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Europa no Ano Mil

Durante o século X e a partir de 955, data da derrota dos magiares infligida por Otão I em Lech,
a Europa começaria a recuperar depois de um período de estagnação económica provocada
pelo desmembramento e queda do Império Carolíngio. Paralelamente, ocorreu o povoamento
em larga escala em territórios anteriormente ocupados por densas florestas, que foram
devastadas para dar lugar a campos de cultivo e a locais propícios à fixação de populações. Os
ataques de povos invasores deixaram despovoadas inúmeras aldeias, que só neste período
recuperariam. A população por volta de 900 atingiu o seu nível numérico mais baixo. A partir
daqui verificou-se um aumento demográfico inexorável e um desenvolvimento localizado
sobretudo na Europa Ocidental em territórios como a França, Germânia e Inglaterra. O
povoamento da Europa de Leste e da Hispânia ocorreria ligeiramente mais tarde, a partir de
1150. Para se proceder a uma fixação eficaz da população foi necessário ganhar terras à
floresta, ao mar e aos pântanos. A tarefa mais difícil foi a devastação de florestas
extremamente densas em torno dos campos agrícolas, desenhando lentamente novos mapas
da Europa. Muitos povoadores migraram criando novos núcleos de produção e a atitude
empreendedora dos proprietários nobres e dos mosteiros teve uma enorme importância, pois
o objetivo de angariar mais riquezas provenientes da terra provocou a criação de mecanismos
de maximização da produção que, simultaneamente, serviam de chamariz para uma efetiva
fixação da população.

Todo este movimento de crescimento demográfico originou a criação de novas cidades e


modificou a fisionomia das que existiam, para além de ter estimulado o comércio, facto
compreensível devido ao desenvolvimento dos mercados e das feiras.

Os territórios mais desenvolvidos integravam o Império: Itália, Alemanha e posteriormente


Provença e Borgonha. É por volta do ano 1000 que Otão III sonha em reabilitar o Império
Romano. Manda abrir o túmulo de Carlos Magno em Aix-la-Chapelle, de modo a que se
pudessem venerar as relíquias. No entanto, dois reinos formavam-se a oeste: o reino
capetíngio (987) e o reino anglo-normando (1066); a leste os carolíngios submeteram os
Saxões e o cristianismo implantara-se em toda a Boémia. Em 973 foi fundado o bispado de
Praga. Na Polónia, o duque Mieszko I recebe o batismo em 966 e o seu reino, formando uma
diocese, liga-se à Santa Sé. Os Húngaros convertem-se ao cristianismo sob Valik, batizado em
985 com o nome de Estêvão. Esta conversão dos reinos de Leste travou o alastramento do
cristianismo grego que já se implantara em Kiev, na Bulgária e na Sérvia, favorecendo o
cristianismo latino. Os escandinavos também se converteram: a Dinamarca (950), a Noruega
(995) e a Suécia. Igualmente se verificou a expansão do cristianismo no Mediterrâneo com a
conquista da Normandia e a unificação do reino da Sicília (1060-1091) pelos Normandos, que
também subjugaram a Inglaterra (1066), ao passo que a reconquista de territórios da Espanha
aos muçulmanos avança até que em 1085 é tomada a cidade de Toledo.

Durante o ano 1000 o mundo ocidental foi varrido por um temor bastante vulgarizado ligado
às ideias milenaristas que os eclesiásticos divulgavam através da leitura do Apocalipse. Os
cometas e o nascimento de crianças com deformidades congénitas foram considerados como
sinais de que o fim dos tempos estava próximo.

É a partir de finais do século XV que a historiografia nos mostra o retrato dos terrores do ano
1000 através de uma primeira descrição segundo posições que viram neste um período
diametralmente oposto ao Renascimento.
A Europa saía de uma grave crise, como já atrás se afirmou, o que provocou uma evolução da
cultura que foi notável, por exemplo, no que diz respeito à importância que adquiriu o escrito
e que se manifestou através da proliferação de documentos, permitindo aos historiadores o
conhecimento deste período, graças ao desvelo com que monges e clérigos os guardaram e
cuidaram, porque era através deles que poderiam comprovar os seus privilégios e
prerrogativas. Neste período o monaquismo adquire uma renovada importância, porque é nos
mosteiros que a cultura tem possibilidade de se expandir e, por isso, exigia-se uma reforma
das estruturas das abadias. Desta forma, os mosteiros sobrepuseram-se às sés catedrais e o
abade suplantara o bispo, comprovadamente pela atividade construtiva de abadias em
detrimento das catedrais. Os centros de cultura deixaram de ser as zonas do Império do Loire e
do Reno, para se deslocarem para a periferia, nomeadamente, a Saxónia que constituiu um
refúgio para os monges no período em que o reino franco foi assolado pelas investidas dos
salteadores normandos e húngaros. Foi dali que partiu o movimento de evangelização dos
pagãos do Norte e do Leste.

A crónica de Sigeberto de Gembloux, escrita já no século XII, expõe acontecimentos que


caracterizam o ano 1000 como um ano trágico. Dá conta da ocorrência de uma grande
quantidade de acontecimentos: tremor de terra, a passagem de um cometa e visões no céu
decorrentes destes acontecimentos naturais. Os contemporâneos do Ano Mil deixaram-no
passar quase despercebido nas suas crónicas, como acontece com as de Raul Glaber.

A ideia milenarista de fim do Mundo estava latente e era plenamente usada pelos pregadores
da penitência - o fim do Mundo chegaria com o fim do ano 1000 e o Juízo Final seguir-se-lhe-ia.
O sentido de uma proximidade do fim dos tempos agitava as mentes tanto dos populares
como do próprio imperador, criando a grande expectativa que caracterizou o século XI. Otão
III, o imperador do ano 1000, passa a usar a cruz de Carlos Magno, reforçando,
simbolicamente, a ordem no império e, ao mesmo tempo, minorizando a sua angústia face ao
fim dos tempos que se cria ser efetivo quando todos os reinos do mundo estivessem
desagregados do Império Romano. Revelava-se, assim, uma ligação umbilical do Império ao
destino do Mundo.

Um dado curioso é o de que o milénio em causa poderia ser tanto o do nascimento de Cristo
como o da sua morte. Isto significaria um duplo milénio, como aponta Glaber, e por isso um
novo período de crise previsto para 1033 - o milénio da Paixão.

Neste tempo de expectativa tudo o que se possa ligar ao prodígio, ao milagre ou aos sinais
divinos era levado em consideração. Divinizado, o imperador passou a ter poder taumatúrgico.
As relíquias renovaram a sua importância num mundo que deu tanto apreço aos poderes dos
corpos dos santos. Por isso, ativou-se um intenso comércio de relíquias que satisfazia a
necessidade do contacto com o sobrenatural e com o prodigioso que o povo sentia, vivendo
quotidianamente entre o milagre e o relicário. Célebres ficaram os milagres de Santa Fé e de
São Bento. Era aos membros da hierarquia eclesiástica que cabia a tarefa de conhecer e estar
atentos a todos os sinais que indiciassem o facto prodigioso. A grande quantidade de relatos
de acontecimentos insólitos foi fruto do trabalho persistente dos escritores do ano 1000,
geralmente membros do clero, que procuravam sempre uma explicação nas ligações entre
esses factos e o fim dos tempos, no contexto de uma perturbação generalizada da ordem do
mundo. Assim, procuraram nos acontecimentos cósmicos ou naturais os indícios da
proximidade do fim: é o caso do cometa que surgiu em 1014 e que Raul Glaber liga a uma série
de incêndios que ocorreram em simultâneo; é o caso dos eclipses, como o eclipse do Sol que
teve lugar exatamente no ano do milénio da Paixão (1033); é o caso do aparecimento de
criaturas monstruosas como uma enorme baleia que surgiu no lugar de Bernaval e que de
imediato ligaram às guerras na Europa que envolveram a França e a Inglaterra, ou do
nascimento de bebés e animais com defeitos congénitos; é o caso das epidemias e das fomes a
que o homem estava sujeito; é igualmente o caso das pestes não do corpo mas da alma como
a que atingiu os membros da Igreja quando se dedicaram à prática da simonia; é o caso do
aparecimento de movimentos heréticos seguidores do maniqueísmo; é o caso da destruição
do Santo Sepulcro que constituiu o maior dos presságios da desordem, com culpas quer para
os infiéis quer para os judeus. Relativamente a estes últimos, os cristãos consideraram-nos
como aliados de Satanás e foi a partir desta altura que se verificou uma onda de
antissemitismo. A exclusão era uma forma de repor a ordem perdida motivada pela presença
destes núcleos portadores de corrupção, mormente no caso dos judeus. Multiplicam-se os
casos de excomunhão e de interdição, mecanismos usados pela Igreja de modo a expurgar a
cristandade dos elementos perniciosos.

O desregramento previsto nestas manifestações invulgares, sinais de intranquilidade e


ansiedade latente, era motivo para uma maior dedicação à penitência. O sacrifício assumia-se
assim como um empreendimento purificador, passando pela destruição voluntária das
riquezas e pela oferenda à entidade divina. A esmola constituiu, de facto, o processo mais
comum de penitência individual. Outro tipo de penitência muito comum nesta época e
durante toda a Idade Média foi a peregrinação quer a Jerusalém, local de eleição, quer aos
túmulos dos santos, nomeadamente ao de Santiago em Compostela. Estas viagens constituíam
uma verdadeira preparação para a morte e simultaneamente uma promessa de salvação. O
encerramento num mosteiro também constituiu um dos meios mais privilegiados de expiação
dos pecados individuais.

A partir do ano 1000, mais propriamente a partir do milénio da Paixão (1033), o mundo
encontraria o seu equilíbrio e iniciava-se uma nova etapa, conforme nos transmitem os
escritos de Raul Glaber. Cessaram as calamidades, vivia-se plenamente o movimento da Paz de
Deus, a Igreja efetivava uma verdadeira reforma, o monaquismo alcançava novo fôlego,
construíram-se santuários e novas igrejas que cobriram a Europa de um "manto branco de
igrejas", refletindo melhores condições económicas e sociais.

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