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C opyright (g) Hilário Franco Jr.

Capa:
123 (antigo 27)
Artistas Gráficos
Caricaturas :
Emílio Damiani
Revisão:
José E. Andrade

editora brasiliense s.a.


01223 — r. general jardim, 160
são paulo - brasil
In d ic e

Introdução ................................................. 7
As motivações materiais .................................... 10
As motivações psicológicas — ............................ 28
As Cruzadas no Oriente e no Ocidente . . ............ 38
O Ocidente após as Cruzadas ............................. 66
Conclusão............. 82
Indicações para leitura ....................................... 84

&
INTRODUÇÃO

Cruzada. Esta palavra, como outras do voca­


bulário do historiador (feudalismo, mercantilismo,
etc.), não era conhecida no momento histórico para o
qual a empregamos. De fato, o termo aparece, e de
forma muito esporádica, apenas em meados do sé­
culo XIÏI, quando aquele fenômeno histórico já per­
dia sua força. Os textos medievais falam geralmente
em “peregrinação” , “guerra santa” , “expedição da
Cruz” e “passagem” . A expressão “Cruzada” , quan­
do surgiu, derivava do fato de seus participantes
considerarem-se “soldados de Cristo”, “marcados
pelo sinal da cruz”, e por isso bordarem uma cruz na
sua roupa.
Mas, o que foram as Cruzadas? Teremos todas
as páginas seguintes para responder a essa questão,
mas simplificadamente podemos dizer que foram
expedições militares empreendidas contra os inimi­
gos da Cristandade e por isso legitimadas pela Igreja,
8 Hilário Franco Jr.

que concedia aos seus participantes privilégios espi­


rituais e materiais. Portanto, as lutas contra os mu­
çulmanos do Oriente Médio e da Península Ibérica,
contra os eslavos pagãos de Europa Oriental e contra
os heréticos de qualquer parte da Europa Ocidental
eram Cruzadas.
Que privilégios eram aqueles? O principal deles,
o da indulgência, concedia o perdão dos pecados,
perspectiva muito atraente naquela sociedade de
forte religiosidade, mais clerical que civil, na qual
pecado e crime eram a mesma coisa. Fazer o voto de
cruzado era se tornar “uma espécie de eclesiástico
temporário” (Riley-Smith), submetido à proteção da
Igreja e isento da jurisdição laica. Mais ainda, du­
rante a Cruzada o pagamento de juros ficava sus­
penso e uma moratória autorizava o “soldado de
Cristo” a pagar suas dívidas apenas quando da volta.
De que maneira começava uma Cruzada? A
iniciativa na maioria das vezes era do papa, que
como chefe espiritual da Cruzada pregava sua reali­
zação pessoalmente (como fez Urbano II na Primeira
Cruzada) ou através de clérigos (como ocorreu na
Segunda Cruzada com São Bernardo). A data de seu
início também era marcada pelo papa e um repre­
sentante seu, o legado pontifício, sempre acompa­
nhava a Cruzada como seu chefe, ainda que somente
teórico, pois naturalmente as operações militares
eram quase sempre decididas pelo rei ou pelos senho­
res feudais mais importantes. Assim, algumas vezes,
como aconteceu com a Quarta Cruzada, o papado
perdia o controle real da situação.
>4í Cruzadas 9

E os recursos materiais, de onde provinham? As


Cruzadas eram financiadas pelos próprios cruzados e
pela Igreja: os pequenos nobres empenhavam seus
bens e vendiam a liberdade dos camponeses depen­
dentes de suas terras, os senhores feudais recebiam
ajuda de seus vassalos, os soberanos criavam tributos
novos, a Igreja recebia donativos e taxava as rendas
de laicos e clérigos. Em alguns casos os cruzados
levantavam empréstimos junto a mercadores (como a
Quarta Cruzada com os venezianos ou junto a Cruza­
das de São Luís com os genoveses) ou as Ordens Reli­
giosas (nessa atividade destacaram-se os Templá-
rios).
Quantos indivíduos delas participavam? O nú­
mero de cruzados é difícil de ser calculado, pois a
documentação ou não nos dá nenhuma informação
nesse sentido ou as cifras são claramente exageradas,
mais simbólicas que reais. Além disso, misturavam-
se às Cruzadas muitos Indivíduos não combatentes,
mercadores, artesãos, mulheres e crianças. A pro­
porção entre guerreiros e não combatentes era gran­
de, talvez de um para dois; no grupo dos guerreiros,
entre cavaleiros e infantes, perto de um para sete. No
geral, as maiores Cruzadas não ultrapassavam os
10 000 combatentes.

*
8 H ilário Franco Jr.

que concedia aos seus participantes privilégios espi­


rituais e materiais. Portanto, as lutas contra os mu­
çulmanos do Oriente Médio e da Península Ibérica,
contra os eslavos pagãos de Europa Oriental e contra
os heréticos de qualquer parte da Europa Ocidental
eram Cruzadas.
Que privilégios eram aqueles? O principal deles,
o da indulgência, concedia o perdão dos pecados,
perspectiva muito atraente naquela sociedade de
forte religiosidade, mais clerical que civil, na qual
pecado e crime eram a mesma coisa. Fazer o voto de
cruzado era se tornar “uma espécie de eclesiástico
temporário” (Riley-Smith), submetido à proteção da
Igreja e isento da jurisdição laica. Mais ainda, du­
rante a Cruzada o pagamento de juros ficava sus­
penso e uma moratória autorizava o “soldado de
Cristo” a pagar suas dívidas apenas quando da volta.
De que maneira começava uma Cruzada? A
iniciativa na maioria das vezes era do papa, que
como chefe espiritual da Cruzada pregava sua reali­
zação pessoalmente (como fez Urbano II na Primeira
Cruzada) ou através de clérigos (como ocorreu na
Segunda Cruzada com São Bernardo). A data de seu
início também era marcada pelo papa e um repre­
sentante seu, o legado pontifício, sempre acompa­
nhava a Cruzada como seu chefe, ainda que somente
teórico, pois naturalmente as operações militares
eram quase sempre decididas pelo rei ou pelos senho­
res feudais mais importantes. Assim, algumas vezes,
como aconteceu com a Quarta Cruzada, o papado
perdia o controle real da situação.
As C ruzadas 9

E os recursos materiais, de onde provinham? As


Cruzadas eram financiadas pelos próprios cruzados e
pela Igreja: os pequenos nobres empenhavam seus
bens e vendiam a liberdade dos camponeses depen­
dentes de suas terras, os senhores feudais recebiam
ajuda de seus vassalos, os soberanos criavam tributos
novos, a Igreja recebia donativos e taxava as rendas
de laicos e clérigos. Em alguns casos os cruzados
levantavam empréstimos junto a mercadores (como a
Quarta Cruzada com os venezianos ou junto a Cruza­
das de São Luís com os genoveses) ou as Ordens Reli­
giosas (nessa atividade destacaram-se os Templá-
rios).
Quantos indivíduos delas participavam? O nú­
mero de cruzados é difícil de ser calculado, pois a
documentação ou não nos dá nenhuma informação
nesse sentido ou as cifras são claramente exageradas,
mais simbólicas que reais. Além disso, misturavam-
se às Cruzadas muitos Indivíduos não combatentes,
mercadores, artesãos, mulheres e crianças. A pro­
porção entre guerreiros e não combatentes era gran­
de, talvez de um para dois; no grupo dos guerreiros,
entre cavaleiros e infantes, perto de um para sete. No
geral, as maiores Cruzadas não ultrapassavam os
10 000 combatentes.

*
AS MOTIVAÇÕES MATERIAIS

Se por pelo menos duzentos anos (de fins do


século XI a fins do XIII) houve um fluxo constante de
ocidentais dirigindo-se para a periferia da Cristan-
dade Latina (Oriente Médio, Península Ibérica e Eu­
ropa Oriental), devem ter existido razões profundas
para isso. De fato, um conjunto de fatores materiais
e espirituais provocou as Cruzadas, que represen­
taram originalmente uma espécie de saída, de solu­
ção, para os problemas colocados pelo início da de-
sestruturação feudal. Portanto, precisamos examinar
esse quadro do qual as Cruzadas resultaram e que
acabaram por transformar.
Procuremos de início, muito rapidamente, en­
tender o que foi a sociedade feudal. Ela se estruturou
em meados do século IX como resultado da interli­
gação de instituições bem mais antigas (romanas e
germânicas) com a nova conjuntura sócio-político-
econômica decorrente do fracasso do Império Caro-
A s Cruzadas h
língio. Em outras palavras, o feudalismo foi uma
resposta espontânea da sociedade cristã ocidental à
crise geral que a abalava naquele momento. De fato,
cada uma das características do feudalismo responde
a um aspecto daquela crise.
Economicamente, à medida que o setor mer­
cantil, o mais importante na Antiguidade Clássica, ia
decaindo, o setor agrícola tornava-se o principal.
Assim, a economia feudal era fundamentalmente
agrária, com cada unidade de produção, o senhorio,
procurando ser auto-suficiente. Isto significa que o
senhorio, como herdeiro do latifúndio romano dos
últimos tempos, produzia não só para suas necessi­
dades de alimentação, mas também de roupas, ar­
mas e utensílios. As atividades mercantis encontra­
vam-se bastante reduzidas, recorrendo-se a elas ape­
nas quando as condições locais não permitiam a
obtenção de uma determinada mercadoria (especia­
rias em toda a Europa, sal nas regiões afastadas do
mar, cereais no caso de uma má colheita).
Contudo, não é o fato de ser agrícola com ten­
dência à subsistência que diferencia a economia feu­
dal da de outros momentos históricos. O essencial
está no tipo de mão-de-obra empregada na agricul­
tura feudal. Ela não era mais escrava como na Anti­
guidade, nem assalariada como na Modernidade,
pois ambas pressupõem uma economia mercantil,
em que o trabalhador (escravo) ou a força de trabalho
(assalariada) são mercadorias. Recorreu-se então a
um tipo intermediário, a servidão, na qual o trabalha­
dor presta serviços compulsórios como na escravidão,
n H ilário Fr

mas não é considerado um objeto (na Antiguidade o


escravo era “uma ferramenta que fala”). De fato, ele
estava vinculado a um lote de terra, e não a uma pes­
soa, não podendo ser desapossado dele.
Demograficamente, a situação indicava no mes­
mo sentido. Ou seja, em função das epidemias, das
invasões, das fracas colheitas, da fraca propensão do
escravo a se reproduzir, em fins da Antiguidade o
número de trabalhadores era pequeno. Assim, pro­
curava-se dar ao camponês melhores condições de
vida, na esperança de que houvesse um crescimento
populacional. O cristianismo também contribuiu pa­
ra a mudança da situação do escravo, pois, apesar de
aceitar a escravidão, recuperava a condição humana
daquele trabalhador. Desta forma, a solução lógica
foi a servidão: o camponês é um trabalhador depen­
dente, não livre, pois está vinculado à parcela de
terra que trabalha. Contudo, ele tem garantido um
mínimo para a subsistência.
Politicamente, o feudalismo caracterizou-se
pela fragmentação do poder central, ou seja, pela
solução oposta às fracassadas tentativas de reuni­
ficação do Ocidente. Realmente, desde a queda do
Império Romano, sonhava-se com o restabelecimen­
to da unidade política. Porém, o insucesso da mais
importante dessas tentativas, a de Carlos Magno,
mostrou que o momento da unidade política havia
passado, e que, pelo contrário, os invasores vikings,
muçulmanos e húngaros só poderíam ser enfrentados
eficientemente com a regionalização da defesa. Por
outro lado, isso estava de acordo com a situação
A s C ruzadas 13

econômica e a auto-suficiência de cada região; daí,


por um processo lógico, o detentor de um senhorio
assumir a defesa de seu patrimônio e de seus depen­
dentes e assiir. ganhar o poder político naquele terri­
tório.
Socialmente, a desorganização que se seguira à
queda do Império Romano e a insegurança provo­
cada pelas invasões germânicas pediam uma nova
estrutura. A realidade social, por sua vez, mostrava o
quase completo desaparecimento das camadas mé­
dias e a formação de uma poderosa camada eclesiás­
tica. Assim, organizava-se uma nova sociedade, que
apresentava grande distância entre a elite clerical e
guerreira e a massa de camponeses. A aristocracia
detentora de terras, e portanto de poder econômico e
político, desejosa de perpetuar aquela situação, cons­
truiu uma ideologia que a justificasse: a sociedade de
ordens.
Nesta, a condição social de cada indivíduo es­
tava definida por Deus logo ao nascimento, ficando
portanto estabelecida a vitaliciedade e hereditarie­
dade: filho de nobre é nobre, filho de camponês é
camponês. Como a condição de cada pessoa tinha
sido determinada por uma ordem divina — daí o
termo “sociedade de ordens” — naturalmente não
havia possibilidade de mudanças; era uma sociedade
de rígida estratificação. Mais que isso, cada homem
devia resignadamente aceitar seu “destino” , pois
rebelar-se seria comprometer sua Salvação, sua Vida
Eterna.
Em suma, apenas a aristocracia guerreira (in-
n H ilário Franco Jr.

mas não é considerado um objeto (na Antiguidade o


escravo era “uma ferramenta que fala”). De fato, ele
estava vinculado a um lote de terra, e não a uma pes­
soa, não podendo ser desapossado dele.
Demograficamente, a situação indicava no mes­
mo sentido. Ou seja, em função das epidemias, das
invasões, das fracas colheitas, da fraca propensão do
escravo a se reproduzir, em fins da Antiguidade o
número de trabalhadores era pequeno. Assim, pro-
curava-se dar ao camponês melhores condições de
vida, na esperança de que houvesse um crescimento
populacional. O cristianismo também contribuiu pa­
ra a mudança da situação do escravo, pois, apesar de
aceitar a escravidão, recuperava a condição humana
daquele trabalhador. Desta forma, a solução lógica
foi a servidão: o camponês é um trabalhador depen­
dente, não livre, pois está vinculado à parcela de
terra que trabalha. Contudo, ele tem garantido um
mínimo para a subsistência.
Politicamente, o feudalismo caracterizou-se
pela fragmentação do poder central, ou seja, pela
soíução oposta às fracassadas tentativas de reuni­
ficação do Ocidente. Realmente, desde a queda do
Império Romano, sonhava-se com o restabelecimen­
to da unidade política. Porém, o insucesso da mais
importante dessas tentativas, a de Carlos Magno,
mostrou que o momento da unidade política havia
passado, e que, pelo contrário, os invasores vikings,
muçulmanos e húngaros só poderíam ser enfrentados
eficientemente com a regionalização da defesa. Por
outro lado, isso estava de acordo com a situação
A s C ruzadas 13

econômica e a auto-suficiência de cada região; daí,


por um processo lògico, o detentor de um senhorio
assumir a defesa de seu patrimônio e de seus depen­
dentes e assiir. ganhar o poder político naquele terri­
tório.
Socialmente, a desorganização que se seguira à
queda do Império Romano e a insegurança provo­
cada pelas invasões germânicas pediam uma nova
estrutura. A realidade social, por sua vez, mostrava o
quase completo desaparecimento das camadas mé­
dias e a formação de uma poderosa camada eclesiás­
tica. Assim, organizava-se uma nova sociedade, que
apresentava grande distância entre a elite clerical e
guerreira e a massa de camponeses. A aristocracia
detentora de terras, e portanto de poder econômico e
político, desejosa de perpetuar aquela situação, cons­
truiu uma ideologia que a justificasse: a sociedade de
ordens.
Nesta, a condição social de cada indivíduo es­
tava definida por Deus logo ao nascimento, ficando
portanto estabelecida a vitaliciedade e hereditarie­
dade: filho de nobre é nobre, filho de camponês é
camponês. Como a condição de cada pessoa tinha
sido determinada por uma ordem divina — daí o
termo “sociedade de ordens” — naturalmente não
havia possibilidade de mudanças; era uma sociedade
de rígida estratificação. Mais que isso, cada homem
devia resignadamente aceitar seu “destino” , pois
rebelar-se seria comprometer sua Salvação, sua Vida
Eterna.
Em suma, apenas a aristocracia guerreira (in-
14 H ilário Franco Jr.

cluímos aí o clero em função de sua origem social


comum) era detentora de terras, e o detentor de
terras devia ser guerreiro. Explica-se: o tipo de guer­
ra da época implicava em grandes gastos de equi­
pamento (cavalos, armaduras, armas) e num treina­
mento constante para poder usá-lo. Assim, só quem
tivesse recursos econômicos (o que na época signi­
ficava terras) podia ser guerreiro, além do que preci­
sava ser guerreiro para defender sua terra dos inva­
sores. Em função disso, ele se tornava protetor da
população das suas terras e naturalmente recebia a
obediência dos protegidos. O guerreiro possuidor de
terras exercia assim funções que anteriormente ca­
biam ao Estado.
Na sociedade feudal, como havia duas cama­
das básicas (clérigos-guerreiros e camponeses), três
eram as relações sociais possíveis. Em primeiro lu­
gar, as relações horizontais na aristocracia, ou seja,
entre aristocratas. Esse tipo de relação dava-se atra­
vés do contrato feudo-vassálico, pelo qual um ho­
mem livre (a partir daí chamado de senhor feudal)
entregava a outro de igual condição (vassalo) um
bem qualquer, geralmente uma certa extensão de
terra (feudo), em troca de serviço militar. Depois,
ocorriam relações horizontais no campesinato, com
os trabalhadores organizando-se para empreender
em conjunto certas tarefas (arar um campo, des-
matar uma área, construir moradias). Por fim, as
relações essenciais, as relações verticais aristocracia-
campesinato: elas implicavam nas obrigações que
um homem não livre (servo) devia a um livre (senhor
A s Cruzadas 15

feudal ou vassalo, clérigo ou laico, pouco importa)


em troca de proteção e do direito de viver e cultivar
um lote de terra deste último. Calcula-se que o con­
junto dessas obrigações levava o servo a entregar
cerca de metade do que produzia.
! Naturalmente o feudalismo, como toda forma­
ção social, não era estático, começando a se transfor­
mar praticamente a partir do momento em que se
estruturou. Mais importante, foram essas mutações,
que tinham sua origem na própria estrutura do feu­
dalismo, que criaram condições para o surgimento
das Cruzadas. Como já dissemos, elas deveríam re­
presentar uma válvula de escape para as tensões
sociais, econômicas e políticas provocadas pela pró­
pria dinâmica do feudalismo. Assim, devemos exa­
minar agora esses elementos materiais que, partindo
do feudalismo, estiveram na origem do fenômeno das
Cruzadas^
O cSntexto de expansão demográfica é o pri­
meiro deles. A fraqueza populacional do Ocidente
tinha começado lentamente a se modificar com o
início do feudalismo, pois este removera os obstá­
culos que impediam a tendência natural que toda
espécie tem a se multiplicar. Em primeiro lugar, as
epidemias (peste, malária), que tinham desempe­
nhado papel fundamental no retrocesso demográfico
da Alta Idade Média, praticamente desapareceram.
Isso se deveu aos contatos comerciais menos intensos
com o Oriente (de onde quase sempre provinham as
epidemias) e ao maior isolamento entre as regiões
ocidentais, o que dificultava a difusão das doenças.
16 H ilário Franco Jr

Em segundo lugar, com o feudalismo cessaram


as invasões estrangeiras e as grandes batalhas, ou
seja, a guerra tornou-se menos mortífera. De fato, as
guerras feudais, apesar de constantes, pouco afe­
tavam o comportamento demográfico da sociedade,
já que geralmente colocavam frente a frente apenas
algumas centenas de cavaleiros. Ademais, essas
guerras não tinham por objetivo fundamental des­
truir o adversário, mas aprisioná-lo, obtendo-se um
resgate pelo prisioneiro (uma das obrigações do vas­
salo para com seu senhor feudal era pagar o resgate
deste, caso ele fosse capturado).
Um terceiro fator determinante do surto demo­
gráfico foi a abundância de recursos naturais. A
existência de uma pequena população na Alta Idade
Média fizera com que vastos territórios ficassem
abandonados, recuperando assim sua fertilidade ou
recobrindo-se de florestas e pastagens naturais. Des­
sa forma, nos primeiros tempos do feudalismo havia
maior extensão de terras inexploradas do que culti­
vadas, isto é, havia recursos suficientes para ali­
mentar uma população bem superior à então exis­
tente. Contribuindo no mesmo sentido, ocorreu ain­
da a partir mais ou menos do ano 1000 uma suavi-
zação do clima europeu, que se tornou mais quente e
seco, permitindo o cultivo de várias espécies em lo­
cais anteriormente impróprios.
Por fim, o crescimento populacional está clara­
mente ligado às inovações de técnicas agrícolas veri­
ficadas na época. Discute-se, contudo, o tipo de liga­
ção: o incremento demográfico pressionou por uma
A s C ruzadas

produção maior e assim surgiram as inovações, ou as


novas técnicas permitiram uma alimentação melhor
e desta forma o crescimento da população? Para nós,
pouco importa. Basta constatar que realmente a par­
tir de um certo momento houve uma melhoria na
qualidade da dieta e isto contribuiu para uma queda
na mortalidade.
A alteração na dieta pode mesmo explicar a
mudança na proporção entre população masculina e
feminina, favorável à primeira na Alta Idade Média e
à segunda posteriormente. Tal se devia ao fato da
dieta na Alta Idade Média ser pobre em proteínas e
sobretudo em ferro, elementos que a mulher neces­
sita em maior quantidade (devido à menstruação,
gravidez e lactação), daí a anemia e portanto a me­
nor defesa do organismo contra certas doenças. No
entanto, o progresso tecnológico — especialmente o
novo método de atrelagem animal, a charma e o
sistema de rodízio de cultivos — fez com que desde o
século X se consumissem leguminosas (ervilha, len­
tilha, feijão, grão-de-bico, etc.) e maior quantidade
de carne, ovos e laticínios, possibilitando a dimi­
nuição da mortalidade feminina.
Em função desses fatores verificou-se um claro
incremento'‘demográfico, com a população da Eu­
ropa Ocidental passando de 18 milhões de indivíduos
no ano de 800 para mais de 22 no ano 1000, quase 26
em 1J.00, quase 35 em 1200 e mais de 50 em 1300. £
significativo que a região que conheceu o mais acen­
tuado crescimento, a França — 5 milhões em 800,
6,5 em 1000, 7,75 em 1100, 10,5 em 1200, 16 em
18 H ilário Franco Jr.

1300 —, tenha sido a que maior contingente de cru­


zados forneceu. Em suma, sem o surto demográfico
as Cruzadas não teriam sido possíveis nem neces­
sárias.
O contexto comercial é outro elemento a ser
levado em consideração para se entender a gênese
das Cruzadas. Ás novas técnicas agrícolas tinham
permitido uma significativa elevação da produtivi­
dade, que não só satisfazia as necessidades de uma
população em crescimento, como ainda gerava um
excedente. A existência desse excedente permitia que
novamente a Europa pudesse obter bens não produ­
zidos ali (especiarias, seda, perfumes, etc.). Parale­
lamente, aumentavam as necessidades dos mercados
bizantino e muçulmano por gêneros alimentícios e
matérias-primas ocidentais.
Neste processo de expansão do comércio a Itália
teve a primazia graças a vários fatores. Sua locali­
zação geográfica, no centro do Mediterrâneo, tor­
nava-a naturalmente predisposta a ser o elo de liga­
ção entre Ocidente e Oriente. Seus recursos agrícolas
limitados tomavam aquela vocação uma necessi­
dade, pois apenas o comércio podería fornecer os
bens indispensáveis; é significativo que as duas maio­
res cidades comerciantes italianas, Veneza e Gênova,
fossem particularmente desfavorecidas para as ativi­
dades agrárias. Mais ainda, o estreito contato com
civilizações comerciais como a bizantina e a muçul­
mana certamente reforçou aquela tendência. Por
fim, não se pode esquecer que sua tradição comercial
e urbana, vinda da Antiguidade, sempre esteve até
A s C ruzadas 19

.. então mais viva do que no resto da Europa católica.


Veneza, um dos maiores centros da época, man­
tinha intensas relações comerciais com o Oriente.
Desde o século VIII levava para Bizâncio trigo, vi­
nho, madeira, sal e peixe, obtendo em troca espe­
ciarias, seda e manufaturados. Á partir do século IX
os venezianos comerciavam também com os muçul­
manos do Egito, fornecendo-lhes mercadorias escas­
sas naquela região (ferro, .madeira, escravos) em tro­
ca de especiarias e ouro. Sua importância no Império
Bizantino cresceu tanto que em fins do século X o
imperador concedeu-lhes a Bula de Ouro, docu­
mento pelo qual os navios de Veneza pagariam ape­
nas a metade das taxas alfandegárias devidas pelos
estrangeiros. Mais ainda, um século depois recebe­
ram isenção total de impostos e uma feitoria em
Constantinopla. Entende-se assim que Veneza tenha
desempenhado importante papel nas Cruzadas, pois
tinha no Oriente interesses a defender e estender.
Gênova, a maior rival veneziana, conquistara
em princípios do século XI a hegemonia mercantil no
Mediterrâneo ocidental derrotando os muçulmanos e
se apossando das ilhas de Elba, Sardenha.e Córsega.
Assim, para ela os interesses comerciais e o combate
ao infiel eram uma mesma coisa, o que facilmente a
identificou com as Cruzadas. Na verdade, seu apoio
aos cruzados (transporte, provisões, empréstimos)
estava sempre condicionado ao recebimento de privi­
légios comerciais nas cidades conquistadas por eles.
Foi assim que os genoveses puderam formar um vas­
to e rico império colonial — arrancado aos bizantinos
20 H ilário F ran co Jr.

e muçulmanos —, abrangendo Chipre, as principais


ilhas do Egeu e territórios do mar Negro.
Assim como os interesses comerciais italianos
influíram nas Cruzadas do Oriente Médio, o mesmo
fizeram os interesses hanseáticos em relação à ocu­
pação da Europa Oriental. De fato, a Hansa Teutò­
nica, liga de comerciantes alemães, dominava o trá­
fico mercantil.no norte europeu, recolhendo num
locale vendendo em outros inúmeros produtos: peles,
mel e cera da Rússia, trigo e madeira da Polônia,
minerais da Hungria, peixe da Noruega e Islândia,
cobre e ferro da Suécia, vinho da Alemanha, lã da
Inglaterra e tecidos da Flandres. Portanto, atraía os
alemães a idéia de dominar, ocupar e colonizar os
territórios dos eslavos, que além de serem pagãos
tinham um nome interpretado como uma predes­
tinação a serem escravos...
O contexto social que possibilitou as Cruzadas
estava, naturalmente, ligado às transformações ante­
riores. Um aspecto daquele contexto que nos inte­
ressa é a maior mobilidade social, com a passagem
da sociedade de ordens para a sociedade estamental.
Isto significa dizer que, enquanto na primeira o indi­
víduo é de determinada camada social, condição .
estabelecida por ordem divina desde o nascimento,
na segunda o indivíduo está num certo grupo social.
Tal se devia ao fato da expansão demográfica ter
reduzido o tamanho da parcela de terra de cada
família camponesa, obrigando muitos indivíduos a
tentarem um novo gênero de vida. Gomo assim a
tendência à auto-suficiência dos senhorios tornava-se
A s C ruzadas 21

impraticável, cada região passou a se dedicar ao tipo


de cultivo ou criação que melhor se adaptava às suas
condições de solo, clima, etc. Surgiu assim um exce­
dente produtivo e se desenvolveram as trocas comer­
ciais. /
Desta forma os camponeses, que anteriormente
não tinham outra opção de vida senão ps trabalhos
agrícolas e compulsórios, passaram a ter no comércio
uma atividade mais compensadora. Ademais, assim
como a vida no campo identificava-se com servidão,
ajirbana identificava-se com liberdade: segundo um
conhecido provérbio medieval, “o ar da cidade dá
liberdade” (o servo que ali residisse um ano e um dia
sem ser reclamado pelo seu senhor tornava-se ho­
mem livre). Portanto, de diferentes formai (fuga,
compra da liberdade, alforria, sublevação) crescia o
número de camponeses que escapavam à servidão,
roubando assim ao feudalismo um dos seus susten-
táculos.
É natural, contudo, que nem todos os indivíduos
que conseguiram abandonar o campo e a servidão
tenham podido tornar-se comerciantes, surgindo as­
sim um crescente grupo de marginalizados. Na ver­
dade, toda sociedade gera seus marginais, aqueles
que são rejeitados ou que se afastam da vida social
por não se encaixarem nas normas de comporta­
mento em vigor ou por colocarem a sociedade frente
às suas próprias contradições. No caso que exami­
namos, o Ocidente na época das Cruzadas, dois tipos
de marginalidade interessam-nos, a heresia e a po­
breza, uma porque será combatida pelas Cruzadas,
22 H ilário Franco Jr.

outra porque fornecerá elementos para elas.


Numa sociedade religiosa como a feudal, pensar
diferentemente da Igreja era cometer ao mesmo tem­
po um pecado e um crime, era se expor a punições
espirituais e corporais. Por que, então, surgiam tan­
tas doutrinas contestando as verdades oficiais, pro­
clamadas e defendidas pela Igreja? Exatamente pelo
fato de os grupos heréticos estarem, através da nega­
ção dos valores religiosos socialmente aceitos, criti­
cando toda a organização social, todo o quo.
Assim, combater as heresias era para as camadas
dirigentes combater um elemento desagrègadcr da
sociedade feudal, era preservá-la e portanto pre-
servar-se.
Nos primeiros tempos do feudalismo a fraqueza
demográfica proporcionava ao servo uma certa segu­
rança pois, apesar da dureza de suas condições, ele
podia contar com um pedaço de terra para alimentar
sua família, sem correr o risco de sér privado dela e
podendo ainda transmiti-la a seus herdeiros. Com a
expansão demográfica e o conseqüente desenraiza-
mento, porém, muitos indivíduos deixai am de ter o
mínimo para a subsistência, dependendo da caridade
alheia, de serviços eventuais ou do crime. Por isso,
Guibert de Nogent, cronista da Primeira Cruzada,
fala da grande tranqüilidade que ocorreu na França,
com os ladrões e bandoleiros partindo para o Oriente.
Outro cronista, este um alemão, falando dos
participantes da Segunda Cruzada, mostra o papel
que os aventureiros, os criminosos e os despossuídos
tiveram no movimento: “as intenções destas várias
A s C ruzadas 23

pessoas eram diferentes. Álgumas, na verdade, ávi-


das-por novidades, iam apenas para ver coisas novas.
Outras eram levadas pela pobreza, por estarem em
situação difícil na sua terra; estes homens foram para
combater não apenas os inimigos da Cruz de Cristo,
mas mesmo cristãos, desde que vissem oportunidade /
de aliviar a sua pobreza. Havia ainda os que estavam
oprimidos por dívidas para com outros, ou que dese­
javam fugir ao serviço devido aos seus senhores, ou
que estavam mesmo esperando o castigo merecido
pelas suas infâmias.
Um dos elementos sociais de mais ativa parti­
cipação nas Cruzadas foram os secundogênitos de
famílias nobres. De fato, pelos costumes sucessórios
do direito feudal, a norma de primogenitura estabe­
lecia que, com a morte de seu detentor, a terra
passasse indivisa para seu filho primogênito (não se
alterando, portanto, o jogo contratual senhor-vas-
salo). Os demais filhos ou entravam para o serviço de
seu irmão mais velho, ou se tornavam clérigos, rece­
bendo portanto terras da Igreja. Com o surto popu­
lacional, no entanto, aquelas soluções revelaram-se
insuficientes, sobretudo porque a Igreja, apesar de
ser a maior possuidora de terras do Ocidente, não
podia enfeudar a todos aqueles nobres sem senhorio.
Assim, é compreensível que a pequena nobreza sem
; terra ou com escassos feudos visse nas Cruzadas a
j>ossível fornecedora de senhorios.
O contexto político que contribuiu para a ocor­
rência das Cruzadas estava em parte ligado àquela
nobreza despossuída e turbulenta. Na sua constante
24 H ilário Franco Jr.

tentativa de obter terras, muitos nobres atacavam os


feudos vizinhos e invadiam mesmo feudos da Igreja.
Esta, além disso, era prejudicada pelas constantes
guerras feudais, que ao afetarem a produção dimi­
nuíam o dízimo cobrado pela Igreja. Ássim, entende-
se dois movimentos criados pela Igreja na tentativa
de pacificar a Europa feudal: a Paz de Deus (fins do
século X) proibia, sob pena de excomunhão, ataques
a clérigos não armados, camponeses e comerciantes;
a Trégua de Deus (início do século XI) interditava as
lutas três dias por semana e em certas épocas do ano.
Antes de tudo procurava-se defender as pessoas
e bens da Igreja, como nos conta Raul Glaber, um
cronista do século XI: “para mostrar o respeito e a
reverência devidos à santidade das igrejas, decidiu-se
que todos aqueles que, perseguidos por qualquer
falta, aí procurassem refúgio, deveríam permanecer
ilesos, salvo os que tivessem violado o dito pacto de
paz. Da mesma maneira, não deveríam sofrer qual­
quer violência os clérigos, monges, religiosos e aque­
les que, na sua companhia, atravessassem uma re­
gião” . Ë sintomático que o Concilio de Clermont, em
que o papá Urbano II pregou a realização da Pri­
meira Cruzada, tenha sido reunido para renovar e
confirmar as disposições da Trégua de Deus. Outro
Concilio, cento evinte anos depois, em Latrão(1215),
pregando a Quinta Cruzada, dizia que “para realizar
esse projeto é extremamente necessário que os prín­
cipes cristãos observem a paz entre eles” .
Assim, inicialmente a Igreja era a maior inte­
ressada nos movimentos de paz, devendo-se aí incluir
A s C ruzadas 25
26 H ilário Franco Jr.

as Cruzadas que, ao levarem a guerra para outros


locais, poderíam pacificar a Cristandade Latina.
Num segundo momento, porém, também as monar­
quias passaram a perceber qiie as Cruzadas podiam
ser-lhes úteis ao desviar para outros empreendi­
mentos a nobreza e seu espírito guerreiro e irre­
quieto. Tal fato revelava-se extremamente atraente
aos soberanos, que já se aproveitavam dos problemas
da nobreza para, apoiados pela nascente burguesia,
promoverem a centralização política. Por isso mes­
mo, muitas vezes os próprios reis participavam de
Cruzadas, levando consigo para fora do país boa
parte da aristocracia guerreira.
Por fim, devido a questões de política eclesiás­
tica, a Igreja tinha ainda outra razão para promover
as Cruzadas: tentar a reunificação da Cristandade.
De fato, uma série de divergências jurídicas, eclesiás­
ticas, teológicas e políticas que existiam há séculos
entre as Igrejas de Roma e Constantinopla tinham
culminado em 1054 no Cisma do Oriente. Nesse mo­
mento ocorreu a divisão em Igreja Católica Romana
e Igreja Ortodoxa Grega. Desta forma, o papado via
nas Cruzadas uma arma de pressão que podería sub­
meter a Igreja Oriental a Roma, dando-lhe a supre­
macia sobre todos os territórios cristãos.
Concluindo, a melhor síntese das motivações
materiais da Cruzada que poderiamos apresentar é o
próprio discurso do papa Urbano II no Concilio de
Clermont, em novembro de 1095: |f‘Após ter prome­
tido a Deus manter a paz em suas terras e ajudar
fielmente a Igreja a conservar seus direitos, vocês
A s C ruzadas 27

poderão ser recompensados ,/77rtT'ar*do^sua cora­


gem noutro empreendimento. Trata-se de um nego­
cio de Deus. Ê preciso que sem demora vocês partam
em socorro de seus irmãos do Oriente, que várias
vezes já pediram sua ajuda. Como a maior parte de
vocês já sabe, os turcos invadiram aquela região;
muitos cristãos caíram sob seus golpes, muitos foram
escravizados. Os turcos destroem as igrejas, sa­
queiam o reino de Deus. Por isso, eu os exorto e
suplico — e não sou eu quem os exorta, mas o
próprio Senhor — a socorrer os cristãos e a levar
aquele povo para bem longe de nossas terras.
jf \“A todos os que partirem e morrerem no cami­
nho, em terra ou mar, ou que perderem a vida com­
batendo os pagãos, será concedida a remissão dos
pecados. Que combatam os infiéis os que até agora se
dedicavam a guerras privadas, com grande prejuízo
dos fiéis. Que sejam doravante cavaleiros de Cristo os
que não eram senão bandoleiros. Que lutem agora
contra os bárbaros os que se batiam contra seus
irmãos- e seus pais. Que recebam as recompensas
eternas os que até então lutavam por ganhos mise­
ráveis. Que tenham uma dupla recompensa os que se
esgotavam em detrimento do corpo e da alma. A
terra que habitam é estreita e miserável, mas no
território sagrado do Oriente há exteqsõeírtté,onde
jorram leite e mel (.. r ) -

k
AS MOTIVAÇÕES PSICOLÓGICAS

Tão importante quanto o conjunto de fatores


materiais que contribui para a ocorrência dos fenô­
menos históricos, é o contexto psicológico em que
eles ocorrem. No caso das Cruzadas, devemos levar
em consideração três elementos fundamentais da
mentalidade da época: a.çontratualidade, a belico-
sidade e a religiosidade.
Como sabemos, a realidade social do feudalismo
estava fortemente baseada na idéia de contrato, de
reciprocidade de direitos e obrigações. A desigual­
dade social e a exploração de uma camada pelas
outras eram mascaradas por uma ideologia segundo
a qual havería uma troca equilibrada de serviços,
com alguns rezando pelo bem de todos (clero), outros
protegendo toda a sociedade (guerreiros) e outros
encarregados da produção (camponeses). Na própria
aristocracia guerreira encontrava-se aquela idéia no
contrato feudo-vassálico, que regulava as relações
A s C ruzadas 29

entre vassalo e senhor feudal, de modo que os direi­


tos de um fossem obrigações do outro e vice-versa.
Assim, o que era de inicio uma justificativa para
a desigualdade social e uma norma jurídico-política,
acabou com o tempo por se enraizar na mentalidade.
Desta forma, a contratualidade ultrapassou o nível
das relações inter-humanas para atingir as próprias
i relações com Deus. De fato, passou a haver muito de
barganha, de negócio, nas relações com o mundo
sobrenatural: um certo número de préces podia ser
trocado pela obtenção de riqueza, uma peregrinação
a um santuário pela recuperação da saúde, um jejum
por uma graça qualquer. Bem entendido, esse era
um dado da mentalidade, ou seja, comum a todos os
homens da época, independentemente de categoria
social ou grau de cultura. Por exemplo, São Luís, rei
de França, homem de cultura e de sincera religio­
sidade, fez votp de cruzado durante uma grave enfer­
midade, ou seja, comprometia-se a trabalhar por
Deus (recuperando a Terra Santa) caso fosse ajudado
por Ele (sendo curado).
As relações homem-Deus passaram a ser conce­
bidas como relações vassalo-senhor feudal. O homem
recebera a Terra como feudo do Senhor (como um
vassalo recebia a terra do seu senhor) e em troca
precisava, como qualquer vassalo, ser-Lhe fiel e pres­
tar serviço militar (combatendo os inimigos de Deus).
Mesmo simples gestos religiosos foram marcados por
essa nova concepção: a partir do século X genera­
lizou-se a atitude de colocar as mãos juntas ao fazer
uma prece, reproduzindo o gesto do vassalo près-
30 H ilário Franco Jr.

tando homenagem a seu senhor feudal..


A belicosidade foi outro componente da menta­
lidade que se originou na prática social para depois
ganhar lugar no inconsciente coletivo. De fato, as
sociedades ocidentais desde a crise do Império Ro­
mano no século III conheciam muitas invasões es­
trangeiras (germânicas, muçulmanas, vikings, hún­
garas, eslavas) e longos períodos de lutas internas
(guerras sucessórias, disputas territoriais). O próprio
feudalismo tinha sido na origenrf, em parte, uma
forma de resistir aos invasores, fragmentando o Oci­
dente em pequenas unidades que se adaptavam me­
lhor àquele tipo de guerra. Por outro lado, procu­
rando limitar as lutas internas, a Igreja promovera a
Paz e a Trégua de Deus, proibindo guerras em certos
períodos, mas assim implicitamente aprovando-as no
resto do tempo.
Desta forma, o dado material transferiu-se para
o emocional: desde o século XI o Diabo era visto
como um vassalo de Deus caído em felonia, isto é,
traição por quebra de contratualidade. Portanto os
homens, vassalos ainda fiéis, entraram em combate
constante com o demônio. A própria missa nada
mais era que uma simulação simbólica daquele com­
bate. As igrejas do estilo romànico, típicas da idade
feudal, ficaram conhecidas por “fortalezas de Deus” ,
i e realmente assemelhavam-se aos castelos senhoriais
e tinham as mesmas funções defensivas: estes contra
os invasores, aquelas contra as forças demoníacas.
Os clérigos e os guerreiros formavam a elite
' s dirigente exatamente devido ao seu papel de prote-
A s C ruzadas 31

tores da sociedade. Cada um deles era especialista


num tipo de combate: os guerreiros com seus cava­
los, suas armaduras, suas lanças e espadas, enfren­
tavam os invasores de suas terras, assim como os
clérigos com suas armaduras simbólicas, as batinas,
e suas armas espirituais (sacramentos, preces, exor­
cismos) enfrentavam os inimigos da fé, as forças do
Mal. Naturalmente, os inimigos eram vistos como
exércitos demoníacos e portanto combatê-los era ao
mesmo tempo obra política e religiosa, como fica
bem claro através das próprias Cruzadas.
■w A religiosidade, por fim, era o grande traço
mental da época das Cruzadas, traço formado, como
os anteriores, a partir do contato com a realidade.
Como mostrou Marc Bloch, o homem da idade feu­
dal vivia muito próximo e dependente de uma natu­
reza desordenada e rude, que a pobreza de seu ins­
trumental não permitia controlar: “numa palavra,
havia por detrás de toda vida social um fundo de
primitivismo, de submissão aos elementos indisci-
plináveis, de contrastes físicos que não podiam ser
atenuados” .
Isto gerou uma religiosidade concreta, presa ao
palpável, pois o íntimo contato do homem com a
natureza apresentava-lhe mistérios que só poderíam
ser explicados pela atuação de forças sobrenaturais
que se tentava controlar. As forças do Bem poderíam
ser levadas a ajudar o homem a dominar a natureza,
a fazê-la trabalhar para seu benefício (clima favo­
rável, fertilidade da terra e dos animais). As forças
N do Mal poderíam ser subjugadas, impedindo a ocor-
\ --------------------- ----------------------------------------------------------------------------------
32 H ilário Franco Jr

rènda de fenômenos naturais violentos, prejudiciais


ao homem (terremotos, inundações, secas).
Em função do seu aspecto contratual e bélico, a
religiosidade feudal apresentava como ideal de vida
cristã um estilo de vida heróico, de busca de proezas
ascéticas, de luta contra o próprio corpo; a santidade
era acessível pelo esforço. Este ideal cristão era pre­
ferencialmente atingível nos mosteiros, mas os laicos
de origem modesta que não podiam se tornar monges
optavam por uma vida de privações e rudeza, de
severidade que era um traço característico da espiri­
tualidade popular da Idade Média: era como se uma
maior violência para com o próprio corpo compen­
sasse as deficiências de conhecimento e reflexão reli­
giosas.
Tal espiritualidade levava a uma religião de
obras que representavam o conjunto de obrigações
dos vassalos-homens para com o senhor-Deus: pre­
ces, esmolas, jejuns e, sobretudo, peregrinações. Es­
tas eram viagens a santuários onde se veneravam
relíquias, ou seja, objetos sagrados ou tornados sa­
grados pelo contato com corpos santos. Por exemplo,
ia-se até o Monte Saint Michel, na França, venerar a
marca de pé que o arcanjo Miguel deixara na rocha;
a Chartres, também na França, ver a santa túnica da
Virgem; a Roma visitar os restos mortais de São
Pedro e São Paulo; a Compostela, na Espanha, cul­
tuar o corpo santo do apóstolo Santiago; a Jerusalém
visitar o Santo Sepulcro e os locais por onde Cristo
passara.
Assim, as peregrinações cumpriam seu duplo
A s Cruzadas 33

t papel, ser uma forma de penitência e levar o indi-


' víduo ao contato com relíquias. De fato, o peregrino
era sempre um estrangeiro, um homem que procu­
rava a espiritualização separando-se do seu mundo
habitual, conhecendo as dificuldades e perigos dos
caminhos. É significativo que os grandes centros
peregrinatórios, que atraíam indivíduos de todos os
cantos da Cristandade, estivessem em, ou próximo a,
territórios muçulmanos — Jerusalém e Compostela.
Portanto, os peregrinos que se dirigiam para aqueles
locais passavam por maiores dificuldades do que se
visitassem santuários mais próximos, e assim puri-
ficavam-se mais de seus pecados.
Por outro lado, ter contato com relíquias era
também um importante objetivo dos peregrinos, pois
atribuía-se a elas poder mágico, protegendo ou cu­
rando seu portador. Mesmo aqueles que não podiam
obter uma relíquia, beneficiavam-se com a simples
proximidade de um corpo santo, o que dava ao pere­
grino a esperança de por alguma forma ser tocado
por aquela sacralidade. Apesar de seu grande nú­
mero, as relíquias e corpos santos não chegavam a
satisfazer a imensa necessidade do sagrado que havia
na sociedade medieval. Em virtude disso, o culto de
imagens ganhou muito prestígio e algumas delas che­
garam mesmo a se tornar também objeto de pere­
grinação.
As Cruzadas, portanto, devem ser entendidas
neste contexto psicológico, sendo elas próprias “pe­
regrinações armadas” . De fato, da reunião dos três
elementos da mentalidade feudal que acabamos de
34 Hilário Franco Jr.

examinar, surgiu o espírito de Cruzada: a) Deus é o


senhor do mundo e os homens como seus vassalos
devem servi-Lo, recuperando as regiões roubadas pe­
los infiéis, pagãos e heréticos; b) a Cruzada é um
exército de penitentes, de pecadores buscando indul­
gência (desde fins do século XII as mulheres dos
cruzados também ganhavam indulgência permane­
cendo fiéis); c) a honra cavaleiresca que se buscava
numa Cruzada não podería ser obtida de outra forma
nem ao longo de toda uma vida; d) o caráter sagrado
dos locais disputados reforçava a obrigação dos ho­
mens para com seu Senhor e tornava-os “soldados de
Cristo” ; e) a caridade fraterna do cristianismo seria
praticada ao se ajudar os cristãos oprimidos pelos
muçulmanos na Terra Santa ou na Península Ibé­
rica.
Entende-se assim que os cruzados fossem vistos
como homens generosos, desprendidos, verdadeiros
mártires, como neste texto do século XII: “não são
realmente mártires aqueles que renunciam a si pró­
prios e aos seus bens, que não temem nem a ruína
que uma longa ausência pode ocasionar, nem a indo­
lência do clima, nem a agitação do mar tempestuoso,
nem o estrondo de suas vagas, nem os inumeráveis
perigos da rota e do deserto, nem os sofrimentos da
fome e da sede, nem a própria morte?” .
Os cronistas das primeiras Cruzadas falam em
pessoas milagrosamente marcadas na carne com
uma cruz, sinal de benção divina e do agrado de
Deus por sua participação na Cruzada. Outros cro­
nistas contam-nos que à Cruzada do rei húngaro
A s Cruzadas 35

A marca da cruzrbênção divina.


36 Hilário Franco Jr.

Estevão, em princípios do século XIII, juntaram-se


animais, peixes, pássaros e borboletas (estas consi-
* dera das portadoras da alma desde os antigos egíp­
cios), que revoavam também em torno do contem­
porâneo São Francisco de Assis. Em suma, a Cru­
zada era uma obra aprovada por Deus.
Em função disso tudo, desenvolveu-se no Oci­
dente a concepção de guerra santa, existente, aliás,
entre os muçulmanos. Os bizantinos, contudo, não
aceitavam aquela idéia, já que para eles nenhuma
guerra era santa, mas apenas necessária; morrer na
luta não seria um martírio, pois os mártires enfren­
tavam o inimigo apenas com as armas da fé. A
princesa e cronista bizantina Ana Comneno indig­
nava-se ao ver cruzados lutando na Semana Santa, e
entre eles sacerdotes armados e empenhados no
combate. Esta diferente visão das coisas explica, a
par de razões políticas e econômicas, a desaprovação
bizantina frente às Cruzadas.
No Ocidente, porém, já no século V Santo Agos­
tinho admitira que as guerras eram feitas por ordem
de Deus. Em meados do século IX o papa Leão IV
afirmava que todo aquele que morresse lutando em
defesa da Igreja recebería uma recompensa celestial.
Pouco depois outro papa, João VIII, colocava as
vítimas da guerra santa entre os mártires. Em 1064
Alexandre II oferecia indulgência a quem lutasse
contra os muçulmanos na Península Ibérica, e pou­
cos anos depois Gregório VII dava absolvição a quem
morresse lutando pela cruz.
Foi contudo no século XII, com São Bernardo,
r i
A s Cruzadas 37

que a idéia de guerra santa foi melhor elaborada e


justificada, ganhando contornos definitivos. Para ele
a Cruzada antes de um fato político e militar era uma
liturgia, devendo por isso estar aberta a todos e não
apenas a uma elite. Na verdade, dela deveríam parti­
cipar de preferência os maus cristãos, os grandes
pecadores. Claro, portanto, que esta atividade puri-
ficadora só podería ser considerada santa. Como a
Cruzada iria “vingar a honra ultrajada de Jesus” , ela
transformava a atividade guerreira de algo conde­
nável numa virtude, quase santidade. O verdadeiro
cruzado não lutaria apenas com a espada, mas tam­
bém com a fé, daí o combate terminar ou com a
vitória militar ou com a glória do martírio. Enfim, o
cruzado tornava-se uma espécie de monge-guerreiro,
idéia que depois se concretizaria com as Ordens Mili­
tares Religiosas (Hospitalários, Templários, Cava­
leiros Teu tônicos, etc.).
Assim, os conceitos de Paz de Deus e de Guerra
Santa, aparentemente contraditórios, encontravam-
se estreitamente associados — reunindo a trilogia
mental, contratualidade, belicosidade, religiosidade
—, procurando impor uma concepção de mundo em
proveito das elites, sobretudo da clerical, criadora
deste modelo ideológico.

*
AS CRUZADAS NO ORIENTE
E NO OCIDENTE

Como vimos, as Cruzadas resultaram de um


conjunto de fatores materiais e psicológicos, ocor­
rendo portanto onde quer que aquelas necessidades e
ansiedades pudessem ser satisfeitas. Daí termos tido
Cruzadas no Oriente Médio, que objetivavam rein­
tegrar na Cristandade a Terra Santa, isto é, Jeru­
salém e regiões vizinhas, e na própria Europa, onde a
Península Ibérica estava em mãos de muçulmanos e
as regiões orientais, além rio Elba, eram território
pagão.
As Cruzadas que buscavam a Terra Santa rece­
bem tradicionalmente números (de Primeira a Oi­
tava Cruzada), no caso das expedições oficiais, ou
nomes (Cruzada Popular, Cruzada de Crianças), pa­
ra indicar a composição social diversa de outras. De
qualquer forma, isto é apenas um recurso didático
usado pelos historiadores, já que na verdade havia
A s Cruzadas 39

um fluxo constante de peregrinos, armados ou não,


em direção a Jerusalém: podia haver cruzados sem
fazer parte de uma Cruzada, mas o inverso obvia­
mente não era possível.

O movimento das Cruzadas


no Oriente Médio
Após o discurso do papa Urbano II em Cler­
mont, o entusiasmo despertado pela idéia de se partir
para Jerusalém foi muito grande. Enquanto a no­
breza feudal iniciava seus preparativos, necessaria­
mente demorados, o movimento repercutiu nas ca­
madas populares. A pregação fervorosa e entusiás­
tica de um monge, Pedro, o eremita, reuniu bandos
de franceses e alemães que, sem um plano preesta-
belecido e sem condições materiais adequadas, par­
tiram separadamente para o Oriente. A caminho,
estes grupos de pequenos cavaleiros, camponeses,
clérigos, aventureiros, maltrapilhos e desenraizados
tinham dificuldades em obter provisões, e chegavam
muitas vezes ao limite da fome, passando então a
roubar e saquear.
O fanatismo quase ingênuo dos participantes
desta Cruzada Popular e os problemas materiais pe­
los quais passavam, levaram-nos em vários locais,
sobretudo na Alemanha, a massacrarem comuni­
dades judias. Boa parte daqueles milhares de pere­
grinos que tinham partido em abril de 1096, morreu
40 Hilário Franco Jr.

durante a viagem. Os que chegaram ao Império Bi­


zantino, famintos e desiludidos mas ainda aguer­
ridos, naturalmente maravilharam-se com o esplen­
dor e a riqueza de Constantinopla, que por sua vez
viu surpresa e assustada aqueles bandos miseráveis e
ignorantes. O primeiro contato entre cruzados e bi­
zantinos foi de inveja e menosprezo, de mútua in­
compreensão, e as demais Cruzadas apenas alarga­
riam o fosso entre as duas partes da Cristandade.
Sentindo o incontido fervor dos cruzados e preo­
cupado com os problemas que eles começavam a lhe
causar, o imperador bizantino forneceu-lhes trans­
porte para a Ãsia. Aí os cruzados atacaram território
turco, perecendo uma parte deles em batalha en­
quanto outros ficavam cercados, num local sem
água, padecendo tormentos que conhecemos graças
a um cronista anônimo. “De tal modo os nossos
sofreram sede, que alguns abriam as veias de seus
cavalos e jumentos a fim de beber seu sangue; outros
pediam a um companheiro que colhesse com as mãos
a urina, para com ela mitigar a sede; outros ainda
escavavam o solo úmido, deitavam-se e espalhavam
terra no peito, tamanho era o ardor da sua sede.’’
Os bizantinos enviaram tropas de apoio, porém o
fracasso da Cruzada Popular era definitivo. Em no­
vembro de 1096 os sobreviventes retornavam ou a
Constantinopla, para aguardar a Cruzada dos Ba­
rões que estava a caminho, ou para sua região de
origem. Como escreveu Paul Rousset, se a Cruzada
Popular foi em certos momentos uma agitação anár­
quica e perigosa, foi principalmente o testemunho
A s C ruzadas 41

violento e confuso do entusiasmo gerado pelo dis­


curso de Clermont.
Enquanto isso, organizava-se a verdadeira Pri­
meira Cruzada (1096-1099), formada pela nobreza e
supervisionada pelo papado.#Apesar de haver um
comando único na pessoa do representante papal, na
prática a Cruzada era formada por vários exércitos
feudais autônomos. Um deles, de franceses do norte
(região de Paris, Bretanha, Normandia), chefiado
pelo irmão do rei, Hugo de Vermandois, dirigiu-se
para a Itália, embarcando em Bari e chegando a
Constantinopla em novembro de 1096. Outro, cons­
tituído por franceses do leste e alemães comandados
por Godofredo de Bulhão, atravessou a Hungria,
passou pelos Bálcãs e chegou à capital bizantina um
mês depois do grupo anterior. Em abril do ano se­
guinte lá chegou o exército de franceses do sul, lide­
rados por Raimundo de Saint-Gilles, conde de Tou­
louse, que cruzara os Alpes e a Itália do norte para
chegar à Grécia e daí a Bizâncio. Na mesma época lá
chegavam também os normandos do sul da Itália,
comandados por Boemundo.
O imperador bizantino Aleixo I exigiu dos che­
fes cruzados um juramento de fidelidade e o compro­
misso de que as primeiras terras conquistadas fossem
entregues a Bizâncio. Juridicamente os bizantinos
tinham razão, pois aqueles territórios eram seus an­
tes da conquista muçulmana. Contudo, isso contra­
riava os interesses particulares dos cruzados e abria
uma questão que posteriormente criaria muitos pro­
blemas. A recusa do conde de Toulouse em fazer o
42 Hilário Franco Jr.

juramento contribuiu para estremecer ainda mais as


já frágeis relações entre cruzados e bizantinos. Os
cristãos encontravam-se divididos, mas para sua sor­
te o mesmo ocorria, e de forma mais drástica naquele
momento, com os muçulmanos.
A campanha começou com o cerco à cidade de
Nicéia, que os turcos haviam ocupado alguns anos
antes, local estrategicamente importante por sua
proximidade de Constantinopla. O bloqueio dos cru­
zados por terra foi eficiente, mas eles precisavam de
apoio naval, que o imperador forneceu, isolando to­
talmente a cidade. Assim, os turcos resolveram capi­
tular, entregando Nicéia a Aleixo, que garantia em
troca respeitar a vida de seus habitantes. Para os
cruzados esse acordo foi encarado como uma traição,
que arrancava aos ocidentais a possibilidade de uma
vitória militar completa, cheia de glória e saques.
A seguir a Cruzada passou para a Síria, numa
caminhada lenta e difícil devido aos obstáculos geo­
gráficos, à dificuldade de aprovisionamento, aos
desentendimentos entre os chefes cruzados e à resis­
tência dos turcos. Os ocidentais ficaram mesmo sur­
presos com o valor militar dos inimigos, tanto que
um cronista afirma que “tivessem eles observado
sempre com firmeza a fé em Cristo e ninguém pode­
ría rivalizar com eles em força, coragem e ciência da
guerra” . Após a conquista de algumas cidades, que
não foram aliás devolvidas ao imperador bizantino
conforme tinha sido combinado, os cruzados chega­
ram frente a Antioquia, importante comercial e
estrategicamente.
A s C ruzadas

Depois de sete meses de cerco, graças à astúcia


de Boemundo e à traição de um cristão armênio
residente na cidade, os cruzados ocuparam Antio-
quia em meados de 1098. Contudo, logo depois che­
gava um numeroso exército turco de socorro e a
situação invertia-se, com os latinos ficando então
sitiados. A fome, a falta de apoio bizantino e as
deserções baixavam o moral dos cruzados, que esta­
vam numa situação difícil quando ocorreu o famoso
episódio da Santa Lança. Um camponês francês teve
visões nas quais Santo André indicou-lhe uma igreja
de Antioquia onde estaria a lança com que o centu-
rião romano ferira Cristo. A descoberta da lança no
local indicado suscitou grande entusiasmo e a certeza
de que Deus os apoiava. Assim, motivados, os cruza­
dos saíram para uma batalha em campo aberto e
conseguiram a vitória.
A etapa natural seguinte seria Jerusalém, mas
antes cada chefe cruzado empenhou-se em ações iso­
ladas procurando realizar uma conquista territorial
para benefício próprio. Finalmente, no início de 1099
os cruzados puseram-se em marcha para Jerusalém,
alcançando-a alguns meses depois. O sítio foi difícil e
prolongado, mas os cruzados conseguiram penetrar
na Cidade Santa em julho de 1099, com incrível
ferocidade, como nos mostra a História Anônima da
Primeira ruzad: “perseguiam, massacravam os
C
muçulmanos até o Templo de Salomão, onde houve
tal carnificina que os nossos caminhavam com san­
gue até os tornozelos” , depois do que “os muçul­
manos vivos arrastavam seus mortos para fora da
44 Hilário Fran co Jr.

cidade e diante das suas portas formavam montes tão


altos como casas” . Logo depois os cristãos rezaram e
agradeceram a Deus pela vitória: Jerusalém era
novamente sua.
Desta maneira, os ocidentais — chamados gene­
ricamente de francos — puderam estabelecer no ter­
ritório sírio-palestino Estados estruturados de forma
que poderiamos chamar de feudo-colonial. De um
lado, porque seus quadros dirigentes eram oriundos
da pequena nobreza feudal européia e portanto as
relações entre eles eram regidas pelas normas do
feudalismo ocidental. De outro, porque as populações
das regiões dominadas, cuja mão-de-obra e riquezas
eram exploradas pela elite ocidental, eram de etnia e
religião diferentes das dos conquistadores: árabes,
turcos, sírios, armênios, egípcios, gregos, divididos
em seitas muçulmanas (sunitas, xiitas, ismaelitas) ou
cristãs não católicas (monofisitas, nestorianos, orto­
doxos).
Os Estados francos eram quatro. O Reino de
Jerusalém, região de solo pedregoso e pouco propício
à agricultura, de litoral inóspito que não favorecia o
comércio marítimo, tinha ainda a vizinhança sempre
perigosa do Egito, a maior potência muçulmana da
época. Portanto, sua condição de Estado mais im­
portante não se devia a razões econômicas ou estra­
tégicas, mas de prestígio religioso. Seu primeiro che­
fe foi Godofredo de Bulhão, que não quis aceitar o
título de rei e a “coroa real no lugar onde Cristo usou
a coroa de espinhos” . No extremo nordeste, o Con­
dado de Edessa, criado em 1098 por Balduíno de
A s Cruzadas 45
46 Hilário Franco Jr.

Bolonha (irmão de Godofredo), encontrava-se por


sua localização constantemente pressionado pelos
muçulmanos, e seria o primeiro a desaparecer.
O Principado de Antioquia, na desembocadura
das rotas caravaneiras provenientes do Extremo
Oriente, desempenhou importante papel na Síria
franca, sobretudo no período em que foi governado
por seu criador, Boemundo. O Condado de Tripoli, o
último Estado latino a se constituir, localizado entre
Antioquia (ao norte) e Jerusalém (ao sul), benefi­
ciava-se de um litoral muito favorável ao comércio, o
que levara Gênova a ajudar Raimundo de Saint-
Gilles a formá-lo. Exatamente em função desta sua
importância comercial, e portanto do interesse das
cidades italianas, Tripoli foi a última região latina na
Síria a cair frente aos muçulmanos (1291).
Estes Estados latinos do Oriente eram, porém,
claramente, criações artificiais, muito distantes do
Ocidente, com o qual estavam ligados apenas por via
marítima, ficando assim dependentes dos interesses
comerciais italianos. Os francos representavam uma
pequena minoria naqueles territórios de povoamento
antigo e denso, elementos estranhos ao meio e que
nunca poderíam ser completamente assimiladores ou
assimiláveis. Outro problema era a grande ambição
dos chefes ocidentais, que os levava a uma rivalidade
desgastante, enfraquecendo as limitadas forças cris­
tãs e mostrando aos inimigos que aquela desunião
podería ser explorada. Ademais, a hostilidade mu­
çulmana e bizantina era grande, produto do des­
prezo de civilizações mais refinadas e sofisticadas
A s Cruzadas 47

pelos ocidentais rudes, incultos e violentos, “cães


cristãos” para os muçulmanos, “bárbaros” para os
bizantinos.
Portanto, a existência da Síria franca estava
sempre ameaçada, especialmente quando os muçul­
manos deixavam de lado temporariamente seus de­
sentendimentos internos e se uniam frente aos cris­
tãos. Foi o que aconteceu quando o chefe islamita de
Mossul reunificou vastos territórios e formou um
poderoso Estado limítrofe a Antioquia e Edessa. Esta
última, mais fraca e isolada, foi conquistada em
1144. A notícia da queda de Edessa mostrou ao
Ocidente a fragilidade das demais possessões cristãs,
e assim despertou a idéia de uma Cruzada de apoio,
que reocupasse Edessa ou ao menos fortalecesse as
demais posições latinas no Oriente Médio.
Esta Segunda Cruzada (1147-1149), pregada en­
tusiasticamente por São Bernardo, reuniu três con­
tingentes: o alemão do imperador Conrado III, o
francês do rei Luís VII e um de europeus do norte
(ingleses, flamengos e frísios). Este último grupo,
que ao contrário dos primeiros pretendia atingir a
Terra Santa por mar, ao passar pela Península Ibé­
rica ajudou os cristãos a reconquistarem Lisboa aos
muçulmanos, entrecruzando-se assim as Cruzadas
orientais e ocidentais. Entretanto, os alemães que
chegaram antes dos demais ao Oriente, sem esperar
apoio e sem maior planejamento, penetraram em ter­
ritório turco e foram esmagados em Doriléia.
Os sobreviventes juntaram-se ao exército francês
que chegou logo depois, porém os constantes atritos
48 Hilário Franco Jr.

entre alemães e franceses dificultavam uma ação con­


junta dos cristãos. Além disso, ocorriam também
desentendimentos entre Luís VII e Raimundo de. Poi­
tiers, príncipe de Antioquia, por causa de Eleonor da
Aquitânia, esposa do primeiro e sobrinha do segun­
do, que mesmo acompanhando o marido à Cruzada
não chegava a merecer a indulgência por fidelidade
conjugal... Quando finalmente Conrado e Luís che­
garam a um acordo, tomaram a decisão pouco feliz
de atacar Damasco, o que redundou em mais uma
derrota cristã e assim no fracasso da Cruzada.
Essa mostra da fraqueza cristã ocorria parale­
lamente ao surgimento no mundo muçulmano de
uma nova potência, que contava com um líder muito
hábil política e militarmente, Saladino. Em poucos
anos ele eliminou vários rivais muçulmanos, apode-
rando-se de regiões que praticamente cercavam
os Estados cristãos. Assim, a invasão do Reino
de Jerusalém, a conquista de suas principais pra-
ças-fortes e por fim da própria Jerusalém (1187)
era o resultado quase inevitável da diferença de
forças. Jerusalém tinha permanecido cristã por ape­
nas (ou por longos, dependendo do ponto de vista) 84
anos. A notícia da perda da Cidade Santa comoveu e
movimentou o Ocidente na preparação de uma nova
Cruzada, a Terceira (1189-1192).
O papa autorizou vários pregadores a percor­
rerem a Europa e estendeu a indulgência para aque­
les que não podendo participar da Cruzada finan­
ciassem a ida de outras pessoas. Três soberanos to­
maram a cruz, o rei francês Filipe Augusto, o rei
A s Cruzadas 49

ingles Ricardo Coração de Leão e o imperador ale­


mão Frederico Barba Ruiva. Além dos cruzados da­
quelas regiões, participaram também guerreiros da
distante Escandinávia e marinheiros das cidades ita­
lianas. Esta Cruzada, aparentemente tão forte, so­
fria, contudo, da mesma debilidade das anteriores,
falta de um comando único e de um planejamento
global. Mais uma vez cada exército seguia caminhos
diferentes e já chegava ao Oriente desgastado e com o
espírito de cruzada enfraquecido.
O imperador alemão, que partira antes, conse­
guiu algumas vitórias na Ãsia Menor, mas teve o fim
pouco glorioso de morrer afogado ao tentar a tra­
vessia de um rio, e desta forma as forças germânicas
dispersaram-se. Paralelamente, um grupo de com­
batentes de várias nacionalidades cercava a impor­
tante fortaleza de São João d’Acre, que resistiría por
dois anos, só caindo em meados de 1191. Enquanto
isso, Filipe e Ricardo sequer haviam partido, pois
antigas diferenças políticas e pessoais impediam que
chegassem a um acordo. Finalmente eles se reuniram
no sul da França e resolveram dirigir-se para Mar­
selha, em seguida para Gênova e daí para a Sicilia,
onde, porém, novos desentendimentos os retiveram
por seis meses. Quando chegaram ao Oriente, a re­
sistência de Acre já estava fraca e os cristãos com os
reforços franceses e ingleses finalmente tomaram a
cidadela, que seria desde então o principal ponto de
apoio ocidental e o último bastião latino a ser recon­
quistado pelos muçulmanos no século XIII.
O que parecia ser uma boa perspectiva para a
50 Hilário Franco Jr.

Cruzada não teve, porém, continuidade.; Filipe Au­


gusto, sempre desconfiado de seu adversário europeu
e aliado oriental, Ricardo, resolveu voltar para a
França, cujos problemas preocupavam-no mais que
a Cruzada. Ricardo Coração de Leão, grande guer­
reiro que era, conseguiu algumas vitórias sobre Sala­
dino, mas nem sempre soube explorar convenien­
temente seus resultados, e preferiu fazer um acordo
com os muçulmanos. Por este tratado, Saladino reco­
nhecia a posse do litoral sírio-palestino aos ocidentais
e permitia aos cristãos peregrinarem a Jerusalém,
que continuava contudo sob seu domínio. De qual­
quer forma, esta Cruzada garantiu aos Estados fran­
cos territórios fundamentais para sua sobrevivência,
adiando por um século seu desaparecimento; ao
invés de “semifracasso” (Rousset) seria preferível
considerá-la um semi-sucesso.
Os novos interesses comerciais e políticos, o
surgimento de uma nova tolerância entre cristãos e
muçulmanos devido à longa convivência, a liberdade
de peregrinação conseguida por tratados — estes
fatores iam aos poucos enfraquecendo o espírito de
Cruzada e fazendo com que o movimento fosse muitas
vezes desviado de seus objetivos originais. O melhor
exemplo disso foi a Quarta Cruzada (1202-1204) que,
resultante dos velhos desacordos ocidentais-bizan-
tinos e dos interesses econômicos de Veneza, acabou
por se tomar a primeira Cruzada contra cristãos.
Contudo, é curioso como aparentemente esta
Cruzada começava como a primeira, incentivada por
um papa de prestígio (Inocêncio III), movimentando
A s Cruzadas 51

a nobreza feudal mas não soberanos, reunindo efe­


tivos sobretudo franceses. A questão do transporte e
dos recursos financeiros acabaria, porém, por des­
viar os rumos da Cruzada, revelando as trasforma-
ções que ocorriam no Ocidente e portanto nas pró­
prias Cruzadas. De fato, assinou-se com Veneza um
acordo pelo qual ela fornecería transporte e provisões
para os cruzados em troca de uma certa quantia em
dinheiro e metade das conquistas que fossem feitas.
Como na época do embarque os cruzados não tinham
a quantia total, os venezianos propuseram uma mo­
ratória desde que recebessem sua ajuda para ocupar
a cidade de Zara, no litoral adriático.
A concordância da Cruzada já era um desvir-
tuamento, pois tratava-se de apoiar as pretensões
materiais de um partido (Veneza) contra outro, tam­
bém cristão (o rei da Hungria, possuidor de Zara).
Ademais, os venezianos só aceitaram a presença na
Cruzada de um representante papal que tivesse ape­
nas funções espirituais; a Quarta Cruzada começava
com um ato de rebelião em relação ao papa e ao seu
legado.
Para complicar a situação, o príncipe bizantino
Aleixo pediu o apoio dos cruzados para destituir um
usurpador que ocupava o trono de Constantinopla e
nele recolocar seu pai, Isaac II. Prometia em troca
reunificar as Igrejas, pagar uma grande quantia em
dinheiro e fornecer provisões aos cruzados. Tal pro­
posta interessou ao chefe da Cruzada, Bonifácio de
Montferrat (amigo de Filipe da Suábia, genro do
imperador destronado), pois assim podería liquidar a
52 Hilário Franco Jr.

dívida para com Veneza, obter recursos para dar


prosseguimento à Cruzada e pôr fim ao Cisma de
1054 (o que agradaria ao papa, descontente desde a
tomada de Zara). Aos venezianos ela também inte­
ressava, já que era uma grande oportunidade para
recuperar privilégios comerciais de que tinham go­
zado anteriormente em Bizâncio. Mais ainda, era
uma rara ocasião para se tentar ocupar partes dos
mercados orientais dominados por Constantinopla,
grande rival comercial.
Desta forma, em julho de 1203 Constantinopla
era atacada por mar pelos venezianos e por terra
pelos francos. Após uma curta resistência, o impe­
rador usurpador, que contava com pequeno apoio
popular, fugiu, sendo reentronizado Isaac II. Os cru­
zados foram então autorizados a acampar perto da
capital, podendo mesmo visitarem-na. O contato di­
reto entre a população bizantina e os latinos só au­
mentou o ódio que uma série de eventos históricos
vinha alimentando há séculos. Os gregos despreza­
vam aqueles homens rudes, ambiciosos e violentos
(um incêndio propositalmente provocado pelos oci­
dentais destruira vários quarteirões e matara muitas
pessoas), enquanto os latinos estavam desgostosos
pelo fato de Aleixo não ter cumprido totalmente suas
promessas.
Os ocidentais, pretendendo defender seus direi­
tos, atacaram novamente Constantinopla, mas foram
rechaçados. Contudo, um segundo assalto poucos
dias depois teve sucesso (abril de 1204). Seguiram-se
vários dias de desordem, com os latinos matando,
A s C ruzadas S3
queimando, violentando, mas sobretudo saqueando,
apossando-se das imensas riquezas de Bizâncio. Se­
gundo um participante e cronista do acontecimento,
“os ganhos foram tão grandes que ninguém saberá
dizer o montante em ouro e prata, baixelas, pedras
preciosas, tecidos de cetim e de seda, peles e todos os
mais ricos bens que jamais foram encontrados na
Terra” . Dentre as riquezas saqueadas destacavam-se
as relíquias, de que Constantinopla era rica, e que
foram então espalhadas por toda a Europa.
Surgia assim o Império Latino de Constanti­
nopla. Para seu trono foi eleito Balduíno, conde de
j Flandres, e a seguir procedeu-se à partilha dos des-
pojos, que beneficiou mais que ninguém aos vene-
anos: “o determinismo econômico levou Veneza a
dominar Constantinopla; o apelo de Aleixo forneceu
o pretexto, os cruzados a massa de mão-de-obra.
Sem Veneza, a Cruzada não teria sido desviada; sem
a Cruzada, Veneza não teria podido fundar seu im­
pério no Oriente” (Morrisson). Contudo, o Império
J Latino era frágil devido às contraditórias ambições
j de seus chefes, à hostilidade da população bizantina,
à forte resistência do clero ortodoxo e à rivalidade
comercial veneziano-genovesa: 57 anos depois um
nobre grego apoiado por Gênova restabelecia o Im-
; pério Bizantino (1261).
A Quarta Cruzada, apesar das inúmeras tentati­
vas dos contemporâneos em justificá-la, dera profun­
do golpe no espírito de Cruzada. A deturpação dos
seus objetivos levantava críticas às Cruzadas, como a
feita pelo poeta francês Rutebeuf em meados do século
54 Hilário Franco Jr.

XIII: “devo deixar minha mulher e meus filhos, to­


dos os meus bens e heranças para ir conquistar uma
terra estrangeira que nada me dará em troca? Posso
adorar Deus tanto em Paris como em Jerusalém”. No
entanto, o verdadeiro espírito das Cruzadas ainda
não morrera, como fica claro com a Cruzada de
Crianças (1212), movimento espontâneo, popular.
Iniciada por um menino alemão que reuniu mi­
lhares de jovens, geralmente camponeses — aquele
era um momento em que a expansão demográfica
aproximava-se de seu ponto máximo — esta Cru­
zada só alcançou Gênova, com seus participantes
morrendo no caminho, sendo seqüestrados e escra­
vizados, ou simplesmente se dispersando. A crença
geral de que as crianças poderíam ter sucesso no
empreendimento graças à sua pureza, era ao mesmo
tempo uma sobrevivência da idéia original de Cru­
zada e uma crítica aos rumos que ela tinha então
tomado.
O IV Concilio de Latrão (1215) havia pregado a
necessidade de uma nova Cruzada na Terra Santa,
mas ela, ao contrário das anteriores, quase não con­
tou com franceses, envolvidos numa Cruzada contra
heréticos no sul da França. Assim, a Quinta Cruzada
(1217-1219) reuniu húngaros, austríacos, cipriotas,
frísios, noruegueses e francos da Síria. O plano, con­
cebido já no século anterior mas nunca posto em
prática, era atacar o Egito, o mais rico território
muçulmano, o que, pensava-se, enfraquecería o sul-
tãó, facilitando a retomada de Jerusalém. Agindo
nesse sentido, os cruzados conseguiram ocupar a
A s Cruzadas 55

A cruzada das crianças.


56 Hilário Franco Jr.

importante cidade de Damieta, mas demoraram-se a


marchar sobre o Cairo, permitindo que os islamitas
se recuperassem e os derrotassem.
A Sexta Cruzada (1228-1229), realizada pelo
imperador alemão Frederico II, é um claro exemplo
de como a “moral do lucro sobrepujava a moral de
nobreza, a política derrotava a mística” ( Rousset).
De fato, as suas ambições imperiais em relação ao
Oriente tinham-no levado a se casar com a filha de
João de Brienne, rei — sem reino — de Jerusalém, e
assim Frederico passou a se considerar com direitos
àquele trono. Como, porém, ele estivesse excomun­
gado pelo papa devido a um choque de interesses
envolvendo a Itália, Frederico II não podería contar
com o apoio dos católicos do Oriente. Desta forma, o
imperador germânico, grande conhecedor da língua
e da cultura árabes, iniciou negociações com o sul­
tão. O resultado foi o Tratado de Jafa, pelo qual
Jerusalém e outros territórios eram devolvidos ao
reino latino; Jerusalém tornava-se cidade aberta,
com os muçulmanos conservando as mesquitas e os
cristãos o Santo Sepulcro.
Contudo, uma nova peça entrava no jogo polí­
tico do Oriente, os mongóis. Nas primeiras décadas
do século XIII, sob Gengis-Khan, eles submeteram
uma área muito vasta, destroçando ou empurrando à
sua passagem muitas populações. Foi o que acon­
teceu na Asia Central com os khwarizmianos (racial­
mente iranianos, religiosamente muçulmanos), que
se deslocaram então para a Asia Menor, pressio­
nando a Síria franca e tomando Jerusalém em 1244.
A s Cruzadas 57

Assim, no ano seguinte no Concilio de Lyon o papa


pregava a realização de urna nova Cruzada. No en­
tanto, a resposta a esse apelo foi fraca: a idéia de
Cruzada estava desgastada, os italianos e alemães
encontravam-se envolvidos mais uma vez na disputa
Igreja-Império, a Inglaterra conhecia problemas in­
ternos, a Península Ibérica continuava suas próprias
Cruzadas, a Europa Oriental sentia a ameaça mon­
gol. Portanto, apenas a França tinha condições de
participar de uma nova Cruzada, e isto ia ao encon­
tro do espírito muito religioso de seu rei, Luís IX,
depois canonizado como São Luís.
A Sétima Cruzada (1248-1250), retomando pro­
zio anterior, tinha por objetivo o Egito, que lhe
parecia a chave para o domínio da Palestina. Da-
iiiieta pôde ser conquistada com certa facilidade,
mas a indecisão (como na Quinta Cruzada) em se
atacar o Cairo deu chance a que os muçulmanos
absorvessem o golpe inicial e preparassem a defesa.
Meses depois, ao retomarem a marcha sobre o Cairo,
os cruzados foram derrotados diante da fortaleza de
Mansura e na retirada o próprio São Luís foi apri­
sionado. Para que ele e seus homens fossem liber­
tados restituiu-se Damieta e pagou-se ainda uma
grande quantia em dinheiro. Luís dirigiu-se então à
Síria onde ficou quatro anos reconstruindo e refor­
çando fortalezas cristãs e aguardando o momento de
atacar Jerusalém. Contudo, a morte de sua mãe,
regente de França, obrigou-o a voltar à Europa.
Quando os muçulmanos conquistaram Antio-
quia — a única grande cidade que ainda permanecia
58 Hilário Franco Jr.

em mãos cristãs — em 1268, São Luís novamente se


fez cruzado, mas contando com poucas adesões e
recebendo mais críticas que apoio. Esta Oitava Cru­
zada (1270) dirigiu-se para a Tunísia (mais para
atender a interesses políticos do irmão do rei do que
considerações de ordem estratégica), onde logo após
o desembarque uma epidemia matou centenas de
cruzados, inclusive São Luís. Sem sua liderança e seu
entusiasmo — na verdade ele era um dos poucos a
ainda acreditar na Cruzada — naturalmente a expe­
dição fracassou, retomando-se logo depois para a
França.
Em suma, naqueles quase dois séculos o quadro
histórico geral que dera origem às Cruzadas tinha-se
modificado profundamente, e assim elas perderam
sua razão de ser e acabaram desacreditadas. O fato
do papado ter continuado a pregar Cruzadas sobre­
tudo após a perda do último território católico na
Síria — Acre, em 1921 — apenas mostra que a
instituição continuava viva, mas sem o espírito e as
motivações originais, daí a quase nenhuma resso­
nância dàqueles apelos.

O movimento das Cruzadas no Ocidente


A luta contra os inimigos da Cristandade come­
çara antes no próprio Ocidente, mas seu caráter
doméstico, contínuo e regular não lhe deu — na visão
da época e da historiografia — o aspecto espetacular
que ganharam as expedições a Jerusalém. Porém, o
A s C ruzadas 59

fracasso dessas e o sucesso lento mas constante da-*


quela foram alterando a própria posição da Igreja.
Hostiensis, importante jurista canônico do século
XIII, refletia essa mudança ao afirmar que “embora
a opinião pública olhe favoravelmente as Cruzadas
do Ultramar, crux marina, parece, contudo, a quem
julga de acordo com a razão e com o senso comum,
que a Cruzada no continente, crux cismarina, é mais
justa e mais racional” .
Praticamente desde que os muçulmanos con­
quistaram a Peninsul'a Ibérica, em princípios do sé­
culo VIII, tinha começado o processo conhecido por
Reconquista Cristã. Na verdade, inicialmente o mo­
vimento não tinha motivações religiosas, mas era
apenas produto das necessidades criadas pelo cres­
cimento populacional dos grupos cristãos refugiados
nas montanhas do norte da Espanha. A Reconquista
era um empreendimento essencialmente camponês e
pastorial. As várias expedições realizadas por Carlos
Magno e seu filho entre 778 e 827 faziam parte de
uma política de busca de prestígio (objetivando a
unidade política do Ocidente) e de aliança com a
Igreja (cujo apoio era necessário para aquele obje­
tivo), não tendo alterado aquele caráter original da
Reconquista. Mesmo assim, as expedições carolín-
gias arrancaram aos árabes considerável território,
onde mais tarde organizaram-se os reinos de Navarra
e Aragão.
A grande mudança na situação peninsular ocor­
rería contudo apenas no século XI. De um lado,
porque o califado muçulmano de Córdoba desin­
60 Hilário Franco Jr.

tegrou-se por problemas internos, dando origem a


pequenos reinos independentes e rivais (as taifas), o
que facilitava as pretensões cristãs. De outro, porque
a forte expansão demográfica da Europa além—Piri-
neus levava para a Península Ibérica muitos aventu­
reiros e pequenos nobres interessados em obter terras
e glória para si. Foi assim que, através dos franceses
principalmente, a Reconquista ganhou caráter reli­
gioso, com o papa Alexandre II em 1063 prometendo
remissão dos pecados a quem ajudasse os cristãos
ibéricos na sua luta. Portanto, só “em fins do século
XI a Reconquista, nitidamente patrocinada pelo che­
fe da Igreja, possui um caráter religioso indiscu­
tível” (Villey).
Desde então, pode-se empregar o termo Cru­
zada em relação à Reconquista Ibérica, mesmo por­
que ela apresentava todas as motivações que exami­
namos nos capítulos anteriores e que haviam gerado
os movimentos para o Oriente. De fato, o vasto terri­
tório que podería ser tirado dos muçulmanos atraía
os excedentes populacionais de várias regiões euro­
péias, sobretudo da vizinha e superpovoada França.
A nobreza secundogênita, especialmente, via na pe­
nínsula a possível realizadora de seu sonho de obter
terras. O sucesso de muitos desses indivíduos natu­
ralmente atraía outros. Os exemplos mais famosos
disso envolvem dois membros da família do duque de
Borgonha: Raimundo e Henrique, por sua ajuda a
Afonso VI de Castela, casaram-se com duas de suas
filhas, recebendo assim o primeiro deles a Galicia
(ficando ainda como herdeiro do trono castelhano) e
A s C ruzadas 61
o outro Portugal (que seu filho transformaria em
reino independente).
Os grupos comerciais também viam com bons
olhos a possibilidade de se ter uma Ibéria totalmente
cristã, fornecedora de algumas matérias-primas im­
portantes. Esse era o caso da lã, muito procurada
pela indústria têxtil em expansão. A Igreja, natu­
ralmente, também estava interessada na Reconquis­
ta, pois gostaria de ampliar sua área de atuação
efetiva. Ocorre que mesmo os territórios cristãos da
península estavam pouco ligados à Igreja, pois ainda
adotavam o rito moçárabe, herança da época visi-
goda. Por fim, a Península Ibérica também tinha sua
Jerusalém, seu local sagrado que fornecia a moti­
vação religiosa: Compostela, cidade em que se acre­
ditava estarem os restos mortais do apóstolo San­
tiago.
Para que a Cruzada Oriental não esvaziasse a
Cruzada ocidental, o papa Pascoal II em 1100 proi­
biu os cristãos ibéricos de irem à Terra Santa e
concedeu a eles a mesma indulgência que cabia aos
da Palestina. Mais tarde, em 1218, também os es­
trangeiros que lutassem na Reconquista receberíam
a indulgência plena, como se combatessem em Jeru­
salém. Além da participação de europeus não ibé­
ricos que se dirigiam para a península especialmente
para a luta antimuçulmana, a Reconquista teve a
ajuda de cruzados que estavam de passagem para o
Oriente. Por exemplo, em 1147 um grupo de ale­
mães, escoceses, flamengos, ingleses e franceses, que
se dirigiam para a Segunda Cruzada, ajudou os por-
62 Hilário Franco Jr.

tugueses a reconquistarem Lisboa em troca de possi­


bilidades de riqueza que o saque da cidade prometia.
Da mesma forma, em 1217 uma frota de alemães
que iria participar da Quinta Cruzada apoiava os
portugueses na conquista da importante cidade de
Alcácer.
Assim, a Reconquista desde o século XI fazia
claros progressos, mas conhecia também insucessos,
dependendo do maior ou menor entendimento entre
os cristãos e da unidade ou divisão politica dos mu­
çulmanos. No primeiro caso, tivemos por muito tem­
po as lutas sucessórias e as pretensões hegemônicas
de Castela. No segundo, a desagregação do Califado
de Córdoba e o surgimentos das taifas, depois a
reunificação sob a dinastia norte-africana dos Almo-
rávidas (1086-1148), seguida de nova divisão e depois
outra unificação sob os Almoadas (1172-1248) e por
fim a divisão definitiva. Neste contexto de constantes
desentendimentos internos nos dois lados é que de­
vemos colocar a figura mais famosa da Reconquista,
o nobre castelhano conhecido por El Cid (século XI).
Grande guerreiro, após ter enfrentado muitas vezes
os muçulmanos, devido a um desentendimento com o
rei de Castela colocou-se a serviço dos antigos ini­
migos e mais tarde formou seu próprio exército e
domínio (Valência) combatendo uns e outros.
Nas suas grandes linhas, a Reconquista deu-se
assim: em meados do século IX o pequeno reino das
Astúrias, ao norte, alarga seus territórios ocupando a
Galicia e no século X Leão. Paralelamente o reino de
Navarra conquistava as regiões ao norte do rio Ebro.
A s Cruzadas 63

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64 Hilário Franco Jr.

O grande avanço cristão do século XI culminou com


a tomada de Toledo em 1085, mas o estabelecimento
dos impérios Almorávida e Almoada brecaram tem­
porariamente a Reconquista. A aliança entre vários
reis ibéricos cristãos permitiu a grande vitória de Las
Navas de Tolosa (1212) e o reinicio de uma acen­
tuada penetração cristã para o sul da península.
Desta forma, em fins do século XIII apenas o reino
de Granada permanecia muçulmano, e assim ficaria
até ser conquistado em 1492 (os problemas internos
dos cristãos praticamente interromperam a Recon­
quista no século XIV).
Além da Península Ibérica, noutra região euro­
péia manifestava-se a expansão cristã característica
dos séculos XI-XIII: a Europa Oriental eslava. Tam­
bém aí as motivações eram basicamente as mesmas,
mas talvez com um caráter agrário-comercial mais
acentuado. Ou seja, a penetração germânica por
aquela região teve como idéia-força a obtenção de
áreas colonizáveis e cultiváveis que absorvessem seu
excedente populacional, e que também servissem de
fornecedoras e consumidoras de várias mercadorias.
I É significativo que esse movimento germânico seja
conhecido por Drang nach Osten (marcha para o
leste), o que denota bem seu caráter colonial.
Em 1147, quando São Bernardo pregava a Se­
gunda Cruzada, os primeiros alemães cruzaram o rio
Elba, penetrando em território pagão. Como a ocu­
pação daquelas áreas naturalmente representaria um
alargamento da influência da Igreja, São Bernardo
apoiou-a, identificando-a com o movimento para o
A s C ruzadas 65

Oriente que então defendia. O papa, por sua vez,


sempre em conflito com o imperador alemão por
problemas políticos na Itália, via com bons olhos
aquele empreendimento que podería tirar muitos
germânicos da área de influência do imperador.
Por fim, o Ocidente conheceu ainda Cruzadas
contra cristãos, hereges ou mesmo católicos que por
alguma razão opunham-se à política papal. Não nos
interessa aqui enumerar todos esses movimentos,
bastando lembrar o caso mais importante, da Cru­
zada Albigense (1209-1226). Ela foi dirigida contra
os heréticos da seita albigense (esse nome derivava de
seu principal centro, a cidade de Albi, no sul da Fran­
ça), numa clara união de interesses da Igreja, da mo­
narquia francesa e da nobreza feudal do norte francês.
A Igreja, porque não podería aceitar a exis­
tência de um grupo que contestava seu poder, sua
riqueza e até mesmo sua condição de instituição
cristã. A monarquia francesa, porque no processo de
centralização política que promovia estava interes­
sada em estender seu poder à região sul do país. A
nobreza do norte, porque diante do fortalecimento
real ia perdendo seus feudos e seus poderes, que
pretendia recuperar no sul. Assim, quando o papa
Inocêncio III prometeu as propriedades albigenses
para aqueles que se tornassem cruzados contra eles,
naturalmente despertou o entusiasmo de muita gen­
te. Os heréticos foram esmagados na batalha de
Muret, em 1218, e os sobreviventes mortos por outras
expedições ou perseguidos pela Inquisição (criada
em 1229 originalmente para extirpar aquela heresia).
O OCIDENTE APÔS AS CRUZADAS

Chegados a esse ponto, sabemos portanto o que


foram as Cruzadas, que razões levaram milhares e
milhares de indivíduos de diferentes lugares a parti­
ciparem delas por séculos. Conhecemos também al­
guma coisa sobre as Cruzadas mais importantes, e
seus personagens de maior destaque. Porém, o nosso
quadro sobre as Cruzadas ainda está incompleto,
pois, como todo evento histórico de alcance, elas
foram importantes não tanto por si próprias, mas por
aquilo que ocasionaram. Em outras palavras, preci­
samos ainda examinar alguma coisa sobre as conse-
qüências das cruzadas, as transformações que elas
prqvocaram ou acentuaram.
No entanto, é preciso antes disso lembrar que
num certo sentido as Cruzadas fracassaram, ou seja,
não atingiram totalmente os seus objetivos. De fato,
apesar dos expressivos contingentes populacionais
que se dirigiram para o Oriente Médio, a Península.
A s C ruzadas 67

Ibérica e a Europa Oriental, a Cristandade conti­


nuou superpovoada para os recursos de que dispu­
nha. A prova disso é que se verificou durante todo
aquele tempo uma tendência de alta no preço dos
cereais (em virtude de uma procura maior que a
oferta) e de estagnação e mesmo baixa nos salários
(devido à grande oferta de mão-de-obra).
O comércio sem dúvida teve então“um grande
desenvolvimento — não por causa das Cruzadas,
mas com sua contribuição — porém também conhe­
ceu problemas devidos em parte às Cruzadas. Por
exemplo, os interesses italianos, -que desvirtuaram a
Quarta Cruzada e levaram mesmo após ela à explo­
ração do Império Bizantino, debilitaram-no muito,
permitindo que em fins da Idade Média ele fosse,
conquistado pelos turcos. Ora, a ocupação de Cons-
tantinopla afetou o papel de intermediária que aque­
la cidade realizava entre os produtos do Extremo
Oriente e os mercados ocidentais. Assim, um dos
setores comerciais mais importantes, o das especia­
rias, conheceu uma crise superada mais tarde com os
Descobrimentos e o acesso direto às fontes produ­
toras.
A intenção eclesiástica de pacificar a Europa
cristã desviando a nobreza sem terras para zonas
periféricas também não chegou a ter sucesso. De um
lado, porque o ritmo das conquistas não acompa­
nhava o ritmo de crescimento populacional. De ou­
tro, porque como veremos as Cruzadas aceleraram a
desestruturação da sociedade feudal e assim contri­
buíram indiretamente para o acirramento das guer-
68 H ilário F ranco Jr.

ras feudais. A divisão da Cristandade em duas Igre­


jas — que o papado pretendia reunificar através das
Cruzadas — foi ainda mais acentuada, pois, ao colo­
car em contato mais direto ocidentais e bizantinos, as
Cruzadas tornaram mais claras as divergências entre
eles.
Em suma, os resultados das Cruzadas não fo­
ram absolutamente aqueles pretendidos pelos que
as conceberam, as pregaram ou que participaram
delas. Foi como apontar para um alvo mas acertar
outro bem diferente. Por ironia, a Igreja, que as
criara e defendera, e a nobreza feudal, que delas
participara julgando poder resolver seus problemas,
foram as grandes prejudicadas. Mas, enfim, quais
foram as transformações devidas, direta ou indire-
tamepte, às Cruzadas?
’ Religiosamente, passou a haver maior tolerância
entre cristãos e muçulmanos, produto de um maior
contato e assim de um maior conhecimento recí­
proco. Ê verdade que de início o fanatismo de ambos
os lados (mas especialmente dos cristãos) criara um
clima de ódio religioso e racial. Porém, com o tempo
entendeu-se que as próprias religiões não eram tão
diferentes assim, e que de qualquer forma a convi­
vência era inevitável entre dois povos habitando um
mesmo território. Ë interessante verificar como o
cristão recém-chegado à Síria franca — e portanto
ainda carregado de imagens deformadas e preconcei­
tuosas sobre os islamitas — indignava-se ao ver as
boas relações dos potros (latinos nascidos na Terra
Santa, muitas vezes de casamentos mistos) com os
A s C ruzadas 69

muçulmanos.
Por outro lado, com as Cruzadas aumentou a
intolerância em relação a bizantinos e judeus. No
caso dos bizantinos porque se revelou um verdadeiro
complexo de inferioridade ocidental diante daquela
civilização refinada, orgulhosa, que rejeitava os lati­
nos ou os tratava de forma depreciativa, quase inso­
lente. Quanto ao despontar do anti-semitismo, ele
estava mais ligados às transformações econômicas do
que a outros fatores. Ë claro que, no clima de passio-
nalidade dos primeiros tempos das Cruzadas, os ju­
deus não podiam deixar de ser vistos como os “assas­
sinos de Cristo” . Porém, a verdadeira razão é outra:
se na fase de comércio atrofiado a atividade dos
judeus era útil à sociedade cristã, a partir do século
XI, com a economia mercantil em expansão, eles
passaram a representar uma concorrência indesejada
para os cristãos que cada vez em maior número
dedicavam-se aos negócios mercantis e bancários.
O fracasso das Cruzadas em ocupar definiti­
vamente a Terra Santa levou ao desenvolvimento de
uma forma pacífica de se tentar impor aos infiéis, a
missão. Na verdade, desde os primeiros tempos do
cristianismo as missões desempenharam papel im­
portante na conversão de povos e territórios inteiros à
religião de Cristo. Mas métodos mais violentos preva­
leceram por muito tempo, revalorizando-se as mis­
sões no século XII. Com o aparecimento dos mendi-
cantes (franciscanos e dominicanos) em princípios do
século XIII, a idéia missionária'começou a substituir
em parte a idéia das Cruzadas. O próprio São' Fran-
70 H ilário Franco Jr.

cisco esteve no Egito em 1219, conseguindo do sultão


permissão para pregar nos seus domínios. Pouco de­
pois comunidades missionárias instalaram-se na Ter­
ra Santa e em Chipre, trabalharam na Síria muçul­
mana e chegaram mesmo a ir até a Ãsia pregar entre
osmongóis.
Porém, a mais importante conseqüência das
Cruzadas no aspecto religioso foi ter permitido uma
crescente oposição ao clericalismo. A íntima relação
da Igreja com a sociedade feudal naturalmente fazia
esta sentir os efeitos da crise daquela, como se per­
cebe pelo aumento do número de heresias nos séculos
XII e XIII. Além disso, a deturpação da idéia de
Cruzada causou grande desprestígio à Igreja, perce­
bendo-se que — e a própria palavra “cruzada”
adquire este significado pejorativo desde fins da Ida­
de Média — ela se tornava um empreendimento
contra todos que pensassem diferentemente da Igreja.
Mais ainda, a religiosidade da. época, sempre
disposta a ver sinais divinos em tudo, a interpretar as
intenções de Deus a partir de acontecimentos de
qualquer tipo, via no fracasso das Cruzadas uma
crítica divina à Igreja. Todos os problemas econô­
micos, sociais e políticos que aconteciam devido à
crise feudal eram interpretados da mesma forma. O
perigo mongol, que se aproxima da Europa, tam­
bém. Em suma, nascia um sentimento de angústia,
de desamparo divino, que não se podia deixar de
atribuir à Igreja. Se a função desta era apaziguar as
almas, interceder junto a Deus a favor dos homens, e
nada disto acontecia, começava-se a questionar a
A s C ruzadas 71
72 H ilário Franco Jr.

própria razão de ser da Igreja. Estavam lançadas as


sementes que cem ou duzentos anos depois, em 1517,
dariam origem ao Protestantismo.
Socialmente, três foram os principais resultados
das Cruzadas^) enfraquecimento da aristocracia, o
enfraquecimento da servidão e o fortalecimento da
burguesia. O crescente anticlericalismo não podia
deixar de se refletir na aristocracia laica, estrutu­
ralmente ligada ao clero. Ê verdade que de início
parecia ocorrer o fortalecimento e enriquecimento
das elites: Guibert de Nogent, cronista da Primeira
Cruzada, afirma que, na ânsia de partir, muita gènte
vendia bastante barato os bens que não serviríam
para a expedição, comprando caro as mercadorias
que seriam úteis. Os mosteiros foram especialmente
beneficiados, pois muitos cruzados doavam-lhes suas
propriedades ou ao menos faziam deles seus procu­
radores durante sua ausência.
Contudo, logo ficou claro o golpe que as Cru­
zadas eram para a maioria dos nobres. Muitos deles
arruinaram-se na esperança de obter no Oriente ou
na Península Ibérica um patrimônio maior. Muitos
outros morreram no caminho ou em combate, daí o
desaparecimento de famílias e famílias nobres. Para
dar upi exemplo, numa região do norte francês —
grande fornecedor de cruzados — havia uma centena
de linhagens nobres em 1150, 80 em 1200, apenas 40
em 1250 e somente 12 em 1300. Os que conseguiram
feudos no Oriente tiveram na verdade um sucesso
pouco duradouro, que não beneficiou senão algumas
gerações.
A s Cruzadas 73

Entretanto, não se deve exagerar esses efeitos


negativos, pois em algumas regiões ocorreu o inverso.
No Macônnaise, por exemplo, como mostrou Geor­
ges Duby, a Cruzada “empobreceu algumas linha­
gens, mas teve sobretudo efeitos favoráveis; em pri­
meiro lugar, certos cruzados retornaram à região
mais ricos do que eram quando haviam partido;
foram também muitos os que não regressaram e os
seus parentes, menos numerosos quando da partilha
sucessória, tiraram proveito disso. De fato, a pere­
grinação à Terra Santa, drenando o excedente da
cavalaria, assegurou a prosperidade de muitas linha­
gens, evitando que o seu patrimônio se dividisse
excessivamente”.
As Cruzadas contribuíram para o retrocesso da
servidão de várias maneiras. Em alguns casos o aris­
tocrata, precisando de dinheiro para partir em Cru­
zada, vendia a liberdade para os servos; em outros,
voltando arruinado, obtinha recursos da mesma for­
ma; em outros, ainda, a ausência do senhor permitia
a fuga do servo, que ia tentar uma nova vida, na
cidade, como artesão ou comerciante; muitas vezes
a fuga dava-se provocada pelo entusiasmo e vontade
de partir em peregrinação (como na Cruzada Popu­
lar). Algumas vezes, sobretudo na França, a liber­
tação dos servos não ocorria por alforrias individuais,
mas através de movimentos coletivos: pressionados
pelos camponeses, muitos senhores foram obrigados
a conceder cartas de franquia, documentos que liber­
tavam comunidades rurais inteiras.
O desligamento de muitos camponeses dos laços
74 H ilário F ranco Jr.

servis, o desenvolvimento comercial, a intensificação


da vida urbana e o progresso da produção artesanal
naturalmente fortaleciam a burguesia. E isso repre­
sentava novo golpe sobre a sociedade feudo-clerical.
Interessada na diminuição do número de tributos
regionais, a burguesia combatia a autonomia dos
feudos e a .descentralização política. Interessada no
fim das guerras feudais que atrapalhavam seus negó­
cios, a burguesia desejava uma paz efetiva, não a
Paz de Deus, mas a Paz do Rei, a centralização
política. Interessada numa cultura racionalista e
individualista, de acordo com sua mentalidade, a
burguesia combatia os valores eclesiásticos e as inter­
venções da Igreja na vida política e econômica.
Politicamente, o resultado que mais chama a
atenção é a grande ampliação da Cristandade Latina.
No Oriente Médio aquela estreita faixa de terra onde
se organizaram Estados francos ficou menos de
dois séculos (1098-1291) em mãos cristãs. Contudo,
partes da Grécia (restos do Império Latino de Cons-
tantinopla) ficaram sob domínio ocidental até 1460,
a importante ilha de Rodes até 1522, Chipre até
1571, Creta até 1669. Na Europa Oriental uma área
considerável em extensão e bastante rica foi incorpo­
rada definitivamente à Cristandade Latina, apesar
da antiga influência bizantina na região. Mas o
grande êxito, indubitavelmente, foi a reincorporação
de mais de 400000 km de território ibérico, ex­
cluindo para sempre os muçulmanos da Europa Oci­
dental. Mais ainda, a Escandinávia, cristianizada em
princípios do século XI, integrou-se realmente na
A s C ruzadas 75

Cristandade através das Cruzadas, superando assim


um certo isolamento geográfico a que parecia des­
tinada.
No entanto, o resultado político mais impor­
tante talvez tenha sido o grande impulso no processo
de centralização política. A lenta passagem das mo­
narquias feudais para monarquias nacionais tinha
começado antes das Cruzadas e só se completaria
bem depois, mas sem dúvida foi beneficiada por elas.
O enfraquecimento ou desaparecimento de muitas
famílias nobres, o afrouxamento da servidão, o apoio
da burguesia, foram fatores que trabalharam na­
quele sentido. No caso ibérico, com a proximidade
do inimigo e as Cruzadas no próprio território, os
monarcas puderam desde cedo contar com o apoio
popular, a submissão da nobreza e a aceitação da
Igreja.
Economicamente, as Cruzadas não tiveram a
importância que muitas vezes lhes foi atribuída. Se­
gundo a conhecida tese do historiador belga Henri
Pirenne, as conquistas muçulmanas do século VIII
fecharam o Mediterrâneo ao comércio, de forma que
“a Europa Ocidental regrediu ao estado de região
exclusivamente agrícola” . O desaparecimento das
atividades comerciais trouxe conseqüentemente um
esvaziamento das cidades, com muitas delas dei­
xando de existir e outras vendo sua população bas­
tante reduzida. A interrupção do tráfico Ocidente-
Oriente também afetou o sistema monetário, com o
bimetalismo anterior (ouro e prata) sendo substi-.
tuído por um monometalismo de prata, correspon-
76 H ilário Franco Jr.

dente à regressão econômica da época.


Assim, prossegue o pensamento de Pirenne, a
reconquista cristã do Mediterrâneo, começada antes
das Cruzadas mas impulsionada e completada por
elas, reabriu aquele mar ao comércio. Isto natu­
ralmente refletiu-se na vida urbana, que foi também
reativada: as fortalezas construídas no período ante­
rior, chamadas burgus, passaram a ser procuradas
pelos mercadores como local de abrigo e proteção.
Com a intensificação do comércio, o crescente nú­
mero de mercadores não conseguia mais se instalar
nas fortalezas, daí criarem junto às muralhas uma
aglomeração, uma espécie de entreposto comercial, o
portus. Por questão de segurança seus habitantes
rodeavam-no por uma muralha, que assim, obvia­
mente, também cercava o antigo núcleo senhorial.
Portanto, o subúrbio mercantil englobava o burgo,
dando assim origem a uma cidade.
Estas estimulantes idéias, aceitas integralmente
por muito tempo pela historiografia, atualmente re­
cebem críticas e reparos. Mas não nos interessa aqui
acompanhar essas discussões, excessivamente aca­
dêmicas para nossos objetivos. Basta lembrar que
atualmente prefere-se enfatizar a continuidade das
atividades comerciais, que jamais foram interrom­
pidas. Portanto, as mudanças ocorridas a partir do
século XI foram de caráter quantitativo. Não houve
um “renascimento comercial” , mas uma intensifi­
cação de tal proporção que repercutiu em todos os
setores da sociedade, alterando-a profundamente:
desenvolvimento das cidades, surgimento da bur-
A s C ruzadas Tl
guesia, despertar do individualismo e do raciona-
lismo, aparecimento das universidades, novas con­
cepções religiosas e artísticas, fortalecimento do po­
der monárquico.
Portanto, as Cruzadas não foram as respon­
sáveis pelas grandes transformações econômicas,
mas produto delas. Contudo, elas não deixaram de
contribuir significativamente para o avanço daquelas
transformações. Exemplifiquemos novamente com
Veneza e Gênova, pois estas cidades eram os prin­
cipais centros econômicos da época e tiveram impor­
tante participação nas Cruzadas. O intenso comércio
que ambas praticavam era anterior ao século XI, mas
foi a abertura dos mercados orientais — para o que as
Cruzadas desempenharam papel decisivo — que as
tornou potências econômicas.
Mais ainda, os impérios coloniais orientais de
Veneza e Gênova interessavam à economia de todo 0
Ocidente por escoarem seu excedente produtivo e
fornecerem importantes produtos. No primeiro caso
estavam trigo, vinho e tecidos. No segundo, más-
tique, anil e alume (resinas básicas para a indústria
têxtil), algodão e açúcar (pouco conhecidos no Oci­
dente cristão), mel (o principal adoçante, devido ao
alto preço do açúcar), cera (de várias utilidades),
peixes salgados (importantes na alimentação). Mes­
mo regiões que não participaram diretamente do
comércio resultante das Cruzadas foram beneficia­
das por ele. Este foi o caso da Champagne, onde as
célebres feiras reuniam comerciantes de todo o Oci­
dente e produtos do Oriente Médio e Extremo (leva­
78 H ilário Franco Jr.

dos pelos italianos) e da Europa Oriental (levados


pelos hanseáticos).
Da mesma forma, o desenvolvimento dos bancos
e do crédito pode ser considerado resultado indireto
das Cruzadas. É verdade que o revigoramento do
comércio fi da economia monetária por si só criava
condições para o aparecimento de bancos. Contudo,
a extensão de seus negócios foi possibilitada pelo
comércio a longa distância (transferência de fundos,
câmbio de moedas de diversas origens) e pelas neces­
sidades dos cruzados (depósitos durante sua ausên­
cia, empréstimos). Os Templários — monges-guer-
reiros organizados para proteção dos peregrinos a
Jerusalém — tornaram-se os grandes banqueiros da
época graças aos resgastes conseguidos nas lutas con­
tra os muçulmanos. Com esse capital eles finan­
ciavam a ida de muitos cruzados ao Oriente, além do
que guardavam a riqueza de outros em troca de uma
pequena taxa.
Culturalmente, supervalorizou-se a influência
dos cruzados. Eles não foram, como muitas vezes se
disse, os responsáveis diretos pela transmissão de
elementos culturais muçulmanos para o Ocidente
cristão. Tanto os cruzados do Oriente Médio quanto
os da Península Ibérica estavam muito absorvidos
por outros interesses para darem à cultura muçul­
mana sua devida atenção. Ademais, a maior parte
deles não tinha nível cultural suficiente para poder
compreender, assimilar e retransmitir componentes
daquela cultura. No entanto, é preciso que fique bem
claro, as Cruzadas tiveram grande participação na-
A s C ruzadas 79

quele fenômeno a t transmissão cultural. Este ocor­


reu basicamente graças à reincorporação na Cristan-
dade de territórios muito tempo muçulmanos (Ibé­
ria, Sicilia) e portanto impregnados de sua cultura.
Ora, aquela reincorporação deu-se graças às Cru­
zadas, assim contribuidoras indiretas pela transfe­
rência cultural muçulmana ao Ocidente. Por outro
lado, as condições favoráveis à aceitação da influên­
cia islamita independiam das Cruzadas.
Também no sentido inverso — traqsferência de
elementos culturais ocidentais para regiões muçul­
manas — a contribuição dos cruzados foi limitada.
As razões são claras: tratava-se de indivíduos de
interesses políticos e econômicos e não culturais; em
função disso, de pessoas despreparadas; a cultura
que se podería transmitir (a ocidental) era nitida­
mente inferior à das regiões ocupadas (a muçul­
mana); no Oriente os casamentos mistos com muçul­
manos envolviam apenas francos de condição inferior
(a elite casava-se com orientais cristãos, gregos ou
armênios). Assim, a presença cultural latina na Síria
ficou registrada somente através de igrejas e forta­
lezas.
Institucionalmente, as influências recíprocas fo­
ram pequenas, mesmo porque latinos e muçulmanos
possuíam instituições condizentes com suas respec­
tivas necessidades, e que não poderíam ser alteradas
artificialmente. No máximo ocorria uma adaptação
às condições locais. Por exemplo, o feudalismo de
cada um dos Estados francos correspondia às carac­
terísticas do lugar de origem de seus componentes.
80 H ilário Franco Jr.

Mas a importância da economia monetária no Orien­


te permitiu que lá fosse mais utilizado o chamado
feudo de bolsa: o vassalo recebia de seu senhor feudal
não uma extensão de terra mas uma quantia anual
em dinheiro.
Por fim, no que denominaríamos hoje relações
internacionais, as Cruzadas trouxeram uma conse-
qüência de grandes repercussões: o afastamento Oci-
dente-Oriente. Apesar da maior tolerância entre cris­
tãos e muçulmanos, as profundas divergências per­
maneceram, sendo alimentadas e às vezes aumen­
tadas por determinados acontecimentos. Após a to­
mada de Jerusalém, em 1099, os cristãos realizaram
um massacre que as fontes árabes quantificam em
100000 mortos entre guerreiros, mulheres e crianças,
cifra obviamente exagerada mas de claro significado
simbólico. Durante a Terceira Cruzada, como as
negociações caminhassem lentamente, Ricardo Co­
ração de Leão ordenou a execução de dois a três mil
prisioneiros muçulmanos, cujas entranhas foram
abertas e reviradas em busca de ouro que eles teriam
engolido para escondê-lo.
Em relação a Bizâncio os desentendimentos an­
teriores tomaram-se irreversíveis após a Quarta Cru­
zada e os excessos cometidos pelos latinos. O próprio
papa Inocêncio III, preocupado com as conseqüên-
cias daquele episódio, admoestava o legado ponti­
fício: “como poderá na verdade a Igreja Grega ser
trazida à união eclesiástica e à devoção pela Sé Apos­
tólica, quando tem sido assediada por tantas aflições
e perseguições, de tal maneira que não vê nos latinos
A s C ruzadas 81

senão um exçmplo de perdição e de obras tenebrosas


e que agora, com razão, os detesta mais que a
cães?” .
A sua preocupação iria se revelar fundamen­
tada. Em 1453, com os turcos às portas de Constan-
tinopla, pensou-se em pedir ajuda aos ocidentais,
mas um general bizantino resumiu o pensamento
popular: “prefiro o turbante dos muçulmanos à mi­
tra dos latinos” . A Rússia, que sempre se considerou
herdeira de Bizâncio — de quem recebera o alfabeto,
a religião, elementos artísticos e literários, institui­
ções políticas — manteria por séculos essa descon­
fiança em relação ao Ocidente. Em suma, as Cruza­
das afastaram Ocidente e Oriente, criaram barreiras
que, nos dois lados, enraizaram-se no inconsciente
coletivo, mantendo-se para além de mudanças nos
sistemas políticos e econômicos, e que talvez expli­
quem mesmo algumas questões atuais...

*
CONCLUSÃO

Se perguntássemos a uma pessoa não versada


em História que imagens a Idade Média lhe des­
perta, muito provavelmente as Cruzadas fariam par­
te de sua resposta (e talvez fossem toda a sua res­
posta). E num certo sentido ela teria razão em falar
assim, pois as Cruzadas apresentam-nos os princi­
pais protagonistas daquele período histórico, sendo
como que sua síntese: papas, bispos e monges, reis,
cavaleiros e camponeses, banqueiros e comerciantes,
bizantinos e muçulmanos. O mesmo acontece com as
atitudes e as emoções: reverência, fidelidade, dedi­
cação, desprendimento, credulidade, cupidez, trai­
ção, incompreensão.
Evitando a posição hipercrítica do século XVIII
em relação às Cruzadas, “expressão do barbarismo e
fanatismo medievais” , ou a exaltativa do século XIX,
que via nelas a “vitória da civilização ocidental cristã
sobre o Oriente bárbaro” , devemos reconhecer nas
A s C ruzadas 83

Cruzadas uma fenômeno histórico de grande al­


cance. Elas não devem ser reduzidas tão-somente a
uma expressão da religiosidade medieval ou a uma
primeira experiência do imperialismo ocidental. Fe­
nômeno complexo, elas só ganham sentido, como
procuramos mostrar, dentro dos quadros do feuda­
lismo: neles surgiram como expressão das tensões
sociais decorrentes das lentas transformações estru­
turais e como válvulas de escape para elas; sobre eles
exerceram um papel abalador, acelerando aquelas
transformações estruturais ao fracassarem na sua
função de válvulas de escape.
Episódio histórico muito rico, elas já foram estu­
dadas em relação com a religião, a economia, a
política, a arte, o direito, a geografia, a guerra, a
navegação. Seria interessante, contudo, fazer-se uma
história das Cruzadas depois das Cruzadas, ou seja,
verificar-se como, depois de ultrapassadas enquanto
realidade histórica, elas permaneceram como um
dado sempre presente na psicologia coletiva. Apesar
de todo o peso dos fatores econômicos e políticos, em
pleno fim do século XV Colombo imaginava estar
fazendo, acima de tudo, uma Cruzada. Ainda hoje,
quando se quer dar força a um empreendimento,
* rotula-se-o “cruzada” — seja ela contra o alcoo­
lismo, a carestia, o fascismo ou o comunismo — o
que nos dá bem a medida de sua penetração no
inconsciente coletivo e, num certo sentido, faz de
cada um de nós uma espécie de cruzado.

-------------- Jt-------------
INDICAÇÕES PARA LEITURA

A literatura sobre Cruzadas é vastíssima, mas só


podemos indicar aqui alguns títulos (dos quais muito
poucos em língua portuguesa, e sempre em tradu­
ção). Contudo, os interessados em fazer uma pes­
quisa mais profunda contam com dois excelentes
repertórios bibliográficos: MAYER, H. E. Biblio­
graphie zur Geschichte Kreuzzüge, Hanover, Hahn,
1960, onde estão citadas mais de 5 000 obras e artigos
sobre as Cruzadas, e ATIYA, A. S. The Crusade,
historiography and bibliography, Londres, Indiana
University Press, 1962, mais modesto e de utilização
mais fácil.
Fundamental, é claro, para qualquer estudo his­
tórico é o contato com os documentos, com os textos
escritos pelos contemporâneos dos fatos analisados.
A documentação sobre Cruzadas é imensa, mas de
forma geral acessível apenas aos especialistas (por
exemplo o Recueil des historiens des croisades, 16
A s C ruzadas 85

volumes de textos ocidentais e orientais reunidos no


século XIX e reeditados recentemente: Farnborough,
Gregg Press, 1969). No entanto, existem pequenas
antologias, muito úteis e de leitura agradável: RI­
CHARD, J. L ’esprit de la croisade, Paris, Cerf, 1969
(com uma introdução histórica muito boa) e PER-
NOUD, R. Las cruzadas, Buenos Aires, Mirasol,
1964. Ë também interessante ter-se a visão de outros
protagonistas das Cruzadas, como os muçulmanos:
GABRIELI, F. Storici arabi delle crociate, Turim,
Einaudi, 1973.
Para aqueles que têm pouco contato com a His­
tória Medieval, é interessante em primeiro lugar
familiarizar-se com o pano de fundo histórico no
qual devem ser vistas as Cruzadas: LOPES, R. S.
O nascimento da Europa, Lisboa, Cosmos, 1965, e
LE GOFF, J. La civilisation de l ’Occident médiéval,
Paris, Arthaud, 1967, são obras gerais muito bem
feitas, com uma concepção moderna de História,
valorizando não os fatos mas as estruturas sociais,
políticas, econômicas, religiosas e culturais. Sobre o
feudalismo a melhor obra continua a ser o clássico
(só recentemente traduzido para o português) dê
BLOCH, M. A sociedade feudal, Lisboa, Edições 70,
1979.
Como as Cruzadas estreitaram os contatos do
Ocidente cristão com os mundos bizantino, muçul­
mano e eslavo, é importante conhecer-se algo sobre
eles: BREHIER, L. Vida y muerte de Bilancio, 3 v.,
México, UTEHA, 1956, ou o mais acessível RUNCI-
MAN, S. A civilização bizantina, Rio, Zahar, 1977;
86 H ilário F ranco Jr.

MIQUEL, A. O Islame e a sua civilização, Lisboa,


Cosmos, 1971, e WATT, M. Historia de la Espana
islamica, Madri, Alianza, 1970; PORTAL, R. Os
eslavos, povos e nações, Lisboa, Cosmos, 1968.
Obras introdutórias sobre as Cruzadas existem
muitas; as melhores são MORRISSON, C. Les croi­
sades, Paris, PUF, 1969 (2? ed. 1973) e RILEY-
SMITH, J. What were the crusades?, Londres, Mac­
millan, 1977, de concepção semelhante à nossa, po­
rém mais elaboradas pois, apesar de serem ambas
também dirigidas a um público não especialista, tra­
ta-se nesse caso do público europeu, cujo leitor mé­
dio é de formação histórica superior ao nosso. O livro
de GROUSSET, R. As Cruzadas, São Paulo, Difel,
1965, apesar de escrito por um especialista, é mais
restrito, examinando basicamente a história política
dos Estados Cruzados do Oriente.
Ainda num só volume, porém obras de maior
fôlego, são ROUSSET, P. História das Cruzadas,
Rio, Zahar, 1981, livro sério, de um grande conhe­
cedor, muito superior a OLDENBOURG, Z. As Cru­
zadas, Rio, Civilização Brasileira, 1968, nem sempre
precisa e imparcial. Dentro da sua perspectiva, com
os limites geográficos e cronológicos que se impôs, é
muito boa a obra de PERROY, E. Les croisades et
l ’Orient latin ( 1095-24),Paris, CDU, s/d.
Sobre o conceito e a idéia de Cruzada temos três
importantes clássicos: ERDMANN, C. The origin o f
the idea o f Crusade, Princeton, Princeton University
Press, 1977, e VILLEY, M. La Croisade. Essai sur la
formation d ’une théorie juridique, Paris, Vrin, 1942,
A s C ruzadas 87

fazem sua análise a partir dos textos dos canonistas,


enquanto ALPHANDERY, P. e DUPRONT, A. La
Chrétienté et l ’idée de croisade, 2 v., Paris, Albin
Michel, 1954, procuram estudar aquele conceito
mais a partir de um ponto de vista não oficial, ecle­
siástico, mas “popular” .
Finalmente, as melhores obras de conjunto da
historiografia das Cruzadas são GROUSSET, R. His­
toire des Croisades, 3 v., Paris, Plon, 1934-1936, e
RUNCIMAN, S. A history o f the Crusades, 3 v.,
Londres, Cambridge University Press, 1951-1954
(existe tradução espanhola: Historia de las Cru­
zadas, Madri, Alianza, 1973). A primeira delas
dá grande destaque à “colonização” franca no
Oriente Médio, seguindo de perto os detalhes po­
líticos de sua evolução. A segunda é obra de um
grande erudito, que manuseando tanto fontes oci­
dentais quanto orientais elaborou um livro minu­
cioso, preciso, fundamentado, mas excessivamente
narrativo.
Sobre o Autor

Hilário Franco Jr., professor, doutorando em História Medieval


pela Universidade de São Paulo, é também co-autor de História Econô­
mica Geral e do Brasil (Atlas, 1980), Especialista em História Medieval e
História Econômica, é membro da The Medieval Academy of America e
da The Economic History Society.

Caro leitor:
As opiniões expressas neste livro são as do autor,
podem não ser as suas. Caso você ache que vale a
pena escrever um outro livro sobre o mesmo tema,
nós estamos dispostos a estudar sua publicação
com o mesmo título como "segunda visão".

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