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O Ano Mil

O Universo do Primeiro Milênio

Por Voltaire Schilling (professor de História da UFRGS)

"Cada época fabrica mentalmente o seu universo, não só com todos os materiais de que dispõe, todos os
fatos, verdadeiros ou falsos, que herdou ou que acaba de adquirir, mas também com seus próprios dons, a
sua engenhosidade específica, os seus talentos, as suas qualidades e curiosidades, tudo o que a distingue
das épocas precedentes." (Lucien Febvre)

Delimitando o Milênio: a celebração do segundo milênio é uma festa do Ocidente cristão. E só dele. Para
milhões de chineses, de indianos e demais povos do mundo que se orientam por outros calendários, muito
mais antigos, a entrada do Milênio nada lhes significa. Nem sequer o Fim do Mundo, porque nas religiões
orientais não existe a idéia do Juízo Final, muito menos a chegada do Apocalipse. Logo importa fazer-se uma
delimitação religiosa, que diz respeito somente aos cristãos, por aqueles que seguem o calendário gregoriano
que começou a vingar no século 16. O Jubileu do Cristianismo e celebração do novo Milênio diz respeito
portanto a apenas 1/5 da população mundial.

Quanto à geografia do Ano Mil, circunscrevemo-nos basicamente ao território da França atual, de parte da
Alemanha, Inglaterra e Irlanda, que seguiam um calendário diferente dos cristãos ortodoxos, que
predominavam na Bulgária, nos Países Bálticos e na Rússia. Na medida em que não há material específico
sobre o que ocorreu exatamente no Ano Mil, acreditamos que a melhor solução para se restaurar o clima
geral daquela época foi ampliar para cem anos antes e cem anos depois daquela data, fazendo com que o
espaço cronológico abarcasse duzentos anos, que vão de 900 a 1100, mais ou menos.

Mito e verdade sobre o Ano Mil: difundiu-se, especialmente na Renascença, a ideia de que teria havido,
nas aproximações do Ano Mil, enorme tumulto e pavor em toda a Europa. Resultariam eles da convicção dos
homens daquela época, vivendo nos grotões medievais, de que a chegada do Jubileu de Cristo anunciava
também o Fim do Mundo e o Dia do Juízo Final. Afinal, eles não estariam tão temerosos se a própria Bíblia,
no Livro do O Apocalipse de João, não anunciasse, na sua confusa escrita, sinais de catástrofes na véspera do
Milênio. O próprio Jesus, cavalgando um corcel branco e armado com a espada vingadora, baixaria dos céus
para um fantástico acerto de contas. Não teria contemplação para com os que não atenderam o seu
chamado, os seguidores da Besta. O Jesus do Apocalipse não vinha trazer a Paz, mas executar a Vingança. A
passagem reveladora dos possíveis perigos enfatiza que, passados mil anos, o Demônio seria novamente
solto e alguns mortos voltariam à vida. Diz ela:

"Vi então um Anjo descer do céu, trazendo na mão a chave do Abismo e uma grande corrente. Ele agarrou o
Dragão, a antiga Serpente – que é o Diabo, Satanás, acorrentou-o por mil anos e o atirou dentro do Abismo,
fechando-o e lacrando-o com um selo para que não seduzisse mais as nações até que os mil anos estivessem
terminados. Depois disso, ele deverá ser solto por pouco tempo.

Vi, então, os tronos e, aos que neles se sentaram, foi dado o poder de julgar. Vi também as vidas daqueles
que foram decapitados por causa do Testemunho de Jesus e da Palavra de Deus e dos que não tinham
adorado a Besta, nem sua imagem e nem recebido a marca sobre a fronte ou na mão: eles voltaram à vida e
reinaram com Cristo durante mil anos. Os outros mortos, contudo, não voltaram à vida até o término dos mil
anos. Esta é a primeira ressurreição. Feliz e santo aquele que participa da primeira ressurreição! Sobre estes
a Segunda morte não tem poder; eles serão sacerdotes de Deus e de Cristo e com ele reinarão durante mil
anos." (Apocalipse, 20)

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É um trecho que se presta a atordoantes e contraditórias interpretações, e que, como observou Orígenes, o
escritor cristão, na boca de aproveitadores e oportunistas, com grande ascendência sobre os crentes, pode
provocar resultados inesperados e perigosos, alimentando fanatismos de toda ordem. Fica clara, porém, a
ênfase no ano mil como uma data misteriosa, emblemática, da qual se devia suspeitar, podendo ser tomada
como o momento da libertação (a volta de Jesus) ou como a da terrível alforria do Diabo e dos mortos, soltos
do fundo do abismo.

O conteúdo ideológico: no entanto, a versão de que ocorrera um pânico coletivo na chegada do Milênio,
que tivesse varrido num só momento a Cristandade inteira, não tem se confirmado pela acurada investigação
histórica feita por alguns consagrados medievalistas europeus; primeiro por Marc Bloch e, mais recente, por
Georges Duby. Eles suspeitam que boa parte daquelas narrativas de um povo enlouquecido de medo, de
multidões reunidas nas igrejas orando, com velas na mão, freneticamente pedindo perdão, foram
exageradas. Resultaram em parte, segundo os historiadores, da luta ideológica travada pelos renascentistas,
e retomadas pelos iluministas no século 18, que queriam destacar o inferno psicológico e mental em que
vivia o homem medieval, soterrado pela superstição e pelos espectros fantasmagóricos do “outro mundo”.
Quanto mais negra pintavam a época medieval, mais brilhante pareceriam, em contraste, os tempos
modernos, a idade do Renascimento.

O Humanismo: o recado que desejavam transmitir é que o Humanismo, difundido pelos sábios e pelos
pensadores do Renascimento, tinha feito evaporar – graças à restauração da importância da cultura pagã
greco-romana, clássica e racionalista, os fantasmas do Além e as horríveis bestas descritas no Apocalipse,
que infelicitavam a imaginação da pobre gente da Ida Média e que tanto os assustavam.

A imprecisão dos calendários: algumas ponderações, entretanto, devem ser feitas. Justamente por não
serem precisos – os calendários cristãos daquela época, datando muitos deles de pontos de partidas distintos
(na Espanha, por exemplo, acreditava-se que o ano zero deu-se em 38 a.C.), as autoridades escolheram
datas diversas para assinalarem a chegada do Milênio e a data do Fim do Mundo. Marc Bloch calcula que
chegaram a mais de 6 ou 7, começando entre 25 de março de 999 e indo até 31 de março de 1000. Esta
inexatidão trouxe outros dissabores. O medo, ao invés de se dar num só momento, manifestou-se em ondas
e por largo tempo, variando de região para região. Mas, seguramente, não provocou mais desespero do que
durante a Peste Negra do século 14. Mal se encerrava num lugar, aparecia em outro. O motivo dos
descontroles eram os mais diversos: uma tempestade violenta ou a notícia da destruição do Santo Sepulcro,
ocorrida em 1009, bastava para que a turbulência se desse. Tudo indicava a eles sinais da catástrofe. O que
se segue é basicamente um levantamento geral daquela época, a descrição sintética do cenário que
emoldurou a passagem do primeiro Milênio da Cristandade.

As fontes: quem poderia nas cercanias do Ano Mil fazer o registro das coisas e dos acontecimentos?
Somente um seleto número de clérigos sabia ler e escrever, logo é deles que vem a maioria das informações
do que se pode colher daquela época obscura. E eles não se interessavam pela vida cotidiana, pela
contabilização da vida material; afinal, para eles, a Terra era um vale de lágrimas, uma curta e em geral
sofrida passagem que o corpo obrigatoriamente cumpria antes de alçar-se aos céus. A crônica deles
contemplou, pois, os príncipes, os mandões, os potentados da sociedade feudal.

Desta forma, para uma visão um pouco mais ampla restam o que pode se denominar de documentos
auxiliares, que não foram escritos por historiadores ou cronistas das cortes: os diplomas das decisões reais,
especialmente os das possessões das terras, algumas atas dispersas em mosteiros e abadias e o que sobrou
de correspondência. A literatura era pobre e toda ela escrita em latim.

Os escritos históricos: Georges Duby aponta quatro gêneros de escritos históricos que servem para se ter
uma ideia aproximada do que ocorreu naquela época: os primeiros deles são os Anais; seguidos das Crônicas
(a Chronicon Novaliciense, a dos bispos Thietmar de Mesemburgo e a de Ademar de Chabannes); depois pelo
Livro dos Milagres, relato dos prodígios feitos pelos relicários sagrados onde se encontravam os corpos dos
santos; e, finalmente, pelos livros de História propriamente ditos, os escritos por Dudo, deão no Vermandois;
por Richer monge em Reims; e por Raul Glaber, um eremita peregrino da Borgonha, que é considerado o
melhor narrador aquele século.

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O Ano Mil

As preocupações do ano mil

A Paz de Deus: "Que nenhum cristão mate outro cristão", esta foi a palavra de ordem do Bispo de Narbona,
lançada em 1054, que serviu para estimular ainda mais a implantação da "Paz de Deus". A sociedade
europeia, no que Marc Bloch chamou de a primeira fase do feudalismo, era essencialmente guerreira,
violenta e turbulenta. Sua nobreza, de origem bárbara, incivilizada e belicosa, fazia dos combates, das justas
e dos inúmeros entreveros com os seus rivais, a razão de ser da sua existência. Eram os bellatores, os
senhores da guerra, que se afirmavam perante os vilões, o povo camponês e os servos, pela exibição
permanente da sua força e da sua destreza nas artes militares.

Disso resultava estarem em guerra permanente uns contra os outros, fazendo da vida do povo comum um
inferno, pois sobre ele recaíam as pilhagens, as depredações e os demais atos de vandalismo tão comuns
nestes casos. Consequência dessa desordem, as quais se somavam os ataques dos normandos ao nordeste
da França, dos dinamarqueses às praias da Inglaterra, a expansão dos húngaros na Europa Central e a
invasão árabe da península Ibérica, pululavam pelo Continente, aventureiros em busca de presas e de fortes
emoções, cavaleiros andantes que se colocavam a serviço de todos os tipos de causa e que contribuíam, em
seu afã de feitos, para a desordem geral. Eles é que serão a matéria-prima de boa parte da literatura
medieval que os celebrizará, a eles e as suas façanhas em imortais narrativas (na Chanson de Roland, no Cid
el campeador, no Amadis de Gaula, etc...). O poema anônimo abaixo espelha como os cavaleiros viam sua
atividade:

"O que é manejar as armas? Serve-se alguém delas como de uma peneira de farinha ou de um machado?
Não, é um trabalho muito mais duro. O que é então a cavalaria? É uma coisa tão forte e tão intrépida e que
custa tanto a aprender que um vilão a tanto não se atreve... Quem quer atingir suas elevadas honras
convém primeiro ocupar-se de ter ido a esta escola."

A prática da faida: outra fonte de tormentos daquela sociedade era a difundida prática da faida ou faide,
velha palavra de origem germânica que definia o direito à vingança, executada pelos parentes das vítimas.
Numa época em que a presença da lei do rei era mínima e que as instituições estatais quase que
desapareceram, usurpadas pelo despotismo dos barões e dos condes, o ato de justiça, pelo menos como era
naquela época entendido, ficava ao encargo dos familiares.

Traduzia-se isso numa permanente tensão entre as famílias nobres que se desentendiam pelos motivos mais
fúteis e banais. As lutas abertas entre os desafetos, os duelos e as emboscadas, os terríveis atos de traição e
suborno, terminavam por irradiar-se pelo feudo inteiro atingindo gente inocente, gerando um clima de
perpétua insegurança nos campos, nas aldeias e nas vilas. Litígios que se prolongavam por anos a fio e de
cuja origem ninguém mais se recordava, mas que contribuíam para que os clãs de nobres rivais se odiassem
pelos tempos afora. Um cidadão de Florença chamado Velluto di Buonchristiano deixou em seu testamento,
depois de ter sofrido um ataque fatal, um legado para quem conseguisse vingá-lo, matando quem o ferira de
morte.

A intervenção da Igreja: a situação devia estar insustentável para que os sacerdotes tomassem uma
posição. Em 989, no Concílio de Charoux, perto de Poitiers, no sul da França, nasceu o movimento de
"civilizar a guerra". A argumentação dos religiosos era inatacável. Defensores da ideia de que o corpo de
Cristo encontra-se, por assim dizer, espalhado entre a cristandade inteira, quem vertesse o sangue do povo,
atingia Jesus. Era como se o próprio líquido sagrado jorrasse das feridas do mais modesto dos campônios.
Quem levantasse a espada para um cristão arriscava mutilar o próprio Cristo. A idéia de dar um basta nas
matanças ganhou então corpo. A paz de Deus pois, supervisionada pela Igreja, substituía uma inexistente
paz dos reis, acometidos estes pelo que um cronista da época chamou "Imbecillitas regis", a impotência dos
reis, e foi mais um passo que o clero medieval deu no sentido de ocupar o espaço do poder temporal.

As associações de paz: das reuniões episcopais, surgidas no Sul, na região que os franceses chamam de
meio-dia, disseminando-se depois para a Borgonha e para o norte da França, brotaram as associações de
paz. Sua tarefa era tentar moderar os apetites guerreiros, persuadindo os cavaleiros a aceitar certas regras.
Que acatassem algumas medidas preventivas que, mesmo não abolindo completamente com a guerra,

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procurava moderar-lhes a ferocidade. Em Puy, na França, uma dessa associações foi mais longe. Tornou-se,
para o desagrado dos nobres, num grupo de justiceiros, caçando os salteadores da região.

Os barões-ladrões: lutavam também contra os nobres que viviam de pilhagens e atos de rapina. Tão
comum tornou-se o envolvimento de cavaleiros em atividades de banditismo que na Alemanha ocidental
surgiram os Rauberbaron (os barões-ladrões) que, bem mais tarde, irão servir de modelo de uma vontade
indômita e anárquica para uma boa parte da literatura romântica [Goethe inspirou-se neles para a sua
tragédia "Götz von Berlichingen", em 1773, enquanto que Schiller dedicou-lhes a peça "Die Rauber", "Os
Bandidos", em 1781].

O primeiro pacto pela paz: atribui-se ao bispo de Puy, na França, a iniciativa de ter em 990 convocado o
povo e os cavaleiros para prestarem um juramento de paz. Se num primeiro momento negaram-se a isso,
logo aceitaram por que o bispo os ameaçou com tropas especialmente convocadas. Sucedem-se então os
juramentos feitos por "...todos que são cavaleiros e que levam armas seculares." Duby observou que essas
cerimônias públicas, que rapidamente se limitaram apenas aos homens de armas, marcam o princípio da
distinção, que se ampliaria cada vez mais pela Idade Média adentro, entre aqueles que combatem, o "miles"
ou "cabalarius", e o resto do povo, o "vulgus".

O embrião da Ordem da Cavalaria: aquelas juras coletivas deles podem ser consideradas como um
embrião das Ordens da Cavalaria que surgirão no século seguinte, decorrente das Cruzadas. Também na
Alemanha circulavam as Friedesbriefe, as cartas da paz, despachadas pelo imperador para circular entre o
povo e a nobreza, conclamando-os a obedecerem certas regras para a manutenção da tranquilidade pública.
Daí avançou-se para a criação de salvaguardas, estabelecendo-se alguns princípios que todos se
comprometiam a respeitar.

As salvaguardas: evidentemente que elas, as salvaguardas, variavam de reino para reino e de região para
região. Esperava-se que os combatentes não invadissem as igrejas e não as expusessem ao saque. E, claro,
não roubassem o padre. Não deviam expropriar os ganhos dos camponeses, e muito menos agredir um
sacerdote, só "se ele estivesse armado". Os mercadores, as principais vítimas dos barões ladrões, também
reclamaram imunidades que assegurassem a eles poder viajar pelos reinos e feudos sem serem molestados.
Com o tempo, as salvaguardas procuram ser mais detalhadas, como mostrou o chamado juramento de
Beauvais de 1023. Destruir um moinho, arrancar os vinhedos dos camponeses ou atacar um crente na saída
ou na entrada da missa eram considerados atitudes extremamente condenáveis, que feriam a ética dos
cavaleiros. Evitar que os inocentes e os pequenos se vissem envolvidos nas querelas dos poderosos e que a
faida, a vingança, não fosse executada aos domingos eram bandeiras dos bispos, eternos defensores dos
pobres e demais humildes.

A trégua de Deus: nesta preocupação em criar obstáculos para que a violência se reduzisse, chegaram a
fixar-se períodos efetivos de trégua, onde todos se comprometiam a não erguer as armas contra os outros.
Assim, por exemplo, convencionou-se que durante as grandes festas religiosas (da Páscoa e do Natal), ou
nas romarias em direção aos relicários venerados, estabelecia-se uma trégua, a trégua de Deus. Procurou-se
também fixar três dias da semana, a partir da quarta-feira, nos quais não se combateria.

A luta pela paz e a guerra justa: estas tentativas todas de amenizar os malefícios da guerra e da violência
endêmica da sociedade medieval não trouxeram muito resultado prático. É evidente, porém, que ajudaram a
criar na Europa inteira um clima para que se canalizasse aquela agressividade intrínseca aos guerreiros
contra uma outra força qualquer não-cristã, e também sedimentou as bases metafísicas do que mais tarde
seria amplamente discutido pelos teólogos medievais e por outros intelectuais acadêmicos, sobre as
condições em que a guerra poderia ser justa, a jus bellicum, como o padre Vitória de Salamanca e o
humanista Erasmo de Roterdam.

A mobilização pela Cruzada: fundamentalmente, a mobilização pela paz entre os cristãos tornou aceitável
o chamamento do Papa Urbano II, feito em Clermont, no sul da França em 1095, para que os cavaleiros
cristãos deixassem de se matar uns aos outros e dessem início a uma Cruzada, concentrando-se na
recuperação da Terra Santa, ocupada pelos turcos seldjúcidas. Marcharam eles então para vingar não só os
maus tratos que os peregrinos cristãos diziam sofrer nas mãos dos infiéis, como também reparar a ofensa
que fora a destruição do Santo Sepulcro, executada, muito antes, em 1009, por Haquim o Califa do Cairo, "o
príncipe da Babilônia", que teria sido, segundo o relato de Ademar Chabannes, levado a isso por uma
maquinação dos judeus de Orleans.
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O Ano Mil

A celebração da entrada do novo milênio

"No ano milésimo depois da Paixão do Senhor, após a dita fome desastrosa(*), as chuvas das nuvens se
acalmaram obedecendo a bondade e a misericórdia divina. O céu começou a rir, a clarear e animou-se de
ventos favoráveis. Pela sua serenidade e paz, mostrava a magnitude do Criador. Toda a superfície da terra
cobriu-se de uma amável verdura e de uma abundância de frutos que expulsou completamente a
privação."...Inúmeros doentes reencontraram a saúde nessas reuniões, onde se haviam elevado tantos
santos. E, para que ninguém tomasse isso por fantasmas, aconteceu muitas vezes que no momento em que
braços ou pernas torcidos tomavam a sua primitiva retidão, se visse a pela rasgar-se, a carne abrir-se e o
sangue correr aos borbotões: isto para que fosse dado o crédito aos casos para os quais a dúvida podia
subsistir. O entusiasmo era tão ardente que os assistentes elevavam as mãos a Deus exclamando em
uníssono: "Paz! Paz! Paz!”

Viam o sinal do pacto definitivo, da promessa estabelecida entre eles e Deus. Além disso estava assente que,
passados cinco anos, para consolidar a paz, todos renovariam no mundo inteiro estas manifestações com um
esplendor maravilhoso... - (evocação da alegria do Universo, depois dos europeus terem enfrentado uma
terrível fome, escrita por Raul Glaber, num dos seus livros de Histórias, em 1033).

O Ano MilSacerdotes, cavaleiros e servos

O Mosteiro e o Paraíso: não estava ainda difundido entre os homens daquela época a ideia do Purgatório
que, segundo Jacques Le Goff, só se consolidou mais tarde, a partir do século 13. O Outro Mundo, na
concepção deles, dividia-se radicalmente entre o Inferno, a morada do Diabo, e o Paraíso, a instância de
Deus. A masmorra e o mosteiro eram, aqui na terra, no mundo real, o símbolo edificado desses contrários.
Se a possibilidade de se tornar súdito do Reino de Satanás assustava os crentes, era o Paraíso que os
fascinava.

Viam-no, segundo o relato de Gregório de Tours, "como uma casa toda branca"; outros, um local de
"grandes e altos muros, resplandecentes: era a Jerusalém Celeste", uma cidade-refúgio capaz de abrigar
todo o povo de Deus. Em tal concepção de Paraíso, síntese entre a casa pura e iluminada e a cidade perfeita,
é que se estruturou o Mosteiro, centro da vida social, cultural e religiosa da cristandade européia no Medievo.
Ele era a reprodução terrena do que se supunha ser a vida no céu: uma imitação do Paraíso. Para tanto,
aliciava os crentes dizendo-lhes: "Escuta, meu filho, os preceitos do mestre... Quem quer que tu sejas,
renuncia a teu querer para cindires as armas poderosas e a esplêndida obediência e venha militar sob as
ordens do verdadeiro rei, Cristo Senhor."

O sábio e o asceta: a proliferação da vida monástica, começada possivelmente no Egito e na Síria a partir
dos séculos 4 e 5, inspirada nas figuras de Antão, Macário e Pacômio, resultou de um deslocamento do
modelo ideal de vida a ser imitada. Na sociedade clássica antiga, o ideal de vida perfeita, harmonizando
estudo e razão, se realizava na Academia platônica ou no Liceu aristotélico, onde um grupo limitado de
discípulos seguiam os ensinamentos de um filósofo consagrado. Com a crise do paganismo, as academias
filosóficas entraram em declínio ou foram perseguidas e o novo modelo a seguir centrou-se no "homem de
Deus", no asceta que vivia no deserto ou no exemplo de Simeão Estilita, um eremita sírio que viveu 40 anos
preso em cima de uma coluna. Foram eles, consagrados à oração e à devoção, os precursores dos monges; e
os mosteiros nada mais foram do que a conclusão lógica daquele tipo de opção de vida.

O Mosteiro, utopia do Cristianismo: desde o século, 9 todos os recursos convergiam para o mosteiro,
para a morada ideal, a cidade fechada, o claustro, reservado aos eleitos que ali usufruíam de paz, de
harmonia, de ordem e pureza, supervisionado de longe por Deus. Quem estabeleceu suas normas foi Bento
de Nursia, o São Bento, que em 529 deixou as "Regula Benedicti" como orientação para os que surgiriam
depois. Organização tão acurada que Robert Lopes chamou-a de "o triunfo do bom senso, do equilíbrio entre
os rigores do ascetismo e os imperativos da saúde mental e física." Resultou aquela construção piedosa – a
utopia do cristianismo medieval – dedicada à prece, ao trabalho e à ascese, ao opus Dei, aos trabalhos de
Deus, da longa deterioração da confiança que as elites romano-germânicas tinham na antiga cultura pagã, e
na sua gradativa conversão ao Cristianismo. O herói cívico romano, conquistador, valente e luxurioso, deu
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lugar ao mártir ou ao homem santo que queria se afastar das coisas mundanas, mergulhado em rezas e
voltado para salvação da alma, recolhido ao Mosteiro.

Fora dos muros dele imperava a guerra, a anarquia, a maldade, a lascívia, o mundo corrompido pela
presença do pecado e seu instigador-mor, o Demônio. O Maligno estava em tudo, impregnava tudo, como se
o ar que o cristão respirasse estivesse impregnado por sua ameaçadora presença.

A estruturação do Mosteiro: tal como no céu, o Mosteiro possuía um dirigente, o abade superior. Ele era o
pai da família religiosa e ao mesmo tempo o seu principal pedagogo, que, auxiliado pelos chefes de serviço (o
prior, o sacristão, o camareiro, o ecônomo, o hospitaleiro e o capelão), orientava os demais integrantes da
irmandade, os monges que representavam, simultaneamente, o povo crente e os anjos do céu (daí
exercitarem-se nos corais). Abrigava ainda uma série de outros integrantes, hierarquicamente organizados,
como os noviços, os velhos e as crianças. Em geral, de famílias distintas, que lá deviam ser educadas em
troca de um dote.

Os doentes, confinados na enfermaria, eram vistos como atingidos por seus pecados pregressos. Quanto
mais acintosa eram as marcas das chagas que os flagelavam, piores teriam sido seus vícios. Destino horrível
tinham os leprosos, abundantes no Medievo inteiro, obrigados a vagar de aldeia em aldeia, como eternas
almas danadas, trazendo no peito os badalos que anunciavam ao povo sua indesejada presença, espantando
todos de si por carregarem em seus corpos as punições de Deus. Os mortos eram sepultados do lado da
nascente do sol, numa simbólica esperança de ressurreição, enquanto os viajantes que procuravam a
hospedagem dos monges, vindo do mundo profano, eram admitidos no outro oposto, onde o sol se punha.

Centro financeiro: por estarem abrigados pela santidade e pela sacralidade, espaço interdito à guerra e à
maldade, terminaram acolhendo em seus cofres tesouros inúmeros. Além dos dotes e das doações que
recebiam, afluíam para lá, na busca de um olhar protetor especial de Deus, inúmeros tesouros seculares,
fazendo com que, com o tempo, eles assumissem, como mostrou R. Génestal, que estudou o papel deles
como estabelecimentos de crédito, até funções bancárias. Essa foi a razão deles terem sido pilhados pelos
ataques dos sarracenos ao sul da França e ao norte da Itália nos séculos 8 e 9.

Cluny, centro a Cristandade: garantido por uma Comenda Papal que lhe outorgava plena autonomia,
tornando-o imune às usurpações dos barões e dos bispos locais, a Ordem de Cluny, fundada em 909, tornou-
se o auteêntico centro da cristandade no Ano Mil. Foi Odilon (994-1049) o seu verdadeiro criador, que, com
sua exigência de submissão dos demais mosteiros à abadia central, formou a primeira confederação monacal
da Europa. Exemplo que irá inspirar no século 19 o socialista utópico Charles Fourier na idealização de uma
federação de falanstérios como alternativa social e governamental para a ordem burguesa. Depois do Ano
Mil, a Ordem de Cluny saltou de modestos 70 abadias para 1200. Atraindo nomes ilustres da teologia e
fornido de boas bibliotecas e documentos raros e antigos, Cluny foi a referência da Cristandade, num
momento em que o papado romano estava envolto em crises sem fim.

Estrutura de um Mosteiro Beneditino

Deus
(santuário)

Abade
(chefe da família)

prior
sacristão
camareiro
ecônomo
hospedeiro
capelão

Os Monges
(os filhos de Deus)

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O Castelo e a Igreja: tirando-se umas poucas cidades razoavelmente povoadas (Roma, que era a maior
delas, tinha 25 mil habitantes, e Paris, com, no máximo, 5 mil agrupados na Île de la Cité), as duas
edificações em que se dividia o homem do Ano Mil, espremido entre a guerra e a paz, entre a espada e a
cruz, entre a terra e o céu, eram o castelo e a igreja. O primeiro era a fortaleza do guerreiro, erguido num
lugar inóspito, uma espécie de oásis onde ele se fazia acompanhar dos seus familiares e dos que o seguiam
em comitiva nas guerras. Atrás dos seus altos muros de pedra e protegido pelas inúmeras seteiras, ele se
guardava dos inimigos. Não conheciam conforto. Tudo era rudeza. Nem cortinas, nem lençóis, nem toalhas
de mesa, nem garfo, nem faca. Comia-se com as mãos ou com o auxílio de colheres ou espetos, em
companhia dos animais domésticos

O segundo, a igreja, era uma edificação que arquitetonicamente evoluíra da antiga basílica romana para o
formato românico, que dava seus primeiros passo em direção à maturidade no Ano Mil. A própria igreja, em
sua grande maioria, com paredes larguíssimas e poucas aberturas, sem maiores preocupações estéticas,
confundia-se à distância com um castelo, era "a fortaleza contra Satanás, a praça forte de Deus na terra"
como a chamou Friedrich Heer. O mundo do Ano Mil era tão perigoso que os santos eram esculpidos ou
pintados com armaduras de ferro e até em seu templo Deus sentia medo. Não sem razão ser o tema principal
da escultura românica o Dia do Juízo Final e o da Paixão.

A fortaleza de Deus era habitada pelo pároco, cercado pelo frio e pela escuridão numa nave pobre em
imagens, de onde ele supervisionava a vida dos fiéis que para lá afluíam em busca de consolo, absolvição e
proteção. Em inúmeros casos de assalto, eram elas o último refúgio de uma população desesperada. Estava-
se longe ainda da "Europa das Catedrais", daqueles imensos e belos edifícios cujas torres arranhavam o céu,
obras máximas da devoção medieval, decorados com radiantes vitrais, elaborados murais e acuradas
esculturas, que levaram muito mais de cem anos para serem erguidas e serão o orgulho das cidades
europeias, e que só começaram a proliferar a partir do século 12.

A Aldeia e a Choupana: o povo, por sua vez, espalhava-se entre o castelo e a igreja, subdividido em vilões,
os moradores das aldeias, e os agricultores que mourejavam nos campos da redondeza. Era nos vilarejos,
em dias de feira, que a plebe medieval se encontrava. Nas feiras e nas festas. A massa camponesa era
espantosamente pobre. Vivia em casebres de madeira e pedra, com cobertura de palha, em condições de
quase completa miserabilidade, tendo à mesa, na maior parte das vezes, uma só panela da qual todos se
serviam, enfiando suas colheres de pau nela.

Escravos e servos: no Ano Mil ainda existiam escravos, geralmente em funções domésticas; e a servidão da
gleba prendia a maioria dos habitantes do campo aos seus senhores. Sobre esses desgraçados da terra
incidiam tributos de toda ordem, sendo que sua obrigação mais comum era a corvéia, o trabalho gratuito que
eram constrangidos a cumprir nas terras do senhor e dos monges. Completavam eles a parte menos
enaltecida das célebres três ordens feudais, a chamada tri-funcionalidade: a dos que trabalhavam, enquanto
que os nobres guerreavam e os padres oravam. Calcula-se que a esperança de vida deles mal ultrapassava
os 40 anos enquanto que a dos nobres e sacerdotes provavelmente era superior aos 50 anos.

As três ordens da sociedade medieval

"A ordem eclesiástica forma um corpo só, mas a divisão da sociedade compreende três ordens. A lei humana,
com efeito, distingue outras duas condições. O nobre e o não-livre não são governados por idêntica lei. Os
nobres são os guerreiros, os protetores das igrejas. Defendendo a todos os homens do povo, grandes e
modestos, e por tal feito protegem-se a si mesmos. A outra classe é a dos não-livres. Esta infeliz raça nada
possui sem sofrimento. Provisões, vestimentas são providas para todos pelos não-livres, pois nenhum
homem livre é capaz de viver sem eles.

Por tanto a cidade de Deus, que se acredita única, está dividida em três ordens: uns rogam, outros
combatem e outros trabalham. Estas três ordens vivem juntas e não suportam uma separação. Os serviços
de um permitem os trabalhos dos outros dois. Cada um, alternativamente, presta seu apoio a todos." -
(divisão da sociedade em três ordens, segundo Adalberão, o bispo de Laon, na França, nos finais do século
10)

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O Ano Mil
A educação, a cultura e a política

O trivium e o quadrivium: espanta quem dele se aproxima, a ausência de qualquer política educacional
pública nos séculos que cercaram o Ano Mil. Existiam, sim, modestíssimas escolas paroquiais, tendo como
mestres-escolas padres de escassas letras e pouquíssimas luzes. Nos mosteiros, graças às suas fartas
bibliotecas e documentos raros, depósitos preciosos da cultura antiga, que era preservada pelo minucioso
trabalho dos copistas, ainda se recebia uma formação mais elevada. Mesmo assim existiam os idiotas, os
monges que assim eram chamados por não conseguirem sequer ler as Escrituras. Mas era para os mosteiros
onde os filhos dos grandes eram enviados e onde podiam eventualmente tornarem-se íntimos dos clássicos
pagãos, e obedientes ao trivium (gramática, retórica e dialética) e ao quadrivium (aritmética, geometria,
astronomia e música) o sistema da distribuição das disciplinas, ou artes, no Medievo.

As línguas cultas: enquanto o árabe dominava na vasta região islâmica, o grego e o latim, aquele no
Oriente, este no Ocidente, eram os idiomas da literatura e da teologia europeia. A fala do povo comum era
de origem bárbara, pagã ou derivada do latim vulgar – o que Dante mais tarde chamou de "De Vulgari
Eloquentia". A dita língua comum não era vista como passível de servir às belas letras, consideradas
atividades nobilíssimas. Ela terá que aguardar ainda de três a seis séculos para vir a ser consagrada, com
Dante, Lutero, Camões, Montaigne, Shakespeare e Cervantes.

As línguas vulgares: encontraram-se aqui e ali documentos que eram redigidos num nascente francês ou
num embrionário alemão, como no caso do Juramento de Estrasburgo feito em 842, pelos netos de Carlos
Magno, Luís e Carlos, onde um deles jurou "Si Lodhuvigs sagrament, que son frade Karlo jurat (Se Luís
mantiver o juramento que a seu irmão Carlos jurou...), e o outro "In Godes minna ind in thes christianes
folches ind unser bedhero gehaltnissi..." (Pelo amor de Deus e pela salvação do povo cristão e de nós
mesmos..) onde claramente observa-se o seu rudimentarismo, misturando expressões latinas com as da fala
comum. A mesma impressão de língua em morosa gestação se verifica no manuscrito que contém a oração
de San Millá de la Cogolla, o primeiro texto escrito em românico espanhol, datado do século 10.

O que podemos denominar de universo culto no Ano Mil reduzia-se a uma ínfima parte da população,
concentrada nos que tinham acesso às ricas bibliotecas monacais. A eles contrapunha-se um oceano de
ignorância e analfabetismo formado pela plebe medieval.

Gêneros e autores: os temas giravam ao redor da religião e, mesmo os novos gêneros, como a hinologia,
os atos dos mártires, a vidas dos santos, nasciam da necessidade de satisfazer um público de beatos e
crentes. Os autores recomendados ao studium da elite culta eram, porém, outros. Compunha-se tanto dos
latinos, como Marciano Capela, Horácio, Pérsio, Juvenal, Estácio, Terêncio e Lucano, como os doutores da
Igreja, Agostinho, Ambrósio, Atanásio e Crisóstomo, além de Gregório, Jerônimo, Juvêncio e Eusébio. A
disciplina mais acatada era a patrologia, o estudo que examinava os antigos autores cristãos quanto ao seu
valor de testemunho da fé, além, é claro, da Bíblia, cujo acesso era interdito a maioria dos fiéis por serem
eles analfabetos.

O coral e a trova: duas formas musicais eram conhecidas no Ano Mil. Uma delas, religiosa e coletiva, a
outra secular e individual: o coral e a trova. Nos mosteiros, como já observamos, o canto dos monges, no
que se configurou mais tarde como canto gregoriano, imitava, em seu tom monocórdio, o dos anjos no céu
em seu perpétuo êxtase divino. Desfilavam, ao longo do dia e nas datas santas, uma série de hinos sacros
enaltecendo a graça de Deus. A trova, ao contrário, além de singular, era uma manifestação do profano,
tratando, em versos épicos ou líricos, dos feitos, das gestas ou do amor (espiritual, não carnal). Quem a
ensaiava nas cortes castelãs era o menestrel, ou o jogral, um músico profissional, quase sempre itinerante,
que se apresentava em troca de abrigo, pão, e, com sorte, moedas. Pouca coisa restou dessa tradição, vista
como arte culturalmente inferior e expressão menor da vida cortesã e mundana.

O sacerdote funcionário: a regra, mesmo entre a nobreza, era a ausência de uma cultura escrita. Cid o
campeador, e sua mulher Ximena, por exemplo, mal conseguiam desenhar seus nomes. Essa crônica
deficiência fez com que os integrantes do alto clero assumissem funções de destaque nas cortes europeias,
especialmente nos assuntos internacionais, fazendo com que o latim dominasse não só o mundo religioso
como o das relações entre os estados, fixando-o como a escrita predominante na diplomacia (de onde só foi
deslocado pelo francês no século 17). Desde o desaparecimento dos referendários, os funcionários laicos dos
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reis merovíngios franceses, ao redor da metade do século 8, até que Felipe o belo contratou o cavaleiro
Pierre Flotte, em 1298, passaram-se cinco séculos sem existir na França um só funcionário da corte que não
viesse do corpo clerical.

O declínio da filosofia: existia filosofia no Ano Mil? Nota-se por Étienne Gilson ser difícil empregar o termo
filosofia ao que alguns pensadores praticavam no Ano Mil. Anselmo de Besete, o Peripatético, por exemplo,
perambulava como mestre da dialética por cortes ignorantes e cidades carentes de tudo, exibindo inutilmente
erudição e exercícios retóricos. Por não existirem ainda as universidades (havia uma escola de medicina em
Salermo na Itália, desde o século 9), que somente começariam a proliferar um ou dois séculos depois do Ano
Mil (a Universidade de Bolonha na Itália foi inaugurada no final do 11, e a de Paris entre 1150-70), pode-se
dizer que a Teologia se tornou soberana absoluta no Ano Mil.

Ela estimulara, pelo apelo dos bispos, a que o Imperador Justiniano banisse as academias filosóficas do
Império Romano Oriental no século 6, reinando desde então na maior parte da Idade Média. Mas a teologia
dominante por sua vez não desenvolvera ainda o seu lado lógico e racional (que só chegaria à maturidade
com S. Tomás de Aquino, no século 13), pois naquela época a Igreja privilegiava para fins de proselitismo os
místicos, não os filósofos. Quem convertia era a fé, não a razão. Portanto a inevitável tensão do pensamento,
o latente conflito entre fé e razão, anteriormente representando pelas querelas entre a teologia e a filosofia,
eclodirá dentro da própria teologia, encontrando na universidade o espaço adequado para esse insolúvel
problema. Ela, a universidade, como uma corporação de ofício, também se encarregará de fazer como
observou Le Goff, "um imenso esforço para fazer passar a cultura, do mundo do lazer estudioso e da prece,
ao mundo do trabalho".

A queixada de Sansão: exemplar figura dessa indisposição contra a filosofia foi o eremita Pedro Damião
(viveu entre 1007-1072), que, desprezando Platão, Pitágoras e a geometria de Euclides, enalteceu o universo
dos simples (De sancta simplicitate). Defensor da teologia contra "os abusos da ciência profana", dizia que
Deus não enviara filósofos para realizar o papel da conversão, mas sim pescadores e marceneiros. Sansão só
precisou de uma queixada de um asno, um símbolo da humildade, para abater mil filisteus.

Filosofia como serva da teologia: A ciência não convertia ninguém, enquanto que a filosofia pura era
"uma invenção do Diabo", sendo que este também era o primeiro professor de gramática, ensinando seus
discípulos "a declinar Deus no plural." Coube a Damião inaugurar na literatura latina medieval a proposta da
filosofia tornar-se a serva da teologia (philosophia ancilla theologia), devendo sempre segui-la a uma certa
distância, sem jamais ousar ultrapassá-la. Para ele "a lógica é inaplicável a Deus. Esta apologia da ignorância
irá acompanhar o discurso de muitos teólogos durante o transcorrer de boa parte da Idade Média, e será
motivo, bem mais tarde, para que a Igreja se visse alvo de críticas dos livre-pensadores que a acusavam de
viver da exploração da incultura do povo.

O Papado e o Império: a Igreja, desde o século 4, gozava de um duplo poder: o espiritual (representante
autorizada de Cristo) e o temporal (assumido depois da queda do Império Romano Ocidental). Na entrada do
Ano Mil e,la marchava para assumir a liderança da Cristandade, em função da fraqueza dos estados que os
príncipes bárbaros instituíram e pela incapacidade do imperador montar uma estrutura burocrática e militar
que fosse efetiva e eficiente. Mas ainda durante boa parte do século 11, em obediência a uma doutrina do
século 5, a do papa Gelásio, que dividia os poderes em temporais (a mando do imperador) e espirituais (sob
autoridade do papa), a Igreja vivia subordinada ao imperador do Sacro Império Romano-Germano, fundado
por Otão, o Grande, em 962.

Otão III e Silvestre II: quem entronaram no ano 1000 foi Otão III, um jovem imperador de vinte anos, um
rapaz bem instruído (ao contrário do seu avô Otão, o Grande, que só aprendera a ler aos 30 anos de idade).
Os últimos papas antes do Milênio foram indicados por ele. Escolheu, num primeiro momento, seu primo
Bruno (um alemão que foi papa entre 996-9) e, depois seu amigo e preceptor Gelbert de Aurilac, Silvestre II,
de origem francesa, mas que pertencia a entourage do Imperador. O Papa Silvestre era conhecido como um
eminente matemático, cientista e teólogo, um homem de exceção enfim, que morreu em 1003. Se alguém
sofreu as consequências negativas do Ano Mil, foi o próprio imperador que terminou morrendo nas margens
do Tibre aos 22 anos quando punha Roma a um cerco, em 1002.

Ambições universais: ambos poderes, o do Papado e o do Império, o Teocrático e o Estatocrático, tinham


ambições universais. Desejavam a submissão de todo mundo. Enquanto o primeiro apresentava-se como
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Universalis Papa, o imperador não lhe ficava atrás, designando-se a si mesmo como "Romano...augusto por
graça de Deus, imperador do Mundo". Não demorou muito para que o sacerdotium e o imperium se
desentendessem. Em 1072, eclodiu, entre o Papa Gregório VII e o Imperador Henrique IV, a Querela das
Investiduras, princípio de uma longa batalha entre o papado e o império, entre Roma e a Alemanha, travada
pela liderança da Cristandade, desavença que conduziu a Europa, muito mais tarde, à Reforma Luterana.

Principais estruturas políticas


(até o Ano Mil)

Reino merovíngio
[496-751]

Império carolíngio
[751-814]

Divisão do Império
[843]

Reino Ocidental Reino Central Reino Oriental


(Carlos o calvo) (Lotário) (Luís o germânico)

Sacro Império Romano - Germano


(Otão, I, 962 - Otão III, 1002)

Bibliografia

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