governadores» e «regedores da justiça» das comarcas.

Os corregedores tinham a assessorá-los uma série de outros oficiais: meirinhos,


ouvidores, escrivães, procuradores (ou advogados), porteiros, carrascos. De modo que o
corregedor era um séquito: todos esses, seus filhos, mulheres, criados e a récua dos criminosos. A
chegada da correição era sempre uma estragação e um espectáculo temeroso. Sobretudo para as
cidades e vilas grandes, porque, chegando, era certo ficar dias e dias, meses; comendo,
amedrontando, requerendo homens, bestas e géneros.

Os corregedores de que falámos eram os das comarcas e os privativos de Lisboa e


Santarém. Mas houve outros: os corregedores da corte. Estes magistrados, conforme o nome
diz, seguiam o rei. Tinham alçada na localidade onde o rei estivesse e num raio de cinco léguas à
volta, pelo que a sua autoridade e poder se sobrepunham a todas as outras justiças e polícias
territoriais.

Ouvidores eram magistrados encarregues de ouvir as partes dos feitos e instruir os


processos. Com o tempo, passaram a deter a função, delegada é claro, de julgar e emitir
sentenças.
Foi isso o que se passou com os ouvidores dos tribunais superiores de que falámos atrás,
os quais eram juízes supremos, mais importantes do que os sobrejuízes. Essa sublimação de
funções ocorreu, mais uma vez, durante o reinado de D. Afonso IV.
Houve ainda os ouvidores das terras dos senhores, à frente dos quais se achavam os das
terras das rainhas e, provavelmente, dos infantes.
Os outros, dos senhorios jurisdicionais laicos, eram homólogos dos corregedores das
comarcas, funcionando entre os juízes locais e os seus senhores, bem como entre os seus senhores
e os tribunais régios de última instância, em matéria de apelos e agravos, tanto de feitos cíveis
como criminais.
Não está rigorosamente averiguada a conexão entre estes magistrados e os das correições,
especialmente no reinado de D. João II, quando os corregedores têm ordem para entrar nas terras
isentas. O que se sabe é que há queixas e queixas, denúncias e denúncias, por parte dos
concelhos, contra os ouvidores dos senhores, seus meirinhos e seus escrivães. A imagem que se
tira da leitura dessas queixas e denúncias é que os senhores fazem a justiça que entendem,
desafiando o rei e o direito.

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As populações preferem a justiça ditada e cumprida pelos oficiais régios. E pedem
que os corregedores prevaleçam sobre os ouvidores e que os fiscalizem. Tal será aceite por D.
João II.

Os monarcas podiam, quando entendessem necessário, enviar pelas terras magistrados


especiais, geralmente ouvidores dos tribunais supremos, com plenos poderes para actuar sem
apelo nem agravo. Eram as temíveis e eficazes «alçadas». Estes ouvidores das alçadas eram os
únicos mortais que, de uma penada, podiam matar sem perigo. Com a espada ou a forca. Os
corregedores também, mas com menor celeridade e decisão.

Outros agentes do poder judicial régio, como os juízes de fora e os tabeliães, não
tiveram acção tão espectacular como os anteriores. Mas isso não significa que devam ser
desmerecidos no seu papel de construtores da centralização do poder monárquico e, logo, do
Estado. Eram tentáculos da monarquia postos ali, no quotidiano das populações e dos municípios.
Os primeiros surgem no reinado de D. Dinis e os segundos antes ainda, na primeira
metade do século XIII. D. Afonso IV, D. Pedro e D. Fernando aperfeiçoaram tecnicamente o
ofício, o qual foi vedado desde o princípio a clérigos, maiores e menores, seculares e religiosos, o
que mostra claramente tratar-se de um mecanismo destinado a afirmar o poder central régio.

 Identificar os instrumentos de fiscalidade régia em finais da Idade Média.

Data do nosso período o primeiro imposto geral permanente instituído em Portugal, as


sisas gerais. Enquanto imposto geral permanente, tiveram começo no reinado de D. João I e
foram uma concessão patriótica dos povos destinada a custear as despesas da guerra de
independência; Os monarcas transformaram-nas, abusivamente, em direito real. Até hoje. É o
imposto que vigora sobre as transacções.

Surgem com D. Fernando, para fins militares, mas por concessão excepcional dos povos,
outorgada provavelmente em cortes, e por um período limitado - três anos. As sisas, enquanto
imposto geral e permanente, são criação de D. João I em 1387, e sem ligação qualquer com o
povo miúdo revolucionário. Nas cortes do Porto deste ano, o rei manifestou a necessidade de
dinheiro, tanto para as despesas bélicas como para dar casa à mulher. Esse dinheiro havia de vir
dos clérigos e dos povos. Da nobreza não, que essa dava o corpo e a vida nos campos da honra. O
modo de se conseguir o dinheiro ficava ao cuidado daqueles dois estados do reino. Os quais,
acabadas as Cortes do Porto, vão reunir em Coimbra com a rainha e altos funcionários régios.
Nessa assembleia foi decidido outorgar ao rei «sisas gerais», ou seja, o imposto municipal que
incidia sobre compras e vendas de «todas as cousas», fosse qual fosse o comprador ou vendedor.
É claro que uma decisão deste género, se bem que dissesse respeito principalmente aos concelhos,
interessava a toda a sociedade, fidalgos incluídos. E os fidalgos não foram escutados. Por esta
razão, e também porque o montante a arrecadar se revelou insuficiente, houve necessidade de

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reunir cortes outra vez nesse ano, em Braga. E então aí, sim, todos os estados presentes, as sisas
são aprovadas, gerais e a dobrar. Por consentimento unânime.

É de crer que a transformação do imposto das sisas de extraordinário em permanente se


tenha verificado por inércia, como efeito das necessidades da guerra. Depois disso não
conhecemos mais nenhuma referência a concessões, ao passo que verificamos notícias da
ininterrupta recolha desse imposto.

 Sintetizar a evolução sofrida nos séculos XIV e XV na diplomacia portuguesa e


as alterações verificadas na arte da guerra.

A diplomacia, a guerra e o comércio são as três formas pelas quais o Poder se relaciona
com o exterior. A primeira é pacífica e é tida como expressão sublimada da agressividade. É
negócio - e como tal tem parentesco com o comércio externo. Só que o comércio visa a riqueza e
a diplomacia visa a segurança e o prestígio. No período do nosso estudo assiste-se à valorização
dos modos diplomáticos no relacionamento internacional. Isso deveu-se, sem dúvida, à
experiência europeia da Guerra dos Cem Anos, ao Cisma do Ocidente e à afirmação dos Estados
nacionais.

No campo da diplomacia, e na vertente da afirmação do Estado, não descobrimos grandes


realizações antes da dinastia de Avis.
Durante a dinastia afonsina, o quadro das relações diplomáticas confina-se à Península
Ibérica.
Com D. Afonso IV e D. Pedro I reina um clima geral de bom entendimento com Aragão
e Castela. Mas a luta dos Trastâmaras pelo Poder em Castela vem perturbar este clima. Pedro I de
Castela havia optado pela aliança com a Inglaterra, ao contrário do seu meio-irmão, rival,
assassino e sucessor, optou pela França. Castela, pró-francesa; Portugal, pró-inglês, donde a
busca da hegemonia peninsular por cada um desses Estados. Entre nós, dois reis avantajaram-se
nesse sonho, tendo, inclusivamente, pegado em armas para o concretizar: D. Fernando e D.
Afonso V.

O próprio D. João II de Portugal, inteligente e moderno, não desdenhou a ideia da


supremacia peninsular, só diferindo do pai nos modos. Recordando uma proposta de casamento
do progenitor com Isabel, a futura «rainha católica», opinava que se deveria ter aproveitado essa
hipótese: que o pai deveria ter casado com Isabel e casá-lo a ele com Joana, a Beltraneja, as duas
herdeiras possíveis do trono de Castela.
Os desaires de D. Fernando nas três guerras que conduziu contra o vizinho castelhano
tiveram por efeito duas coisas: a invenção de um inimigo dos Portugueses e o estreitamento de
laços de amizade para além do mapa peninsular. E daí uma terceira: a projecção dos desejos
expansionistas portugueses na África e no mar. Tudo isso foi extremamente importante para
Portugal, os Portugueses e a sua história. Do inimigo ao lado veio a vontade de coesão

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nacionalista, patriótica e cultural; dos aliados europeus decorreu a abertura à Europa; e da
expansão ultramarina nasceu a vocação universalista, o império e a experiência dos mundos.

Com a dinastia de Avis, o quadro das relações diplomáticas normais de Portugal


extravasa largamente da Península Ibérica. No reinado de D. Duarte contam-se como amigos os
Estados e senhorios da Europa quase toda.

Com D. João II as boas relações portuguesas chegarão a reinos da África Negra, ao


império do rei do Congo, caso notável e extremamente precoce, Portugal é Estado parceiro e
respeitado. Tem assento no concerto das nações, onde a breve trecho haverá de ditar rumos.

Quanto à guerra, que realizações dignas de nota? As da independência, com as célebres


vitórias dos Atoleiros, Trancoso, Aljubarrota e Valverde; a do Norte de África, com as conquistas
de Ceuta, Alcácer Ceguer, Arzila e Tânger; a da sucessão de Castela, com essa singular vitória-
derrota de Toro. Depois as vitórias no mar, como em Mitilene; ou das caravelas guarnecidas de
bombardas, na volta da Mina. Derrotas em mar e terra também as houve, evidentemente: as três
guerras de D. Femando; o «desastre» de Tânger; e a guerra de D. Afonso V.

No que toca à organização militar, houve inovações importantes no período do nosso


estudo. Por exemplo, a constituição de um corpo nacional de besteiros, tropas permanentes, de
elite, sujeitas a treino contínuo, dependentes não já de senhores ou concelhos, mas do rei, através
de oficiais subordinados a um anadel-mor.

 Avaliar os progressos no percurso da centralização régia, atendendo à projeção


da coroa através da criação ou manutenção de mecanismos de controle e à
relação que esta manteve com os outros poderes territoriais: senhorios e
concelhos.

Em 1385 Portugal é país maduro, com fronteiras praticamente definitivas, língua própria,
estruturas políticas, administrativas e sociais confirmadas, rumos económicos definidos, alianças
diplomáticas internacionais escolhidas, consciência nacional, enfim, Portugal é País e é Nação.

O Rei

De todas as estruturas políticas, o rei foi a mais importante. Iam longe os tempos em que o
monarca era visto como um senhor entre senhores. Desde Afonso III esses tempos esgotaram-se.
Por efeito da influência de legistas imbuídos de direito romano e devido também a um maior
empenho administrativo, concluída que estava a Reconquista cristã. Iniciava-se a transformação
do reino em Estado.

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Para isso contribuíram medidas fiscais, administrativas, militares, legislativas e judiciais, de que
se destacam as inquirições e confirmações gerais, a outorga de forais a cidades e vilas, a criação
do corpo nacional de besteiros, a instituição dos tabeliães régios, a criação dos corregedores das
comarcas e dos juízes de fora, a organização dos tribunais de última instância, a transformação da
cúria régia em cortes ou parlamento, as leis de desamortização tendentes a evitar a concentração
de bens fundiários na posse da Igreja, a nacionalização das ordens militares, a imposição do
beneplácito régio sobre rescritos papais. Quando se chega à dinastia de Avis, pode dizer-se que o
reino de Portugal é um Estado, porque preenche as condições exigidas para assim ser
considerado: é uma unidade política já secular e dotada de fronteiras geográficas estabilizadas;
possui instituições permanentes e impessoais; é habitado por uma população que julga necessária
uma autoridade suprema, à qual aceita ligar-se por vínculos de lealdade.

Competirá a D. João I, a D. Duarte, ao infante D. Pedro e a D. João II incrementá-lo e fortalecê-


lo. O que será conseguido com a apropriação pelo rei de todos os poderes da soberania: legislar,
julgar, executar leis e políticas, lançar impostos, decidir da guerra e da paz, conduzir tratados e
alianças com estrangeiros.

Mas, ainda no século XV, e apesar dos esforços, outras estruturas políticas coexistirão com o rei,
discutindo territórios e súbditos, exercendo sobre eles jurisdição de mero e misto império,
dividindo a autoridade e dispersando as obediências directas (direito de justiça, de nomear
funcionários e cobrar impostos). Essas estruturas concorrentes são os senhorios laicos e
eclesiásticos e os municípios.

Os senhorios laicos

Os senhorios laicos vinham dos tempos anteriores à fundação da nacionalidade. É por


isso que o Norte é nobiliárquico, rural, conservador e escassamente municipalizado.
O Sul foi diferente: urbano, concelhio e parlamentar. Nele houve senhores, com certeza,
eclesiásticos e laicos. Mas implantaram-se aí por modo de prémio e para efeito de defesa da
Reconquista, sobre comunidades já constituídas e organizadas ou em vias disso. Ademais, a
maioria dos senhorios do Sul foi de ordens militares, com mentalidades distintas das dos nobres
terratenentes agarrados ao solar.
No Sul houve doação e transplante; no Norte houve herança e fonte nobiliária. Por isso,
o Norte, incluindo Trás-os-Montes, teve poucos deputados em cortes; ao contrário, o Sul
dominou numericamente no panorama popular do Parlamento.
O Centro do País, ou seja, o território que vai desde o Douro até ao Tejo, comungou de
características do Norte misturadas com as do Sul, Estremadura mais para aquele, Beiras em
equilíbrio. O Algarve foi, no século XV, urbano, municipal, parlamentar e simpatizante de
nobres.

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Os senhorios laicos, ou enclaves territoriais de fidalgos, foram muitos no período do
nosso estudo, desde um extremo ao outro do País. Mas não tiveram todos o mesmo estatuto
jurídico-político.
Uns eram isentos do poder régio, possuídos de juro e herdade; outros eram concessões
vitalícias, só com jurisdição cível ou com as duas jurisdições. Os primeiros passavam de pais a
filhos e de reinado a reinado, sendo os reis obrigados a mantê-los mediante juramento que
prestavam quando subiam ao trono - até D. João II, que se recusou a jurar e obrigou todos os
titulares a prestarem-lhe vassalagem.
Os segundos, isto é, os senhores de jurisdições vitalícias, não podiam legar os títulos aos
herdeiros, assim como não continuavam automaticamente com eles de reinado para reinado.
Certo que os reis neófitos geralmente os confirmavam e, não havendo motivo grave, permitiam a
sucessão hereditária neles. Dessa feita, todos os senhorios jurisdicionais tenderam para perpétuos,
havendo apenas dois modos de fazê-los regressar efectivamente à coroa:
- a aplicação da Lei Mental e a expropriação por crime de heresia ou traição judicialmente
sentenciado. Ambos os modos foram utilizados.

Nas terras de jurisdição privada, o poder régio foi diminuto até D. João II. Os
corregedores, anadéis e almoxarifes não tinham alçada nessas terras. Mesmo os juízes
ordinários concelhios, a quem competia prender os criminosos foragidos e fazer seguir os apelos
e agravos, eram impedidos de exercer essas funções. De modo que os senhores laicos
constituíram verdadeiros enclaves de poder, paralelos ao rei e concorrentes dele.

Os senhorios eclesiásticos

Com os senhorios eclesiásticos o panorama foi ainda pior, e por causa da confusão poder
religioso/poder civil.
Os abusos que se lhes apontam são os mesmos que se apontavam aos laicos, de quem,
aliás, são parentes, mas com a agravante de fulminarem os súbditos desobedientes, assim como
oficiais régios ou concelhios demasiado zelosos, com excomunhões e interditos.
Donde se seguia esta coisa paradoxal e cínica: lançar uma pena religiosa, por motivos
profanos, contra homens do rei que agiam em nome dele, rei, e exigir que o monarca castigasse
com o braço secular aqueles cujo crime era serem-lhe dedicados. Claro que os reis não cediam
cegamente à exigência. E, porque não, as excomunhões foram caindo em impunidade civil e
descrédito social.
De modo que essa arma privativa dos senhores eclesiásticos, à força de ser brandida
como instrumento de persuasão política, acabou por envilecer.

Os grandes senhorios eclesiásticos dos inícios da dinastia de Avis eram os tradicionais:


bispados, mosteiros e ordens militares. Urbanos e rurais. Entre os primeiros, Porto e Braga, que
D. João I trará para a jurisdição da coroa com sucesso. Dessa feita, todas as cidades medievais
portuguesas passaram a dizer-se do rei até 1472.
Dos grandes senhorios monásticos, fundamentalmente rurais, cite-se Alcobaça e Santa
Cruz de Coimbra, entre dezenas de outros localizados a norte do rio Tejo.

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Das quatro ordens militares, sobressaiu a de Santiago. As grandes abadias e os mestrados
das ordens religiosas militares constituíram verdadeiros potentados terratenentes. E foi por isso
que as nomeações dos abades e dos mestres recaíram quase sempre em mãos seguras e fiéis:
validos e familiares da monarquia. Assim, a sucessão dos titulares era perfeitamente
domesticável, ao contrário do que sucedia com os senhorios laicos – que só por casamentos com
filhos dos reis ou pela força bruta podiam ser controlados.

Os concelhos

Nos séculos XIV e XV, os concelhos estão despidos da sua autonomia antiga e todos
gravitam na dependência de alguém: do rei ou de senhorios privados. E, por conseguinte, sujeitos
à fiscalização de funcionários externos e impostos: corregedores ou ouvidores; almoxarifes ou
porteiros e mesmo juízes nomeados de fora; e ainda alcaides-mores estranhos à autarquia.
As antigas liberdades e franquias, concretizadas na autogestão do território, da
economia, da justiça, da fiscalidade e da milícia, foram a pouco e pouco sendo cerceadas, seja
pela aceitação-imposição dos forais, pela apropriação monárquica das sisas, pela instituição dos
besteiros do conto, pela multiplicação de juizados especiais, pela subtracção de súbditos pagantes
e serventes efectuada por reis e senhores.
Enfim, o poder autárquico resumia-se praticamente a gerir as almotaçarias e as obras
públicas civis, a julgar com alçada absoluta apenas delitos menores, a vigiar a saúde e ordem
públicas, a administrar os bens camarários e, em muitos dos concelhos, a levar ao Parlamento
queixas, críticas, sugestões. E mesmo sobre quase tudo isso pairava o olhar fiscalizador do
almotacé-mor, dos fronteiros gerais e dos corregedores ou ouvidores.

Foi nas cortes que o poder político dos concelhos mais se distinguiu e se afirmou em
termos nacionais.
Nos lugares teve o peso que granjeavam os respectivos grupos oligárquicos - assinalável
em Lisboa, Évora, Porto, Santarém e quase nulo em localidades como Braga. No entanto, no seio
das comunidades urbanas, as câmaras detinham poder e foram disputadas por grupos rivais -
opostos em razão de parentesco e compadrio, de statu socio-profissional ou de residência intra e
extramuros.
De modo que o poder dos concelhos, jurídica, militar e economicamente diminuto, mais
simbólico do que real, foi apreciado nas terras e muito importante no País. Graças às cortes ele
funcionou como vontade dos povos, apoiando e criticando os reis, verberando a nobreza e o clero.
Diga-se, pois, que foi no Parlamento que o poder colectivo dos concelhos se afirmou e produziu
assinalável efeito político e social.
À medida que os monarcas vão interferindo neles, os concelhos, compelidos a
solidarizarem-se entre si, afirmam-se como estrutura política do Estado, fazendo das assembleias
representativas nacionais o seu areópago distintivo. Enfim, o poder político dos concelhos nos
séculos XIV e XV caracterizou-se fundamentalmente por ser força de denúncia e consciência da
Nação. Por isso teve a consideração dos reis e foi olhado com receio pela nobreza e clerezia.

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DEFINIÇÕES

AGNÁTICO – aquele que tem parentesco por sanguinidade de linha masculina

ALÓDIO - propriedade ou bens livres de encargo senhorial.

ANÚDUVA – contribuições para a reparação de muralhas e caminhos.

BARONES, PROCERES e MAIORES PALATII – são termos que expressam a


superioridade social dos nobres de categoria supeior que acompanham a cúria régia. Os seus
membros pertencem a um pequeno grupo que está no topo da escala social, perto do poder régio
(séculos XII e XIII).

BEETRIA – na alta Idade Média, povoação rural que tinha o direito de escolher
livremente os senhores que mais lhe conviessem para sua defesa e bem-estar. Terminam em
Portugal no final do séc. XVI.

BENEDITINA/O – freira/ monge da Ordem de São Bento ou Ordem Beneditina.

BENEDITINA, ORDEM - ordem religiosa católica de clausura monástica, fundada por


São Bento de Núrsia (480-543), cuja regra fundamental se baseia no princípio ora et
labora ("reza e trabalha").

BONI HOMINES – termo utilizado quase sempre a sul do Douro. Não se refere
exclusivamente a poder herdado e é usado para descrever todas as categorias da nobreza. Utiliza-
se até às primeiras décadas do séc.XIII.

CABIDO – agrupamento de cónegos ou de sacerdotes, instituído para assegurar o serviço


religioso numa igreja catedral ou numa colegiada. No 1º caso também para colaborar no governo
da diocese.

CAVALEIRO – é o que vive do serviço militar. Em época tardia indica o que recebeu a
investidura das armas em oposição ao escudeiro, podendo indicar, em especial se for jovem
alguém de alta nobreza. Em geral, aplica-se aos nobres sem fortuna que vivem na dependência de
outrem e o servem no seu séquiro militar.

CLERO - conjunto de pessoas com ordens sacras dedicadas ao culto divino; classe
sacerdotal.

CLÉRIGO - religioso que faz parte do clero; padre; sacerdote.

- clérigos regulares

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religiosos que combinam o apostolado sacerdotal com a vida religiosa regular

- clérigos seculares
clérigos que participam da vida civil

CLUNY, ORDEM - é uma ordem religiosa monástica católica que se originou dentro da
Ordem de São Bento , na cidade francesa de Cluny, no chamado movimento monacal.A ordem
nasce em um momento delicado do século X, onde a própria Igreja Católica estava entregue ao
materialismo, e chama novamente os homens à espiritualidade por meio de uma reforma
monástica baseada na Regra de São Bento com algumas modificações de Bento de Aniane.
COGNAÇÃO - relação de parentesco pela linha feminina.
COIMA – prestação devida ao rei.
CONTIA - pensão em dinheiro ou terras atribuída pelo rei aos vassalos por
serviços a presta.
COUTO – terra que não pagava impostos por pertencer a um nobre.

CÚRIA RÉGIA - organismo assessor da realeza, vigente na monarquia portuguesa até


meados do século XIII, composto de altos dignitários da corte, supremo órgão administrativo,
judicial e político, com função consultiva, do qual derivaram as cortes.

CÚRIA ROMANA - o conjunto das instituições que auxiliam o papa no governo da


Igreja Católica.

ENTROVISCADA – Obrigação de pescar para o rei.

EXAÇÃO – extremo rigor na cobrança e arrecadação de contribuições; ou acto de um


recebedor exigir mais do que é devido.

FIDALGO – surge início do no séc. XIII e designa nobres por nascimento. Subsitutui o
termo infanção e filli benenatorum.

FILII BENENATORUM – designação pela qual se conheciam os infanções até meados


do século XII. Só se aplica ao norte do Vouga e aqueles que não têm qualquer dependência
vassálica. No início do século XIII tanto este termo como infanção é subsituído pelo termo
fidalgo, o qual se torna corrente para designar nobre por nascimento.

FOSSADO - serviço militar medieval cuja prestação respeitava normas estabelecidas


pelo foral ou pelo costume da terra.

FOSSADEIRA – Contribuição pela dispensa do serviço militar do fossado; o segundo,


considerado até aqui (antes 1211 ?) como substitutivo do fossado, ou serviço militar (que
só obrigava os homens livres), deve ser antes interpretado como um imposto público
sobre a terra, equivalente à jugada3 da Beira.

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GINETE - cavaleiro armado de lança e adaga.

HERDADORES - descendentes de cultivadores livres ou proprietários de alódios que


ainda viviam à margem dos senhorios; Nas inquirições de Afonso II e Afonso III, já não se
podem classificar como livres, porque são homens do rei (considerado como “senhor”). Nota-se
aí que a sua dependência é recente: pertencem ao rei porque todo o homem tem de ter senhor
(como dizem as leis de 1211).

HONRA – terra em que os ricos-homens e outros nobres tinham os seus palácios ou


quintas, com jurisdição sobre os vizinhos e vassalos que os reconheciam como senhores feudais.
As Honras estavam isentas de imposições e tributos reais. Honra também designa a própria
autoridade pública.

INFANÇÃO – membro da categoria intermédia da nobreza portuguesa a qual se dividia


tradicionalmente em três categorias. Estavam abaixo da categoria dos ricos-homens e acima da
dos cavaleiros. Eram nobres de linhagem Mais tarde esta designação é substituída por fidalgo.

JOGRAL - indivíduo que, na Idade Média, tocava vários instrumentos e cantava versos
seus ou alheios, sendo pago para tal.

JUGADA – tributo pago em cereal e proporcional ao número de juntas de bois usadas no


amanho da terra.

JULGADO – circunscrição de carácter judicial que pressupõe a presença de um


magistrado régio, mas que cedo alcançará um significado mais amplo, verificando-se a
sinonímia entre os julgados e as velhas terras ou concelhos.

MESNADA - força militar com que os ricos-homens ou os senhores da Igreja


contribuíam para o exército real em campanha; tropa mercenária.

MOÇÁRABES - são os cristãos da área ocupada pelos Muçulmanos: são populações


autóctones do Centro e do Sul da Península e herdeiros da cultura hispano-romana que, para
sobreviverem, adoptaram a língua e a cultura árabes.

MONGE - membro de uma ordem religiosa.

MULADIS - são os autóctones ibéricos convertidos ao islamismo.

NOBILIS - muito provavelmente sinónimo de «rico-homem» embora não se chegue a


generalizar nesse sentido. Tudo indica que estava reservado para nobres da corte régia ou condal.

PRAZOS - Contratos por duas ou três vidas.

REGUENGO - terra do património real arrendada com a obrigatoriedade de certos


tributos em géneros.

RICO-HOMEM - membro categoria mais alta da nobreza portuguesa a qual se divide


tradicionalmente em três categorias. São aqueles que receberam do rei “pendão e caldeira”, isto é

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são os seus representantes como governadores de terras, e que, por isso, têm para com ele uma
dependência vassálica. Mais tarde identificam-se com os nobres poderosos, independetemenete
de qualquer função pública ou relação de vassalagem com oo rei.

SOLAR – moradia de família nobre.

TERMO – Corresponde a um terrritório sobre o qual a vila tinha efectiva jurisdição.


Trata-se de um espaço que estava subordinado à vila, em termos de deveres a cumprir pelos seus
habitantes e exações fiscais.

TROVADOR - nome dado aos antigos poetas provençais que cultivaram a poesia lírica,
e aos poetas peninsulares desse tempo que os imitaram.

VOZ E COIMA- direito a ser julgado no tribunal real e não no do senhor da terra e
prestação devida ao rei.

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