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ELLIOT, John. “A conquista espanhola e a colonização da América”.

In: BETHELL,
Leslie (Org.). História da América Latina. São Paulo: Edusp, 2004, vol. I.

OS ANTECEDENTES DA COLONIZAÇÃO

A filosofia expansionista espanhola consistia em conquistar para converter, e para isso


foi necessário colonizar. Os traços constitutivos desse ideário podem ser averiguados na
Reconquista. Este processo galgou a ampliação dos limites da fé, a anexação de novos
territórios e, por conseguinte, a obtenção de novos vassalos, que buscavam ganhos
materiais e oportunidades de honra e fama. Mas aqui não nos interessa o processo de
combate aos mouros. Interessa-nos o exame da filosofia expansionista, enfatizando num
primeiro momento a conceito de conquista.

Conquistar podia significar colonizar, e colonizar podia se haver com uma concepção
estática, calcada no ocupar e explorar, ou podia balizar-se por uma tática aventureira,
portanto dinâmica, calcada na pilhagem e mais generosa quanto às possibilidades de
distinção, pois diz respeito a uma colonização baseada na sistemática anexação
territorial pela espada (p. 138).

No além-mar, o modelo português de feitoria servia como exemplo aos espanhóis. Este
modelo permitia prescindir da conquista e da colonização em larga escala. Ele era
adequado para regiões que já possuíam comércio, mas obviamente se mostrou
inadequado no Novo Mundo. Aqui seria necessário desenvolver sistemas de produção
de riquezas, que na Índia, por exemplo, já eram produzidas pelos próprios nativos.
Assim, a conquista e a colonização tinham de ser mais amplas. No caso português,
optou-se por delegar tais responsabilidades a particulares, que em troca auferiam cargos
e privilégios. Esse modelo foi experimentado na Ilha da Madeira e colocado em prática
nas Capitanias Hereditárias do Brasil. Ademais, ele serviu de modelo para o
expansionismo espanhol (p. 141-142).

O movimento expansionista espanhol foi composto por três elementos decisivos: uma
iniciativa privada assumindo uma mentalidade marcadamente coletivista; a participação
da Igreja; e, por fim, o gerenciamento do Estado: “a realeza era em si o centro de toda a
organização da sociedade medieval de Castela”. No entanto, não devemos amplificar o
poder real. A vassalagem pressupunha uma teoria contratual delimitadora desse poder,
calcada fundamentalmente na noção de tirania: “ao monarca cabia garantir bom governo
e ministrar justiça, no sentido de assegurar que cada vassalo recebesse seus direitos e
cumprisse as obrigações que eram suas em virtude de sua posição” (p. 143). Trata-se de
uma sociedade senhorial calcada na interação entre “serviços” e “mercês” concedidas
em retribuição a tais serviços. Esse modelo foi transmitido ao Novo Mundo. É um
modelo de conjunção entre o público e o privado que, em suma, foi exportado: a coroa
assegura o domínio e certos direitos sobre as conquistas e, em troca, concede privilégios
ao conquistador (p. 145). A Igreja entra na engrenagem oferecendo a sanção moral para
a expansão. Isso é confirmado quando a autorização papal (Alexandre VI) de 1494
reveste a expansão espanhola de empresa missionária (p. 147).

O PADRÃO DAS ILHAS


Colombo enviara caraíbas para serem comerciados como escravos na península. Essa
primeira atitude colocou de forma aguda uma questão que iria dominar a história da
Espanha na América nos próximos cinquenta anos: qual status atribuir à população
indígena?

Conforme o Direito Romano, seria legítimo escravizar “bárbaros”. O cristianismo


medieval interpretou o termo “bárbaro” como infiel. Mas os índios eram infiéis?
Inacreditavelmente, como sustentavam os teólogos, os índios ignoravam a verdadeira
religião – isso era inegável. Não se tratava, portanto, de infiéis, mas de pagãos. Seriam
infiéis, e daí a primeira possibilidade de escravizá-los, se porventura a religião lhes
fosse apresentada e eles a recusassem. Vislumbra-se a empresa missionária. Outra
possibilidade seria por meio da “guerra justa”, termo flexível mediante o qual os
colonos acionavam diferentes justificativas para o apresamento: por vezes a rebeldia do
índio, por vezes o canibalismo do caraíba (p. 150). Devemos reter que a possibilidade
de “guerra justa” foi uma brecha da decisão (1500) da Rainha Isabel ao declarar os
“índios livres e não sujeitos à escravidão”. Somente com as Nuevas Leyes (1542) houve
a abolição da escravidão indígena, embora a escravidão não fosse abolida
universalmente. As Nuevas Leyes vão ao sentido de eliminar a opção escravista.

Governo de Nicolas Ovando em Hispaniola (1501-1508): visou dar estabilidade a uma


situação política extremamente dividida em facções que dilacerava a ilha; em 1503,
calcado na experiência da Reconquista, estabeleceu o sistema de encomiendas;
incentivou a criação de gado e a agricultura, numa tentativa de demover os colonos da
dependência elusiva do ouro; em suma, o governo de Ovando transformou Hispaniola
de um entreposto em uma colônia. Logo esse sistema demonstrou uma contradição
fundamental: o trabalho forçado dizimava a mão de obra que sustentava aquela
economia. Os índios não se davam com o conceito nem com as condições de trabalho
europeias, e “em vinte anos, desde o desembarque de Colombo, a população dessa ilha
densamente habitada havia sido quase varrida pela guerra, pela doença, pelos maus
tratos e pelo trauma resultante dos esforços dos invasores para obrigá-la a aceitar modos
de vida e comportamento totalmente desvinculados de sua experiência anterior” (p.
153). Com a crescente chegada de novos e ávidos colonos, a mão de obra ia tornando-se
ainda mais rara. A solução foi buscar índios nas ilhas vizinhas. O desastre demográfico
se repetia. Logo estes episódios geraram um movimento de indignação moral na
América e na metrópole. Primeiramente, Montesinos, depois seu amigo dominicano Las
Casas, denunciaram a barbárie espanhola e expuseram a monarquia ante o papado. É
que seguidas bulas papais afirmavam a legitimidade do expansionismo espanhol desde
um ponto de vista civilizador; e civilizar era evangelizar, não massacrar (p. 154). Deste
período, vale reter que “muitas das práticas e instituições que viriam mais tarde a ser
transplantadas para o continente americano eram produto direto do sistema
administrativo aplicado por Ovando em Hispaniola” (p. 151).
A despeito da política de Ovando, a sede ouro continuou por muito tempo orientando a
expansão. De fato, ela serviu como grande impulsionadora da expansão para o interior
do continente. E nesse avançar, a devastação ia também se acelerando. A mão de obra ia
sendo dizimada, e na busca contínua por substituí-la por nativos de regiões vizinhas,
estas populações também eram dizimadas. Vislumbra-se, portanto, uma dinâmica:
avanço expansionista/devastação/novas conquistas (p. 156). Em síntese, “o ‘período
insular’ de descoberta, conquista e colonização, entre os anos de 1492 e 1519,
culminou, portanto, num período de atividade intensa e acelerada, estimulada ao mesmo
tempo pelo fracasso inicial de Santo Domingo em manter seus impacientes imigrantes e
pelas perspectivas rapidamente crescentes de pilhagem, comércio e lucros à medida que
o continente ia sendo revelado” (p. 157). E “a menos que se conseguisse associar
colonização à conquista de um modo mais bem sucedido do que nos primeiros anos da
conquista espanhola da região caribenha, as expedições que agora se dirigiam para o
continente americano iam conquistar apenas para pilhar” (p. 158).

A ORGANIZAÇÃO E O AVANÇO DA CONQUISTA

O avanço da conquista para o continente entre 1519 e 1540 anexou ao império espanhol
uma superfície de quatro milhões de Km2, área cerca de oito vezes maior que o
território metropolitano. Daí um acréscimo de 50 milhões de súditos. Sabemos que isso
de fato não ocorreu, pois o massacre assim não o permitira. Mas de qualquer maneira, a
possibilidade de esses 50 milhões é espantosa se comparada com o número de súditos
de Castela (6 milhões) e de Aragão (1 milhão). O surpreendente é que por volta de 1580
os espanhóis se faziam sentir seu domínio na maior parte do continente. Como explicar
a rapidez desse processo?
Em primeiro lugar, os espanhóis operaram magistralmente com as dissensões e os
ressentimentos locais, seja ao cooptar os tlaxcalas contra os astecas ou incitar os ayllus
contra os incas. Essa atitude, de antemão, demonstra que o europeu se embrenhava e ia
encontrando sociedades um tanto mais complexas do que geralmente se supõe, haja
vista as disputas políticas e a ânsia expansionista de alguns desses povos pré-
colombianos (p. 161). Voltando as razões da rapidez, devemos frisar a superioridade
técnica dos espanhóis. Nas guerras, quando uma arma de pedra entrava em choque com
o ferro e a pólvora dos invasores ela não fazia frente. O tacape mexica se quebrava
contra o elmo espanhol. Além disso, “por trás de quaisquer fatores materiais estava um
conjunto de atitudes e respostas que davam aos espanhóis uma vantagem em muitas
situações em que se envolveram: uma fé instintiva na superioridade natural dos cristãos
sobre simples ‘bárbaros’; um senso da natureza providencial de seu empreendimento,
que tornava todo sucesso contra todas desvantagens aparentemente esmagadoras mais
uma prova do favor divino; e um sentimento que a recompensa final compensava todos
os sacrifícios ao longo do caminho. A perspectiva do ouro tornava toleráveis todas as
agruras”. Isso fica evidente na seguinte citação de Cortez: “Eu e meus companheiros
sofremos de uma doença do coração que só pode ser curada com ouro” (p. 167).

A IMPORTÂNCIA DA IDEIA DE CONQUISTA PARA A CONSOLIDAÇÃO DAS


CONQUISTAS

O elemento aristocrático-militar esteve bem representado na conquista da América,


embora os grandes nobres da península estivessem ausentes. Esse dado faz aflorar mais
uma dimensão dos interesses dos desbravadores, além daqueles que diziam respeito à
pilhagem e à fama. Tratava-se de algo herdado de um mundo ibérico atento à posição
social de seus componentes. Daí emergia um forte desejo de enobrecimento, cravado no
espírito daqueles que não nasceram marcados por tal distinção. A ideia de conquista
seria o mote para ascender a condição de nobre, conforme pensavam os conquistadores
e evidenciava a experiência da Reconquista. No Novo Mundo, os sujeitos participantes
das expedições de desbravamento forçavam a monarquia a reconhecer a utilidade de
seus trabalhos. Na condição de soldados profissionais ou não, estes sujeitos sentiam-se
no direito de reivindicar uma consideração especial por parte da Coroa pelos serviços
prestados. Algo peculiar a uma organização monárquica que recompensava com mercês
feitos engrandecedores da realeza. No Novo Mundo, nada mais engrandecedor para o
rei que a conquista e a anexação de novos territórios (p. 178-179).

A esse sonho militar de alcançar a condição de nobre, a coroa se opôs sistematicamente,


“temendo a recriação de uma sociedade feudal na América”. E “embora alguns
conquistadores tenham recebido mercês de hidalguia, pouquíssimos, além de Cortez e
Pizarro, foram aquinhoados com títulos de nobreza”. Mas como, então, recompensar o
restante dos conquistadores e, de antemão, convencê-los a permanecer na América e,
por conseguinte, gerar alguma estabilidade e a manutenção das colônias?

“Um recurso óbvio, já empregado em Hispaniola e em Cuba, era transformar soldados


em cidadãos”. Daí a instituição de cabildos, ou conselhos municipais. Decorre daí a
fundação de cidades e vilas, sempre traçadas a partir do “croqui” das cidades espanholas
para a melhor ambientação dos conquistadores. Terras também lhes eram distribuídas,
mas herdeiros de uma concepção que repudiava o trabalho manual, seria também
necessário lhes fornecer a mão de obra. A contragosto de Cortez e da Coroa Espanhola,
a “encomienda veio a somar-se à cidade como a base da colonização no México e
depois, no devido tempo, no Peru” (p. 181).

Concepção de Cortez sobre a encomienda: a intenção de Cortez era a de construir no


México uma Nova Espanha sobre bases que deveriam perdurar. Acalentava a visão de
uma sociedade na qual a coroa, o conquistador e os índios devessem obrigações
recíprocas. “A coroa deveria recompensar os conquistadores com mão de obra indígena
perpétua, na forma de encomiendas hereditárias. Os encomenderos, por seu lado, teriam
uma obrigação dupla: defender o país, poupando à coroa as despesas de manutenção de
um exército permanente, e cuidar do bem estar espiritual e material de seus índios.
Estes, por sua vez, fariam o trabalho servil em seus próprios pueblos (aldeias), sob o
controle de seus caciques, enquanto os encomenderos viveriam nas cidades, das quais
eles e suas famílias se tornariam os principais cidadãos”. É necessário ressaltar que esse
tipo de encomienda não transferia bens de raiz, mas concedia mão de obra. Concessão,
por sua vez, não hereditária, impedindo a formação de uma nobreza hereditária no estilo
europeu na América (p. 182). Ademais, mediante esse sistema a coroa conseguia
controlar as redistribuições de mão de obra, além de atrair as elites locais e fazer com
que elas permanecessem dependentes de suas benesses (p. 183).

ATITUDE DOS MISSIONÁRIOS PERANTE AS ENCOMIENDAS

A primeira geração de missionários idealizaram os americanos como inocentes, não


contaminados pelos vícios da Velha Europa. A partir daí, ansiavam construir uma Igreja
que se aproximasse da de Cristo e dos primeiros apóstolos. Imaginavam os índios como
tendo uma propensão natural ao catolicismo. Essa projeção do outro começa a esboroar
a partir de diversos fracassos da experiência evangelizadora. Embora a conversão
ocorresse em larga escala, sua qualidade era duvidosa. Os primeiros missionários não
contavam com atitudes tão bárbaras dos nativos nem com a dificuldade colossal em
demovê-los de praticá-las. O cristianismo se chocava com comportamentos
estabelecidos, como a monogamia e a antropofagia (p. 186).
Depois de fracassos alarmantes, a geração seguinte de religiosos se ocupou menos de
tentar compreender o nativo que condenar suas práticas. Pululavam notícias quanto à
mesclagem da religião cristã com ritos locais. Por mais que, num primeiro momento, os
índios parecessem totalmente convertidos, depois de algum tempo reaparecia as práticas
pagãs. As ideias a respeito da propensão natural dos índios para o cristianismo caem: “a
solução mais fácil era considerá-los como crianças adoráveis mas desobedientes, que
precisavam de cuidado especial (p. 187). A essa altura, cresce a convicção dos
missionários de que “a sorte dos índios seria ainda pior do que já era sem a frágil
proteção que a encomienda lhe proporcionava” (p. 184).

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