Pessoa não foi o intelectual seco, desencarnado, que habitualmente fazem dele. Em carta de 23/3/1920 diz a Ophelia que não é esse ser “seco, frio, indiferente” que sabe que parece ser mas que não quer ser aos seus olhos. (…) Num apontamento, provavelmente de 1980, Pessoa autoapresenta-se, em inglês, como uma “alma amorável, meiga“, “cheia de bondade, de compaixão”. (…) O país de origem é o reino maravilhoso da infância, mas não aquela que realmente viveu, antes aquela que se inventou – da mesma forma que o Marinheiro, do poema dramático homónimo, tendo naufragado numa ilha deserta e não podendo voltar à pátria “pôs-se a fazer ter sido sua uma outra pátria”… Teresa Rita Lopes. E de tal maneira se aplicou a inventar esse novo país, essa falsa pátria, que ela se lhe sobrepôs, na memória, à pátria de verdade. (…) Lembremos que Fernando Pessoa, apesar de ter regressado a Portugal para fazer um curso universitário – no então Curso Superior de Letras –, não passaria do primeiro ano. Acrescente-se que não teve emprego certo: veremos que o Bilhete de Identidade regista “empregado de comércio”, uma procuração “comerciante”. Um envelope duma carta de Teixeira de Pascoaes apelida-o de “ilustre escritor” mas Pessoa esclarecerá, em certo texto do fim da vida, que ser escritor não é profissão mas vocação. Apesar de aparentemente parada, a sua vida teve sacudidelas violentas. Pessoa falou da importância para si dos anos terminados por cinco. A viagem que diz ser a sua vida, no comboio do seu corpo, teve o seu primeiro abanão violento quando a mãe, que enviuvara do pai dois anos antes, volta a casar, em dezembro de 1905, com o cônsul português em Durban – a que ambos se irão reunir no mês seguinte. Foi o fim dessa “infância pavorosamente perdida”, desse tempo feliz que “passou como o fumo dum vapor no mar alto” de que surpreenderemos algumas imagens: nuzinho, de fitas e laços, de cadeirinha, de vestido às bolinhas, de fatinho à marujo – e de colo em colo, quase perdido no vasto regaço coletivo das mulheres da família: a mãe, a tia Anica, as avós, as tias-avós, as primas (as tais que iam às festas dos seus anos, como Campos recorda no poema “Aniversário”). Ao fazer dos seus cinco anos morre- lhe o pai: vamos vê-lo vestidinho de luto, com uns olhos enormes, carregados já de uma tristeza que nunca mais o abandonará. Teresa Rita Lopes, O Teatro do Ser de Fernando Pessoa, Lisboa: Presença, 1995, pp. 9-13.
Tópicos de análise 1. Aspetos biográficos de Fernando Pessoa. 2. Caracterização do homem. 3. Caracterização do escritor. 4. Relação vida/obra.