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ORLANDO
FURIOSO
ILUSTRADO POR
G USTAVE D ORÉ
M ARGARIDA P ERIQUITO
Orlando Furioso
Autor: Ludovico Ariosto
O
autor do Orlando Furioso nasceu a 8 de Setembro de 1474
em Reggio nell’Emilia, sendo o primeiro dos dez filhos de
Nicolò Ariosto, pertencente a uma família bolonhesa nobre,
e de Daria Malaguzzi Valeri, senhora da alta nobreza de Reggio. Na
altura, o conde Nicolò era comandante da guarnição da fortaleza de
Reggio, ao serviço de Ercole I d’Este, duque de Mântua e de Ferrara.
Nessa cidade, e quase inteiramente dentro das muralhas da fortaleza,
decorre a infância de Ludovico até 1484, ano em que seu pai é chama-
do a ocupar outros cargos em Ferrara, para onde a família se muda,
ocupando uma casa em que o poeta viveria até 1529.
Em Ferrara, Ludovico inicia os seus estudos de Latim e Grego, com
preceptores, o primeiro dos quais foi Domenico Catabene. Entre 1489
e 1494 frequenta, por vontade paterna, o curso de Direito no Studio
de Ferrara, mas consegue por fim sensibilizar o pai para a sua verda-
deira vocação. Abandonando o Direito, dedica-se aos estudos literários
com o humanista Gregorio da Spoleto, homem de grande saber em
quem Ariosto encontra o mestre que ambicionava, e não só: «Deu-me
mais que o meu próprio pai, pois ensinou-me a viver com nobreza,
enquanto meu pai apenas me ensinou a viver entre os mortais» – escre-
veu numa sua ode latina, em 1503.
Em 1498 entra ao serviço de Ercole I, e frequenta as aulas do filó-
sofo Sebastiano dell’Aquila. Além das poesias líricas, epigramas e ele-
gias em latim, e das Rime em vulgar, de inspiração petrarquista, que
compôs na idade juvenil, começa também a escrever comédias para a
companhia de teatro de Ercole I.
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Além dos perigos a que estava sujeito nessas longas e urgentes via-
gens a cavalo, a Roma e a várias outras cidades, era chamado a desem-
penhar tarefas de camareiro, mordomo ou moço de recados, de que
muito se lamentava, concretamente nas suas sátiras.
Foram anos difíceis, ressentindo-se sempre de ser afastado do lar e
da tranquilidade que lhe permitiria dedicar-se à escrita, mas encontrou,
mesmo assim, tempo e concentração para escrever, além do Orlando
Furioso, as comédias, a poesia lírica e as sátiras. Considerava que a sua
obra era o Furioso, tendo descurado a publicação do restante, que dei-
xou em manuscritos dispersos.
Das suas obras menores, as Satire são, sem dúvida, as mais interessan-
tes. Em número de sete, são compostas em tercetos e têm forma epistolar,
dirigindo-se o poeta a familiares e amigos com quem discorre sobre factos
concretos da sua vida ou sobre os seus estados de alma, evoca recordações
pessoais ou caricaturiza alguém, e nas quais por vezes se lamenta, com desi-
lusão ou com humor, do pouco reconhecimento que recebe ou da falta de
liberdade para se dedicar à literatura. Foram compostas entre 1517 e 1525.
No Outono de 1515, Ludovico decidiu dar o seu poema à estampa:
entregou o manuscrito a Giovanni Mazzoco, de Bondeno (cidade pró-
xima de Ferrara), de cuja tipografia saiu em Abril de 1516, a expensas
do autor, com excepção do papel, provido pelo Cardeal. Compunha-se
de quarenta cantos e era dedicado a Ippolito d’Este, o qual não daria o
devido apreço à obra do seu cortesão, que, em vez de louvores, recebeu
dele, dias depois, a pergunta: «Messer Ludovico, dove mai avete trova-
to tante corbellerie?» («Senhor Ludovico, onde é que foi buscar tantos
disparates?»). A obra, porém, conheceu um sucesso imediato em todas
as cortes italianas, tendo em poucos anos saído da esfera aristocrática e
conquistado público de todos os estratos sociais.
Em 1517, as relações entre Ippolito d’Este e Ariosto conheceram
um corte definitivo. Em Agosto, o Cardeal decide partir para a
Hungria, onde tinha um bispado, ordenando a Ariosto que o acompa-
nhasse. Ludovico recusa-se a fazê-lo, alegando motivos de saúde –
bronquite e problemas de estômago – susceptíveis de se agravarem com
a longa viagem e a transição climática. Foi a ruptura total. Ippolito não
aceitou a sua justificação e afastou-o do seu serviço, retirando-lhe os
honorários e os benefícios eclesiásticos que lhe atribuíra.
Por intercedência de Bonaventura Pistofilo, notário e secretário de
Alfonso d’Este, irmão de Ippolito, em 1518 Ariosto entra ao serviço
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Teve início entre eles uma relação secreta, mas que havia de perdu-
rar para sempre. Tito Strozzi morreu repentinamente em 1515, mas,
apesar de Alessandra ficar assim livre para casar com Ariosto, ambos
decidiram não o fazer, preferindo conservar as vantagens que o celiba-
to lhes garantia. Alessandra, casando de novo, perderia o usufruto dos
bens do marido e a tutela dos filhos, que eram seis. E Ludovico não
podia renunciar de ânimo leve aos benefícios que adquirira em 1503,
ao tomar as ordens menores. Vivia cada um na sua casa, em Ferrara,
sem nunca terem coabitado. Numa sua elegia, Ariosto dá-nos conta das
cautelas a que era forçado para se introduzir furtivamente em casa de
Alessandra:
Só muito mais tarde, numa data imprecisa entre 1528 e 1530, cele-
braram, secretamente, matrimónio. Nem os cônjuges nem os poucos
amigos que terão estado presentes à cerimónia secreta revelaram tal
facto, e Ludovico e Alessandra continuaram a viver separadamente.
O Orlando Furioso, entretanto, tinha sido continuamente melho-
rado pelo poeta, que, em Fevereiro de 1521, fez publicar uma segunda
edição revista, esta impressa por Giovan Battista da la Pigna. Não
sofrendo alterações em conteúdo (tinha os mesmos quarenta cantos),
apresentava no entanto enormes melhorias no que respeitava à língua,
expurgada de expressões dialectais regionais, de arcaismos e latinismos,
muito mais elegante e límpida do que a da primeira versão da obra,
acompanhando os cânones renascentistas. Deixava já prenunciar a per-
feição que viria a observar-se na última edição que o autor faria publi-
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(Ora me afasto, ora me aproximo, ora fujo ora regresso, / Todo escondido no manto, de cabeça
baixa, / vou para entrar; nisto vejo perto ou oiço / quem me pode ver, e afasto-me e passo. / Que hei-
de fazer? Que posso eu fazer entre cem / olhos, e entre tantas portas e janelas abertas?)
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(«É uma casa pequena, mas adequada a mim, livre de vínculos e decente, / e adquirida com o meu
dinheiro»).
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Génese
E
m 1486 foram publicados, em Veneza, os dois primeiros Livros
do poema Orlando Innamorato, do conde Matteo Maria
Boiardo. O então adolescente Ludovico Ariosto, impressionado
com a obra, começou a dedicar-se à leitura e estudo de histórias de cava-
laria, matéria que estava na génese da obra de Boiardo, e quando este mor-
reu, em 1494, deixando a obra interrompida no Canto IX do Livro III,
Ludovico alimentou a intenção de lhe dar continuidade. Não se sabe ao
certo quando começou a fazê-lo, mas há indicações de que em 1504 o tra-
balho já estava iniciado.
Ariosto retomou as personagens e as respectivas aventuras no ponto
exacto em que Boiardo as deixara suspensas, e incutiu-lhes, de novo,
movimento. Contudo, esse novo movimento revelou-se muito mais fluido
e elegante, percebendo-se, desde a primeira edição, que o Orlando Furioso,
laborando embora na mesma matéria de uma interminável cadeia de
romances cavaleirescos, e tendo como antecessores mais directos no espa-
ço italiano Morgante Maggiore (1483), do florentino Luigi Pulci, que
parodia as canções de gesta, e o já referido poema de Boiardo, era uma obra
original. Ludovico, com a sua extraordinária fantasia, dera uma outra fisio-
nomia às personagens, mais de acordo com a sensibilidade e o gosto renas-
centistas. O mundo cavaleiresco perdia os seus contornos rígidos e passava
a ser um cenário de fundo para figuras que exprimiam livremente toda a
diversidade e contrastes de sentimentos e comportamentos próprios da
natureza humana, sem excluir a nota dissonante da loucura.
Mas a novidade da obra não ficava por aí. Ariosto, em relação aos dois
antecessores citados, burilara a língua com um cuidado e uma perícia que
a colocavam a grande distância da linguagem áspera, rude e pouco maleá-
vel de Pulci e de Boiardo. Numa época em que se buscava, entre tão varia-
dos dialectos, um padrão para a língua culta italiana, Ariosto quis impri-
mir à sua obra a evolução linguística teorizada por Pietro Bembo, que
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Enredo e personagens
O argumento do poema tem por fundo as guerras entre Carlos Magno
e os Mouros que invadiram a França, comandados pelo rei Agramante.
Nesse cenário movimentam-se personagens ligadas ao ciclo carolíngio
e ao ciclo bretão, pertencentes à tradição literária dos romances de
cavalaria e das canções de gesta, matéria que fugia já ao gosto classicis-
ta do Renascimento. Mas Ariosto soube moldá-la de modo a torná-la
mais refinada e variada, recorrendo a todo o passo ao simile, com fre-
quência vergiliano, introduzindo-lhe muitas referências clássicas e
mitológicas, novas personagens e novas histórias. Entre as personagens
mais relevantes avulta Orlando, o Roland da Chanson de Roland,
herói de tantas canções de gesta, e a sua paixão por Angelica, que o leva
à loucura, facto central no poema e na sua própria estrutura, pois acon-
tece no Canto XXIII, e que dá título à obra. Ruggiero e Bradamante
são igualmente personagens de primeiro plano na economia do poema,
na medida em que têm como destino dar origem à estirpe d’Este, sendo
eles próprios descendentes do troiano Eneias, através de seu filho
Astíanax.
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Ariosto encadeia os factos de tal maneira que não nos deixa respirar;
logo a seguir, na oitava 10, apresenta-nos Angelica em fuga por bosques
e selvas, o que será nela uma constante, para escapar aos seus muitos e
diversos amadores. E, com Angelica, começamos de imediato a perce-
ber que o tecido do poema é uma selva cerrada e cheia de ciladas, per-
corrida em todos os sentidos por criaturas errantes que se cruzam ou se
desencontram, que se buscam ou se evitam, numa permanente deam-
bulação em demanda de um ser amado ou de um inimigo, de um cava-
lo ou de uma espada, ou simplesmente de uma aventura. O leitor é
constantemente confrontado com o imprevisto, com as súbitas mudan-
ças de cenário, com o jogo de aparições e desaparecimentos e os mais
variados golpes de magia; e é levado pela cadência rítmica marcada pelo
galope dos cavalos, pelo tinir das armas, pela voz do narrador, pelo enca-
deamento das oitavas, frequentemente ligadas por enjambement.
A guerra entre Carlos Magno e os Mouros, sempre presente, a certa
altura transfere-se de França para África, tal como Orlando, enlouque-
cido, atravessa o mar a nado para África. O cerne do poema é, de facto,
o enlouquecimento por amor do seu herói titular, a apresentação do
amor como fonte de loucura para o espírito impreparado. Nas três pri-
meiras oitavas do Canto XXIV, o narrador diz-nos que o amor nada
mais é que insânia, que tem disso experiência própria, e que só o facto
de passar de momento por um intervalo de lucidez lhe permite fazer
esse aviso à navegação.
Orlando segue obsessivamente Angelica, mas nunca mais a encon-
tra, a partir do momento em que Carlos Magno a subtrai à sua compa-
nhia no início do poema, como já se referiu. Ele que era o paladino mais
heróico, mais valoroso e forte do rei de França, seu tio, abandona as hos-
tes francesas a coberto da noite, disfarçado de mouro, no momento mais
crítico: quando Paris está assediada. Parte numa longa e vã demanda por
Angelica, que o leva a outros países e a participar de outros episódios da
trama, e a regressar, muitos meses depois, ao ponto de partida. E é então
que, nos arredores de Paris, Orlando encontra o seu locus infaustus,
num dos cenários mais amenos e oníricos de todo o poema.
Angelica, que ao longo de vários cantos é o motor que impulsiona
e arrasta atrás de si cavaleiros cristãos e mouros, reis e eremitas enfeiti-
çados pelos seus encantos, tudo o que deseja é regressar ao Oriente e
livrar-se definitivamente de todos esses pretendentes. Porém, ninguém
é dono do seu destino, e Angelica tem um encontro fatal: eis que depa-
ra com um jovem soldado mouro, Medoro, louro e belo como um que-
rubim, gravemente ferido. O seu coração empedernido finalmente
amolece e prende-se de paixão pela bela criatura, que trata com carinho
e poções feitas de ervas, cujos benefícios conhece bem. Amam-se,
unem-se, e juntos partem para o Catai. Ariosto escorraça do poema a
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monstro marinho, e é ela que tem de insistir para que se apresse a tirá-
la dali, uma vez que ele persiste numa luta ineficaz com o monstro, sem
conseguir matá-lo, deixando-a exposta ao perigo. Assim que a salva,
tem o impulso incontrolável de a possuir. O contraste é enorme, tanto
na valentia como no comportamento, entre ele e Orlando, quando
este, em idêntica situação, mata o monstro e salva Olimpia.
Ruggiero não tem determinação nem força de carácter que lhe
permitam ser senhor de si mesmo, e deixa-se controlar por duas forças
antagónicas, ambas conotadas com a magia e a feitiçaria. Uma, o mago
Atlante, usa todo o tipo de engodos para o afastar do teatro das opera-
ções, com a intenção de o proteger de um destino nefasto que lhe foi
predito; outra, a maga Melissa, esforça-se continuamente para o cha-
mar ao dever e à razão, e para o aproximar de Bradamante, a fim de que
o desígnio de fundador da estirpe d’Este não fique por cumprir. Parece-
nos que por detrás desta imagem, pouco abonatória, daquele que será
a «cepa» da família d’Este, se adivinha o sorriso malicioso de Ariosto.
Quanto a Bradamante, menina-dos-olhos de Carlos Magno e por
ele muito mimada, é uma guerreira forte e feroz que só encontra para-
lelo em Marfisa, mas que, por contraste, se mostra demasiado dócil e
subjugada à autoridade paterna, e excessivamente tolerante e confor-
mada no que respeita aos erros e ausências de Ruggiero. Assistimos aos
seus longos monólogos, carpindo a infelicidade amorosa encerrada no
castelo da família, como quem cumpre um destino que lhe está fatal-
mente traçado.
Além destas personagens, que são centrais no poema, imensas são
as que nele se movimentam e que têm igualmente protagonismo. Mas
outras há com aparições pontuais, acessórias (Ippalca, por exemplo, ou
o mensageiro que traz a Ginevra notícias de Ariodante), e até efémeras,
tendo apenas a função de ligar fios da trama, sem nela terem relevo,
como é o caso da dama lacrimosa que Ruggiero e Bradamante encon-
tram e os conduz ao castelo de Pinabello; nem chegamos a saber o seu
nome. Há personagens divinas que interferem directamente na acção
bélica, como o arcanjo São Miguel, numa leve reminiscência da inter-
venção dos deuses olímpicos em Homero, e há um grupo de figuras do
povo – taberneiros e estalajadeiros, pastores, barqueiros – que sobres-
saem por serem detentoras de saberes tradicionais e grandes contadoras
de histórias. São as figuras que dão presença à literatura oral, que se
transmite através da palavra falada. Regista-se também a presença, quer
acessória quer relevante, de eremitas, que tanto vestem a pele do santo
como a do pervertido. Entre os reis e guerreiros sarracenos – designa-
ção que abrange também os originários de terras orientais – vários
sobressaem pela sua bravura, mas a figura mais notável é a de
Rodomonte, rei de Argel, que se distingue de modo especial no assalto
22 orlando furioso
O
Orlando Furioso é uma obra que há muito tempo conheço e
amo. Não esperava, porém, que me viesse a caber a tarefa de
a traduzir para língua portuguesa. A editora Cavalo de Ferro
teve a feliz e louvável iniciativa de publicar a obra-prima de Ludovico
Ariosto, e propôs-me a execução do trabalho.
O tradutor profissional, ao assumir a responsabilidade de um trabalho,
assina um contrato com a editora, que o obriga às cláusulas pelas quais o
mesmo se rege, e tem de executar esse trabalho como quem executa uma
empreitada, sem que o grau de dificuldade ou a busca de mais perfeição
sejam tidos em conta. A mais premente e mais pesada dessas cláusulas é,
invariavelmente, o prazo. O prazo é, quase sempre, um mecanismo assus-
tador, que, qual guilhotina, está suspenso sobre a cabeça do tradutor.
No caso presente, foi-me dado o prazo de um ano para fazer este
trabalho, porque a própria editora estava vinculada a compromissos de
edição que a tal a obrigavam.
Conhecendo bem a obra, não ignorei que o prazo era restricto, porém,
uma vez que me foi dada a liberdade de fazer a tradução como quisesse, ou
seja, em rima, em prosa, em verso branco, com ou sem rigor métrico, acei-
tei. Aceitei, sobretudo, porque era um desafio: ser-me-ia muito difícil ter a
oportunidade de traduzir o Orlando Furioso e descartá-la.
Conhecer bem uma obra, porém, é um facto que perde importân-
cia quando a abordamos com a intenção e os requisitos da tradução.
Tendo feito o primeiro canto em rima, seguindo, tanto quanto era pos-
sível segui-lo à pressa, o modelo de Ariosto, fiz contas e verifiquei que
o tempo não chegaria. Passei a fazer a tradução em decassílabos, para
lhe dar ao menos um ritmo, mas sem rima, e assim cheguei ao Canto
VIII. Olhei para trás, e não reconheci o poema de Ariosto, que, sem
dúvida, encontra o seu ritmo não só na narrativa, mas, acima de tudo,
na rima e na métrica. Retrocedi e refiz todos esses cantos em rima, e da
mesma forma prossegui, sujeita à crescente pressão do tempo que se
escoava e da extensão da obra, privada da possibilidade de um segun-
26 orlando furioso
O «Orlando» em português
A presente edição é a primeira tradução integral jamais feita deste
poema em língua portuguesa, contemplando os padrões rimático e
métrico da oitava de Ariosto.
Há notícia de uma tradução em prosa, de Salustiano da Silva Alves
de Araújo Susano, publicada no Rio de Janeiro em 1833. E, também
no Brasil, da tradução em oitavas de alguns episódios soltos do
Orlando Furioso, feita por Luiz Vicente De-Simoni, publicada no Rio
de Janeiro em 1843, incluída numa antologia de poetas italianos.
Em Portugal a obra foi sendo lida no original e em traduções, ver-
sões e resumos, em espanhol e francês, que proliferaram nos anos que
se seguiram à publicação da obra em Itália, e o interesse que imediata-
mente despertou está patente não só em várias passagens de Os
Lusíadas como, por exemplo, na obra de Thomé Pinheiro da Veiga,
Fastigimia 1, escrita em 1605 – uma perspicaz e jocosa crónica de cos-
tumes portugueses e espanhóis da época, em que abundam as referên-
cias, entre outros, a Ariosto, e as citações de versos e mesmo de oitavas
inteiras do Orlando Furioso, na língua original.
Fica por fazer um estudo aturado da receptividade e dos ecos que
o poema teve em Portugal e junto dos escritores e estudiosos portu-
gueses, que exigiria de mim tempo de que não dispus.
Em 1895 foi publicada no espaço lusitano, pelo editor David
Corazzi, uma tradução do poema de Ariosto, reduzido a prosa, da
autoria de Xavier da Cunha.
Antes dessa tradução, o poeta Gomes Leal (1848-1921) fez, em
1889, uma versão do Canto I do Orlando Furioso, «vertido em lin-
guagem portuguesa» a partir de uma versão francesa da época.
1
Thomé Pinheiro da Veiga, Fastigimia, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1988 (reprod.
fac-similada da ed. de 1911 da Biblioteca Pública Municipal do Porto).
Nota da Tradutora 27
Critérios de tradução
Sobre alguns critérios de tradução, gostaria de esclarecer, no tocan-
te a nomes, que os mesmos mantêm a grafia que apresentam no origi-
nal, exceptuando as individualidades históricas com relevância univer-
sal cujo nome já tem uma versão na nossa língua (aplicando-se idênti-
co critério aos nomes geográficos), as figuras mitológicas e bíblicas, e as
figuras da literatura tradicional, como Merlim, Tristão e Isolda, etc.,
que também já possuem uma versão própria na nossa língua.
Notará o leitor uma dualidade na grafia de alguns dos nomes próprios,
como é o caso de Ruggiero/Ruggier, Pinabello/Pinabel, Grifone/Grifon,
Brunello/Brunel, e outros mais, que reproduz a dualidade que se veri-
fica no original, constituindo um recurso de grande utilidade para a
rima e também para a métrica.
Ariosto faz uso muito frequente do poliptoto, isto é, da repetição
da mesma palavra, com formas gramaticais diversas – ou apenas com
um sentido semântico diverso –, em posição de rima. Alguns casos há
em que recorre à repetição de uma palavra, mesmo sem mudança de
forma gramatical ou semântica, procurando talvez um efeito enfático,
como sucede no Canto VI, oitava 48, em que usa três vezes a palavra
«outros» em posição de rima. Na medida do possível, reproduzi na tra-
dução, no todo ou em parte, esses efeitos.
Nos vv. 1 e 2 da oitava 32 do Canto XLI, separei com hífen, de um
verso para o outro, a palavra «sobrevestes», e no Canto XLIII, oitava
105, separei do mesmo modo, do v. 3 para o v. 4, a palavra «precisa-
mente», reproduzindo idênticos processos do original.
Encontra-se por vezes, em duas oitavas seguidas, a mesma rima,
chegando a ocorrer, nas duas, uma mesma palavra (ex: «mano/mão» em
XV, 81-82, e «allora/hora», em XLIII, 147-148). Há casos esporádicos
de oitavas que têm a mesma rima nos seis primeiros versos: veja-se a
oitava 6, do Canto XXXIII, em que se faz a aproximação a um con-
junto de pinturas murais, representando factos que hão-de acontecer
no futuro; no original, cinco dos seis versos apresentam em posição de
2
L. Ariosto, «Orlando Furioso (cantos e episódios)», Introd., Trad. e Notas de Pedro Garcez Ghirardi,
Ateliê Editorial, Granja Viana-Cotia-SP, 2002.
28 orlando furioso
Margarida Periquito
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C ANTO XLIV
C ANTO XLV
C ANTO XLVI
oitava 13
48 orlando furioso
15 %O mais alto que era possível, vinha 18 %Longo tempo se esforçaram em vão,
a gritar a donzela espaventada. cada um querendo o outro derribar,
Salta, ao ouvir, para a margem ribeirinha pois tanto valor com a arma na mão
o mouro, e no rosto lhe pousa a mirada; tinha, qualquer deles, como o seu par;
e reconhece-a assim que se avizinha, foi primeiro o senhor de Montalvão,
apesar de pálida e perturbada; a o cavaleiro de Espanha alertar,
há muito não tinha notícia dela, como quem tem no peito tanto fogo
mas não duvida: é Angelica bela. que todo arde, sem ter desafogo.
16 %Como era cortês, e tanto, talvez, 19 %Disse ao pagão: – Crês que só a mim dás
como os primos por ela tinha amor, desaire, mas teu inimigo és;
aquilo que podia fazer, fez: se a luz do novo sol16 teu peito faz
como se elmo houvesse, com pundonor, incendiar, e se algum ganho vês
sua espada empunhou para dar revés em me reter, tu, o que ganharás?
a Rinaldo, a quem não tinha temor. Ao teres-me morto ou preso como crês,
Não só muitas vezes se tinham visto, não será tua a dama mesmo assim,
como em provas de armas tinham registo. pois em fuga se pôs neste interim.
17 %Deram início a uma feroz batalha: 20 %Quão melhor será, se a amas deveras,
apeados ambos, gládios brandiam; que ligeiro vás na sua peugada,
aos golpes, couraças, cotas de malha, pois para detê-la é melhor se não esperas,
ou mesmo bigornas não resistiam. antes de estar daqui mais afastada!
Mentres cada um o outro trabalha, Tendo-a em poder, com praxes severas
estugando o passo bicho e dama iam; se decide de quem será, pela espada;
incitando o bicho a dar mais à perna, pois nada deve esta contenda ao siso,
por campos e bosques com ele se interna. e dela só colhemos prejuízo. –
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