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À volta do mundo: jornal de viagens e de assumptos geographicos

Publicado por: Emp. Litteraria Luso-Brazileira


URL URI:http://hdl.handle.net/10316.2/35632
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Accessed : 14-Mar-2023 16:13:55

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A l'KSCA — Desenho de Y. l'ianislinikolT, s e g u n d o o t e x l o

C O M O EU ATRAVESSEI A AFRICA
1)0 ATLANTICO AO MAR INDICO—VIAGEM DE BENGUELLA A C O N T R A - C O S T A — A T R A V É S REGIÕES
DESCONHECIDAS —DETERMINAÇÕES GEOGRAPHICAS E E S T U D O S ETHNOGRAPHICOS
POR

PRIMEIRA PARTE

A CARABINA D'EL-REI
( C o n t i n u a ç ã o da folha 13 — 3.° anno)

r .OR SUA conta creio que não, que pouco ti-


nha a lucrar n isso. A encommenda vinha
feita do Bihé, e eram emissários d elia os
muleques de Silva Porto. Caiumbuca to-
mou o papel principal, depois das instrucções
recebidas dos pretos de Belmonte. O mandata-
rio estava ao longe, muito ao longe.
na sua índole bondosa, é incapaz de os compre
l hender e cie os admittir.
Infelizmente elles são verdadeiros, e mais ou
menos romantisados, não deixam de conter um
! germen de realidade.
.Mas serão esses factos uma nodoa para Por-
tugal ? Não são. Atfirmo-o, e sustento-o.
A causa estava na minha missão, e na g u e r r a Os sertanejos portuguezes, que mais se aventu-
que, em nome do meu Portugal, eu fazia sem ram no interior do continente atricano, quando
tréguas, ao commercio da escravatura. o fazem, deixaram de ser portuguezes.
Alguns exploradores aíricanos, e sobre to- São condemnados, fugidos dos presidios da
dos o Commander Cameron e David Livingstone, costa, são homens a quem a sociedade suppri-
tem apontado muitos factos horríveis e verda- miu as garantias do cidadão, são réprobos a
deiros do commercio da escravatura, feito no in- quem a sentença infamante da justiça imprimiu
terior d Africa por sertanejos portuguezes. um indelevel ferrete de ignominia: são os sal-
P o r muitas vezes, a opinião publica em Por- teadores e assassinos, a quem a patria baniu do
tugal tem levantado a sua voz potente, contra seu seio com horror, que poderam quebrar o
as asserções vilipendiosas dos accusadores es- grilhão de ferro com que estavam acorrentados
trangeiros, q u e r e n d o negar factos que elles as- ao patíbulo aviltante; e fugindo a um m u n d o
severam, e em que ella não acredita, porque, onde só os espera o despreso da gente civilisada.
VOLUME III FOLHA lã
ioó
A V O L T A DO MUNDO

vão ao longe buscar entre os selvagens a guarida por vezes ia sendo victima, não me pude eximir
que perderam, e continuar alli a sua vida de cri- a pôr a questão nos seus verdadeiros termos.
mes. José Alves, Coimbrãs e outros, esses nem ao
Taes homens não deshonram a sua patria, menos são portuguezes de nascença; não se pa-
porque não tem patria. recem com portuguezes na côr, são indígenas,
Querer tornar Portugal solidário dos crimes sem instrucção, verdadeiros selvagens de calças
dos sertanejos africanos, é q u e r e r tornar a França e chapéus.
responsável dos actos da Communa, a America Affirmo também, que é mais difficil viajar
do assassino de Lincoln, a Italia dos salteadores em Africa por terras onde elles tem andado, do
dos Abruzos. que nas regiões barbaras dos canibaes, que nunca
Ha réprobos em toda a parte, e não podem viram um estranho. Aqui fazem a guerra ao ex-
ser nodoas nos povos que os esmagam na sua plorador, quando a fazem, de armas na mão,
justa indignação. frente a frente; alli è a traição e a covardia que
Dos sertanejos europeus que tem estado es- o esperam. Aqui è explorar na brenha espinhosa
tabelecidos no Bihé, de dois apenas tenho noti- onde o leão occulta o seu antro; alli é caminhar
cia, que não pertencessem a tal ordem de gente. n u m prado relvoso, entre venenosas serpen-
São elles Silva Porto, e Guilherme José Gon- tes.
çalves; mas estes foram sempre queridos e esti- Outra cousa inconveniente ao explorador é
mados do indigena e do europeu, gozaram sem- ir ás sedes dos grandes potentados. Veja-se o
pre da consideração que a sua honradez e pro- que tem acontecido no Muatayanvo; veja-se o
bidade lhes grangearam, foram cidadãos pres- que aconteceu a Monteiro e Gamito no Muata-
tantes, que, com um trafico legal e digno, nem Casembe; veja-se o que me tem acontecido a
chegaram a fazer fortuna, e foram muitas vezes mim com Lobossi, no Lui.
victimas dos outros. O sertanejo Biheno, na cubiça de obter o
O nome de Silva P o r t o é respeitado pelo marfim, dá tudo ao regulo; chega a dar-lhe a
gentio, e conhecido n uma grande parte da Africa roupa que leva vestida, e volta ao Bihé de tanga
central pela corrupção da palavra Prôto, e mais de pelles, como os seus carregadores.
de uma vez me servi d'elle para desfazer obstá- No Lui, quando era muito frequentado por
culos. sertanejos Bihenos, havia o costume de elles
Em Cassange, como em Tete, outras duas entregarem tudo ao regulo, e esperarem que elle
portas da Africa central, ha portuguezes dignos lhes désse pela factura que levavam, o que en-
e nobres, que téem feito um grande serviço á tendesse suíficiente.
humanidade no commercio licito com o interior; O explorador que hoje chegue alli e não faça
esse commercio, que é o mais seguro mensa- o mesmo, está perdido.
geiro da civilisação na terra dos negros. Além d esta, outra razão deve aconselhar o
Não confundamos pois; não conlundamos, e explorador a evitar os grandes potentados; é ella
será pouco nobre ir buscar a auctoridade do ex- o caso de uma aggressão, sempre de receiar.
plorador, para lançar, apontando factos verda- Com os pequenos senhores que povoam a
deiros, mas nada producentes, uni labeo sobre maior parte da Africa austral, poderá, em tal
um povo nobre, o primeiro que deu mão forte caso, levar a m e l h o r ; em quanto nos grandes
á Inglaterra contra o trafico infame; sobre um impérios será forçosamente esmagado.
povo que sacrificou os seus interesses africanos Isto pensava eu voltando ao meu campo nas
legislando a abolição da escravatura ; contra um montanhas de Catongo, a 17 de setembro, de-
povo, o mais livre do mundo, que estendeu a pois de ter comido leite coalhado e batatas em
sua liberdade até á Africa, mandando para lá as casa de Machauana
leis que o regem na Metropoli, chegando ao ex- Cheguei a Catongo já noute, e soube que o
cesso de abolir alli a pena de morte, e de lhes meu Augusto tinha morto uma gazella, o que
m a n d a r um codigo que por libérrimo é impos- nos fazia optimo arranjo.
sivel entre gente mais que semi-barbara. As armadilhas improvisadas continuavam a
Não precisa Portugal justificação : que o de- dar patos e francolins.
fendem os factos, as leis e a energia que em- Nos dias seguintes, os trabalhos tomaram-me
prega na grande obra da civilisação africana; todo o tempo, podendo obter uma longitude
mas, fallando do trafico da escravatura de que muito approximada, e fazendo uma rigorosa de-
A V O L T A DO .MUNDO bi

terminação da declinação da agulha, estudos me- zendo-me, que estava convencido de que fôra
teorologicos, etc. illudido por Caimbuca e pelos muleques do Silva
No dia 19 ainda não tinha recebido mais no- P o r t o ; que acreditava ser eu um enviado do go-
vas do rei Lobossi, e decidi m a n d a r lá o Verís- verno do Mueneputo, e que me queria dar todas
simo, a saber se a offerta das canoas era ou não as satisfações pelos transtornos que eu tinha
comedia. N'esse dia appareceram alli uns pretos, soffrido nos seus estados, de que elle dizia não
que pelo typo conheci logo não serem do paiz. ter tido a menor culpa.
Diziam elles serem da Luêna, e querendo inda- Aproveitei tão boas disposições, para renovar
gar onde ficava essa terra, elles mostravam-me o meu pedido de gente e auxilio, para seguir
o N. E . , e por meio de nós dados em uma cor- pelo paiz do Chuculumbe até Caiuca, e descer
reia fina faziam-me comprehender que tinham depois o Loengue embarcado, e ir ao Zumbo
andado vinte e seis dias para chegar alli. Vi- pelo Zambeze. Respondeu-me, que isso não po-
nham em nome do seu chefe comprimentar o dia ser, porque esse projecto encontrava uma
rei Lobossi, e sabendo que estava um branco no grande opposição nos velhos do seu conselho.
paiz, vieram vêr-me, por ser animal novo para Que o Munari (Livingstone, no tempo de Chi-
elles. creto, já tinha feito aquella viagem com gente
P a r a fallarmos, ssrvia-me de interprete o do Lui, e que nenhum dos que com elle foram
velho chefe da aldeola, que fallava a lingua dos para leste voltará mais ao paiz.
Machachas, lingua em que elles se exprimiam Os velhos, fallando elle n isso disseram-lhe,
bem, dizendo ainda assim ser muito difTerente que me perguntasse o que era feito dos seus ir-
da sua. Disseram-me haver no seu paiz muitos mãos Mbia, Caniata e Scuèbu, e muitos outros
elephantes, e serem caçadores, empregando para que foram e não voltaram. Diziam elles que,
isso a azagaia, única arma de que usam. São ao partir, Livingstone prometteu que os torna-
franzinos de corpo e de pequena estatura, com ria a trazer alli; e ainda hoje as mulheres e os
feições bastante regulares. Uns vinte que eu vi, filhos esperam por maridos e pelos paes.
traziam, quasi todos, na cabeça uns penachos Alfirmou-me, que se podésse, me daria gen-
feitos de sedas de elephante, morto pelo que o te, mas a resistencia do povo era grande e não
traz. Vestem pelles como os do Cuchibi, e tra- lhe convinha ir contra ella. Os tres barcos esta-
zem pannos de liconde para se cobrirem vam ás minhas ordens para descer o Zambeze,
Traziam manilhas de ferro e de cobre, fabri- e nada mais podia fazer por mim.
cadas por elles. A diíficuldade que havia de nos A 24 de setembro, logo de manhã, recebi a
entendermos não me permittiu levar muito longe visita de Lobossi que se vinha despedir de mim,
as averiguações ácerca do paiz d elles e dos ter- e apresentar-me os seus escravos que deviam
renos que atravessaram para chegar alli. tripular as canoas até umas povoações do Zam-
No dia 21, Veríssimo voltou de Lialui, di- beze, onde o chefe me deveria dar novos barcos
zendo que as canoas estavam promptas, e que e novas tripulações. Deu-me uma pequena ponta
Lobossi me mandava pedir para ir ficar na ci- de marfim, para eu ollerecer ao chefe das po-
dade no dia immediato. Enviei logo um homem voações onde arranjaria os barcos, e trazia tam-
ao rei, dizendo-lhe que só iria em dois dias, por bém um boi para a matolotagem. Agradeci-lhe
estar doente; sendo o verdadeiro motivo d e s s a muito, e separámo-nos nos melhores termos de
demora, o ter de fazer observações e completar amizade. Segui a S. O., e depois de uma hora
estudos meteorologicos no dia 22. P o r esse de caminho, encontrava o braço do rio a que
mesmo enviado mandei dizer a Gambela, que chamam pequeno Liambai, e pouco depois, tres
me apromptasse aposento em sua casa, porque pequenas canoas largavam a margem, levando a
iria ser seu hospede. Eu queria fazer do ladrão minha bagagem, a mim, a Veríssimo, Camu-
fiel. tombo e Pépéca.
A 23 de setembro, deixei Catóngo, e cami- O Augusto, Moero e Catraio, com as duas
nhei para Lialui, onde cheguei ás duas horas e mulheres, seguiram por terra, acompanhados do
meia da tarde. Gambela esperava-me com pom- caçador Jasse e dp chefe Mutiquetèra, manda-
pa, e foi conduzir-me ao alojamento que me ti- dos por Lobossi, para seguirem commigo, e
nha preparado. A marcha por um sol abrazador irem dando as suas ordens aos chefes, afim de
prostrou-me de fadiga, e só á noite pude ir vi- ter o caminho livre.
sitar Lobossi. Elie recebeu-me muito bem, di- Mais dois entes, de que me tenho descurado
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de fallar, dois entes que representavam duas de- não aproveitada pelos remadores, que receando
dicações inquebráveis, aquelles que desde a mi- os hippopotamos, que sem cessar vinham res-
nha sahida não me haviam dado um único dis- folgar no pego, iam sempre encostados ás mar-
sabor, estavam alli commigo, sempre promptos gens, onde a agua pouco f u n d a não permittia o
a seguir q u a n d o eu marchava, a pararem quando accesso aos enormes pachidermes. Tínhamos de
acampava, a dispensarem-me mil caricias q u a n d o parar de instante a instante, para tirarmos agua
me viam triste, a divertirem-me quando alegre das canoas velhas e fendidas.
estava. E r a m Córa e Calungo, a minha cabri- Parei junto a Nariere, para calafetar o meu
nha e o meu papagaio barco, e em quanto os pretos faziam trabalho
A viagem do rio ia separar-me todos os dias com hervas e barro, medi a velocidade da cor-
de Córa, que não podia ir sempre embarcada rente, que achei ser de 24 metros por minuto. O
pela exiguidade de espaço nas canoas, mas Ca- meu rumo médio era S. E . , mas o rio dá alli vol-
lungo voando sem medo para o meu hombro, tas curtas em grande zig-zag; tendo eu em uma
seguiu embarcado. d elias navegado por 20 minutos a N. 0. Acam-
Depois de termos navegado ao sul por um pei na margem esquerda pelas cinco da tarde
quarto de milha, deixamos o pequeno Liambai, nas mesmas condições da vespera, sem abrigo e
e mettemos a S. O. por um canalete, por onde ao relento.
o braço oeste do rio deita um pequeno veio de Muitas vezes, n aquelle dia, quando fugiamos
agua, de lagoa em lagôa para o braço leste. aos hippopotamos de um lado, appareciam elles
No intervallo entre as lagoas, ás vezes de no outro, e corremos perigo grave.
mais de cem metros, o navegar é difficil, por- Eu não lhes quiz atirar, para não gastar as
que é difficil navegar onde não ha agua. Foi munições. Só quem se vè no centro d'Africacom
preciso muitas vezes descarregar os barcos e ar- pouca polvora sabe o valor de um tiro.
rastal-os sobre um fundo de lôdo. Nas lagoas o Os barqueiros, que eram escravos do rei Lo-
caniçal espesso embaraçava também a navega- bossi, quizeram ser insolentes commigo, mas eu
ção. metti-os na ordem a pau, segundo instrucções
Depois de um trabalho violento e aturado, recebidas do proprio Lobossi, que prevenira o
paramos ás seis horas na margem de uma lagoa, caso.
em planicie recentemente queimada, onde não O Verissimo, que desde Quillengues resis-
havia com que construir o mais pequeno abrigo. tira á febre, cahiu com um violento accesso, e
Tinha havido o cuidado de levar lenha, e eu mesmo não estava sem ella.
com ella podémos assar carne, que eu comi com No dia immediato naveguei apenas por es-
appetite voraz, por não ter ainda n esse dia to- paço de uma hora, parando junto á povoação de
mado alimento. Estendi depois a minha cama Nalólo, governada por uma mulher, irmã de Lo-
de pelles sobre a terra húmida e deitei-me ao bossi. Mandei pedir-lhe desculpa de a não ir vi-
relento. sitar, allegando a minha doença e a febre do
Os remadores estiveram toda a noute assan- meu interprete Verissimo. Ella acceitou a des-
do carne e comendo, fazendo assim desappare- culpa, e enviou-me um pequeno presente de
cer a maior parte do boi dado por Lobossi, e massamballa; apesar de doente fui caçar, para
mostrando que a capacidade estomachica dos fazer nova provisão de viveres, e consegui ma-
súbditos do rei do Lui era verdadeiramente in- tar dois antilopes (Pallahs). As pelles, como as
commensuravel. da ante-vespera, foram seccas com cuidado e
Depois de uma péssima noite, parti ao alvo- guardadas.
recer do dia 25, e naveguei em uma lagôa por P u d e trocar uma perna de carne de Pallah
meia hora, entrando em seguida no braço prin- por um pequeno cesto de feijão fradinho.
cipal do Liambai. Apparecia nas margens uma Verissimo peiorou muito n esse dia, e eu á
tal quantidade de caça, que fiz parar a flotilha, noute ardia em febre também, tendo, apesar
e entrar em serviço a Carabina d'El-Rei, que, d isso, de dormir ao relento n um terreno hú-
na sua estreia, me forneceu lpgo viveres que cal- mido. Accordei completamente encharcado do
culei chegariam para dois dias, apesar da vero- orvalho, e muito doente. Segui viagem, e de-
cidade dos Luinas. pois de seis horas úteis de navegação, com o
O Liambai tinha alli uns 200 metros, e muito rumo médio de S. S. E., acampei, sempre na
fundo. A corrente era pequena, e essa mesma margem esquerda.
DO MUNDO 121

Apesar de outra noute péssima, a febre ia ce- e retirou-se, dizendo-me que tinha cumprido as
dendo a fortes doses de quinino, e no dia 28 ordens do seu rei Lobossi, e esperava que eu
naveguei por hora e meia para alcançar a povoa- estivesse satisfeito, porqne elle queria a amizade
ção de Moangana, cujo chefe me devia fornecer dos brancos.
um barco por ordem de Lobossi. Na Itufa continuavam as difficuldades para a
0 velho Moangana era um Luina de cabellos outra canôa; o chefe só fazia repetir-me que a
grisalhos, muito respeitoso, que me recebeu não tinha, e lastimar que houvessem enganado
muito bem, dizendo-me que no dia immediato Lobossi e a mim.
me levaria elle mesmo á povoação da Itufa, onde Os Luinas e Macalacas tem por habito escon-
eu devia pernoitar, um barco e algum presente der as canoas em lagoas interiores cobertas de
que me podésse arranjar. caniçal, que communicam com o rio por peque-
0 vento era fortissimo de leste, e encrespava nos canalètes disfarçados pela vegetação e só
as aguas do rio, que não tinha menos de uma d'elles conhecidos. Quando não q u e r e m que as
milha de largo. Havia perigo para canoas tão vejam, difficil é encontral-as.
pequenas como as nossas, mas, apesar d isso, se- O caçador Jasse e o chefe Mutequetera, co-
guimos, e em hora e meia chegamos a Itufa, nhecedores das manhas dos Luinas, tanto bus-
g r a n d e aldeia, na margem esquerda. caram entre os caniçaes das lagoas, que encon-
Mais de uma vez estivemos em grande risco traram uma canôa, fazendo o chefe da Itufa mil
de sossobrar, e declaro que é triste perspectiva protestos, de que ignorava que ella estivesse alli.
a de cahir a um rio coalhado de crocodilos. As casas da Itufa são, como todas as dos
O Verissimo ia um pouco melhor e eu mesmo, Luinas, de très formas différentes, e taes como
apesar da febre quasi constante que me minava, já descrevi fallando das povoações de Canhete
sentia-me com mais forças. e da Tapa; mas aquellas que tem a fôrma tron-
Já me esperavam na aldeia, prevenidos pelos co-conica são de muito grandes dimensões. A
meus muleques que jornadearam por terra, e que me foi offerecida pelo chefe, a casa das ara-
que, com o caçador Jasse e com o chefe Mule- nhas, media, no quarto interior, 6 metros de
quetera, haviam chegado n'essa manhã. diâmetro, e no exterior 10.
0 chefe recebeu-me bem, dando-me logo N estas dimensões, não podem como as ou-
uma casa, e offerecendo-me uma panella de leite tras ser construídas só de caniços, e umas for-
coalhado e uma cesta de farinha de milho; mas tes estacas verticaes sustentam o tecto, cuja ar-
começou por dizer-me que tinham enganado Lo- mação é de longas varas de madeira.
bossi, e que elle não tinha barco. Ha ainda na Itufa outro typo de casas, que
Comi um pouco de leite e farinha, e os meus é original d alli.
muleques n um momento fizeram desapparecer São compostas estas de uma casa ogival, a
o resto do presente do chefe, declarando-me que que addicionam uma semi-cilindrica deitada no
tinham fome, depois de terem comido tudo. sentido do eixo, formando assim dois compar-
Instei com o chefe para me obter alguns viveres timentos distinctos. Estas casas são grosseira-
mais; mas elle respondeu-me, que só a tròco de mente construídas, ao passo que a casa tronco-
fazendas m'os dariam, e como eu não as tinha, conica, verdadeiro typo da casa Luina, é edifi-
nada se poderia fazer. cada com cuidado, e muito resguardada.
Dei aos muleques as pelles dos antílopes que Pela primeira vez, depois de ter deixado o
tinha morto, e a tròco d elias sempre arranjaram Bihé, vi gatos em Africa, que os ha em abun-
farinha, ginguba e tabaco. dancia na povoação da Itufa. Ha também alli
A noute, quando me fui deitar, vi que estava muitos cães de boa raça, que empregam com
rodeado de aranhas enormes, muito chatas e ne- vantagem na caça dos antilopes.
gras, que desciam das paredes em vagaroso ca- Continuava a difficuldade de obter viveres,
m i n h a r ; e fugi da casa, indo deitar-me no pateo, mas a carabina suppria a falta de fazendas para
ao relento. Estava escripto, que durante a mi- permutações, e sempre iamos obtendo alguma
nha viagem no Zambeze, nem uma só noute um farinha de massambala a troco de carne e pelles.
tecto abrigaria o meu somno. As tripulações estavam promptas, e os dois
No dia 29, logo de manhã, chegou o velho barcos em acção de seguir, quando uma nova
Moangana com o promettido barco. difficuldade veio retardar a viagem.
Veio renovar os seus protestos de amizade, Os remadores declararam que não embarca-
1 22 A V O L T A DO MUNDO

vam, em quanto eu não depozesse nas sepultu- muleques do rei que me trouxeram a Itufa, mas
ras das mulheres dos antigos chefes da Itufa, começavam já com pedidos e exigencias.
alguns massos de missanga branca. Não encontrei caça no matto, mas tendo che-
Sem ser cumprido esse preceito, affirmavam gado alguns bandos de patos a uma lagôa pró-
elles estarmos sujeitos a innumeros perigos du- xima, fui ao barco buscar a espigarda de caça
rante a viagem; porque as almas das mulheres miúda, de que só tinha 25 cartuxos, e consegui
dos chefes, desassocegadas e irritadas, nos per- matar 17 patos, de 6 tiros.
seguiriam sem tréguas. E u , que não tinha mis- 0 ponto onde eu estava, era o extremo sul
sanga, nem branca nem preta, chamei o chefe e da grande planície do Lui. As duas nervuras de
mostrei-lhe a absoluta impossibilidade de soce- montanhas, que no parallelo 15 estão distancia-
gar as almas das fidalgas da Itufa. Elle a muito das de 30 milhas, convergem alli, só parando
custo pôde resolver as tripulações a seguir, mas para dar um leito de dois kilometros ao Zam-
foi só no primeiro de o u t u b r o que largamos beze. A planície monótona e nua succede o paiz
dalli. accidentado e coberto de luxuosa vegetação. Ás
O meu novo barco era uma piroga, cavada margens de areia branca e íinissima, uma areia
em um comprido tronco de Mucusse, e media que, comprimida sob os passos do homem, solta
io metros de longo por 44 centímetros de bocca, < vagidos como os de uma criança, produzindo
e 40 centimetros de pontal. uma impressão inexplicável, porque, estando
As duas arvores empregadas no alto Zam- muito secca, imita um fraco grito humano. A
beze para a fabricação das almadias, são o Cu- essas margens de areia tão extraordinarias, suc-
chibi e o M ucussi, enormes leguminosas das flo- cede, em transição rapida, o terreno vulcânico;
restas, da região das cataractas. A madeira d'es- e são blocos de basalto que marginam o rio.
tas arvoras gigantes, è de extrema dureza, e de Foi com o maior sentimento de prazer que
maior densidade do que a agua. os meus olhos se fixaram sobre esses penedos de-
A minha piroga era tripulada por quatro ho- negridos, vomitados em ondas de fogo nas epo-
mens, um à prôa e tres á ré. chas primitivas do mundo. Desde o Bihé, que
Eu ia sentado na frente, a um terço do com- não via uma pedra, e com satisfação olhava para
primento do barco, sobre a minha mala pequena, aquellas que via alli.
que continha os meus trabalhos. O duplicado Quando o meu cozinheiro Camutombo tra-
do meu diário, observações iniciaes, etc., le- tava de accender fogo para cozinhar os patos, o
vava eu amarrados ao corpo com uma cinta de lume communicou-se á herva alta e secca que
lã. As minhas armas iam ao meu lado, e as pel- cobria o solo, e logo, assoprado por um vento
les do meu leito completavam a carga. forte, voou por sobre a terra em ondas de cha-
Na outra canôa, Verissimo, Camutombo e mas.
Pépéca, as malas da roupa e instrumentos, e a O atear do incêndio foi tão rápido, que por
caça que ia matando. Os remadores remam sem- um momento estivemos envolvidos n'elle, tendo
pre de pé, para equilibrarem as canoas, que se de nos precipitar nas canoas para lhe escapar.
voltariam sem isso. O remar em taes barcos é No dia immediato parti, sempre a S. S. E . , e
verdadeiro exercicio acrobatico. depois de quatro horas de navegação, começei a
Uma piroga do alto Zambeze é como um pa- encontrar grandes filões basalticos, atravessando
tim gigantesco, em que o remador tem de fazer o rio no sentido E. O. Alguns vem tanto á flòr
todos os prodígios de equilibrio do patinador d'agua, que tornam difficil a navegação, e ainda
sobre o gelo, para sustentar a posição estável. que a corrente é inapreciável, foi preciso dimi-
Foi em taes condições que eu, no dia 1 de ou- nuir a velocidade dos barcos para evitar cho-
tubro, deixei a Itula, e me aventurei sobre o rio ques perigosos, n aquelles paredões naturaes.
gigante, cujas ondas levantadas por um forte 0 rio começa, na região basaltica, a ser po-
vendaval de leste, ameaçavam a cada momento ! voado de ilhas cobertas de vegetação pomposa.
submergir as estreitas almadias. Pela tarde, avistamos um bando de ongiris (S/re-
Depois de quatro horas de viagem, parei na psiceros kndu) que pastavam na margem direita.
margem esquerda, em uma pequena enseada, Desembarquei um pouco a montante, e con-
onde a gente que vinha por terra tinha dado segui matar um dos soberbos antílopes.
ponto de reunião aos barqueiros. As minhas no- Mandei seguir o barco, e eu caminhei por
vas tripulações eram mais comedidas do que os terra por espaço de uma hora.
A V O L T A DO MUNDO 123

Levantei bandos de francolins, codornizes e antes se mostrava a cabeça da soberba fera. Car-
pintadas (Ü^Cumida meleagris), que nunca tantos reguei novamente o cano vasio, e com dois tiros
vi em Africa. A terrível mosca zê-zè também é promptos, dei volta ao massiço. Para o lado do
abundantíssima alli; incommodou-me muito na Norte seguiam as pégadas de um leão, mas de
floresta com as suas picadas dolorosas, mas inof- um só. O outro estava ainda alli. Aventurei-me
fensivas para o h o m e m ; e tantas havia e tanto no cerrado de arbustos, e entre um tufo d'her-
me perseguiram, que até depois de estar no vas vi o corpo inerte do rei das florestas africa-
barco ainda por muito tempo estive coberto nas. A bala express esmigalhando-lhe o craneo,
d'ellas. cortara-lhe de golpe a vida. Chamei gente, e
Fui acampar n u m a ilha muito extensa, de n um momento a pelle e garras foram-lhe arran-
um aspecto hndissimo, depois de seis horas úteis cadas.
de navegação a rumo de S. S. E. Na massa encephalica foi encontrada a bala
O Veríssimo estava completamente restabe- que produziu a morte
lecido, mas eu era devorado por uma febre lenta Ao largar a margem, principiamos a sentir,
e contínua, que me minava a existencia. mal distincto, um ruido longiquo, semelhante
No dia 3 de outubro segui viagem, sempre ao do mar revolto quebrando nas rochas das
por entre ilhas formosíssimas, cobertas de ve- praias. Devia ser uma cataracta, e essa ideia,
getação luxuriante. Navegavamos havia duas ho- que logo me occorreu, foi confirmada pelos re-
ras quando vimos dois leões que na margem madores. Pouco depois os filões basalticos mul-
direita bebiam agua do rio. Apesar de eu ter tiplicavam-se, formando paredões naturaes, sem-
estabelecido como regra não me entremetter pre no sentido E. O.; mas, ao contrario do que
com feras, sem a isso ser forçado, e apesar tinha acontecido até alli, o rio já levava uma
ainda do valor que então tinham para mim os corrente rapida que tornava perigosíssimo o na-
cartuxos, os instinctos do caçador venceram a vegar. Um bando de Malancas que vimos na mar-
razão, e mandei abicar a canòa á margem, di- gem direita, obrigou-me de novo a parar, e con-
reita aos bichos. • seguindo eu matar uma, proseguindo na viagem
Os leões, percebendo-nos, deixaram o rio e depois de nova interrupção de uma hora.
foram postar-se ém u m a eminencía a duzentos Pela tarde, fomos acampar junto das aldeias
metros. Saltei em terra e caminhei para elles. da Sioma, estabelecendo o meu campo sob uma
Deixaram-me approximar a uns cem metros, gigante Figueira-Sycomoro, perto do rio.
e depois pozeram-se lentamente a caminho para A viagem d'esse dia foi de cinco horas e meia,
montante do rio, parando de novo depois de ' sempre a rumo S. S. E.
curto espaço. D'essavez acerquei-me a cincoenta N'essa noite o meu somno foi acalentado pelo
metros, mas elles caminharam de novo e em- ruido da cataracta de Gonha, que a jusante dos
brenharam-se em um pequeno massiço de ar- rápidos da Situmba, interrompe a navegação do
bustos. E r a m dois leões machos de grandeza Zambeze.
desigual,- tendo-.um quasi o dobro da corpulên- No dia 4, logo de manhã, depois de ter co-
cia do outro. mido um prato enorme de ginguba, presente do
Cheguei junto do matagal, e perscrutando a chefe das povoações, tomei um guia e dirigi-me
brenha, vi a cabeça de um dos magestosos ani- para as cataractas. O braço de Liambai cuja
maes, por entre os arbustos, a vinte metros de margem esquerda eu descia, correndo a princi-
mim. Preparei a carabina, e ao apontar, senti pio a S. E . , vai vergando para O., até que chega
um tremor convulso percorrendo todos os mem- a correr perfeitamente E. O . ; e n'essa posição
bros. Lembrei-me de q u e estava fraco e debili- recebe dois outros braços do rio, que formam
tado pela febre, e receei que o pulso tremesse très ilhas cobertas de vegetação esplendida. No
ao dar ao gatilho. Tive uma sensação singular sitio onde o rio começa a curvar para O . , ha um
que até então não havia experimentado, e que desnivelamento de très metros em 120, formando
provavelmente era a do susto. P o r um esforço os rápidos da Situmba.
de vontade o tremor parou, a carabina tomou
firme a direcção que eu lentamente lhe dava, e
1
como ao atirar a um alvo, quasi fui surprehen- Esta bala e algumas garras da enorme fera, foram of-
dido pelo meu proprio tiro. Passou rapida a nu- ferecidas a Sua Magestade El-Rei, o Senhor D. Luiz 1.
vem de fumo, e nada vi no sitio onde segundos iContinua.)
as n o v i d a d e s de n e w - y o r k e o n i a g a r a no i n v e r n o
P O iî

M. E D U A R D O DE L A V E L E Y
(Continuarão da folha 1» — 3.° anno)

linhas h a c o n s t r u í d a s n a c i d a d e : u m a A i n d a aqui f o r a m necessarias condições to-

T
VRI:S

na m a r g e m do l l u d s o n : o u t r a ao c e n t r o p o g r a p h i c a s especiaes p a r a t o r n a r exequível o
da p e n í n s u l a na s e p t i m a a v e n i d a : a ter- p r o b l e m a d e lançar u m a p o n t e sobre u m braço
ceira junto do rio d ' E s t é , na terceira ave- de m a r de novecentos m e t r o s de l a r g u r a , per-
nida. As d u a s ulti- m i t t i n d o q u e por
mas entroncam em debaixo p a s s e m os
C a s t e M j a r d e n . na navios de m a i o r lo-
e x t r e m i d a d e da ci- tação. A p e n í n s u l a
d a d e . Q u a n d o co- de .Alanhattan cm
meçou a exploraçàt> q u e esta edificada
dos c a m i n h o s de X e w - Y o r k tem a
f e r r o aereos, o pu- fôrma d u m dorso.
blico t i n h a receio A p a r t i r d'aresta
de viajar n u m a via central o t e r r e n o
de a p p a r e n c i a tão desce s u a v e m e n t e
frágil e p e r i g o s a ; até ao m a r e Broo-
hoje ja n i n g u é m he- klyn está t a m b é m
sita em s u b i r as es- edificada no decli-
cadas q u e dão ac- v e d u m a collina
cesso a estações m a r g i n a l ao rio
collocadas a q u a t r o d ' E s t e . E s t a dispo-
m e t r o s acima do so- sição especial faz
lo. ! )esastre a l g u m c o m q u e se possa
veio ainda abalar a c h e g a r ao nivel do
confiança d o s pas- p o n t o mais elevado
sageiros e . t a c t o sem r a m p a s m u i t o
ainda mais singu- longas e excessiva-
lar. até á m i n h a es- m e n t e violentas.
t a d a em New-Y ork Tornava-se indis-
ainda não se d e r a pensável estabele-
desgraça a l g u m a cer c o m m u n i c a ç õ e s
nos vehiculos ordi- fáceis com Broo-
nários que tivesse klin que actual-
p o r causa o c o m - m e n t e conta trezen-
boio q u e por cima tos mil h a b i t a n t e s
d'elles corre. e q u e na realidade
Se os c a m i n h o s é um b a i r r o de
de f e r r o aerios são Xew-York. Muitas
u m a prova do es- das pessoas que
pirito e m p r e h e n d e - t é e m escriptorios
d o r d o povo a m e r i - em X e w - Y o r k ha-
cano. a p o n t e pên- bitam B r o o k l v n .
sil q u e deve ligar PASSAGEM PR0Y1S0RIA NA PONTE BROOKLYN. - D e s e n h o d e Taylor, segundo u m a photographia E n t r e a s d u a s ci-
X e w - Y o r k , a cida- d a d e s ha tão g r a n -
de m ã e , a B r o o k l y n , sua filha mais velha, quasi d e m o v i m e n t o que existem sessenta companhias
sua i r m ã , m o s t r o u - n o s até o n d e p ô d e c h e g a r a de v a p o r e s u n i c a m e n t e d e s t i n a d o s a esta viação
sua t e m e r i d a d e . e q u e a i n d a assim não são de mais.
1 130 A V O L T A DO MUNDO

Estes ferry-boats estão em constante movi- artistas, permitte que se passe d u m lado para o
mento. Chegados a uma margem partem pas- outro do rio. Andaimes leves moveis estão sus-
sados cinco minutos para a outra. Um dia de pensos dos quatro grossos cabos que os artistas
nevoeiro, u m a tempestade ou congelação das estão pintando com a substancia impermeável
aguas interrompe todo este movimento, torna as destinada a preserval-o da oxidação.
communicações difficeis e algumas vezes impos- Muitas cordas verticaes que devem sustentar
síveis. Imaginem todas as pontes do Sena re- o taboleiro cahem já dos cabos e entrecruzam-se
pentinamente obstruidas e P a r i s da margem es- no espaço com os fios sustentadores do tabolei-
querda separada da Bolsa e dos boulevards e ro provisorio e obstam a que este, impellido pelo
isto em condições que os costumes americanos vento, soffra violentas oscillações. Parece vêr-se
tornam duplamente insupportaveis. uma teia de gigante aranha, cujos fios mais af-
A ponta pênsil de Brooklin ainda não estava fastados se perdem no infinito.
concluída quando estive em New-York e só o es- 0 ponto de vista do alto das torres é esplen-
tará nos fins de 1882, se os cálculos dos enge- dido. D u m lado estende-se New-York com o seu
nheiros forem exactos. A ponte será de dois ta- oceano de telhados d'onde, aqui e alli, surgem,
boleiros. No segundo haverá duas vias para ca- como recifes, monumentos mais elevados do
minhos de ferro; por baixo circularão os tram- que os demais. Aqui o palacio do jornal New-
viays e as carruagens, tendo ao lado um espaço York Tribune com os seus sete andares, com o seu
reservado para piões. O primeiro taboleiro será torreão ponteagudo; mais longe a massa impo-
collocado a vinte e cinco metros acima das aguas nente do ^Post-Office e os seus dois zimborios,
mais vivas. onde fluctuam as bandeiras da Union; adeante
P a r a sustentar este enorme peso estabelece- o palacio do New-York Herald; acolá a torre
ram quatro cabos de fio d'aço, cada um quasi vermelha da egreja da Trindade ; mais longe
tão grosso como o tronco d um homem. ainda o palacio da Western union Telegraph Com-
Alguns algarismos são necessários para dar pany bem em evidencia com o seu zimborio ter-
uma ideia do poder de resistencia d'estes sus- minado por aguda flecha. O Mudson aperta a
tentáculos gigantes ; cada cabo é formado por de- cidade com um cinto resplandecente ao sol,
zanove fios não torcidos como os das cordas or- adeante avista-se a mastreação dos navios fun-
dinárias, mas unicamente juxtapostos a fim de deados em Jersey-City e a propria Jersey-City
diminuir as probabilidades de rotura e compon- com o seu amphitheatro de collinas escondidas
do-se de cinco mil e duzentos e noventa e seis pela névoa. P o r debaixo estendem-se os caes de
fios d'aço d alguns millimetros d'espessura. P a r a New-York no rio Este, onde os mastros dos na-
proteger o metal contra a humidade enrola-se vios se nos afiguram espigas de uma ceara de
em volta do cabo um outro fio d'aço e cobre-se trigo.
com uma camada de tinta impermeável. Duas A agua scintilla a cem metros por baixo da
torres de pedra de cem metros d altura dividem T o r r e ; do outro lado do braço de mar a torre,
a ponte em tres partes. O vão central tem um irmã d'aquella em que estou, e os quatro cabos
comprimento de quatrocentos e noventa e nove negros, grossos como troncos d'arvore, parecem
metros, os dois outros cento e vinte um metro á vista, na outra extremidade, da grossura de
cada u m . Assim é a ponte mais gigantesca e ar- fios apenas bastante resistentes para segurar um
rojada que os proprios americanos ousaram em- papagaio.
prehender. Os artistas que trabalham nos andaimes pa-
De cada lado do rio Este erguem-se os dois recem moscas em equilibrio sobre fios de teias
enormes pilares destinados a supportar todo o d'aranha. Na margem Brooklyn com as casas
pezo da ponte ; são construídos de enormes mas- vermelhas de persianas verdes perde-se por en-
sas de granito e com dois arcos em ogiva seme- tre a verdura dos parques e do cemiterio Green-
lhantes aos das cathedraes gothicas. Dos lados W o o d . 0 taboleiro provisorio é formado de pe-
estão escadas em espiral dando accesso á parte quenas taboas com a largura d'alguns centime-
mais elevada do ediíicio. Os quatro cabos des- tros, deixando entre si um espaço approximada-
tinados a suspender o taboleiro estão já colloca. mente de dois dedos, presas em duas cordas de
dos e a sua curva graciosa traçada a preto no fio d'aço da grossura do punho d u m a creança.
azul celeste destaca-se por sobre o abysmo. Um E necessário estar muito habituado para reagir
taboleiro provisorio, construído para serviço dos contra a sensação de vertigem de que se é assai-
'75
Á V O L T A DO .MUNDO

tado no meio da ponte, quando nos vemos ro- porteis dos jornaes americanos de quem conhe-
deados e attrahidos pelo vácuo. cia as insistências, mas também para não ser
Vi trabalhadores habituados por uma longa cúmplice, mesmo involuntário, das especulações
pratica passear perfeitamente sobre o cabo em na bolsa, pois que a palavra sahida da sua bocca,
que trabalhavam e para evitar uma demora de «inventei» bastaria para reduzir a zero o valor
dois minutos, ou talvez também pro bravata, da- das acções das companhias do gaz de todo o
rem enormes saltos d um ponto para outro, q u e r mundo. Eelizmente eu fòra recebido o mais ami-
fossem buscar um instrumento da sua ferra- gavelmente possível por M. Jorge W a l k e r , eco-
menta ou beber um trago de whisky com algum nomista financeiro hoje muito conhecido, côn-
dos companheiros. E n t r e nós é provável que sul geral dos Estados-Unidos em Paris. Como
um regulamento pozesse cobro a estas loucuras, administrador d uma companhia de telephones
mas nos Estados-Unidos a divisa é: «Cada um explorando a patente d invenção d Edison tinha
por si e Deus por todos» e a palavra da o r d e m : precisamente n'essa occasião uma carta a diri-
«liberdade». Não é Blondin quem quer e eu, gir-lhe, e offereceu-me o ser eu d elia o porta-
devo confessai-o, agarrava-me convulsivamente dor. N essa occasião vi pela primeira vez a appli-
ao corrimão quasi invisivel, que me separava do cação pratica dó telephone. M. W a l k e r commu-
abysmo, quando a brisa imprimia aos cabos os- nicou a sua esposa que iríamos jantar á noite.
cillações um pouco maiores. P a r t i immediatamente para Menlo-Park, perto
O montanhez mais habituado ás ascenções cie Jersey-City, onde Edison vivia.
vertiginosas dos Alpes experimentaria também Esta viagem de tres horas por um frio de
provavelmente uma sensação pouco agradavel quinze graus entre nós teria sido pouco agrada-
ao sentir-se baloiçado a sessenta metros d'al- vel; mas para mim foi uma nova occasião de
tura por cima d um abysmo em que as aguas ar- apreciar o conforto das carruagens americanas.
rastadas pela maré ainda tornam mais terrível O grande calonfero collocado em cada extremi-
o sentimento d instabilidade e da falta de ponto dade dos compartimentos, as duplas portas e du-
d appoio produzido pelas oscillações. E quasi o plas janellas, emfim o tubo d'agua quente circu-
vácuo absoluto. P o r baixo de si, vèem-se, a uma lando por baixo dos assentos conserva, embora
grande profundidade, passar as ondas scintillan- haja o mais forte frio, uma temperatura sempre
tes e moveis do rio e, sem a acção directa da egual e agradavel e d este modo um trajecto
vontade, a mão crispa-se com convulsões febris mesmo longo, em vez de ser um supplicio, como
e os pés procuram incrustrar-se nas taboas atra- entre nós, consente-nos uma leitura interessante,
vez das quaes se avista o medonho abysmo. Só vendo ao mesmo tempo passar deante dos nossos
depois de estarmos em terra firme é que apre- olhos os aspectos severos das paysagens d inver-
ciamos a grandeza de tão notável obra, o arrojo no. Em Jersey-City como na maior parte das ci-
temerário de quem ousou delineal-a e o poder dades dos Estados-Unidos a via-ferrea passa pe-
da:"vontade e do talento de quem a levar a fim. las ruas da cidade. Assim succede não só nas
Uma outra novidade de New-York no mo- pequenas localidades, mas mesmo nas cidades
mento da minha chegada era o telephone. Inú- as mais povoadas e activas, como Chicago, S.
meras sociedades se formavam para tirar parti- Luiz, Philadelphia, Nova Orleans. Isto é ainda
do d'essa maravilhosa invenção. Já grande quan- um contraste frisante entre a civilisação europèa
tidade de fios se cruazvam por cima dos te- e os costumes americanos. E n t r e nós o perigo é
lhados e se reuniam em enorme feixe nas cir- talvez menor, mas íica-se preso desde que se com-
cumvisinhanças das estações. O leão da occasião pra um bilhete n uma estação até á hora da par-
ou, para empregar a metaphora americana que tida d um comboio, tendo-nos feito esperar mui-
melhor empregada não podia ser, a estrella, de tas vezes mais de meia hora antes que se possa
quem toda a cidade de New-York n este mo- entrar para um vagão. Na America é exactamente
mento se occupava, era Edison. Acabava, di- j o contrario, liberdade completa, absoluta, mas
ziam, de resolver o problema ha tanto tempo e também extraordinaria facilidade em ser-se esma-
tão ardentemente estudado da luz electrica ap- gado. Um aviso collocado em todas as carrua-
plicada á illuminação das ruas. Naturalmente gens de Iramzvays em New-York previne os pas-
tive o desejo de conhecer Edison, mas como sageiros que é perigoso saltar d u m a carruagem
chegar até elle ? Edison não recebia n i n g u é m ; indo esta em movimento: lè-se — «as pessoas que
não só para se livrar dos interviewers e dos re- desejem muito arriscar a sua vida (who mish very
Á V O L T A DO .MUNDO '75

much to ris/c thcir li/e) farão melhor se saltarem mais acima. Nada mais simples, de menos im-
cia carruagem d este ou d aquelle modo.» E este ponente que o laboratorio d Edison, d'onde tan-
um exemplo irisante do modo como a auctorida- tas maravilhosas descobertas já téem sahido. E
de n este paiz intervem nos negocios particula- um edifício de forma rectangular com um único
res. Menlo-Park é uma pequena aldeia sem im- pavimento construído de madeira, como geral-
portância, onde Edison se refugiou para se li- mente são as casas de campo aqui : o ediíicio
vrar dos curiosos. Os capitalistas que o susten- tem uma serie d aberturas regularmente espa-
tam concorreram também para a construcção çadas, mas sem ornato d especie alguma. Toda
d um laboratorio modelo, onde se encontram to- a ideia de luxo foi evidentemente sacrificada á
dos os instrumentos necessários ás experiencias utilidade pratica, pois necessário era que a luz
do inventor. O cdilicio está isolado no campo,- penetrasse por toda a parte sem encontrar obs-
junto cl uma encosta contornada por uma es- táculos. Deante da casa um pequeno jardim e
trada que leva as habitações edificadas um pouco pelo lado de traz um pateo, onde sob um alpcn-

0 NUOAUA NO TEMPO DOS GELOS Queda d a g u a a m e r i c a n a - Desenho de Th. W e b e r , segundo uma photographia

dre se vêem as caldeiras a vapor necessarias á lados do pateo d entrada conduz directamente
producção da força. A casa onde o inventor ha- á sala d experiencia que occupa todo o andar
bita com sua mulher e com seus filhos está a superior. Entre as janellas estão grandes arma-
alguns minutos do laboratorio e é também uma rios onde se vêem expostos todos os instrumentos
construcção de madeira d uma grande singe- que téem servido a Edison para as suas inven-
leza. ções. bicarão celebres como o ficaram as pri-
Edison trabalha no seu laboratorio com dois meiras tentativas de Volta, de Galvani ou d Am
ou tres ajudantes que compartilham de toda père emquanto no m u n d o houver culto pelas
a sua gloria e são os seus discípulos mais tra- sciencias. P u d e ver o primeiro phonographo,
balhadores. boi por um d elles que eu fui re- construído todo elle por Edison, instrumento
cebido n uma casa mobilada á americana, con- incompleto, quasi grosseiro e que não logrou
fortavelmente, mas sem luxo. Entreguei-lhe a até hoje chegar a uma completa perfeição, mais
carta de que era portador e esperei a resposta. longe estava uma série de pennas electricas,
Voltou immediatamente a dizer-me que Edison desde os primeiros esboços da invenção até á
estava n a q u e l l a occasião occupado, mas que elle sua ultima f ô r m a : em seguida estavam os instru-
estava á minha disposição para me mostrar o la- mentos pelos quaes Edison conseguiu passar si-
ti iratorio até que o mestre chegasse. multaneamente quatro despachos telegraphicos
I ma escada de madeira construída a um cios pelo mesmo lio: emfim a sua ultima obra. o te-
\ V< )I.'i A Ii( I .M! X! >< 1

lepii me Hdi — >:"!. b a l e a d o n um p n n a p i ; c o m p l e -


t a m j a t e dl .leren te d . de M o l l . Xa . l a l l , d - m a -
çai i a - elec t r i c a s de t o i . - o- irener -. cia.- p d h a -
d > - - e m i n a d a s p ir a q u i e a li. ei c u h n •>. - e o
ala n b i q u e s m d c - í p e n - . f eis t l 'd . o la -> rat un -
I il • se r e s p e i t a .
I » m e u irai t ie/-m.e a hi-t .ria de t « ! t- ;t-
c! e-e. i ' m r t a - cl« » s e u m e - t r e . ma,- r o P i o u a mm
(L'-_aapeao a r e - p e i t • cia lu e l e c t r i c a , cm rc-

e as p r o b a b i l i d a d e s cl ê x i t o n ã o p u d e o b t e r m d i - são cie e x t r a - u ' d m a . a > t a l e n t o , e x c e p t u a n d o tal-


eaeão a l g u m a e e claro q u e não insisti. vez m r . i i l a d s t inc. m a - este n um c e n e r > c- m-
l ' o u è o d e p o i s vi c h e g a r l'.clison c o m o seu p l e t a m e n t e d i f f é r e n t e . Mcli-on t e m um ar cie
pas—« g v m n a s t i c o e l i g e i r o . X e s t e s ultini"> tem- m u i t a m o c i d a d e , a ,-ua Ir mte nã« - t e m u m a ura-
p o- r e t r a t o - cl e s t e h o m e m n o t á v e l t e e m sido cil rui-'a. ve.-tigio a l g u m cl > t r a b a l h > a b s . - n e : V
e.-palhaclos p o r t o d a a p a r t e e P o l o - c o n h e c e m a q u e ha a n n u s -e e n l r e e a i . I e m t r i n t a e c o o
mel h >r. ou p e i o r . o seu r o s t o i m b e r b e , a ,-ua I u—a aniiii- e a p e n a - p a . r e c e ter v i n t e cc;nc<>. \ , . t e m
í p m t c a r q u e a d a e o s , - c u - cabell-.s c o r t a d o - i q u e Cori v e n e n n a i n i e i i t e se c a a m a u n ir e -to

e - r o v i n h a : m a - , c i e q u e s e nã . p . . . . e i a / c r u l c i a et o ! l e m b r a r u ri p eco i . o P m P. P . . i m -
s e m e| L I e - e t e n h a \ i - P . e . . q u e d a t o d a a . . r i - pe r c c ' o c - — i m m e e I '.c q e e-t o cl : rte i
1
_ana I i d a d e a sU 1 ; ' o -i ... e :. . e • -r ir . e p d.er le - u m a rca i t c !. c e 11 :. i ! , . . j ' 'a > o

' P e l I c e tuai que elia revela, b i ur.ic • Il ereem.

q u e a p ;r m e ; ra \ ; - i i me c.... - . ; e - - a r a n r e - - men" ' -c.i c


MEMORIAS DO ULTRAMAR
VIAGENS, E X P L O R A Ç O E S E CONQUISTAS DOS P O R T U G U E Z E S
COLLECÇÃO DE DOCUMENTOS
POR

LUCIANO CORDEIRO
1593-1631
TERRAS E MINAS AFRICANAS
SEGUNDO

BALTHAZAR REBELLO DE ARAGÃO


(Continuação da folha 14 — 3.° anno)

II de femeas e os dois de machos, e se poder ser


que sejam de S. Thomé, serão melhores p o r q u e
IÓ2I estes escravos hão de ser seguros e que saibam
jMinas de Benguella—Sua exploração trabalhar, e não boçaes, que esses fogem e mor-
rem. Custarão estes cem escravos* em Angola
*IRVARA S E p o d e r e m lavrar as minas d e Ben- ou S. T h o m é , 5:000 cruzados, emprego d este
"1 guella é necessário estar a terra segura do reino,
JJ gentio que hoje vive n'ella, para o que se Ilão-se mister mais dez carros com seus bois.
haverá mister cento e cincoenta soldados Custarão 500 cruzados, de emprego para ferra-
de pé e seis de cavallo que assistam em dois ou mentas, folles e machados outros 500, e são 1:000
tres presídios circumvízinhos ás ditas minas, os cruzados
quaes sem S u a Magestade fazer de novo gasto Farão de gasto estes escravos, o primeiro
a l g u m os pôde ter e sustentar sobre as ditas anno, em vestir e comer, 2:000 cruzados de em-
minas. prego d'este reino, porque ao segundo anno já
Assim S u a Magestade sustenta hoje cento e terão feito sementeiras e será o gasto pouco ou
vinte soldados na bahia das Vaccas com Ma- n e n h u m : de maneira que com 8:000 cruzados
nuel da Silveira, e sustenta em Angola, alem empregados n'este reino se podem beneficiar es-
dos soldados obrigados aos presídios, duas com- tas minas, ou com 16 em Angola, fóra o paga-
panhias de sessenta soldados cada u m a , e dez mento dos soldados, que esse quer S u a Mages-
h o m e n s de cavallo, e pois S u a Magestade ha tade os m a n d e assistir n'estas minas, quer não,
por bem se não prosiga a dita conquista, pôde faz o mesmo gasto com elles sem proveito ne-
m a n d a r ao governador de Angola que do sobejo n h u m , o que será ao contrario se S u a Mages-
d esta gente sustente estes presidios e assim sem tade os occupai' na segurança d estas minas, que
S u a Magestade metter de novo gente nem fazer começando-se a lavrar serão de tanto r e n d i m e n t o
novo gasto, assegura Sua Magestade e povòa es- e proveito que haja muita ganancia.
tas m i n a s ; farão de gasto estes cento e cincoenta E assim o gasto d'estas minas, como o dos
soldados a rasão de 1:600 cada mez 7:500 cru- soldados se pôde fazer pelo tempo em diante,
zados, que esses gasta Sua Magestade hoje com dos r e n d i m e n t o s dos sovas de Angola, tomban-
esta gente, quer haja minas quer não, sem serem do-os e pondo-lhes um tributo m o d e r a d o em
de n e n h u m proveito. fructos da terra, como pagavam a El-Rei de An-
E como os soldados somente são para guarda gola, q u e elles pagarão facilmente por não pa-
e segurança da t e r r a ha-se mister ter escravos g a r e m escravos nem serem molestados pelos go-
para trabalhar nas minas, cortar madeiras, m o e r vernadores e capitães dos presidios, como hoje
os metaes e fazer carvão, e outros serviços ne- são, e com o que r e n d e r e m , que passará de
cessários á dita fabrica, de que será um terço 30:000 cruzados, se poderá fazer o dito gasto.
T a m b é m pôde Sua Magestade m a n d a r que
1
A bahia das Vaccas, é a que depois foi chamada de os navios que forem ao reino de Angola, da co-
Santo Antonio e se chama hoje de Benguella. roa de Castella, paguem direitos da entrada das
Á V O L T A DO .MUNDO '75

fazendas que levarem, que renderá cada anno III


este direito 6:000 ou 7:000 cruzados, como pa-
gam os navios em Lisboa que vão para Angola. 1623

P ô d e m a n d a r pôr nos vinhos que entram no Minas de Pemba (Congo) — Sua exploração
dito reino outra imposição, como se paga no
Brazil, para fortificar a terra, que renderá outro Balthazar Rebello de Aragão, capitão mór
tanto, e com estas rendas e o que o sertão ren- que fui na conquista de Angola:
der, não somente sobra para o gasto das minas Digo que em a cidade de Lisboa se me man-
e dos soldados, mas haverá para gasto da con- dou pedir informação do cobre que ha no reino
quista de Angola, de maneira que se fique for- de Congo, e juntamente se me tratou se queria
rando todo o rendimento do contrato. ir lavrar as ditas minas que me faria Sua Ma-
E povoando-se estas minas não ha para que gestade muitas honras e mercês.
sustentar a bahia das Vaccas, e parecendo bem E dando eu, como experimentado, rasão d e l -
se poderá largar, e povoaras ditas minas, e para ias e dos inconvenientes que ha para se pode-
que não falte gente, pôde Sua Magestade man- rem lavrar, que o maior é a despeza e cabedal
dar prover com desterrados, cada anno de que que para isso se ha mister, se me respondeu
a terra se povoe. que Sua Magestade não estava em tempo de
Ha-se mister uma barca e um bergantim para gastar dinheiro, que se eu quizesse fazer á mi-
provimento d'esta gente e fabrica, que lá se com- nha custa, a dita fabrica e gasto, Sua Mages-
prará ou fretará. tade me faria as mercês e honras sobreditas e
Ha-se mister dois mineiros e dois fundidores pagaria o cobre que lhe desse, posto em a ci-
que Sua .Magestade mandará d este reino e em dade de Loanda, por um certo preço, e assim
resolução o principal é cento e cincoenta solda- não tratei mais d este negocio, porque eu pre-
dos vivos que se morrerem alguns mettam logo tendo servir a Sua Magestade e não enganal-o,
outros em seu logar, os quaes, sem fazerem novo pelo que direi n este apontamento o que sei e
gasto, nem serem necessários ir d'este reino, me parece das ditas minas.
pois estão já lá vivos e pagos, mandar Sua Ma- El-rei de Congo, em cujas terras estão estas
gestade que assim como assistem em a bahia das minas, que chamam de P e m b a , as mandou offe-
Vaccas e nos presídios de Angola, vão assistir recer a Sua .Magestade por serem mui boas, de
sobre as minas, que estando a terra quieta fa- muito e fino cobre e de muito rendimento, pela
cilmente se poderão lavrar as ditas minas. experiencia que eu d'ellas vi fazer, pelo que não
O mais gasto não é de muita consideração, ha que duvidar que serão de muita importancia
porque tirado o primeiro anno, que, como po- mandando-as Sua Magestade lavrar.
voação nova, é forçado que Sua Magestade faça Chamam-se vulgarmente de P e m b a pelas
algum gasto, e ao segundo anno ja não haverá serras em que estão, e por outro nome de
tanto gasto, e quando haja se fará do rendimento Oombo por passar perto d e l i a s o rio Embrize,
de Angola, como se tem apontado, e os escra- 5 léguas distante, pouco mais ou menos, por
vos terão feito suas sementeiras de que se sus- onde pôde vir o cobre que n'ellas se lavrar até
tentem, e sobretudo permittirá Deus que se tire o porto de Loanda, e d'ahi pôde vir por lastro
tanto cobre que se não sintam gastos nenhuns, dos navios que lá vão carregar de escravos, sem
antes sejam de muito rendimento á fazenda de nenhum gasto da fazenda de Sua Magestade, e
S u a Magestade alem do beneficio que se recebe pôde vir em tanta quantidade que se escuse
de haver o dito cobre em seus reinos. mandal-o trazer de outra parte
E todo o beneficio e administração d estas Toda a difficuldade que ha consiste em prin-
minas se pôde fazer melhor de Angola que de cipiar esta obra, porque ha mister cabedal, e
Benguella, assim por ser terra já feita como por
ficar tão perto d'ellas como da bahia das Vac-
cas, e como todas as cousas hão de ir de An- 1
Entende-se geralmente que esta Pemba é o Bembe de
gola, fica mais fácil á dita povoação o soccorro hoje, onde se fez o presidio d'este nome ou de D. Pedro v,
e provimento de Loanda que da bahia das Vac- e cujas minas em 185;, se bem nos lembramos, foram man-
dadas explorar.
cas, onde hoje está .Manuel da Sirveira. — Bal-
Oondo de Balthasar é o Oando das cartas e narrações
thazar '"Fiebello de clAragão. modernas, como o seu Embrizé é o nosso Ambriz. (Ambri-
che na língua da terra, diz Pimentel.)
132 Á V O L T A DO MUNDO

como no reino de Angola não ha homens tão de el-rei de Congo, ou guerras civis que no dito
ricos que o possam ter bastante, nem mercado- reino haja, se perca a fabrica e cabedal que eu
res que dêem dinheiro a responder, é forçado tenha mettido no tal reino, e não possa lavrar
que Sua Magestade entre com ajuda de seu as ditas minas, se perca por conta de Sua Ma-
braço, ajudando com fazenda a pessoa que Sua gestade, o que se me houver emprestado, e as-
Magestade quizer occupar. sim como eu perco o mais cabedal que houver
Pelo que, julgo por atrevido quem tomar mettido, visto não ser falta minha, pois não é
este negocio á sua conta sem ajuda de Sua Ma- justiça que meus filhos fiquem pobres por ir eu
gestade, e que não cumprirá com o que promet- servir a Sua Magestade.
ter, porque sendo eu dos mais ricos e experi- E para que eu possa com melhor commodo
mentados do dito reino me não atrevo, sabendo lavrar as ditas minas, me fará Sua Magestade
o grande gasto por ser a terra mui cara e esta- mercê de capitão de Congo, o qual cargo tinha
rem estas minas 50 léguas por ella a dentro. Antonio Gonçalves Pitta, com o mesmo orde-
A primeira cousa que é necessaria para be- nado que elle gosava, o qual quero se me não pa-
neficio d'ellas é a navegação do rio Embrize, o gue se eu não houver pago o que se me empres-
qual até agora não consentiu se navegasse El- tar, e tendo-o, se me pagará o que houver ven-
Rei do Congo, porque lhe atravessa todo o seu cido.
reino, pelo que é necessário pedir-lhe que, sup- As mercês que eu peço a Sua Magestade.
posto que dá as minas, dê a navegação para el- pelo ir servir com tanto risco da pessoa e fa-
las, o que fará facilmente. zenda, são as seguintes:
E porque os naturaes da terra não são para Que tanto que eu tiver entregue a seus offi-
trabalho nem ganham jornaes, é necessário met- ciaes no porto de Loanda 1:000 quintaes de co-
ter escravos nossos e mantimentos e muita fa- bre, me faça Sua Magestade mercê do fòro de
brica de ferramentas, carros e embarcações para fidalgo de sua casa e de uma commenda de réis
cujo principio serão necessários 30:000 cruzados, qoo^ooo, e de dois hábitos de Christo para ca-
pouco mais ou menos. samento de duas filhas legitimas que tenho.
E porque muita parte d e s t a s cousas tenho Item mais não pagar eu nem meus descen-
eu, como é escravos, carros e embarcações, como j dentes, quintos, nem direitos, de todo o cobre
e notorio, me parece poderei servir a Sua Ma- e outros metaes que nas ditas minas lavrarmos,
gestade com as condições seguintes, sem risco e Sua Magestade será obrigado a tomar-me todo
de sua real fazenda. o cobre que lhe der pelo preço que assentarmos,
A primeira é que Sua Magestade me man- e não o querendo Sua Magestade, o poderei eu
dará emprestar o primeiro anno 15:000 cruzados mandar por minha conta e risco aos reinos e se-
em Angola, sobre fianças e bens de raiz que nhorios de Portugal e Castella, sem impedimento
para isso lhe darei no dito reino, os quaes n'elle algum.
mesmo lhe pagarei em cobre, por preço de réis E como a terra em que estão estas minas é
12*000 o quintal, e sendo-me necessário mais despavoada, e para beneficio d'ellas é necessário
dinheiro se me dará até a quantia de 30:000 cru- que haja povoação de negros e alguns brancos e
zados, dando para tudo fianças, e assim me fica porque eu a tenho de fazer e povoar mettendo
Sua Magestade ajudando, sem damno de sua gente e gado, me ha Sua Magestade de fazer
fazenda e com esperança de muito proveito. mercê de juro e herdade, para mim e meus des-
Item me mandará dar Sua Magestade tres cendentes, do senhorio e jurisdicção da dita po-
fundidores que entendam d esta arte e algumas voação e rendimentos d'ella, posto que a dita
cousas necessarias que lá não ha, nem pôde ha- povoação seja em reino estranho, porque eu ha-
ver por dinheiro, como são ferramentas, folies e verei a mesma graça de el-rei de Congo, mas no
outras cousas necessarias, o que tudo pôde ir que tocar a Sua .Magestade de rendimento e ju-
de Lisboa com pouco custo, e com o favor di- risdicção me ha de lazer livre mercê porque é
vino, e a mais fabrica que eu lá metter, de justo alcançar este premio quem por povoar ar-
gente, carros e embarcações, terá bom fim. risca a vida e fazenda.
As condições em que acceitarei arriscar-me
n esta empreza, por ser a terra mui enferma e IContinua.)

a gente mui traidora, são. as seguintes:


A primeira, que sendo caso que por ordem
PARTIDA DA CARAVANA - D e s e n h o de V. P r a n i s h n i k o f f , s e g u n d o o t e x t o

C O M O EU ATRAVESSEI A AFRICA
DO ATLANTICO AO MAR INDICO—VIAGEM DE BENGUELLA Á CONTRA-COSTA—ATRAVÉS REGIÕES
DESCONHECIDAS — DETERMINAÇÕES GEOGRAPHICAS E E S T U D O S ETHNÓGRAPHICOS
POR

PRIMEIRA F-A-RTIE

A C A R A B I N A D'EL-REI
i C o n t i n u a r ã o da foRia 1 Ti — 3.° anno)

Epois da juncção dos tres braços do Zam- principal em cinco cascatas lindíssimas, a ultima
' beze. toma cllc uma largura de seiscentos das quaes Uca qnatrocentos metros a jusante da
Jj metros apenas, e logo alli deita um peque- g r a n d e queda. Ahi o rio encurva de novo a
no braço a S. O., pouco f u n d o e obs- a S. S. 1"., estreia a 4=; metros, e conserva uma
truído. O resto das aguas encontram um córte corrente de 150 metros por minuto.
transversal de basalto, com um desnivelamento Os diversos pontos de vista que se gosam
rápido de i 3 metros, e n elle se precipitam com da borda sobre todo o espaço das quedas são
fragor immenso. s u r p r e h e n d e n t e s . e nunca vi em paiz algum dos
O córte é X. X. O., e fôrma tres g r a n d e s que tenho visitado paisagem mais bella.
quedas, duas aos lados, e uma no meio. P o r en- Gonha não tem a imponência das grandes
tre as rochas que separam as tres g r a n d e s mas- cataractas. Alli a paisagem é suave, variada e
sas de agua, cahem um sem n u m e r o de cascatas attrahente. A mistura da floresta pomposa, com
de maravilhoso efleito. Ao Xorte, um terceiro a rocha e com a agua. estão harmonisadas como
braço do rio continua a correr no mesmo nivel por mão de artista hábil em tela primorosa.
superior da cataracta, e despenha-se no r a m o Mesmo o despenhar da agua no abysmo, não
VOL.DME III FOLHA 17
11 34 A V O L T A DO M U N D O

causa ruído pavoroso, e é de certo amortecido assemelha o do Douro no seu terço médio, com
pela vegetação enorme que a rodeia. a diflferença apenas de que n'aquelle o granito
Alli não se elevam vapores, que convertidos é substituído por basalto.
em chuva alaguem as visinhanças; alli o accesso Depois de ter navegado por espaço de hora
é livre a toda a parte, parecendo que a natureza e meia, encontrei a Foz do rio L u m b é , onde
se comprazeu a t o r n a r fácil a visita a sua bella parei. Este rio vem do N., e tem, proximo da
obra. Gonha é como a casquilha que se mostra, embocadura, 20 metros de largo por um e meio
que se deixa contemplar, para que a a d m i r e m . de fundo. Cem metros antes de entrar no Liam-
Depois de levantar a planta da grandiosa ca- bai, é-lhe superior de trinta metros, e por isso
taracta, demorei-me alli até á noute, não can- despenha-se em cascatas, que seriam talvez lin-
çando os olhos de vêr tão esplendido q u a d r o , díssimas se alli perto não ficasse Gonha.
em que a cada m o m e n t o descobria u m a nova Segui, depois de ter visitado a foz do L u m b é ,
belleza. mas n'esse dia apenas naveguei por mais duas
Voltei ao meu campo, saudoso pela lem- h o r a s ; porque, tendo visto uns ongris, acampei,
brança de que não veria mais em minha vida o e fui caçar. Consegui matar dois antilopes, que
espectáculo sublime que deixava para sempre. nos demoramos a preparar, decidindo não na-
No dia 5 fui ver o caminho por onde deve- vegar mais n'aquelle dia.
riam passar os barcos para jusante da cataracta, No dia 7 deixei o acampamento, e tendo na-
e era elle por floresta espessa, e não inferior em vegado uma hora, encontrei a cataracta Cale.
extensão a cinco kilometros, p o r q u e em toda Alli o rio corre a S. E . , e toma u m a largura
essa extensão o Zambeze, apertado em margens de novecentos metros. Très ilhas o dividem em
de rocha apenas distanciadas de 40 a 50 metros, quatro ramos. O segundo, de oeste, é o que
conserva uma velocidade de 150 metros por mi- contém maior volume d'aguas, mas é t a m b é m
nuto, e é tal o referver das aguas, que é impos- aquelle em que o desnivelamento é mais rápido.
sível navegar n'elle. Nos outros braços o desnivelamento, que é
Este espaço estreito a jusante da cataracta de très metros, produz-se em cem de extensão,
de Gonha, chama-se o Nanguari, e termina por e m q u a n t o n'este não se estende a mais de qua-
u m a p e q u e n a queda do mesmo nome. renta. Todos os canaes são obstruidos com ro-
O ponto onde recomeça a ser navegavel cha- chedos desencontrados, onde as aguas resaltam
ma-se o Mamungo. com fragor immenso.
A passagem dos barcos por terra foi feita Descarregamos os barcos, que foram arras-
por gente das povoações da Sioma, povoações tados por um canalete junto á margem direita,
de Calaças ou escravos, governados por um e logo a jusante da queda reembarcamos e se-
chefe Luina, mandados estabelecer alli pelo go- guimos viagem. Meia hora depois, passavamos
verno do Lui, expressamente para o serviço de uns rápidos, onde só pequenos canaes são pra-
c a r r e g a r e m os barcos por t e r r a ; serviço a que ticáveis, e por onde os remadores governaram
são obrigados sem terem direito a. retribuição as pirogas com prodigiosa destreza.
alguma. P o u c o depois, outros rápidos foram passa-
Foi fatigante aquelle trabalho, e eu fiquei dos com egual felicidade, sendo o resto da na-
verdadeiramente penalisado de não ter nada vegação d'esse dia por entre pontas de rochas
que désse áquelles desgraçados, que tão humil- açoutadas por violenta corrente d'agua, sem que
d e m e n t e se prestam a trabalho tão rucle. outros desnivelamentos rápidos apparecessem.
O Zambeze cm Mamungo alarga a duzentos Ao acampar eu sentia-me gravemente doente.
metros, mas continua apertado em cinta de ro- A febre havia recrescido, e a falta de alimenta-
cha, onde estão marcadas as cheias por tra- ção vegetal era sensível. O d o r m i r s e m p r e ao re-
ços horisontaes provenientes dos depositos das lento, e o n e n h u m resguardo que era forçado a
aguas lodosas. P o r esses traços vi que as aguas ter, tendo de sustentar a minha gente pela ca-
se elevam alli a 10 metros, nas maximas cheias, rabina, faziam peiorar o meu padecer constante.
acima do nivel de então, que deveria ser o mi- N'essa noute rebentou sobre nós uma violenta
nimo p r o x i m a m e n t e . trovoada, e com ella cahiram as primeiras gotas
Logo que sobre as rochas basalticas começa d'agua d'aquella nova epocha das chuvas.
a haver t e r r a vegetal, principia uma vegetação O dia 8 de o u t u b r o veio encontrar-me mais
frondoso. O aspecto do Zambeze n'aquelle ponto doente, mais abatido de corpo, mas não mais
>35

fraco de espirito. Segui viagem, e meia h o r a para elle, e de me achar bem pequeno. O meu
depois encontrava os grandes rápidos de B o m - estado era tão melindroso, que já não pude vol-
bue. t a r por meu pé, e tive de ser a m p a r a d o pelos
O rio fôrma um g r a n d e rápido central, onde negros para chegar ao acampamento.
o desnivelamento é de 2 metros. Do lado de No dia immediato estava peior, e sobreveio-
E s t e tres canalêtes obstruidos por i n n u m e r a s me uma g r a n d e inflammação do fígado. Deitei
rochas, e de Oeste um canal mais largo, onde o cáusticos, que pulvorisei de quinino depois de
desnivelamento é mais rápido. cortados.
A montante dos primeiros desnivelamentos, A doença não me permittia partir n aquelle
uma ilha coberta de vegetação divide o rio em dia, e resolvi ficar alli até experimentar melho-
dois braços eguaes. B o m b u e tem mais dois des- ras. N'esse dia aconteceu ao meu A u g u s t o a
nivelamentos, sendo o segundo trezentos metros mais extraordinaria aventura de que tenho tido
a jusante do primeiro, e o terceiro duzentos me- conhecimento. Atirou a um búfalo que feriu, e
tros a jusante d este, l odos estes rápidos são que correu rápido sobre elle. Augusto tirou o
cheios de pontas de rochas desencontradas, tor- machado, e no momento em que a fera baixava
nando impossível a navegação. a cabeça para lhe marrar, atirou-lhe um golpe á
Os barcos descarregados foram lascados jun- fronte, com a sua força hercúlea.
to a terra, operação fadigosa, que levou muito Homem e búfalo rolaram por terra. A gente
tempo. que estava perto do meu valente negro, julgára
Pozemos os barcos a caminho, encontrando este morto, q u a n d o vira o feroz r u m i n a n t e le-
um rápido que sem q u e r e r passamos embarca- vantar-se e fugir. Augusto levantou-se, e além
dos com inaudita felicidade; e depois de 4 ho- do abalo do choque, não tinha soffrido nada.
ras de viagem paramos junto á confluência do Os negros acercaram-se d'elle, q u a n d o o meu
rio Jôco. Viajei n esse dia por entre ilhas d uma muleque se abaixou, e depois de a p a n h a r o ma-
belleza admiravel, que apresentavam os panora- chado, apanhou, tão admirado como os que o
mas mais pittorescos á minha vista, fatigada da viam, um corno do animal, cortado cerce pelo
monotonia_do planalto africano. golpe vigoroso.
N'essa tarde, estando a repousar, fui acor- Nas mattas da região das cataractas ha o Cu-
d a d o em sobresalto por os negros, que tinham chibi, o Mapole, o O p u m b u l u m e e a Lorcha,
visto perto alguns elephantes. Apesar do meu fructos que mais ou menos se encontram no
mau estado de saúde, tomei a carabina e se- planalto, e além d'esses, dois fructos privativos
gui-os. d'alli, a Mocha-mocha e o .Muchenche. Este ul-
Na margem do Jôco avistei eu os enormes timo é muito sacharino, e d'elle fiz eu um re-
pachidermes, que se enlodavam no paul. fresco muito agradavel.
Tomei-lhe o vento e approximei-me caute- Os cáusticos pulverisados de quinino, e tres
loso. E r a m sete soberbos animaes. g r a m m a s d'elle que introduzi no organismo, em
A floresta espessa que descia até junto ao tres injecções hypodermicas a curtos intervallos,
paul, permittiu-me approximar-me sem ser visto. acalmaram o meu estado febril, e no dia 10 le-
P o r um m o m e n t o contemplei aquelles gi- vantei-me com sensíveis melhoras. A primeira
gantes da fauna africana, e não posso occultar noticia que me deram foi que o meu A u g u s t o
que tinha remorsos p r e m a t u r o s de lhes fazer desapparecera desde a vespera, e não tinha sido
mal. A necessidade venceu o escrupulo, e atirei encontrado por alguns homens que o foram pro-
ao mais proximo, dirigindo-lhe a bala ao fron- c u r a r ao matto.
tal. O colosso oscillou um momento, sem mo- Esta noticia deu-me grande cuidado, p o r q u e
ver as patas, e d o b r a n d o os joelhos, foi cahindo o Augusto é de um atrevimento louco, e fez-me
de vagar sobre elles — posição que conservou recear uma desgraça. Mandei gente em todas as
um momento, t o m b a n d o depois para o lado, e direcções a buscal-o, e eu mesmo fui com alguns
fazendo t r e m e r a t e r r a com o baque e n o r m e . homens, apesar do meu estado, e do muito que
Os outros seis atravessaram o rio Jôco em me faziam soffrer os cáusticos. F o r a m infru-
apressado trotar, e desappareceram na floresta. ctuosas as nossas pesquizas, e da excursão ape-
Acerquei-me do inoffensivo q u a d r u p e d e , e nas trouxemos dois seb-seb ubalis lunatos)
ao contemplar a minha obra de destruição, não que eu matei, e muitas varas de madeiras, que
p u d e deixar de olhar para mim, depois de olhar os Luinas colheram, proprias para hastes de aza-
1 136 A V O L T A DO M U N D O

gaias, e que são do mesmo pau de que fazem os Occupam por isso as quedas u m a extensão
remos. Chamam-lhe Minana. de 310 metros. O Zambeze corre alli N. S., mas
De volta ao campo, seccamos ao fogo muita logo abaixo verga a S. O. para tornar a tomar
carne dos antilopes. o seu curso regular a S. S. E.
Esta região, a que chamam o paiz de Mute- Durante a noute estive á morte. A febre in-
ma, é abundantíssima de caça da floresta, e des- tensa devorava-me, e nunca pensei chegar a vêr
de o elephante até á codorniz, ha milhares de nascer o dia 12 de outubro, dia sempre festivo
animaes de todas as familias, generos e especies para mim, por ser o anniversario de minha mu-
do planalto africano. No Zambeze, ao contrario, lher. As repetidas injecções hypodermicas de
escaceia a caça d'agua, abundantíssima na região sulphato de quinino em alta dose, conseguiram
das planícies. dominar a febre. Eu chamei o Veríssimo e Au-
Pala tarde appareceu o meu Augusto, dizen- gusto, e entreguei-lhes os meus trabalhos, re-
do que se tinha perdido na floresta, e que en- commendando-lhes, que, se eu morresse, pro-
contrara u m a povoação de Calaças, onde lhe ti- seguissem na viagem até encontrar o missioná-
nham furtado tudo o que elle trazia, excepto a rio, e lh'os entregassem.
espingarda. Os Luinas, ouvindo isto, declararam Fiz-lhes vêr, que o Mueneputo os recompen-
que iam desforçar o Augusto, e por mais esfor- saria bem se elles salvassem aquelles papeis, e
ços que empreguei não consegui contel-os. os entregassem em mão segura, que os fizesse
Alta noute voltaram os marinheiros, carre- chegar a Portugal.
gados com os despojos do saque, e entre elles As 6 horas da manhã do dia 12, senti um
vinha o casaco do meu muleque. grande allivio e decidi seguir viagem.
E costume d'elles, logo que encontram po- Parti ás 6 e meia, e as 7 e 15 minutos, pas-
voações de Calaças na região das cataractas, sa- sei uns pequenos rápidos, e logo abaixo outros,
queal-as e destruil-as. N'essa noute o meu es- mais desnivelados, extensos e perigosos. Entes-
tado de saúde aggravou-se bastante, mas apesar tamos ao único canal praticavel, e logo que o
de me sentir gravemente doente, dei ordem de barco se achou envolvido na corrente, um hip-
partir no dia immediato. popotamo veio resfolgar a jusante. Estavamos
Uma hora depois de ter deixado a foz do rio entre Scylla e Charybdis, ou a fera ou o abys-
Jôco, encontrei os grandes rápidos de Lusso. mo. Tornamos a entestar com a corrente e su-
Desembarquei e segui por terra, fazendo très bindo o rio, por uma hábil manobra, pozemo-
kilometros em très horas. nos a coberto do perigo junto a um rochedo
O rio em Lusso toma u m a grande largura e quasi em secco.
divide-se em muitos ramos, formando ilhas co- O barco da carga, receando o cavallo-mari-
bertas de vegetação esplendida. nho, desviou-se do canal, e foi impellido com
Depois do bello panorama de Gonha, nada velocidade enorme de encontro ás rochas de um
vi mais bello do que os rápidos de Lusso. canalete obstruído. Nunca pensamos que se sal-
E m b a r q u e i de novo por baixo dos rápidos, e vasse, mas elle derivou por entre as fragas e
tendo navegado por duas horas, parei a mon- passou o perigo, tendo recebido apenas um golpe
tante da cataracta de Nambue. de agua que quasi o encheu.
As ilhas, com a sua vegetação pomposa, con- As 7 e 50, outros rápidos, e ás 8, uns muito
tinuavam a apresentar os mais attrahentes as- desnivelados e extensos. Quizemos sahir em
pectos. terra, porque sentíamos a jusante um ruido
Decidi passar a cataracta n esse dia, e houve enorme, semelhante ao rebombar dos trovões
grande trabalho, com a pouca gente de que dis- pelos alcantis das serras, que nos fez recear
punha, para arrastar os barcos por terra. Levou grandes rápidos, ou uma cataracta impossível de
quatro horas aquelle fadigoso lidar, mas conse- transpor. Foi baldado esforço. A m a r g e m mais
gui dormir a jusante da queda. próxima, a esquerda, ficava-nos a 600 metros, e
A cataracta de Nambue tem quatro desnive- a corrente rapida, quebrando-se entre os cabe-
lamentos: o primeiro é de meio metro, o se- ços basalticos, e resaltando em ondas de espu-
gundo, 150 metros a jusante, é de dois metros, ma, tornava impossível o a b e i r a r á margem. São
e perfeitamente vertical, o terceiro, 60 metros momentos indescriptiveis estes.
abaixo, é de um metro, e o ultimo, também de Levado por u m a corrente vertiginosa, tendo
i metro, fica a 100 metros d'este. diante de si o desconhecido, presentindo o pe-
Á V O L T A DO . M U N D O '75

rigo imminente a cada desnivelamento do rio aspecto do liarôze, planícies enormes, fundo de
que se lhe mostra, arrastado de voragem em vo- areia, e nem mais um rochedo. As margens são
ragem pelos turbilhões da agua revolta, o ho- formadas por camadas sobrepostas de argila es-
m e m experimenta a cada m o m e n t o sensações verdeada. 0 vento léste era de novo fortissimo,
novas, e cem vezes sofíre a agonia da morte, e encrespava a superficie das aguas, levantando
para sentir outras tantas o prazer da vida. Das ondas bastante grandes. Apesar d'isso segui a
8 horas e 5 minutos ás 8 e 40, passamos seis 13, e fui acampar junto da povoação de Caton-
rápidos de pequeno desnivelamento; mas a essa go. De novo tinha peorado, e era prostrado pela
hora, u m a queda desnivelada de um m e t r o se febre que me mettia no barco para seguir.
nos apresentou na frente. Semelhante ao h o m e m Alli em Catongo encontrei a minha gente,
que, em corrida, estaca por um movimento ins- que tinha deixado na foz do Jôco, e que chegou
tinctivo, ao vêr o abysmo aberto sob o seu cami- n'essa noute.
nho, o meu barco, como se fosse animado, pa- S o u b e que na vespera tinham corrido um im-
rou, por um impulso dos remos, machinal e in- minente perigo, sendo atacados por um bando
consciente nos tripulantes. Esse momento de de leões. S u b i n d o para cima de arvores poderam
hesitação produziu o desgoverno, e a comprida escapar-lhe, mas estiveram muito tempo cerca-
piroga atravessou na corrente, e saltou ao abys- dos por elles. A minha cabrinha Córa foi içada
mo, na corôa de espuma de u m a onda enorme. por um panno que lhe ataram aos cornos, e es-
Foi um segundo, mas foi o peior m o m e n t o da teve amarrada a um tronco junto de Augusto. 0
minha vida. E r a a Providencia q u e nos salvava. Augusto matou um dos leões, atirando-lhe de
Se o barco tivesse atestado de prôa com a vo- cima da arvore, e trocou em Catongo a pelle
ragem, seria submergido, e estaríamos perdidos. d'elle por uma g r a n d e porção de tabaco.
O desgoverno d'elle foi-nos a salvação. Logo No dia 14 naveguei a léste, direcção que
abaixo d estes, outros rápidos menores ; e então toma o Zambeze, e fui acampar, pela tarde, já
fizemos força de remos para uns rochedos que perto da povoação do Quisseque.
a meio rio estavam collocados em ponto onde a O rio continua a dividir-se, formando gran-
corrente era mais fraca. Abeiramos a elles e des ilhas, mas não como as da região das cata-
estivemos a tirar agua e a a r r u m a r as cargas, ractas. S ã o canaviaes monotonos que cançam
d e s a r r a n j a d a s pelo abalo dos rápidos. Segui ás a vista.
8 e 55 minutos, e logo, ás 9 e 15, encontramos Tivemos n esse dia pescadores que nos for-
novas cachoeiras. As 9 e 25, os g r a n d e s rápidos neceram a b u n d a n t e peixe. F o r a m os Uanhis,
da Manhicanga. As 9 e 30, o u t r o s ; e d a h i aos como lhes chamam os Luinas, e que não são
g r a n d e s rápidos da L u c a n d a , que passamos ás mais do que pygzrgos gigantescos que povoam
11 e 8 minutos, saltamos em sete cachoeiras as margens do rio. F o r a m perseguidos alguns,
mais. Depois de passarmos um pequeno rápido, que a b a n d o n a r a m o peixe que levavam.
encontramos a cataracta de Catima-moriro (apa-
Uma d'essas Águias aquaticas tinha nas gar-
ga o fogo) ao meio dia.
ras poderosas um peixe mais corpulento do que
É Catima-moriro o ultimo desnivelamento da u m a pescada, e levou-o fugindo dos meus rema-
região superior das cataractas do alto Zambeze. dores, sem que mostrasse esforço ao voar.
D'alli até á nova região de rápidos, que precede Todavia, a maior parte abandonavam a presa,
a grande cataracta de Mozi-oa-tunia, o rio é per- para fugir mais r a p i d a m e n t e .
feitamente navegavel. Estes pygargos do Zambeze, que não vi aci-
O espirito t a m b é m se fatiga como o corpo, e ma da região- das cataractas, teem a cabeça, o
foi verdadeiramente fatigado de espirito que eu peito e a cauda completamente brancos, e as
cheguei ao t e r m o d'essa perigosa jornada do dia azas e costas de um negro de ébano.
12, jornada que não posso r e l e m b r a r sem ter- São exactamente como a especie americana
ror. As commoções d'aquelle dia tinham sarado descripta com o nome de fiygzrgo de cabeça
o corpo, e achava-me sem febre, mas muito fra- branca, mas menos corpulenta do que a ave
co. Appareceu muita caça, mas a minha fra- que serve de emblema ao pavilhão dos Estados-
queza e as dores que me produziam os cáusti- Unidos.
cos ainda abertos, não me p e r m i t t i r a m caçar. No dia 15 de outubro cheguei de manhã ao
O curso do rio foi sempre a S. S. E. Quisseque, tendo navegado por uma hora a
D'ahi em deante o rio torna a ter o mesmo léste.
13 8 A V O L T A DO M U N D O

Não quiz ir para a povoação, já desconfiado isso mandasse eu recado ao missionaria para elle
do gentio, e fui acampar no meio do caniçal de me m a n d a r as fazendas, e esperasse alli os en-
uma ilha fronteira. Mandei prevenir o chefe de viados.
que estava alli, e deitei-me abrasado em febre, Recusei t e r m i n a n t e m e n t e fazel-o, e declarei-
que de novo reapparecera intensa. lhe que lhes não pagava se elles não seguissem
Pouco depois da minha chegada appareceu no dia immediato. Depois de grandes debates,
na ilha um h o m e m t r a j a n d o á europea, que em que fiz prova de enorme paciência, e em que
pela còr de café com leite da pelle, eu reco- Eliazar pleiteava por mim, repetindo cem vezes,
nheci ser um lilho das m a r g e n s do Orange. que seu amo, logo que me visse, pagaria tudo o
Disse-me, por intermédio do Veríssimo, usan- que elles quizessem, ficou resolvido que no dia
do da língua Sesuto, que era criado do missio- 17 nos poriamos de novo em viagem.
nário, e estava alli esperando a resposta do rei N'esse dia chegaram alli os enviados que Ca-
Lobossi a respeito de seu amo. P o r elle soube rimuque m a n d a r a ao Lui com a mensagem do
que o missionário era francez, o que sobremodo missionário.
me fez a d m i r a r . Este homem, que se chamava Como se sabe, e eu já narrei no começo
Eliazar, vendo-me muito doente, mostrou por d este capitulo, Matagja oppozera-se formalmente
mim carinhos que nunca vi em negro. ao ingresso do missionário no paiz do Lui. A res-
Dizendo-lhe eu que vinha de proposito pro- posta cio rei Lobossi, dada por Gambeia, vinha
c u r a r seu amo, elle manifestou-me o seu con- cheia de hypocrisia, e não era uma negativa for-
tentamento, e assegurou-me que o missionário - mal.
era o melhor h o m e m do m u n d o . .Mandavam dizer-lhe que muito estimariam
Eu não sei explicar p o r q u e tive um prazer que elle fosse para alli; mas que n'aquelle mo-
enorme sabendo que o meu h o m e m era francez, mento, as guerras e a falta de commoclidade que
mas é facto que o tive. poderiam offerecer-lhe em Liului, cidade nova-
Estava eu conversando com Eliazar, q u a n d o mente construída, fazia com que elles lhe pedis-
chegou o chefe, cujo nome é C a r i m u q u e , mas sem que se losse embora e.voltasse no anno
que também é conhecido pelo de Moranziani, seguinte. P a r a C a r i m u q u e vinha uma ordem po-
nome de g u e r r a dos chefes do Quisseque. sitiva para não lhe dar meios d'elle seguir para
Disse-lhe que queria seguir viagem no dia o Norte. Eliazar, que ficou muito triste com a
immediato, p o r q u e estava muito doente, e pre- mensagem do rei Lobossi, continuou fazendo-me
cisava encontrar o missionário, para elle me dar companhia, e fallando-me sempre de seu amo a
remedios. quem tecia verdadeiros panegyricos.
Preveni-o de que não tinha viveres, nem com N esse dia, ás 4 horas da tarde, desencadeou
que os c o m p r a r , e elle prometteu-me m a n d a r sobre nós uma horrivel trovoada que despejou
n'esse dia m e s m o comida para n u m e para os copiosa chuva até ás 6 horas. C a r i m u q u e veio
meus. vèr-me de novo, e trouxe-me duas gallinhas.
N e s s a tarde os meus remadores começaram P a r t i ás q horas do dia 17, e depois de na-
a gritar que não deixariam o Quisseque sem se- vegar por duas horas e meia encontrei a foz do
rem pagos. Eu chamei-os e liz-lhes ver que não rio Machila. Naveguei a E. S. E.
tinha nada que lhes dar. Que o marfim sò po- O rio Machila tem alli quarenta metros de
deria ser convertido em fazendas logo que eu largo por seis de fundo, mas de certo influe
chegasse ao missionário que as deveria ter, e por n'esta altura a agua do Zambeze que o represa.
isso para serem pagos era precisa seguir ávante. Corre em uma planicie enorme, onde pastam
Elles pareceram convencer-se com o meu ar- milhares de búfalos, zebras e grande variedade
g u m e n t o . Passei u m a noite horrível no caniçal de antilopes. Vi alli muitos coroanes, e presen-
da ilha. E r a m cobras que perseguiam ratos, e ciei um elleito de miragem s u r p r e h e n d e n t e , apre-
ratos a fugir de cobras, os companheiros que sentando-me toda aquella manada heterogenea
tive em torno de mim. A febre augmentou. Ca- de patas para o ar.
r i m u q u e veio vèr-me na m a n h ã de 16, e t r o u - Nunca vi tanta caça junta como alli, é ella
xe-me um presente de massamballa e uma pe- muita esquiva e não deixa approximar a menos
quena porção de farinha de mandioca. de duzentos metros.
Declarou-me elle que os marinheiros se re- P u d e matar uma zebra, que nos forneceu
cusavam a seguir sem serem pagos, e que por óptima carne, muito melhor do que a de qual-
A V O L T A DO M U N D O 139

quer antilope. Depois de duas horas de demora Desembarquei e fui deitar-me á sombra de
alli, segui viagem e naveguei por duas horas e um d'esses colossos vegetaes.
meia mais, parando, ás 5 da tarde, por vermos Tinha t e r m i n a d o a minha navegação no alto
na m a r g e m u m a arvore velha trazida pela cor- Zambeze, e d alli até encontrar o missionário o
rente, onde fomos fazer provisão de lenha para meu c a m i n h a r era de novo a pé.
a noite. Foi um verdadeiro beneficio aquella ar- A povoação de E m b a r i r a distava seis milhas
vore, sem a qual não teríamos lenha para cosi- do ponto onde eu estava, e para lá p a r t i r a m os
nhar em campinas despidas de arvoredo. marinheiros com as cargas.
Q u a n d o iamos a seguir, appareceu um preto Eu adormeci, e só acordei por noite escura.
g r i t a n d o que os outros barcos tinham a m a r r a d o Só o Veríssimo, C a m u t o m b o e Pépéca estavam
muito acima e acampado alli a gente. Tivemos junto de mim. Perguntei-lhes p o r q u e estavamos
que voltar atraz, por não termos provisões no ainda alli ? respondendo-me o Veríssimo, que
meu barco, e ir a carne no barco da carga. não tinha querido interromper o meu somno.
Só ás 6 e 30 minutos, já noite, juntei a mi- Apesar do escuro da noite, ia pòr-me a cami-
nha gente, e acampei com elles. nho, quando reparei que não tinhamos u m a só
N essa occasião já iam todos embarcados, a r m a . O Veríssimo, que de vez em q u a n d o fa-
p o r q u e Carimuque tinha posto dois barcos gran- zia asneira, deixara levar as minhas a r m a s para
des á minha disposição, e n'elles eu havia accom- E m b a r i r a . Não fiquei socegado, vendo-me sem
modado Augusto, as mulheres, os p e q u e n o s e a armas no meio de u m a floresta infestada de fe-
minha cabrinha. ras. Mandei-os logo juntar lenha para fazer u m a
Calungo, o papagaio, esse viajou sempre com- fogueira, mas ás escuras elles n e n h u m a encon-
migo. travam que servisse.
C a r i m u q u e tinha-me feito um presente va- Pépéca lembrou-se então de ter visto perto
lioso, n u m a porção de farinha mandioca, o me- de nós um barco velho, que effectivamente en-
lhor alimento que alli podia ter, para mim tão contramos, mas a d u r a madeira do Mucusse re-
doente e tão debilitado. sistia ao córte da minha faca de matto.
N'essa noite quiz comer uma pouca de fari- Lembrei-me de o jogar como ariete contra o
nha, e fui encontrar o saquinho que a continha tronco do baobab, e logo nós très dando-lhe o
completamente vazio. movimento de vai-vem, o lançamos com a ma-
E n t r a n d o em averiguações do caso, soube que xima força. A canòa fez-se em rachas na parte
fôra o meu m u l e q u e Catraio que a furtara e co- que soffreu o choque. E s t a operação, repetida
mera. algumas vezes, forneceu lenha e com ella uma
N essa noite, um d r a m a terrível passou-se boa fogueira.
junto do meu campo, no meio das trevas. Estavamos dispondo-nos a dormir alli, q u a n d o
Foi o combate cruento entre um búfalo e um sentimos gente, e logo appareceu o Augusto com
leão, que terminou pela morte d'aquelle em ar- alguns homens, que vinham procurar-me.
rancos de agonia, ao passo que o seu vencedor P a r t i com elles, e cheguei a E m b a r i r a pela
dava prolongados rugidos, acompanhados por meia noite. O chefe da povoação tinha-me pre-
um côro de hyenas. De m a n h ã , a 106 metros do p a r a d o u m a casa, onde me recolhi cheio de fe-
acampamento, tomos encontrar os despojos do bre e fadiga.
búfalo, cuja cabeça estava intacta, e do qual exis- Estava em E m b a r i r a , na margem esquerda
tiam apenas ossos e farrapos de carne deixados do rio C u a n d o , cujas nascentes havia descoberto
pelas hyenas. e determinado très mezes antes.
Segui viagem, e depois de cinco horas de na- ! Estava proximo a alcançar o missionário, de
vegação, entre ilhas divididas por canelètes, for- quem esperava auxilio para poder continuar a
m a n d o um systema complicado, aportei sobre ' minha viagem, e estava em vespera de novas
um rápido desnivelado de um metro, primeiro aventuras, q u e não calculava ainda.
elo da cadeia de cachoeiras que vae t e r m i n a r O estado da minha saúde muito melindroso,
pela g r a n d e cataracta de Mozi-oa-tunia. a duvida no f u t u r o , as apprehensões do presente
Com o basalto reapparece a floresta lindís- e milhares de persevejos, que tinha a casa onde
sima, onde entre o u t r a s arvores, sobresahem já me recolhi, fizeram-me passar u m a noite attri-
os baobabs, esses gigantes da flora africana, que bulada.
eu não via desde Quillengues. iContinua.)
ILHAS HE GELO XO MEIO D\ O L E I U I) A(',l"A— D e s e n h o de T h . W e b e r , s e g u n d o u m a p h o t o g r a p h i a

as n o v i d a d e s de n e w - y o r k e o n i a g a r a no i n v e r n o
POR

M. EDUARDO DE LAVE LEY


( C o n t i n u a ç ã o da fnllia 15 — ^. 0 a n n o i

/r^iiKoor-si: a m i m s o r n n d f ) c r e c e b e u - m e com processo accessivel a i n d u s t r i a : m a s hei de che-


u m cordoai s/uk-haiids. e m seiruida fez-me irar a e n c o n t r a r ; t e n h o a certeza!» C e r t a m e n t e
JJ p e r g u n t a s a respeito da m i n h a viagem pe- n este m o m e n t o não previa a q u a n t a s pesquisas
los Estados-l 'niclos sobre o que cu vira e se e n t r e g a r i a ainda e não sabia q u e o b o m re-
o q u e mais me s u r p r e h e n d e r a . F a l l o u - m e n u m a sultado estava no c a m i n h o parallelo q u e percor-
viagem q u e fizera ao C o u r s t o k - l o d e . Descreveu- ria. mas que o deveria o b r i g a r a m u d a r o p o n t o
me as suas i m p r e s s õ e s da m a n e i r a mais espiri- cie p a r t i d a das suas e x p e n e n c i a s . So mais t a r d e
tuosa e n a t u r a l . e que p e n s o u cm s u b s t i t u i r o metal intusivel
l i r a o hummir a m e r i c a n o , s i m u l t a n e a m e n t e q u e p r o c u r a v a pelo c a r b o n e levado ao r u b r o ou
suave e picante. a > branco no vácuo. Em s e g u i d a m o s t r o u - m e
P e r g u n t e i - l h e f r a n c a m e n t e se o q u e se dizia um c a d i n h o q u e m a n d a r a vir d I n g l a t e r r a e in-
a respeito da luz eléctrica era v e r d a d e e se o sistiu sobre o lacto, de q u e p a r a todas as cousas
p r o b l e m a estava resolvido } « t h e o n c a m e n t e , chs- especiaes a i n d a era preciso r e c o r r e r ao «velho
se-me elle. sim. P r a t i c a m e n t e , não. Tenho den- paiz» Uhc old coutrx). Depois danclo-me l e m -
tro do m e u c e r e b r o o systema c o m p l e t o : o q u e b r a n ç a s p a r a M. \\ alker. a p e r t o u - m e a m ã o e
me falta é o q u e e indispensável p a r a t o r n a r o d e s e j o u - m e boa v i a g e m .
1 146 A VOLTA DO MUNDO

II foram condemnadas por inúteis. Os omnibus


dos hotéis e a maior parte dos vehiculos são
O NIAGARA apenas as caixas ordinarias a que se tiraram as
rodas e que foram assentes sobre um systema
Deixei New-York no fim de dezembro e parti egual ao dos trenós. Ausência completa de bru-
para o Niagara por entre neves e gelos. Al- haha, de choque, de qualquer ruido. Os trenós
guns dias antes da minha partida desencadea- deslisam silenciosamente, como n u m m u n d o en-
ra-se uma tempestade de neve de extraordina- cantado, ao som das campainhas suspensas dos
ria violência, a ponto de tornar quasi inaccessi- arreios dos cavallos. Este som é muito mais
veis as ruas de New-York, e assim pude fazer agradavel do que o dos guisos; faz lembrar ao
u m a ideia do que será um inverno rigoroso pôr do sol o som das campainhas trazidas pelos
na America. O ceu chega a tomar tons singula- rebanhos dos Alpes.
res e aspectos que a todo o momento se trans- Rapazes e raparigas aproveitam as ferias do
formam como nas dtssolving riews. Ha momen- Natal para se dedicarem ao seu prazer favorito.
tos d u m a grande serenidade em que nem uma Descem com rapidez vertiginosa os planos in-
única nuvem mancha o cerúleo horisonte. De re- clinados cobertos de neve. O rapaz assentado
pente cahem alguns flocos de neve sem que seja adeante dirige com os pés o trenó, a rapariga
possivel descortinar d onde venham. Dentro de abraça-se a este que deixa voar o vehiculo. O u -
alguns minutos o sol desapparece e o ceu co- tros sobem arrastando o vehiculo e conversam
bre-se com um veu pardacento, uniforme, seme- alegremente. A noite vèem-se chammas d archo-
lhante a um nevoeiro, d'onde cahe uma neve fi- tes cruzarem-se phantasticamente. E a grande
na, leve, impalpavel. diversão do inverno appetecida e gosada pelos
Está-se em plerto mez de novembro. Instan- americanos.
taneamente um raio de luz rompe o plúmbeo Mais longe encontra-se a civilisação e os ne-
veu; absorve-o, evapora-o em alguns instantes e, gocios. N u m a grande superfície d a g u a gelada
como n u m a magica as transformações de scena, vèem-se cavallos cortando a superfície do gelo.
o sol volta a brilhar n um ceu azul de notável P u x a m a machinas, semelhantes ás ceifeiras me-
pureza. Toda a campina levemente accidentada chanicas, que cortam o gelo em longas tiras pa-
cobre-se d u m tapete resplandecente d'onde, aqui rallelas. A agua, rodeada por uma cercadura
e alli, desponta uma arvore, cujos ramos seccos d um branco brilhante, parece tão negra como
se projectam no fundo branco das collinas. A tinta. Encontramos um comboio composto de
neve arremessada por um vento muito violento cincoenta vagões destinados a transportar para
amontoou-se em camadas enormes por toda a as grandes cidades este complemento indispen-
parte. Nas trincheiras foi necessaria desobstruir sável de toda a bebida americana. Em cada va-
a linha a pancadas de picareta e o comboio per- gão está com grandes letras escripto— :F{efrige-
passa por entre paredes de gelo d altura dos va- rator cars. Cruzamo-nos com uma dúzia d estes
gões. Quando o trem passa por cima d um aterro comboios.
o lado protegido pelo vento desce suavemente A exploração do gelo é uma industria flores-
até ao nivel da planicie e das arvores plantadas cente nos Estados-Unidos. Inventaram-se as mais
junto do talude apenas estão descobertos os ra- perfeitas machinas para o cortar. Um homem
mos mais elevados. Nos campos os caminhos ape- marcha deante d um cavallo que puxa a uma pe-
nas se conhecem pelo cimo das paredes ou das quena serra a qual apenas, como um diamante
sebes. P o r toda a parte foi necessário abrir com- ataca o ATidro, corta a superfície do gelo. De-
municações. Nada mais curioso do que ouvir os pois uma outra machina serra toda a espessura
guisos d uma carruagem que em vão se procura da camada. Outros homens com uns ganchos pu-
n u m a planicie em apparencia perfeitamente uni- cham para a margem a tira de gelo e cortam-a
da. De repente, e de longe em longe, descorti- em blocos de tamanho conveniente ao trans-
nam-se as orelhas d um cavallo, o boné de pel- porte. O uso do gelo diflunde-se cada vez mais
les do cocheiro e a extremidade do chicote. e provavelmente encontrarei os blocos que aqui
Nas estações .não se sente ruido algum de ro- vi cortar na dispensa do paquete que me trans-
das de vehiculos. Trenós d u m , de dois cavallos, portar á E u r o p a . Estendidas sobre uma d estas
grandes caleches puchados a très ou a quatro ca- camadas frigidissimas vèem-se perfeitamente con-
vallos, todos deslisam por sobre o gelo; as rodas servadas as differentes peças de carne e peixe
'75
Á V O L T A DO .MUNDO

que nos são servidos em fresco durante toda a roendo, e pouco a pouco vae destruindo, o que
viagem. produz o esboroamento da parte superior. Cada
A estação onde parei, Suspension-Bridge, não século faz inclinar a queda para o lago Eriè. Na
é mesmo na cataracta: é affastada approxima- minha frente a rocha está também em diversos
damente très kilometros e é situada á entrada pontos cortada por pequenas cascatas d'agua
da famosa ponte pênsil do Niagara. Os grandes congelada. Logo que se atravessa a ponte pên-
hotéis de Niagara-Falls, estão fechados no in- sil descobre-se o Niagara e á maneira que nos
verno e por isso fui obrigado a ir-me hospedar approximamos o espectáculo torna-se mais gran-
n u m a pequena hospedaria da aldeia de Suspen- dioso e surprehendente.
sion-Bridge. Não se está longe da garganta no O S. Lourenço fica completamente detido
fundo da qual corre o S. Lourenço e, posto que abaixo das quedas e apresenta o aspecto d uma
o rio n'este sitio tenha mais de duzentos metros geleira de superficie rugosa e brilhante. A massa
de largura, é impossivel suppòr a proximidade liquida espumante ainda do salto gigantesco que
d'um golfo. A vista pôde espraiar-se pela planí- acaba de dar, desapparece sob uma camada de
cie que se alastra ininterrompidamente até ao gelo brilhante que a cobre como uma ponte,
horisonte. Lnicarnente se vê junto de nós ergue- para reapparecer mais abaixo, socegada, som-
rem-se as grandes pilastras e a rede de cabos bria e quasi immovel.
metálicos que sustentam a ponte sem que se Do outro lado a queda americana, semelhante
possa adivinhar a que sejam destinados. a uma massa d'espuma completamente branca,
Poucos passos bastam para nos levar á beira cahe d um salto sobre os rochedos, onde se que-
do abysmo e explicar-nos o phenomeno mages- bra ressaltando em pó impalpavel, em nuvem
toso e sombrio; o S. Lourenço corre lá no fundo pulverulenta depositando-se sobre os pináculos
do precipício cujas paredes se erguem a pique dos rochedos que mergulham a base no rio.
n uma altura de oitenta metros. As aguas d'um Este pó congelado fôrma figuras phantasticas
verde escuro parecem ímmoveis, estagnadas. Ar- que muitas vezes se erguem até ao nivel supe-
rastam numerosos pedaços de gelo que cami- rior do rio.
nham lenta, silenciosamente, único indicio do A ilha das Cabras divide S. Lourenço em
movimento das aguas. A parede de rochedo é dois braços de différente aspecto. J u n t o das
absolutamente vertical n uma altura de trinta margens a massa liquida é menos considerável,
metros ; inferiormente n u m talude crescem al- dividindo-se em muitos riachos separados por
guns pinheiros, cuja verdura sombria e severa rochedos. E n t r e cada pequena cascata ergue-se
dá ao rio o tom que lhe convém. A pedra par- um immenso serac de gelo. A margem america-
dacenta, de pontos a pontos, está cortada por li- na está inteiramente coberta por pó d'agua so-
nhas prateadas que descem do vertice e que se lidificado pelo trio; as casas, as arvores, tudo é
vão perder no talude. Em todos os pontos em d um branco deslumbrante e absoluto. A ilha
que uma fenda deixa passar uma penna d a g u a das Cabras é uma immensa penedia cortada a
está agora uma estalactite de gelo deslumbrante pique. D'ella descem massas de estalactites que
pelos reflexos da luz solar. cahem como pregas de mantos até ao fundo do
Tomei um pequeno trenó para visitar as que- abysmo. É uma confusão indiscriptivel, um mon-
das e comecei a minha inspecção pelo lado ca- tão de massas geladas que se entrecruzam, en-
nadiano. Atravessei a ponte pênsil d onde do canastram e se agglomeram em excrescencias
Niagara apenas se avistam dois pennachos de va- monstruosas ou se abrem em crateras profun-
por d agua. Em virtude da acção do vento in- das. No centro as massas geladas são menores
clinam-se um pouco para o lado americano. e poderiam ser comparadas a uma rede ou a
P e r c o r r o a margem canadiana. O meu trenó u m a serie d'escadas de corda lançadas ao flanco
deslisa suavemente por sobre o gelo endurecido, do precipício. Na ilha a vegetação desapparece
dando-me toda a liberdade d a d m i r a r o magico completamente sob esta manta de gelo. De lon-
espectáculo impossivel de descrever. ge parecem immensos folhos de rendas ou, antes,
A constituição do terreno que provocou a as crystallisações encantadoras e delicadas, n'es-
translação da cataracta pôde ser facilmente apre- te caso desmedidamente augmentadas, que nos
ciada. A parede que me está na frente mos- maravilham n u m floco de neve.
tra-me uma massa de granito duro, abaixo uma A cascata canadiana, em fôrma de ferradura
rocha mais macia, friável, que a agua vae cor- Horse shoe fali, é ainda mais imponente do que
144

a outra. Do lado americano as espessuras da seu furioso turbilhão, rugindo sem cessar como
massa liquida são apenas d um ou dois me- horrível trovoada.
t r o s ; n'esta tem seis a sete. A difFerença é fá- No verão pòde-se estar entre o rochedo e o len-
cil de notar. Do lado americano a agua, no çol d'agua que se despenha, mas no inverno não
m o m e n t o de cahir, perde a còr escura e torna- correm aqui mais do que dois pequenos filetes
se b r a n c a ; do lado canadiano conserva a sua d'agua e a m u r a l h a liquida é substituida por in-
còr esverdeada d u r a n t e dez metros de queda e numeras columnatas, roupagens, estalactites de
o contraste dos tons junta a variedade ao gran- formas variadas e d'aspecto deslumbrante. Umas
dioso. vezes é amplo manto de pregas ondulantes que
Q u a n d o se está perto do leito superior do rio, cahe do tecto da caverna até ao solo; mais longe
vê-se este, immenso como um m a r , chegar á que- são immensas canneluras, columnas potentes,
da por u m a serie de rápidos onde se encapella onduladas, espheroidaes das quaes estão suspen-
arrastado por incalculável força. Até tão longe sas estalactites de todos os tamanhos, desde o
q u a n t o a vista pôde alcançar, a agua em cachão mais delgado fuso até ao mais grosso tubo dos
vae q u e b r a r - s e d ' e n c o n t r o aos rochedos á flòr orgãos das nossas cathedraes. R o u p a g e n s pare-
d ' a g u a . N'uns sitios contorce-se espumante, em cem envolver troncos d'arvores giganteas, onde
outros conserva a sua primitiva còr esverdeada patenteam as elegancias das suas franjas pen-
e principalmente na cataracta, onde se precipita dentes. O ceu azul reflete-se nas paredes espe-
como attrahido pelo vácuo. E m f i m faltando-lhe lhadas e projecta reflexos cerúleos, em quanto
o ponto d appoio d um salto immenso cahe no que o sol produz cambiantes incandescentes e faz
abysmo, d onde se levanta uma espessa nuvem brilhar as pregas das roupagens como couraças
de vapor d'agua que impede de lhe vêr o f u n d o d'aço polido. Os reflexos da luz solar produzem
branco d e s p u m a ; o rio reapparece um m o m e n t o irisiações d'opala, tons d e s m e r a l d a s . Eicar-se-
para se introduzir sob a abobada de gelo d onde hiam horas contemplando estes esplendores que
sahe socegado e tranquillo, fatigado com tantos nos t r a n s p o r t a m a um m u n d o de fadas, mas
choques e luctas. No centro da f e r r a d u r a a nu- o frio invade-nos e o guia está aqui ao nosso
vem de vapor d'agua é mais espessa e intercepta lado apressando-nos para nos mostrar a pequena
a vista. Algumas vezes batida por u m a rajada nascente d'agua sulphurosa que escorre atravez
de vento inclina-se e deixa apparecer o centro do rochedo e o logar onde um h o m e m atraves-
da curva, onde um banco de granito parallelo sou n'este mesmo dia e n'este anno pela primeira
á m a r g e m produz um rasgão no lençol d'agua, vez os gelos que cobrem o rio.
que a pouca distancia novamente reunindo-se
Anoiteceu e eu metti-me no trenó que rapi-
fôrma um cahos indiscriptivel. E a visão d u m
damente me levou á hospedaria onde passei so-
m o m e n t o e a nuvem novamente cobre o banco.
litariamente a ultima noite do anno, pensando
Visitei a gruta dos Ventos, então transfor- melancholicamente nas festas de familia.
mada em g r u t a de gelo. Desce-se a uma torre No dia seguinte voltei a vêr mais minuciosa-
de madeira com a b e r t u r a s a différentes niveis mente a margem americana. Do outro lado ti-
por onde se vê a cataracta sob todos os seus as- nha sido o ultimo visitante do anno de 1878;
pectos. Na base, em terra introduzem-se os pés d'este lado era o primeiro visitante no anno de
em apparelhos proprios para poder caminhar 1879. P e n e t r o n um p a r q u e e o meu trenó pára
por sobre a camada de gelo que agora cobre o em frente d uma cabana d'onde me convidam a
solo. Está-se ao pé da queda e aqui bem se vê entrar. E n c o n t r o um plano inclinado descendo
como ella se fôrma. á base da rocha, onde está uma outra cabana de
O espectáculo e x t r a o r d i n a r i a m e n t e sublime madeira. Um guia toma conta de mim e leva-me
está superior a q u a l q u e r descripção. D um lado para um pequeno pavilhão construido sobre
a parede de rocha que se ergue e recurva em um rochedo, o mais proximo do ponto d'onde
voluta parece prestes a esmagar o audacioso a agua se precipita. No verão tudo isto deve es-
que se aventure sob este tecto gigante. A meus tar escorrendo agua; n'este m o m e n t o tudo está
pés estende-se u m a superficie ondulada como as sepultado sob uma camada de gelo com a espes-
vagas do Oceano irisiadas por cambiantes de sura d um metro. O vento do norte impelle para
luz formosíssimos, q u a n d o o sol as fere. Na mi- aqui uma nuvem de pó liquido que se precipita
nha frente, a massa terrível d uma força infinita sobre todos os pontos. O frio intenso actuando
parece arremeçar-se a mim para me envolver no instantaneamente congela estas tenuissimas got-
Á V O L T A DO .MUNDO '75

tas d'agua e congela-as. Primeiro vejo a cataracta lançada no espaço, depois iníletir-se e precipi-
por uma janella feita especialmente para este tar-se no abysmo com a velocidade do raio.
fim, á qual para conservar a abertura desem- Sahimos do pavilhão, e encontramos sobre o
baraçada todos os dias se parte o gelo que a tapa, S. Loureneo congelado. Subimos não sem custo
como fazem as phocas no oceano Ártico para vir a um dos séracs de gelo que se erguiam em
respirar á superfície das aguas congeladas. A frente de nós e então vi o Niagara que eu pude
muralha de gelo tem uma espessura de muitos contemplar em todo o seu explendor. A massa
pés e diminue o campo visual, augmentando as- gigantesca cahe a alguns metros adeante de mim:
sim o effeito do quadro que temos sob os olhos. no seu incomparável poder, vindo cahir aos pés
Pela abertura reduzida a alguns centimetros semi-escondida em nuvens de vapor que se er-
vê-se o ponto preciso em que a agua abandona guem até ao nivel superior da queda onde re-
o rochedo para começar a q u e d a : vê-se a ultima flectem as còres do espectro solar quando feridas
vaga projectada da borda do precipício como pelo sol, domina-me, esmaga-me. A massa cahe,
por uma catapulta; vê-se a massa enorme saltar. cahe sempre, eternamente, terrível. Cobre-nos

0 NIAGARA, vista da illia das Cabras — Desenho de Th. W e h e r , s e c u n d o u m a photographia

com a sua húmida respiração que se deposita do-se em toda a sua magestade, se a massa col-
em crystaes gelados sobre as massas dos gelos lossal da queda canadiana, com as suas propor-
que a todos os instantes augmentam. O meu guia ções tão grandiosas que a queda americana ape-
convida-me a atravessar o S. Lourenço na ponte nas parece uma cortina de musselina franjada de
que o Inverno alli acaba de construir e acceito espuma.
sem hesitar. E uma expedição semelhante á feita Voltando á margem subi o plano inclinado
aos Alpes com os seus precipicios e com todas as para visitar a ilha das Cabras. Está ligada ao
sensações de perigo imminente. As vezes um continente americano por uma ponte onde cir-
surdo ruido ou um estalido sinistro annuncia culam carruagens. Na ilha ha av-enidas ladeadas
uma fractura interior na camada que pisamos, d'arvoredo e pequenos caminhos ahi serpeiam,
mas eu, tanto me captiva a vista do Niagara, devendo no verão ser encantadores, mas sem
nem n'isso penso. Passando assim revista á ca- que todavia possam oíferecer então um espectá-
taracta, comtemplando-a de perto e de frente, eu culo tão notável e tão phantastico como hoje,
não sei que mais admirar, se a queda americana n'esta clara manhã d inverno.
que ruge cahindo aos meus pés quasi tocando- Todos os troncos d'arvores estão revestidos
me e attrahindo-me com a sua velocidade vertigi- por uma segunda casca d'humidade congelada,
nosa, se no meio do rio o quadro desenrolan- todos os ramos desde o mais grosso até ao mais
Á V O L T A DO .MUNDO '75

delgado vergam sob o pezo d u m a couraça de Chegado ás pequenas ilhotas fiquei comple-
gelo que completamente os envolve. tamente cercado pela cataracta. Cahe-me aos
A mais fina folha d uma gramínea tem o seu pés, rola na minha frente, por de traz de mim
vestido de resplandecente alvura. Dir-se-hia uma levanta os seus cachões, por cima da minha ca-
floresta encantada tocada pela vara magica do beça envolve-me com os seus rugidos ensurde-
Deus do inverno. cedores; sinto-me attrahido pelo movimento im-
Aqui é um macisso d'arvores suspendendo petuoso de que tudo em volta de mim está ani-
por cima do abysmo os seus ramos carregados mado. Parece-me ser arrastado pelo turbilhão
de estalactites; mais longe um pequeno arco de das vagas enormes, precipitado no abysmo e en-
verdura desapparece sob uma túnica resplande- volto no enorme cylindro d'agua que cahe e se
cente. As pontes, os rochedos, o proprio solo esmaga.
está coberto d um manto d arminho. Cada aresta Que penna poderia descrever os esplendores
reflete até ao infinito raios prateados. O proprio do Niagara ? Trollope analysa-a, discute-a e põe
sol n este manto de gelo perde a sua côr dou- em relevo todas as suas bellezas. Dickens des-
rada. A sua luz tem tons frios e azulados como creve-a em algumas palavras n um accesso d'en-
se fôra uma lua com luz própria. Dir-se-hia um thusiasmo. Chateaubriand vê-a talvez com olhos
sol electrico. Os olhos ficam deslumbrados e d'inspirado, mas as suas palavras e as suas ima-
quando se fecham por um momento continuam gens não podem desenhar estes prodigios, prin-
a vêr-se um sem numero de faiscas prateadas. cipalmente com os mil contrastes que a mão do
Nos diversos rochedos que subdividem a inverno lhe prodigalisa.
queda d a g u a construíram pequenas pontes que Eu só encontro a palavra ingleza uncarthly
homens desembaraçam a golpes de machado do que pôde traduzir a impressão com que fiquei.
seu envolucro de gelo. P u d e assim vèr a espes- Sim, na verdade, aquillo é um espectáculo que
sura do gelo e pontos ha em que tinha attingido não é do nosso mundo.
a espessura de pé e meio. FIM

MEMORIAS DO ULTRAMAR
VIAGENS, E X P L O R A Ç Õ E S E CONQUISTAS DOS P O R T U G U E Z E S
COLLECÇÃO DE DOCUMENTOS
POR

LUCIANO CORDEIRO
1593-1631

ri'lHKAS E MINAS AFRICANAS


SEGUNDO

BALTHAZAR REBELLO DE ARAGÃO


íContinuaeão da folha 16 — 3." anno)

caso que seja Deus servido de me poderá vender, ou retirar, como lhe parecer me-

f
. SENDO

• levar para si, sem haver dado cumprimento lhor.


ao que digo, se a pessoa que eu nomear o E para satisfação do que digo sé pôde Sua
cumprir, dando satisfação ao que dever á Magestade m a n d a r informar de mim, se darei
fazenda de Sua Magestade, será o dito senhor cumprimento a este negocio com muita satisfa-
obrigado a lhe fazer as ditas mercês como a mim ção e zèlo de seu serviço, do presidente da ca-
em pessoa, se vivo fòra, e não querendo elle se- mara João F u r t a d o de Mendonça, que foi go-
guir a dita fabrica, não será mais obrigado que vernador de Angola, de Bento Banha Cardoso,
a pagar por mim o que eu dever á fazenda de do dr. André Velho da Fonseca que foi lá por
Sua Magestade, e a fabrica que mais houver a desembargador, pessoas de muito credito e ex-
Á VOLTA

periencia, a qual em mim não falta, hor haver mais que o cargo de provedor da fazenda de
trinta annos que resido n'aquellas partes, nem Angola por tempo de très annos, navegante dos
posse e qualidade para poder servir Sua Ma- providos, no que se lhe fez notável aggravo,
gestade como até agora tenho feito. pois o dito cargo o não honra, por haver servi-
do a Vossa Magestade em outros maiores, nem
IV lhe é de proveito, pois no dito reino não ha fa-
zenda de Vossa Magestade que elle haja de ad-
ióyi ministrar, que está o rendimento d ella por con-
trato, e se alguma honra houver ha de ser com
Serviços dc Balthasar Rebello muito trabalho e risco d'elle supplicante, por-
que os governadores não soffrem no dito reino
Balthasar Rebello de Aragão, capitão mór o tal cargo, e quando vier a haver rendimento
que foi na conquista de Angola, que mandando se lhe acabará o tempo de très annos de serven-
Sua Magestade, que Deus tem, El-Rei D. Filip- tia do dito cargo.
pe por governador do dito reino a D. Francisco Pelo que Vossa Magestade lhe não paga seus
de Almeida no anno de 93, mandou o dito Se- serviços, antes o manda servir de novo e arris-
nhor pregoar uma provisão que toda a pessoa car sua pessoa e fazenda sobre cobrar e empa-
que o fosse servir ao dito reino lhe faria honras droar o rendimento dos sovas, e quintos, e fisco
e mercês e havia os ditos serviços por qualifica- real e outras muitas cousas que pertencem á fa-
dos, como se foram feitos em Africa, pela qual ! zenda de Vossa Magestade que não estão postas
rasão elle supplicante assentou praça n'este rei- em rasão e as cobram e possuem os governado-
no e foi servir a Sua .Magestade no anno de 93, res do dito reino e outras pessoas.
onde serviu de soldado, capitão e capitão mòr E não parece justiça se lhe dê a serventia de
da gente de cavallo e capitão mór do campo mui um cargo de tanto trabalho e pouco proveito
pontualmente, como se verá pelo decreto de seus por tempo de très annos em satisfação de trinta
serviços. e oito annos de serviços tão honrados, e de tanto
It. e indo por governador do dito reino João gasto de sua fazenda, como se verá do decreto
Rodrigues Coutinho, Sua Magestade, que Deus d'elles.
tem El-Rei Filippe II, concedeu de novo as di- E porque elle supplicante è de geração de
tas mercês e seus hábitos de Christo, para dar fidalgos e tem bons procedimentos, não esti-
ás pessoas que bem servissem na dita conquista, mando a fazenda no serviço de Vossa Magestade,
o que elle supplicante fez, servindo com quatro pessoa onde cabem e estão bem empregadas as
cavallos á sua custa, assustentando muitos ca- honras e mercês que Vossa Magestade lhe fizer,
vallos que corriam por conta de Vossa Mages- não acceita a dita mercê, antes de novo pede
tade, dando mesa a muitos soldados pobres, no humildemente a Vossa Magestade lhe faça mercê
que gastou muita fazenda em serviço de Vossa de o honrar com o fòro de moço fidalgo e o ha-
Magestade, para com isso merecer as honras e bito de Christo com 5035000 réis de tença pagos
mercês que Vossa Magestade promette a quem em Angola.
bem o servir nas ditas partes, donde fez a for- Trazendo, por exemplo, haver Vossa Mages-
taleza de Mochima á sua custa e ajudou a fazer I tade feito mercê a João Viloria, pelos serviços
a de Cambe, carregando a pedra ás costas, e a de Angola, do habito de Christo, com 20$ooo
defendeu no cerco que teve com muito gasto réis de tença e fòro de cavalleiro fidalgo e mar-
de sua fazenda e morte de muitos escravos de cador dos escravos, que rende mais de 1:000 cru-
preço. zados cada anno, para casamento de uma filha
E n t e n d e n d o elle supplicante ter bem servido sua, e a D. P e d r o Rezoles, que foi soldado d'elle
a Vossa Magestade e ser fidalgo de geração e supplicante, fez Vossa Magestade mercê do ha-
de bons procedimentos, pediu a Vossa Mages- bito de Christo, com 5035000 réis de tença e a
tade lhe fizesse mercê de o honrar com o fôro de fortaleza de Cambambe, sendo ambos estran-
fidalgo e uma commenda, e alcaide mór de Loan- geiros.
da e fortaleza de Cambambe, para casamento E a Silvestre Landim fez Vossa Magestade
de u m a filha sua legitima, e o cargo de prove- mercê do habito com 40CP000 réis de tença n'este
dor da fazenda para casamento de outra, não se reino, não sendo os serviços, nem qualidades,
lhe defferiu a coisa alguma que o possa h o n r a r d'estas pessoas móres que as d'elle supplicante.
148 Á V O L T A DO MUNDO

E não lhe fazendo Vossa Magestade mercê é serviço que elle de novo vae fazer a Vossa Ma-
como elle merece e Vossa Magestade promette gestade, que mercê que n'isso receba, em satis-
por suas provisões que vão acostadas a seus ser- fação de tantos serviços e gasto de sua fazenda
viços, que foi a causa que o obrigou a vir a este que Vossa Magestade em consciência lhe deve
reino de tão remotas partes, com tanto gasto mandar pagar e dar satisfação no que
e despeza de sua fazenda, para com mercês de
Vossa Magestade ser honrado como espera, elle R. ÍM.
não acceita o cargo de provedor.
Em satisfação de seus serviços e porque mais FlM

-K3S>i"

OS DOZE DE INGLATERRA
ESTUDO CRITICO-HISTORICO
j t
|Continuação da folha 8 — 2.° anno)

« a
c o u s a de maior espanto, e em que de- Quatro nomes apenas!
T t L seja de gastar muitas mãos de papel, é, Esta quasi anonymia é, como vimos, uma das
JJ que essa nossa gente a maior d'ella, ou feições características de relações semelhantes,
quasi toda eram soldados, d entre Douro e por isso uma prova importantíssima da sua
e Minho, da Beira e de Traz-os-Montes, homens authenticidade.
não conhecidos, nem de appelidos usurpados, O catalogo dos Doze apparece em nota mar-
senão creados pobres, e rusticamente mal vesti- ginal na edição dos Diologos de íMariz de 1758,
dos, e peior atados. Mas por certo que por elles mas de tal sorte contrasta com o texto, que o
se podia dizer, o que se já disse por Cesar, que temos por apocripho, e mesmo só pela primeira
se guardassem d'aquelle mancebo mal cingido. vez apposto a elle n aquella edição.
Assim d'estes nossos portuguezes, a quem a falta A primeira vez que o catalogo completo ap-
de sangue encobriu o grande valor do espirito, pareceu em publico foi no opusculo de Ignacio
se podia dizer: «Guardae-vos d a q u e l l e s esfarra- Rodrigues V é d o u r o — D e s a f i o dos doze de Ingla-
pados, e d'aquellas espadas ferrugentas, porque terra, em 1732.
alli vão outros Cesares». E assim vieis um d'estes Já em 1724 havia sido accusada a existencia
posto de barba a barba contra muitos dos inimi- d este catalogo em u m a Miscellanea ms., exis-
gos, e cortal-os com tanto valor, e esforço, que tente na livraria do conde de Vimeiro desde os
vos mettia medo, e causava grandíssimo espanto, fins do século anterior.
e endireitar com um elephante bravo, que pode- Quem seria o auctor?
ria fazer recuar todo um exercito, e fazel-o virar Védouro aponta como fontes do seu opusculo
para traz, como se fôra outra alimaria mais bra- os Luziadas, com os commentarios de Manuel
va, e mais feroz que ella. E estes de que fallo Correia e de Faria e S o u s a ; cita mais o 2. 0 con-
são os que acabaram na índia os mais dos fei- de da Ericeira, D. F e r n a n d o de Menezes, 1614-
tos arriscados, que n'esta se c o m m e t t e r a m ; e os 1693.
que n'esta ilha de Ceylão sustentaram este e ou- Ora, não se encontrando o catalogo nos Lu-
tros cercos, de que se p u d e r a m fazer muitas es- ziadas, nem nos commentadores citados, resta,
cripturas, se o tempo e o descuido lhe não tivera por exclusão de partes, attribuil-o a D. F e r n a n d o
sepultados os nomes, e com elles os feitos. de Menezes.
(Couto, Dec. 7. Liv. 10, Cap. 14, pag. 553 da edição de 1778). A celebridade do caso, principalmente depois
do episodio dos Luziadas, devia excitar a vaida-
II
de nacional e aristocratica, a completar o cata-
Tomando a narrativa de Mariz como a mais logo dos Doze, de que apenas quatro eram os
fiel expressão da relação primitiva, vêmos que nomeados.
ella apenas menciona Alvaro d'Almada, Alvaro
Gonçalves Magriço, Pacheco e P e d r o Homem. IContinua.)
C O M O EU ATRAVESSEI A AFRICA
DO ATLANTICO AO MAR INDICO—VIAGEM DE BENGUELLA Á C O N T R A - C O S T A — A T R A V É S REGIÕES
DESCONHECIDAS — D E T E R M I N A Ç Õ E S GEOGRAPHICAS E E S T U D O S ETHNOGRAPHICOS
. POR

P M I W O

PRIMEIRA FA.RTB

a c a r a b i n a d'el-rei
( C o n t i n u a ç ã o da folha 17 — 3." anilo)

Epois, u m a o u t r a ideia, não me sahia da debaixo do ponto de vista g e o g r a p h i c o , com t a n t o


m e n t e . A o chegar alli, soube, q u e u m mais interesse, q u a n t o elle é desconhecido aos
b r a n c o (Macua), q u e não era missionário g e o g r a p h o s , que nas suas cartas o t e m p r e e n -
n e m c o m m e r c i a n t e , estava a c a m p a d o d e - chido até hoje com linhas mal s e g u r a s , t r a ç a d a s
fronte de mim, na outra margem do Cuando. pela m ã o t r e m u l a da duvida, colhida nas infor-
Q u e m seria o m e u c o m p a n h e i r o n'aquellas mações pouco idóneas e c o n t r a d i c t o r i a s de g e n t e
remotas paragens? ignara.
A r d i a em curiosidade, e contava os instantes Um e u r o p e u , Silva P o r t o , atravessou aquella
p a r a o alvorecer do dia s e g u i n t e . parte da p l a n u r a africana, antes de m i m , e em
g r a n d e p a r t e m u i t o mais ao sul do caminho q u e
s e g u i ; m a s Silva P o r t o n u n c a publicou as suas
CAPITULO SUPPLEMENTAR i n t e r e s s a n t í s s i m a s notas, q u e agora a n d a p o n d o
em o r d e m ; e é preciso dizer, que, se essas no-
A paginas 184, em capitulo analogo a este, tas dão um valioso subsidio ao e s t u d o da ethno-
t r a t e i p o r m o d o succinto d o s paizes c o m p r e h e n - g r a p h i a africana, pelo m q i t o q u e a sua vista
d i d o s no m e u c a m i n h o e n t r e a costa de O e s t e e o b s e r v a d o r a p e r s c r u t o u dos c o s t u m e s e do vi-
o Bihé. ver dos negros, dão ellas um fraco auxilio ás
N'este capitulo buscarei e p i t o m a r o q u e nos sciencias g e o g r a p h i c a s , em q u e elle, por falta de
m e u s t r a b a l h o s escolhi de mais i n t e r e s s a n t e , re- e l e m e n t o s , não p ô d e fazer um t r a b a l h o serio.
lativo ao vasto t e r r i t o r i o q u e m e d e i a do B i h é ao S ã o paizes c o m p l e t a m e n t e novos á geogra-
c u r s o s u p e r i o r do rio Zambeze, até o n d e t e r m i n a p h i a aquelles q u e apresentei nos a n t e c e d e n t e s
a n a r r a t i v a da m i n h a viagem na pagina a n t e c e - capitulos, e de q u e vou t r a c t a r n'este.
dente. As c o o r d e n a d a s g e o g r a p h i c a s dos principaes
A p r e s e n t a n d o u m r e s u m o das m i n h a s deter- p o n t o s do m e u itinerário f o r a m calculadas dos
minações a s t r o n ó m i c a s , dos m e u s e s t u d o s me- e l e m e n t o s q u e adiante publico.
teorologicos, etc., s e m p e d a n t i s m o o faço, e creio C o m e ç a r e i p o r descrever o systema fluvial
a p e n a s n'isso c u m p r i r u m dever, t o r n a n d o pú- d esta parte da p l a n u r a africana.
blicos um c e r t o n u m e r o de e s t u d o s e t r a b a l h o s As u l t i m a s aguas q u e c o r r e m á costa de Oeste
de q u e fui e n c a r r e g a d o , e q u e , se não interes- n a s c e m em t o r n o do B i h é , d e n t r o de um V
sam a a l g u n s leitores, p o d e m m e r e c e r attenção e n o r m e f o r m a d o p o r dois rios, o C u b a n d o e o
de o u t r o s . Cùito, q u e , depois de se u n i r e m em Darico, vão
S e m q u e r e r a l c u n h a r - m e d e sábio, declarar- c o r r e r a S. E. no d e s e r t o do Calaari.
me ignaro seria afFectação. O systema fluvial da Costa Oeste, e n t r e a foz
A l é m da carta geral d ' A f r i c a tropical do sul, do Cuanza e a do C u n e n e , t e r m i n a quasi alli,
quiz eu a p r e s e n t a r a l g u m a s c a r t a s parciaes dos r e c e b e n d o ainda o Cuanza alguns afíluentes de
paizes q u e mais m e r e c e r a m a m i n h a attenção no Leste, q u e vão b u s c a r as suas aguas ao m e r e -
c a m i n h o q u e segui, por p o d e r dar a estas um d i a n o 18 E. G r e e n w . ; taes s ã o : o rio O n d a , q u e
d e s e n v o l v i m e n t o de d e t a l h e s que a p e q u e n a es- a i n d a nasce d e n t r o do angulo f o r m a d o pelo Cu-
cala d ' a q u e l l a não c o m p o r t a r i a . b a n g o e Cúito, e o Cuiba e o C u i m e , q u e en-
Vou tratar d esse e n o r m e t r a c t o de t e r r i t o r i o , t r e l a ç a m as s u a s nascentes com as do C u i t o e
155 A V O L T A
DO .MUNDO

as de outro rio, o Lungo-é-ungo, que pelo Zam- Os affluentes do rio Cuando, pela maior
beze vai lançar no mar Indico aguas bebidas nos parte navegaveis, representam uma extensão de
charcos de Cangala, por 18 de longitude, e que ! vias fluviaes não inferior a mil milhas geogra-
percorrem a enorme distancia de mil quatrocen- phicas, ou proximamente mil e oitocentos kilo-
tas e quarenta milhas, para attingirem a meta metros, que com o curso d'aquelle rio perfaz um
que a natureza lhes marcou. A latitude d'estas total superior a 1600 milhas, ou perto de tres
nascentes, que, em amigavel convívio, partilham j mil kilometros. Estes algarismos enormes re-
as suas aguas para pontos da terra tão distantes, presentam a importancia d'aquella parte do pla-
é proximamente de 12o e 30o, isto é, está n essa nalto africano.
faxa, comprehendida entre os parallelos 11 e 13, Forçando a minha marcha, entre mil diffi-
onde nascem os dois rios gigantes da Africa Aus- 1
culdades, pude seguir a linha das nascentes do
tral, o Zaire e o Zambeze, e seus principaes af- grande rio e seus principaes affluentes, que fi-
fluentes. caram perfeitamente determinados nos seus cur-
E n t r e o E q u a d o r e o parallelo 20 austral e sos superiores.
esses dois rios formam dois systemas d'aguas Aos traçados hypotheticos, a que a maior
perfeitamente definidos, mas que tem um traço parte dos geographos preferiam deixar na carta
commum de união no parallelo 12 e na faxa que d aquella parte d Africa um branco enorme, pu-
1
borda esse paral'elo 60 milhas ao sul e ao nor- de substituir um traçado firme e seguro do paiz
te, entrelaçando alli as suas origens muitos dos ! ignoto.
grandes affluentes dos dois colossos, e formando O rio Queimbo, o Cubangí, o Cuchibi e o
de per si cada um d'elles um systema d'aguas [ Chicului, são todos rios navegaveis, banhando
que vai engrossar as duas artérias principaes. ferteis paizes e promettendo um futuro áquella
1
Assim pois, entre os meredianos 18 e 35 a parte do continente negro, livre do zê-zê, a mosca
leste de Greenwich, e os parallelos 8 e 15 aus- terrivel, que corta cerce o porvir de muitos ou-
traes, toda a agua que corre ao Norte vai entrar tros terrenos africanos.
no Atlântico por 6o, 8', com o nome de Zaire; Agora, que em breves traços apresentei o
toda a que corre ao sul entra no Oceano Indico grande e principal systema d aguas das terras
por 18o, 50', com o nome de Zambeze. comprehendidas entre o Bihé e o Zambeze, vou
Caminhando a E. S. E. aífastava-me da bem succintamente fallar da sua orographia.
pronunciada linha divisória das aguas dos dois P a r a isso preciso antes dizer duas palavras
grandes rios, e ao passo que os meus ex-com- da constituição geologica do solo, que facil-
panheiros se entregavam ao estudo de um d'es- mente explica os pequenos accidentes d elle.
ses systemas d'aguas filial do Zaire, eu seguia O solo africano austral é rocha das epochas
passo a passo outro filial do Zambeze, e á me- primitivas. Se junto ás costas, nos terrenos bai-
dida que avançava do interior do continente, xos observamos os depositos sedimentares, e o
esse systema ia-se apresentando firmemente de- trabalho da agua, elles acabam alli, para não
finido e claro. deixar perceber mais do que a acção do fogo.
Os paizes de que fallei nos anteriores capí- Os calcareos terminam nas escarpas oeste das
tulos, os mesmos de que estou tratando aqui, montanhas que formam os primeiros degraus
são a séde de um systema fluvial, que fôrma um do planalto. Succede-lhes immediatamente o ter-
dos principaes, se não o principal, affluentes do reno plutonico, e encontramos até ao Bihé o
Zambeze. O rio Cuando, artéria principal d este granito primitivo, profusamente distribuido. Do
systema, nasce por 18o, 57' de longitude, 12o, Bihé para leste o granito vae desapparecendo, e
59' latitude, n um pequeno charco apaulado, su- além Cuanza é substituido pelos xistos argilo-
perior ao nivel do mar em 1362 metros. sos e micaxistos.
A sua foz, na confluência com o Zambeze, È sempre o terreno eruptivo, mas debaixo
está collocada em 17o, 49' de latitude, 25o, 23' da acção do metamorphismo. EíTectivamente, do
de longitude, na altura de 940 metros do nivel Cuanza ao Zambeze o solo é metamorphico.
do mar. A extensão do seu curso é de 540 mi- São xistos e mecaxistos, tornados de tal modo
lhas geographicas, ou proximamente mil kilo- plásticos, pela acção das grandes aguas, que do
metros. O seu desnivelamento da nascente á foz Bihé ao Zambeze, se algum viajante tencionar
é de 422 metros, ou de um metro em cada 2369 um dia alli atirar alguma pedrada, eu recom-
metros de curso. mendo-lhe que leve pedras do Bihé e d onde
156
A V O L T A DO .MUNDO

termina a região granitica, porque em todo o Os Quiôcos e Lobares faliam dialectos diffé-
caminho que segui não encontra uma só. rentes, e os Mucassequeres uma lingua origi-
A natureza do terreno explica por si mesma nal, tão diversa das outras, que é impossivel
o seu pouco accidentado, e a lalta de cataractas serem comprehendidos de povos estranhos.
e rápidos nos rios d esta região africana. Em Os Quimbandes são indolentos e pouco guer-
todo o caminho que segui ha uma depressão reiros, pouco agricultores e pobres em gados,
constante no terreno até ao leito do Zambeze, occupando um paiz fertilissimo, em todas as
formando uma inclinação suave. Esta depressão condições de dar a riqueza aos seus possuido-
é de 292 metros, em 720 kilometros, que me- res.
deiam da margem do rio Cuanza á planicie do F o r m a n d o federação, não deixam de andar
Nhengo. em questões continuadas com os visinhos da
A orographia d aquella região é produzida mesma raça.
pela acção da agua, e perfeitamente marcada Não são bravos, mas são ladrões, e atacam
pelas depressões dos leitos dos rios. sempre as comitivas do Bihé que vão negociar
30 a 40 metros acima do nivel das aguas cera mais ao interior, logo que essas comiti-
correntes, se elevam systemas de montes de cu- vas são fracas e elles conhecem que podem ven-
miadas arredondadas e uniformes, acompanhan- cer.
do sempre sem excepção o curso das aguas. E certo, logo que desfila uma comitiva no
A flora que se nos apresenta no Bihé, e onde paiz, estarem elles embuscados a contar as es-
a planura attinge a sua maior elevação, mais pingardas que traz, e o numero de caixas de
pobre em arvores, mas riquíssima em arbustos polvora, que se distinguem pelo seu involucro
e plantas herbaceas, na parte leste do paiz do de pelle de leopardo, costume adoptado pelos
Bihé, e sobre tudo além Cuanza, já recupera, sertanejos Bihenos.
com a menor elevação do solo, toda a sua rique- Se alguém entrar no paiz dos Quimbandes
za tropical. com 50 espingardas e seis ou oito caixas de car-
A caça, que escaceia desde o paiz do Huam- tuxos, pôde dormir descançado, que só terá d'el-
bo até proximo da nascente do Cuando, reap- les amizade e respeito.
parece abundante d alli até ao Alto Zambeze. Os Euchazes, um pouco mais agricultores
Seis raças perfeitamente distinctas, e que os do que os Quimbandes, não possuem já reba-
sertanejos da costa confundem debaixo do nome nhos bovinos, e apenas ha aqui e além algum
generico de Ganguelas, assentam as suas povoa- gado caprino de inferior especie.
ções do Cuanza ao Nhengo. Já cuidam de colher cera, e são um pouco
O paiz a leste do Cuanza, na parte que é mais industriosos do que os seus visinhos de
cortado pelos rios Cuime, Ouda e Varea, e seus oeste.
pequenos affluentes, é habitado pelos Quimban- E m q u a n t o a valor e honestidade, orçam pelo
des. mesmo. Constituídos em federação como aquel-
Do Cuito á nascente do Cuando, assentam as les, cada povoação tem um chefe independente,
suas povoações os Euchazes. Os affluentes de E. um pequeno senhor, que não se dá ares de ty-
do Cuando, este mesmo rio, são povoados de ranno com o seu povo.
gentes de raça Ambuela. Os Ambuelas, de muito melhor indole, não
Como disse na minha narrativa, o paiz dos são nada guerreiros. São talvez a melhor gente
Euchazes está sendo invadido por uma emigra- indígena da Africa Austral.
ção enorme de Quiôcos 0 u Quibòcos, que ten- Grandes cultivadores, não trabalham menos
dem a estabelecer-se nas margens do rio Cuito. na colheita da cera. São pobres, podendo ser
E n t r e este rio e o Cuando e muito para o sul, riquíssimos se tivessem gados.
o paiz, sem povoações fixas, é com tudo occu- f o r m a m federação com os outros, mas os
pado por uma grande população nómada, os chefes conservam um pouco mais de indepen-
Mucassequeres. dencia.
A margem sul do rio Lungo-é-ungo e seus Em geral, vi na Africa, que mais felizes e li-
pequenos affluentes, são habitados por os Eoba- vres são os povos governados por pequenos se-
res. Tres d estas raças, os Quimbandes, Eucha- nhores. Não se praticam alli as scenas de hor-
zes e Ambuelas, faliam a mesma lingua, o Gan- ror tão vulgares nos grandes impérios regidos
guela, com pequenas modificações. por autocratas.
Á V O L T A DO .MUNDO '75

Se o roubo é vulgar, é desconhecido alli o mos muitos indígenas que seguem a lei do Evan-
assassino, ao passo que entre os grandes poten- gelho. No Basuto ha christãos convictos, inde-
tados o roubo vem depois do homicidio. pendente da influencia d'alguns chefes que o
Sem pretenções a propheta, quero crer que não são.
um dia, será entre aquelles povos que se esta- Se os exemplos são estes, aquelles que vêem
beleceram os mais seguros elementos de civili- no missionário o primeiro mensageiro da civi-
sação europêa na Africa. lisação africana, que ataquem os pontos fracos
E minha opinião, que nos paizes occupados do reducto, e não vão perecer ingloriamente
pelas confederações africanas, regidos por pe- onde o cruzamento dos fogos é mais activo.
quenos régulos, de indole menos guerreira, por Eu sou apologista do missionário, merecem-
se reconhecerem mais fracos, é que deve entrar me a maior consideração não só as missões, em
a civilisaçáo com mão forte, debaixo da fôrma si mesmo, mas os seus membros espalhados no
do commercio, do missionário e do explorador. meio dos povos barbaros do continente negro.
Divirjo, por tanto, da opinião do mais ousa- Tenho visto em quasi todos os que conheço a
do dos exploradores, do mais energico trabalha- tendencia para seguirem um caminho differente
dor africano, do mais dedicado apostolo da ci- d aquelle que aponto.
vilisação do continente negro, do meu amigo H. Todos querem um grande numero de ade-
M. Stanley. ptos para a cathese, sem olharem ao terreno em
Diz elle, que devem os missionários atacar a que semeiam.
Africa pelos grandes potentados. Uma vez que incidentalmente fallei dos mis-
Não penso assim, e o estudo dos factos de- sionários africanos, vou rapidamente dizer duas
monstra-me o contrario. palavras mais sobre o assumpto, que me propo-
O Matebelle desde 25 annos que possue mis- nho a reatar um dia largamente em obra ade-
sionários inglezes, e não ha alli um só christão! quada.
Se o chefe é catechisado, o seu povo obedece e Eu francamente não creio o cerebro do preto
finge seguir a lei de Christo. á altura de comprehender um certo numero de
E como a estatua de Nabuchodonosor, tem questões, comezinhas entre povos de raças evi-
pés de barro aquella civilisação. dentemente superiores.
Morra o chefe, venha outro que não queira As questões abstractas são sublimes e incom-
trocar o harém onde ceva a brutal lascívia, pelo prehensiveis a tão inferiores organisações.
thalamo nupcial onde uma só esposa lhe acom- Explicar theologia a um preto equivale a ex-
panhe os passos na carreira da vida, e cahiu o por as sublimidades do calculo diííerencial a
monumento, a civilisação destez-se, e não ha uma assembleia de camponios.
ámanhã um só christão na egreja que hoje re- Mas, se o preto não está á altura de poder
gorgitava de povo. jámais comprehender as verdades da religião de
O commercio é bem recebido pelo grande Christo, tem sem duvida o sentimento do bem
potentado, porque representa interesses imme- e do mal, e está nas condições de comprehender
diatos, materiaes de que elle colhe o fructo. os princípios de moral commum.
No Matebelle, onde os missionários inglezes Marchem para entre os povos ignaros d Afri-
não tem podido fazer escutar a doutrina de ca Central os missionários, sigam sem trepidar
Christo, os- negociantes inglezes tem introduzi- o caminho que lhes impõe a sua missão evan-
do com o vestuário e com outras necessidades gélica, mas desvendem os olhos.
que tem sabido crear, uma civilisação relativa. Tomem para si o que ha de abstracto na scien-
Podem apontar-me o exemplo do Baman- cia de Deus, e não queiram ensinar aos negros
guato, mas eu respondo com o que já disse. o que ha de sublime n'ella para cerebros mais
Morra o rei Khama, e vá ao poder um sova bem organisados. Ensinem moral e só moral
que não queira ser christão, e todos os cate- com o exemplo, e com a palavra; criem neces-
chisados se esvairam como fumo. Os negocian- sidades aos que a ignorancia faz precindir de
tes continuaram o seu trafico, mas o missioná- t u d o ; criem-lhes necessidades, que ellas farão
rio terá de repetir com elle as orações do do- nascer o trabalho, e só por elle se regenera um
mingo, ás pessoas de familia que o rodeiam. povo.
Digo-o sem receio de errar. Quero missionários, mas quero missionários
No Transwaal, entre pequenos régulos, ve- do christianismo e da civilisação, homens que
154 A V O L T A DO .MUNDO

compenetrados dos seus deveres para com Deus pousa hoje junto dos reis, dos grandes homens
e para com a sociedade, saibam firmar o edifí- de Inglaterra. Vinte annos antes de mim, David
cio social em solidas bases, ensinando o bem e Livingstone percorreu aquelle paiz.
o trabalho, e tudo o que o preto possa com- N esse tempo era elle governado por outra
prehender, esperando a occasião que o tempo, raça, c eu fui encontral-o em condições bem dif-
a civilisação, não deixará de trazer, se elle bem férentes.
trabalhar, para ir pouco a pouco incutindo nos As condições de geographia physica eram as
ânimos as verdades da theologia e da moral. mesmas; mas os geographos que seguirem ou-
Busque primeiro fazer do preto um homem, tros, terão sempre rectificações a fazer, terão
que tempo terá de fazer do homem um christão. sempre alguma coisa a accrescentar.
Seguir o caminho contrario é edilicar na areia. E n t r e a carta de Livingstone e a minha ha
No correr d'esta obra terei ainda de fallar differenças que já deram nas vistas a alguns geo-
nas missões africanas, e fallarei desassombrada- graphos europeus.
mente com a consciência de que presto um ver- Que o vulto respeitável do celebre explora-
dadeiro serviço á causa das missões e á causa dor me perdoe se eu o contradisser em alguns
da humanidade, apontando erros de que ellas pontos da sua geographia do Alto Zambeze. Era
estão eivadas. a sua primeira viagem, e o missionário ousado
O homem que mais poderia coadjuvar o mis- estava longe ainda de ser o explorador geogra-
sionário em Africa seria o negociante. pho do futuro Elle mesmo não se vexa de con-
Infelizmente o commercio sertanejo está em fessar que, n'esse tempo, debalde tentou me-
mãos de bem tristes apostolos da civilisação. dir a largura do rio por um processo trigono-
Já fallei dos portuguezes, e com bem pensar métrico comezinho.
meu tenho de metter estrangeiros em linha egual. Da confluência do Liba á do Guando, o
Por um lado, a invasãò do commercio pelos ara- Zambeze apenas recebe na margem direita dois
bes de Zamzibar não dá em civilisação e cultura affluentes, Lungo-é-ungo e o Nhengo.
o que devia dar, porque a dissolução de costu- Quem viaja da costa de oeste vê logo, que
mes de taes gentes destroe tudo quanto o com- entre o Nhengo e o Guando nenhum rio pôde
mercio adianta. existir. Assim pois o rio Longo, o Banienko,
P o r outro lado, os traders (traficantes) in- etc., são traços filhos de informações erróneas.
glezes, creio que deixam muito a desejar em Na longitude do Zambeze, no parallelo 15,
moralidade, segundo ouvi dizer a missionários encontrei também difíerença grande para oeste,
seus conterrâneos. Esta questão, do commercio notando-se que esta differença envolve um erro
sertanejo como meio civilisador, é questão que manifesto; porque eu observava os reappareci-
me proponho a tratar um dia, e que não é ca- mentos do primeiro satelite de Jupiter, e ha-
bida aqui, onde só por incidente fallei de mis- vendo erro da minha parte era esse erro preju-
sões e commercio. dicial a mim, porque envolvia approximação da
Volvendo a entrar em assumpto, dizia eu, determinação de Livingstone.
que os paizes comprehendidos entre o Cuanza e Cacia quatro segundos que eu visse mais
o Zambeze estão em condições de receberem tarde o reapparecimento, era uma milha mais a
com mais facilidade do que os outros povos que favor d'elle.
conheço em Africa, o impulso civilisador que a O que poderia produzir um erro que me af-
Europa hoje se empenha em imprimir aos es- fastasse da posição determinada, era eu ver o
quecidos povos do grande continente. satelite antes do reapparecimento, o que é ma-
Deixando estes paizes, dos quaes já fallei de- terialmente impossivel.
tidamente nos anteriores capítulos, vou entrar O curso do Alto Zambeze, na parte em que
no Alto Zambeze. o visitei, isto é, do parallelo 15 á cataracta de
Até alli era eu o primeiro explorador a pisar Mozi-oa-tunia, é dividido em quatro troços per-
aquellas paragens, o primeiro a descrevel-as, o feitamente distinctos. Do parallelo 15 (e mesmo
primeiro a apresentar uma carta geographica muito mais do norte) até proximo do parallelo
que as representasse; alli havia sido já precedi- 17; é perfeitamente navegavel em todas as epo-
do por outro, e por outro que se tornou tão chas do anno.
distincto na obra da civilisação africana, que ga- Ahi começa a apparecer o terreno vulcânico,
nhou um tumulo em W e s t m i n s t e r Abbey, e re- e com elle o basalto. E a primeira região dos
'75
Á V O L T A DO .MUNDO

rápidos e cataractas, onde fôra um serio obstá- more, que só d'abeirar-se ao paiz succumbiu;
culo, a grande cataracta de Gonha; tudo mais porque o clima na região do Quisseque, e da
com pequeno trabalho se tornava facilmente na- confluência do Cuando até Linianti, não tem
vegavel, abrindo um canal junto de uma das melhores condições de salubridade do que o
margens. Mesmo em Gonha, era de pequena Baròze.
difficuldade profundar um canalete que existe C u m p r o um dever fallando bem alto a lin-
na margem esquerda junto do caminho que se- ! guagem da verdade a respeito de um paiz que
gui por terra, e que vem designado na carta, está merecendo a attenção da Europa.
por onde se escoam aguas na epocha das cheias. Ahi fica ella, e salva está a minha responsa-
Da ultima cataracta, Catima-Moriro, até á bilidade de informador consciencioso, para to-
confluência do Guando, torna o rio a ter uma das as desgraças que aquella voragem ainda ha
navegabilidade fácil. de causar aos que não crerem.
D'ahi para jusante novos rápidos vão termi- Será por isso o Lui um paiz de que se deva
nar na enorme cataracta de Mozi-oa-tunia, e fugir e ao qual ninguém se deverá abeirar? Não
essa região não poderá nunca ser aproveitada é, e eu vou procurar demonstrar que elle deve
como via importante, porque uma serie de abys- merecer uma séria attenção, não só á E u r o p a
mos lhe corta de futuro um melhoramento qual- em geral, como muito particularmente a P o r t u -
quer quanto a navegação. gal.
No valle do Alto Zambeze ha terrenos pro- A Africa Austral, entre os parallelos 12 e 18,
ductivos e ferteis. Vastas pastagens alimentam tem u m a largura média de dois mil e seiscentos
milhares de rezes nos valles, acima e abaixo da kiiometros, e a partilha das aguas para as duas
região das cataractas. Na região montanhosa ha costas faz-se a um quinto d esta extensão, junto
a mosca zê-zê, e torna-se difficil passar os gados • á Costa de Oeste, porque se faz proximo do
de Luialui ao Quisseque. meridiano 18 E. Greenw., isto é, a 600 kilome-
Comtudo, a mosca está concentrada nas flo- I tros apenas da Costa Oeste.
restas da região das cataractas, e para léste do D'ahi já se lançam dois rios, cujas aguas se
Baròze não existe, porque os povos Chuculum- juntam ao Zambeze, o Lungo-é-ungo e o Cuando.
bes são grandes pastores. Antes de vermos a importancia d'estes dois
O valle do Alto Zambeze, cheio de belleza, cursos d agua, estudemos o proprio rio gigante,
fértil e rico, exhala do seu seio envolto nos aro- aquelle que bebe as aguas de todo o planalto
mas das suas flores o miasma pestilente. Os africano ao sul do parallelo 12 até-ao parallelo
Macololos foram dizimados pelas febres, e quan- 20, e a léste do meridiano 18.
do as azagaias do rei Chipopa libertaram o paiz O Zambeze divide-se naturalmente em très
dos últimos conquistadores, já o clima tinha grandes troços perfeitamente distinctos.
feito a sua obra de destruição. O alto curso, o curso médio, e o curso infe-
Os Bihenos, que resistem ás febres de quasi rior.
todos os paizes africanos que visitam, são ful- 0 Alto Zambeze comprehende o rio desde as
minados pelos miasmas do Zambeze. suas nascentes, ainda ignotas, até á sua grande
No paiz entre o Bihé e o Zambeze, onde as cataracta Mozi-oa-tunia.
caravanas se demoram muito tempo a permutar O curso médio estende-se desde Mozi-oa-tu-
cera, é raríssimo haver um caso de febre no nia aos rápidos de Cabrabassa, e o Baixo Zam-
gentio Biheno; além da planície do Nhengo, beze d'ahi ao Mar Indico.
multiplicam-se as sepulturas d'elles. Vejamos agora quaes são as condições de
Veríssimo, indígena e possuindo uma orga- navegabilidade de cada uma d'estas partes do
nisação retractaria ao miasma, Veríssimo, que rio, e qual a sua importancia, e a dos seus af-
nunca em sua vida estivera doente, não pôde fluentes.
escapar ao clima do Baròze, e vimos no capitulo Já n'este mesmo capitulo descrevi as condi-
antecedente ser elle prostrado pela febre. Eu ções do Alto Zambeze e por isso começarei por
mesmo, que resisto bastante ás endemias africa- tratar do seu curso médio.
nas, sentia respirar a morte com o ar que res- Conta elle de Mozi-oa-tunia a Cabrabassa
pirava alli. u m a extensão de 460 milhas geographicas, ou
Esta verdade, se tivera sido apregoada ha de 828 kiiometros, e divide-se em duas regiões
mais tempo, teria poupado a vida á íamilia El- perfeitamente distinctas, a superior e a inferior,
1 56 A V O L T A DO MUNDO

cada uma das quaes è extensa de 230 milhas, ou é pouco extensa, o que já constitue uma vanta-
414 kilometros. gem indiscutível.
A região superior, que principia na grande Voltemos ao curso médio do Zambeze.
cataracta, e termina nos rápidos de Cariba, não Recebe elle pelo norte dois importantes rios,
tem importancia como via navegavel, nem pelos o Aruangua do norte e o Cafucué.
affluentes que recebe, todos pequenos e inapro- O primeiro, em cuja foz assentou outr'ora a
veitaveis á navegação. importante e commercial villa do Zumbo, cujas
Tem esta região alguns troços navegaveis, ruinas attestam até que ponto a ousadia portu-
mas em pequenas extensões, e logo interrompi- gueza ia fundar os seus mercados, introduzindo
dos com rápidos. A segunda parte do curso mé- a civilisação e o commercio nas mais remotas
dio, de Cariba a Cabrabassa, está em condições terras africanas, é um rio volumoso em aguas,
bem difTerentes, tanto por offerecer uma fácil mas, (dizem os sertanejos portuguezes) muito
navegabilidade como por os importantes aífluen- cortado de cataractas.
tes que recebe do norte. De um d'estes alfluen- Seria comtudo importantíssimo o seu estudo,
tes me occuparei em breve. ainda que não lhe vejo a mesma importancia
O Baixo Zambeze, de Cabrabassa ao mar, que tem o outro, o Cafucué, de que vou fal-
conta uma extensão de 310 mdhas geographicas, lar.
ou 560 kilometros, onde apenas poucas milhas Os pombeiros Bihenos passam ao norte do
são occupadas pelas cachoeiras de Cabrabassa, Lui, atravessam o paiz das Machachas, e encon-
sendo o resto do curso navegavel, ainda que em tram um rio enorme a que elles chamam o Loen-
más condições, por falta de agua na estação es- gue. Esse rio é percorrido por elles nas suas via-
tia. gens de trafico, que o sobem até ás origens, e
Esta parte do rio, mesmo nas más condições descem até á foz, onde toma o nome de Cafu-
em que está da confluência do Chire a Tete, é cué.
ainda uma grande via por onde se faz todo o Alguns dos que estavam commigo fizeram
commercio do interior com Quehmane. Recebe muitas vezes essa viagem, e raro é o Biheno que
elle um affluente importante, o Chire, magnifico não tenha estado em Cauico.
rio, que da sua loz a Chibisa, não tem catara- Miguel, o meu caçador de elephantes, de
ctas, sendo perfeitamente navegavel. O Chire quem mais de uma vez fallei no correr da mi-
que vem do norte, no seu terço médio corre a nha narrativa, passou dois annos n'aquelle paiz
S. E. quasi• parallelamente ao Zambeze, e por caçando elephantes, e muitas vezes percorreu o
isso de Chibisa a Tete apenas medeia uma dis- rio embarcado de Caiuco a Samalembue, isto è,
tancia de 65 milhas geographicas, ou 117 kilo- uma distancia que eu calculo grosseiramente em
metros, em terreno pouco accidentado, e que 220 milhas geographicas, ou 400 kilometros.
hoje, sem caminhos, se vence facilmente a pé De Lialui a Caiuco deve a distancia ser de
em cinco dias. 220 kilometros, porque é facilmente vencida pe-
Esta circumstancia é muito para merecer a los Luinas em dez dias, havendo exemplos de
attenção, porque, sendo o rio Zambeze pobre ter muitas vezes sido ganha em 8 e 7. Em vir-
em profundidade da foz do Chire a Tete, não o tude d estes dados, lancemos um rápido golpe
é do Mazaro ao m a r ; e assim, navegando-se por de vista ao estudo que temos feito do Zambeze,
elle e pelo Chire até Chibisa, chegamos a 5 dias e reconheceremos que, n uma extensão de 900
de jornada a pé, de Tete, com toda a rapidez milhas geographicas, ou 1620 kilometros, se-
que nos podem proporcionar aquellas magnifi- guindo pelo Zambeze, Chiri-Tete, Cafucué ou
cas vias. Os 117 kilometros que separam Chibi- Loengue, a Caiuco e Lialui, temos apenas 18
sa de Tete, podem ser vencidos em um dia com dias de caminho por terra, 5 de Chibisa a Tete,
uma simples estrada de rodagem, e em tres ho- 3 de Cabrabassa, e 10 de Caiuco a Lialui, re-
ras com uma ferrovial. presentando uma extensão de 400 kilometros, e
Estão pouco ou nada estudados os rápidos por isso sendo aproveitados 1220 kilometros de
de Cabrabassa, e não faço ideia até que ponto vias fluviaes perfeitamente navegaveis.
elles constituem um serio obstaulo á navegação,
e se com pequeno ou grande trabalho se pode-
ria remover esse obstáculo. iCunlinúa.i
Sei porém, que a região que elles occupam
FORTE DE TAKOU linargem esquerda) — D e s e n h o (le H. Clerget, segundo u m a photographia do doutor Morache

PEKIN E O N O R T E DA C H I N A
PO]-

A embocadura do Pei-ho— A província de Tchely — A o espera, eis o que eu li a respeito da província


barra—No P e i - h o — L m missionário catholico e um ne- de Tchely, onde desembarcaremos amanhã e
gociante chinez—Os fortes de Takou — Os soldados chi-
sobre o golpho do m e s m o n o m e :
nezes.
«A província de Tchely, onde está situada a
j de julho de 1873.—«Quem viveu em P e - capital politica do império chinez faz parte do
kin deseja lá voltar.» Talvez este rifão seja um g r u p o norte das dezoito províncias do império,
pouco exagerado e por isso eu direi simples- e o seu nome em traducção littéral: «regra di-
mente que, depois d uma longa estada na capi- reita» deve indicar que do seu seio parte o im-
tal da China, desejei tornar a vel-a e dizer um pulso governamental que dirige uma massa de
ultimo adeus á «Kambalu» de .Marco Polo. duzentos ou trezentos milhões d'habitantes.
Isto bastará para explicar a minha presença O Tchely fôrma ao nordeste da China um
a bordo do vapor americano Sinnan-tzing, anco- g r a n d e quadrilátero irregular, situado entre o
rado ás 9 horas da noite do dia 3 de julho de 110 e 117 graus de longitude éste e 37 e 41 graus
1873 no golpho de Petcheli, á vista da ilha Cha- de latitude norte, que arremessa uma ponta de
lui-tiene, da qual avistavamos o pharol do sul. sessenta kilomètres de largura até ao 31 grau
listavamos apenas a uma hora da emboca- de latitude norte. A sua superficie pôde ser ava-
dura do Pei-ho e a uma milha da barra, que só liada em quinze milhões d hectares, segundo as
se pôde entrar com a maré cheia. O piloto es- triangulações feitas pelos jesuítas no decimo sé-
tava a bordo e só nos restava passar o melhor timo século; a sua população é calculada em
possível esta noite, esperando que enchesse a vinte milhões d habitantes, o que lhe dá uma
maré e o dia dispontasse. O capitão P. . . atten- densidade de população egual á da Bélgica.
dendo ao grande numero de passageiros cede- « T e r r e n o s montanhosos a envolvem: ao norte
ra-me metade da sua camara. Instalou-se junto e noroeste os primeiros montes do g r a n d e pla-
do meu beliche fazendo paciências sobre paciên- nalto da Asia central que leva ramificações até
cias, depois de me ter dado um livro de que Pekin ; ao sul e sudoeste algumas pequenas
pude depois apreciar a conscienciosa exactidão m o n t a n h a s que a separam da bacia cio Huang-
e altíssimo v a l o r ; quero fallar do douto traba- ho, ou rio Amarello.
lho de que é auctor G. Morache. «Assim cercada a província de Tchely é uma
Km quanto que o capitão P . . . estende o ba- vasta planície cuja superficie, apenas accidentada
ralho de cartas antes de se deitar no sophá que por algumas collinas, desce suavemente para o
VIJI.UME III FOLHA 20
1 58 A V O L T A DO MUNDO

mar que a banha a éste n uma extensão de tre- tos durante a occupação que durou cinco annos
zentos e vinte kilometros. Affirma-se que é de até ao completo pagamento da indemnisação de
recente formação. A tradição chineza diz que guerra acceite pela China no tratado cujas rati-
não vae muito distante o tempo em que a cida- ficações foram trocadas em Pékin a 25 de outu-
de de Tien-tsin era porto de m a r ; agora esta ci- bro de 1860.
dade está a cincoenta kilometros da costa. Este Mudando em seguida de r u m o aproamos ao
retrahimento das aguas deve ser attribuido ás forte de sul e eis-nos aqui em pleno rio Pei-ho,
enormes quantidades de lodo que no golpho de tendo um forte á nossa esquerda e um outro á
Petcheli vasa o rio Amarello, o mais lodoso nossa direita. De repente um angulo formado
dos rios do mundo. pelo Pei-ho deixa-nos descobrir a oeste os ves-
«A p r o v i n d a de Tchely tem uma única ba- tígios d um forte que batia de frente a entrada
cia hydrographica, commum ás diversas corren- do rio, aquelle que a 24 d'agosto de 1860 foi to-
tes que desagôam no mar, a mais importante mado d a s s a l t o pelo general Collineau. O tiro-
das quaes é o Pei-ho ou rio sptentrional: o Pei- teio feito pelos francezes durou pouco tempo.
ho passa em Tien-tsin, onde recebe as aguas de Desde o principio que a guarnição d este forte
dois afíluentes consideráveis e vae desagoar na queria fugir e ir reunir-se á dos outros fortes
parte dos mares da China, que constitue o gol- menos violentamente atacados. O general em
pho de Petcheli; a sua embocadura celebre na chefe francez, prevenido d isto, mandou metra-
historia contemporânea, é defendida pelos for- lhar a porta da fortaleza e assaltal-a pela briga-
tes Takou que causaram em 1850 graves perdas da Collineau. Quando a bandeira franceza foi
á esquadra anglo-franceza e que em 1860 foram içada na fortaleza, depois chamado forte Colli-
tomados pelo corpo expedicionário francez des- neau, os do norte e do sul capitularam. Um alto
embarcado a algumas léguas ao n o r t e . . .» funccionario tartaro que por essa occasião esta-
Estava absorto na leitura, quando o capitão va dentro do forte norte, no qual o paiol da pol-
P . . . se levantou esfregando as mãos de con- vora tinha ido pelos ares, dizia-me depois com
tente pelo bom resultado das suas paciências e, muito orgulho:
como eu, disposto a que o somno nos prodiga- «O paiol tinha ido pelos ares, o meu pobre
lisasse sonhos completamente chinezes. vestuário estava queimado, eu era o único dos
defensores do forte que alguma coisa sabia da
4 de julho.— Desde o romper do dia que na- significação dada em tempo de guerra á ban-
vegávamos prôa á barra para passar o canal, deira branca. Fui eu quem a mandei içar. Nós
manobra sempre delicada, apesar das bóias que contavamos que fizesseis o desembarque como
indicam a derrota. Em 1873 tentaram alargar e em 1859; mas em vez d isso desembarcasteis a
p r o f u n d a r esse canal com dragas compradas em uma légua ao norte na aldeia de Pei-Tang ; tor-
França pelo governo chinez. Enganaram-se, os neastes-nos, estavamos perdidos.»
alcatruzes das dragas em vez de serem cylin- Attendendo á sua importancia o forte Colli-
dricos eram quadrados; o lodo depositava-se neau devia completamente desapparecer. O ge-
nos cantos dos alcatruzes, e estes, que eram neral Montauban fel-o ir pelos ares; d'elle ape-
magníficos para um fundo areento, eram ineffica- nas restam alguns montículos de terra encrava-
zes no fundo lodoso do Pei-ho. Graças a este dos no que se chama «a concessão franceza de
erro, o estado da barra é o mesmo, se não Takou. E uma. zona de vinte e cinco a trinta lo-
peior, que ha quinze annos. Sò os vapores de tes de terreno na margem esquerda do Pei-ho,
quinhentas a seiscentas tonelladas podem en- começando acima do forte Collineau e estenden-
trar. do-se até proximidades do forte norte. De fran-
Pouco depois ao longe vão apparecendo por ceza esta concessão infelizmente só tem o no-
entre as neblinas da manhã, os terrenos pla- me ; é uma área de terreno em que não ha
nos e baixos da provincia imperial e começa- uma única construcção. Cada lote podia ser
mos a distinguir os altos torreões dos fortes do aforado mediante a annuidade de cento e cin-
norte e sul do Takou. coenta francos. A maior parte dos emphiteu-
.Mettemos pròa ao norte a uma balisa. em tas, entendendo que nada podiam fazer d'aquel-
cuja direcção reconheço o monumento funerá- les terrenos, renunciaram aos seus direitos e,
rio sob o qual repousam os nossos soldados segundo a nossa opinião, bem mal fizeram. A
mortos na tomada dos fortes em 1860, ou mor- companhia messageries nationales françaises é a
'75
Á V O L T A DO .MUNDO

única que continuou pagando o foro de tres lo- «Tracta-se do seguinte, continuou este. O
tes que estão justamente comprehendidos no ter- generalíssimo mongol Seng-ko-line-sine, quando
reno que antigamente era occupado pelo forte construiu os fortes de Takou comprou-me toda
Collineau. Talvez um dia os chinezes, melhor a madeira dos meus depositos; mas desde en-
comprehendendo as necessidades do progresso, tão ainda não recebi dinheiro algum. Se graças á
consintam na construcção d u m a linha de cami- intervenção do consul francez eu podésse alcan-
nho de ferro entre Takou e Tien-tsin. P o r esse çar o meu dinheiro, eu depois saberia ser-vos
tempo renunciar-se-ha á difficil navegação do agradecido, dividindo comvosco.»
Pei-ho e as cargas e descargas dos navios serão E inutil dizer de que modo foi recebida es-
feitas em Takou, então emporio commercial. ta proposta : tomou o mesmo caminho que o
Na margem direita do Pei-ho ha alguns edifí- auctor que se resignou a continuar a ser pa-
cios estrangeiros: são o edifício da alfandega, a gão.
casa dos pilotos, tavernas de marinheiros e duas Deitando ainda um ultimo golpe de vista sobre
ou tres hospedarias. Este grupo d'edificações os tortes de Takou, que por de traz de nós desap-
está encostado ao forte sul que durante cinco pareciam, seja-me permittido manifestar a minha
annos foi guardado pelos inglezes sem saberem gratidão aos différentes officiaes francezes que
que um grande numero de peças tinha alli sido durante cinco annos se succederam no comman-
enterrado a 24 d agosto de 1860 pela guarnição do do forte Norte, onde sempre encontrei a
chineza, antes que o meu amigo, de que acima maior e mais alTavel hospitalidade; ao comman-
fallei, tivesse içado a bandeira branca. O gover- dante Butel, capitão de fragata, ao visconde de
no chinez teria gasto sommas fabulosas na cons- La Tour du Pin segundo tenente de marinha,
trucção d'estes fortes tornados inúteis pelas vi- ' emfim ao primeiro tenente Treve, hoje capitão-
ctorias das nossas armas? Não creio e para des- tenente, o mesmo que tão brilhantemente se
culpar esta incredulidade citarei a seguinte ane- distinguiu no segundo cerco de Paris. Que ani-
docta. mação n esse forte quando elle estava sob o com-
Um dos nossos missionários catholicos fran- mando de Treve ! Era necessário procurar meios
cezes, estando na província de Tchely em missão para entreter os nossos valentes marinheiros :
apostolica, recebeu a visita d um certo negociante, incitava-os a exercicios ; formou companhias a
homem apresentável. Pedia para ser feito chris- que denominou fusileiros do Pei-ho, a que mais
tão. O missionário, desconfiando por experien- tarde chamou os seus «bachibousouks» quando
cia e querendo conhecer aquelle que se lhe di- os commandou em 1866 durante a nossa infeliz
rigia, recebeu-o a titulo de neophito. O nego- campanha da Corèa. Sempre por elle aconselha-
ciante escutava com grande zelo a instrucção re- dos, os marinheiros construíram um theatro, onde
ligiosa. Isto durou assim tres mezes; mas um se representou, e muito bem, entre outras come-
dia, com ar embaraçado, o negociante abriu-se dias l'Education d'uvf prince, d ' E d m o n d About ;
com franqueza. os nossos compatriotas faziam dez léguas a Ca-
«Padre, disse elle, sois súbdito do grande im- vallo para vir de Tien-tsin assistir ás recitas do
pério de Fa (é assim que na China se designa a theatro francez de Takou. A bandeira triangular
França, Fa quer dizer meio, ratio). Deveis ser chineza, com o seu dragão amarello sobre fundo
respeitado pelos vossos inferiores e nas auctori- azul, íluctua hoje por sobre todas essas recorda-
dades as vossas virtudes devem-vos ter dado ções.
uma legitima influencia; é isso para mim tão Um dia, em agosto de 1865, a fragata fran-
evidente como o sol que me illumina e como as ceza La Guerrière ancorou a uma milha da barra
palavras que articulo; deveis conhecer o cônsul de Takou. O aviso Le Deroulède fundeou perto
de França em Tien-tsin; gosa, sei-o, da ami- ; do forte Norte. A bandeira franceza depois de
zade dos nossos mais altos funccionarios. Tenho ter recebido as salvas da artilheria chineza foi
um pequeno negocio que, posto que indireta- arriada. Uma força das tropas imperiaes abrindo
mente, deve interessar á França e é por isso fileiras apresentou armas á guarnição franceza
que eu creio dever-vos instruir n'elle, afim de que ia embarcar. Q u a n d o a bandeira chineza
que o participeis ao representante do vosso go- foi içada, as tropas imperiaes ajoelharam; os ge-
verno. » neraes e officiaes superiores, voltando-se para o
O missionário começava a duvidar do fervor norte, na direcção da santa magestade do seu
do seu neophito. soberano, fizeram ao pé do mastro da bandeira
1 160 A V O L T A DO MUNDO

a ceremonia do Ko-teou; isto é, tres vezes ajoe- entrega dos lortes e os últimos representantes
lharam batendo nove vezes com a fronte no solo. da força a que tivemos de recorrer para obrigar
A artilheria franceza salvou com tres tiros (a a China a sahir d um isolamento svsthematico,
cortezia chineza nunca vae mais longe) e a I)c- violador de todas as leis divinas e humanas.
roulède desappareceu no honsonte acompanhada Os lortes estão hoje reconstruídos e mais ar-
da Guerricre. que levava a seu bordo o auto da mados do que n u n c a : as peças Krupp substitui-

ARf.HKIROS CHINEZES - Desenlio de A. M,arie. s e p m i d o pliologr.ipliias de M. Thomson

ram as peças fundidas pelos jesuítas em Pekin (> pagode do Génio do mar — Os juncos — Questões entre
marinheiros — As povoações — Mau acolhimento — Uma re-
no século dezoito. O armamento foi em parte cordação de 1867 — As concessões americana e ingleza.
modificado; mas infelizmente para a China os
seus soldados ainda são os mesmos. Sem que
se tornassem mais raros os archeiros contrastam E m q u a n t o que a minha penna faz estas di-
com os soldados armados com espingardas de gressões o paquete vae sempre vogando. Ahi
carregar pela culatra que em parte substituíram está Si-kou, grande aldeia a dez milhas da em-
o velho mosquete que com o arco ainda consti- bocadura do rio. Reconheço llai-cheng-miao,
tue o principal armamento do exercito. grande pagode do Génio do mar onde os mari-
1Ò2 A V O L T A 1)0 .MUNDO

nheiros chinezes vão queimar incenso e fazer pela elegancia. Os da província de Cantão são
promessas. mais pesados que aquelles. Lstas embarcações
O imperador, quando os comboios de cereaes teem algumas vezes de novecentas a mil tonela-
trazidos por mar teem feliz viagem, decreta ac- das. Kstes juncos que são de fundo chato sahem
ções de graça a Ilai-cheng. Um alto funccionario a barra : mas arriscam-se muito, se tentam a pas-
é então designado para ir suspender com gran- sar além de Si-kou, a faltar-lhes agua para nave-
de ceremonial das paredes do pagode uma ta- garem e a serem obrigados a esperarem pelas
boa preta marcada com o sello imperial, onde marés vivas a lim de continuar a derrota.
está desenhada uma inscripção em caracteres L em Si-kou que reside o vice-consul d In-
d ouro. glaterra, em T a k o u ; vive n'uma casa de campo
Milhares de juncos estão fundeados em Si- d um nco proprietário tien-tsmez. Paramos para
kou. Os da provinda de Fo-kien reconhecem-se desembarcar algumas mercadorias, entre outras

CAMELLO D( I NORTE DA CHINA — Desenho de E. Roujat, s e g u n d o uma photoirraphia do doutor Moracbe

seis metralhadoras de que immediatamente to- lhe escasseie. Navegamos muito lentamente pre-
maram posse oificiaes tartaros. Estes productos cedidos d uma lancha cuja tripulação armada de
da nossa civilisação, provenientes do arsenal mi- machadas corta sem mais fôrmas de processo
litar chinez em Shanghai, produzem-lhe extraor- as amarras que se oppõem á nossa passagem. Os
dinário espanto; tudo são brinquedos «ouany- marinheiros chinezes lançam sobre nós saraiva-
eurl» para estas grandes creanças chamadas, não das d improperios a que os nossos respondem
sei porque «os chinezes». Para evitar desembar- com uma saraivada de carvão. A bomba está
ques fraudulentos de mercadorias no Pei-ho, prompta a funccionar. O povo de cabellos ne-
entre Li-kou e Tien-tsin, sellam-se os porões gros. Li-mine (como os chinezes a si proprios se
dos navios e para mais segura precaução entra designam) tem um extraordinário medo de que
para bordo um empregado inglez e dois empre- lhe humedeçam os cabellos, e isto (paradoxo
gados chinezes da alfandega imperial chineza. completamente chinez) com receio dos insectos.
Estes cavalheiros não nos largam senão depois A bomba podia portanto livrar-nos de toda esta
de chegados ao nosso destino. algazarra. Mas sem lançarmos mão d'este re-
Foi com grande custo que o Sinnan-tzing curso passamos além dos últimos juncos, cujas
conseguiu sahir d entre esta agglomeração de proas e popas ornamentadas com monstros phan-
immensos juncos, que apesar dos esforços ten- tasticos já não avistamos; depressa perdemos
tados pelos cônsules estrangeiros continuam a de vista as bandeiras multicolores, cobertas com
lançar ferro em qualquer ponto em que o vento invocações á Rainha do ceu, com desenhos in-
Á V O L T A DO .MUNDO '75

fernaes ou com uma simples cruz, se a tripula- rece reflectir as aguas do Pei-ho; a côr do solo
ção é christã. no inverno junta-se a esta monochromia deses-
Até Tien-tsin só veremos a agua amarella do peradora. No verão, como vegetação expontanea,
Dei-ho e nas margens fornos de tijolo e algu- apenas se vê uma especie de matto alternan-
mas povoações de somenos importancia rodea- do-se com as eflorescencias brancas do natron.
das de planícies estereis (os chinezes dizem im- Na margem esquerda vêmos Sui-ho, Nan-keou.
berbes) aqui e alli cultivadas em pequenos tra- Sinn-Tatona, Lang-tsine, Tsiang-tchou-aug-si ;
tos de sargho, de milho e milho miúdo. As ar- estas povoações não estão tão próximas da mar-
vores são em diminutissimo numero e só em al- gem do rio como as da margem direita; algumas
guns cemiterios. vezes o gurupés do nosso vapor ameaça seria-
Entre Takou e Tien-tsin ha umas vinte al- mente um muro de adobes que não lhe offere-
deias. Todas são construídas d u m a argamassa ceria grande resistencia.
amarellada composta de barro e palha que pa- iCunlin nu. i

OS DOZE DE INGLATERRA
ESTUDO CRITICO-HISTORICO
iConlinuação da folha 18—3.°anno)

* E R U D I Ç Ã O histórica de D. Eernando de Me- Foi seu irmão o primeiro conde de Marialva.


T j ^ nezes era grande, mas trabalhos de tal na- A condessa de Flandres, a quem dizem fizera
/ tureza, por maior pericia que tenha seu notável serviço em um desafio particular, por se
auctor, não se construem nunca com so- ter deixado ficar por lá, querem alguns que fosse
lidez. a nossa princeza D. Isabel, que em janeiro de
São poucos os elementos de estudo que n'este 1430 se recebeu com Filippe o bom, duque de
logar possuímos para u m a analyse completa dos Borgonha e conde de Flandres.
Doze, mesmo assim diremos bastante para prova Parece pouco verosimil que fosse esta se-
cia nossa affirmativa. nhora a condessa referida, a não se ter ali dei-
Observaremos ainda que devêram elles ser, xado ficar de vez Alvaro Gonçalves.
desde a guerra com Castella em ajuda do duque P o r outra parte, o silencio, a tal respeito, da
de Alencastre, anterior a 1391, assás distinctos relação contemporânea da casa dos Do^e, não
n'ella e conhecidos do duque. exclue esta possibilidade.
O primeiro que sabemos refere este serviço
como feito á nossa infanta, foi A. de Villas-
I— ALVARO DE ALMADA, O Justador.
boas, na ÜS^obiliarchia, artigo continhos.

José da Eonseca na sua edição dos Luziadas, Francisco Soares Toscano, nos Parallelos,
Paris, 1846, em nota correspondente, supprimiu diz que o desafio fôra com mr. de Lansay, e que
este nome, substituindo-o pelo de João Eernan- tivera logar em Orléans, diante de el-rei de
des Pacheco. França.
A qualificação de justador encontramol-a ape-
nas dada pelo auctor do Mappa de Portugal. 3.0 — ALVARO MENDES CERVEIRA.

Foi á conquista de Ceuta, em 1415, e ali ficou


2.0—ALVARO GONÇALVES COUTINHO, O Magriço. por capitão dos escudeiros de Évora e Beja.

Eoi este cavalleiro filho de Gonçalo Yasques


Coutinho, o primeiro marechal que houve em conde d Abran-
4 . 0 — A L V A R O VAZ D'ALMADA, I

Portugal, feito por el-rei D. Eernando em 1382, ches, (terra de França), morto em Alfarrobeira,
e que ainda tomou parte na conquista de Ceuta, em 1449.
em agosto de 1415. Teve por irmão Pero Vaz d'Almada, e foi fi-
64

lho de João Vaz d ' A l m a d a , neto de Vasco L o u - dos mais insignes e famosos cavalleiros que em
renço e bisneto de J o ã o A r m e s de Almada, vé- seu t e m p o houvera na E u r o p a , de quem se po-
dor da fazenda de el-rei D. F e r n a n d o . déra fazer grande historia, como se veria nas
Diz Duarte Nunes (Descripção de 'Portugal, chronicas de D. J o ã o 1, D. Duarte e D. Affonso v,
pag. 311) que J o ã o Vaz d A l m a d a , por differen- «porque em todas as cousas grandes d'aquelles
ças q u e tivera com Gonçalo Pires Malafaia, re- tempos se achou, p o r q u e em Inglaterra ganhou
gedor da casa do eivei, esperando-o, afrontan- a h o n r a da cavallaria da Garrotêa, em F r a n ç a o
do-o e ferindo-o á saida da Relação, se fôra para condado de Abranches, e em Italia e na T u r q u i a
Inglaterra com estes uns filhos; que acompa- em serviço do imperador Sigismundo muitas
n h a r a m el-rei em uma jornada que fez a França, honras e mercês de que em outro logar faremos
sendo grande parte na tomada de R u ã o (1431) e menção». Duarte Nunes propunha-se a escrever
g a n h a n d o a ordem da cavallaria da G a r r o t ê a . um t r a t a d o sobre os varões illustres de P o r t u -
Diz mais que J o ã o Vaz viera por embaixador gal, como em vários logares da sua discripção
a P o r t u g a l , a t r a t a r do casamento de D. Beatriz, manifesta.
filha natural de D. João 1, com Thomaz, conde A noticia que dá .Mariz de Alvaro Vaz de Al-
de A r u n d a l (1405), e que voltára a Inglaterra, m a d a a proposito da morte do Infante D. P e d r o
onde morrera, sendo seus ossos trazidos para o è digna de transcripção. Eil-a: «Foi acompanha-
jazigo de seu pae e avô em u m a capella de S. do na morte, e sentimento de muitos fidalgos,
Francisco de Lisboa. amigos e criados, e entre todos foi mais famoso
Fallando depois particularmente de P e r o Vaz o conde de Abranches, D. Alvaro Vaz de Alma-
d Almada, diz que na ida com el-rei á jornada da, de quem dizia o infante D. Henrique, que
de F r a n ç a , desbaratára os francezes que leva- não somente P o r t u g a l , mas toda a Hespanha se
vam o corpo do d u q u e de Clarence, irmão de el- devia de ter por mui honrada em crear tal ca-
rei, e o restituirá aos seus, «o qual feito d a r m a s valleiro. Ao qual, a n d a n d o em seu esquadrão,
foi mui louvado pelos inglezes, e cantado em ro- na maior fúria do trabalho, foi dito, q u e o in-
mances seus», mas saindo mal ferido da batalha fante era morto.
morrera em P a r i s , que estava pelos inglezes. [Continua.)
De Alvaro Vaz d A l m a d a diz que fôra um

HOMENAGEM Á INDUSTRIA NACIONAL


A T E L I E R PHOTOGRAPHICO DO EX.™° SR. C A R L O S RELVAS, NA GOLLEGÃ

Q u a n d o em dezembro de 1871 publicamos 1875. Foi a r m a d a por operários d'aquella acre-


n este jornal a reproducção, em gravura, d'aquelle ditada officina e contém no todo 33:636 kilo-
esplendido atelier, olvidamos um facto i m p o r - g r a m m a s de ferro.
tante para tão bellissimo trabalho. Honra aos artistas nacionaes os srs. Cruz &
O trabalho do atelier do ex. m0 sr. Carlos Rel- Filhos, e a todos os seus operários que contri-
vas, na Gollegã, deve-se á industria nacional, e b u í r a m para o acabamento de tão esplendido
foram seus executores os honrados e briosos in- trabalho.
dustriaes de Lordello do Ouro, no P o r t o , os srs. Os mesmos honrados industriaes concluiram
L. F. de S o u s a Cruz & Filhos, que muitos e ultimamente u m a estufa para a quinta da La-
e n o r m e s sacrifícios teem feito para elevar a sua vandeira, pertencente ao ex. mo sr. visconde da
industria á altura do que ha de melhor no es- Silva Monteiro, nos suburbios do Porto, que é
trangeiro. Isto é tanto mais louvável q u a n t o é outra gloria nacional e mais um trabalho inve-
certo que em P o r t u g a l a i n d u s t r i a lucta com jável sahido das officinas do sr. Cruz.
e n o r m e s difficuldades e sem protecção, nem do F a r e m o s reproduzir brevemente pela gravura
governo nem dos estabelecimentos de credito. aquelle bellissimo edifício, que publicaremos
Toda a obra de ferro d'aquelle lindo edifício n'este mesmo jornal, prestando assim homena-
foi feita na fabrica dos srs. Cruz & Filhos, foi gem aos briosos e honrados industriaes encarre-
começada em 1872 e concluída no seu logar em gados da sua execução.
WAGON TRANSPONHO A RIBEIRA — D e s e n h o de Y. IVariishnikofl', s e u u n d o o t e x t o

C O M O EU ATRAVESSEI A AFRICA
DO ATLANTICO AO MAR INDICO —VIAGEM DE BENGUELLA A CONTRA-COSTA—ATRAVÉS REGIÕES
DESCONHECIDAS —DETERMINAÇÕES GEOGRAPHICAS E E S T U D O S ETHNOGRAPHICOS
POR

PHIMEIBA

a c a r a b i n a d'el-re1
I C o o t i n u a r ã o da folha I!) — 3.° anno)

T
OLTEMOS agora ao Alto Zambeze, e vejamos igual ao do Cuando e do Ninda. O seu desnive-
quaes as suas circumstamcias com relação lamento é de .(oo metros em 540 kilometros de
aos seus affiuentes. De um sabemos nós já curso.
que é navegavel, o Cuando, mas sabemos Dizem os Bihenos, e alfimaram-me os natu-
também que elle desagua entre duas regiões de raes, sempre que andei proximo d esse rio, que
cataractas, o que o isola das partes importantes elle não tem cataractas, como já disse, mas que
do curso do Zambeze. por vezes a sua corrente é muito violenta, sendo
.Mas da região que está entre a sua foz e o preciso puxar as canoas á ciga. S e n d o isto ver-
Lui, já disse que não vejo impossibilidade de dade, como supponho, chegaríamos do mar in-
ser facilmente tornada em via aproveitável; e dico, quasi á Costa de Oeste d'Africa, apenas
logo que assim seja, e mesmo agora, poderíamos com 18 dias de caminho por terra, a pé ! Isto é,
descer do Lui e subir pelo C u a n d o até perto em uma extensão superior a dois mil kilometros,
do meridiano 18. Comtudo, outro rio poderia apenas teriamos de caminhar em terra 400!
fornecer-nos o meio de attingir aquelle ponto A exploração do Loengue ou Cafucué e a do
mais directa e facilmente, se fosse navegavel. rio Lungo-é-ungo são hoje das mais importan-
E r a elle o Lungo-é-ungo. tes a e m p r e h e n d e r na Africa Austral, e são re-
O Lungo-é-ungo é a grande estrada dos Bi- lativamente fáceis e pouco custosas.
henos para o Alto Zambeze, e por isso muito co- Não pude deixar de chamar a attenção para
nhecido d'elles. Affirmam-me, que não tem ca- este ponto, que resolve o problema da fácil com-
taractas, e não deve tel-as, correndo em terreno municação entre as duas costas.
VOLUME III FOLHA 21
Á V O L T A DO .MUNDO '75

Já vão longas estas divagações, em um ca- referem. Vê-se também, que os ventos reinantes
pitulo onde eu apenas tencionava apresentar os são do quadrante Este em todo o paiz do Bihé
meus trabalhos geographicos e meteorologicos. ao Zambeze.
Nas seguintes paginas vai publicado d'esses Como já tive occasião de dizer, e bem se com-
trabalhos o que eu julguei mais interessante prehende ao ler a minha narrativa, não pude fa-
para alguns leitores. zer collecções naturalistas, e apenas, aprovei-
Ás observações iniciaes de astronomia que tando muito pouco papel de que podia dispor,
me deram a determinação dos pontos do meu levei das nascentes do rio Ninda algumas plan-
caminho, seguem-se aquellas que me permitti- tas, que estão em poder do snr. conde de Fica-
ram fazer o relevo do continente. lho, para serem estudadas, e onde parece já te-
Vem depois as notas meteorologicas, com in- rem apparecido algumas especies novas.
terrupções inevitáveis quando se é só a fazer um E opinião do snr. conde de Ficalho, que o
trabalho tal. cereal muito cultivado entre os Quimbandes e
Constam ellas de dois boletins, que registam Luchazes, a que eu chamo Massango, e errada-
as observações feitas O h. 43 m. de Greenwich, mente chamei Alpiste, é uma especie de 'Pem-
e ás 6 horas da manhã do logar em que me cillaria, a que chamavam o u t r o r a os botânicos
achava, hora a que dava corda aos chronome- Penicetum typhoideum.
tros. O estudo d esses boletins mostra sempre a Aquelle que eu designo com o nome de Mas-
grande uniformidade das oscillações barometri- samballa é o Sorghum.
cas, e as enormes desigualdades de tempera-
tura e de humidade do ar nos paizes a que se FIM DO PRIMEIRO VOLUME

S E a U l N T D A . P A R T E

a família c o i l l a r d
CAPITULO I Pedir uma canôa ao chefe para passar o rio
foi o meu primeiro impulso, mas obtive a mais
EM LEXUMA formal negativa, a pretexto de que não havia ca-
nôa.
Preso em Embarira — O doutor Benjamin Frederick Depois de grande controvérsia, elle declara-
Bradshaw — O campo do doutor — 0 pão — Graves questões me que me não deixa sahir da sua povoação sem
— Os chronometros não param — Francisco Coillard—Le-
eu ter pago aos marinheiros uma certa porção
x u m a — A s damas Coillard — Doença grave—Receios e irre-
soluções — Chegada do missionário—Tomo uma decisão — de fazendas.
Partida de Lexuma (em inglez, Leshumà). Chamei o Jasse e mostrei-lhe a impossibili-
dade de fazer pagamentos sem ter communicado
Foi tormentosa a noite que passei em E m - com o inglez, e ter d'elle obtido fazendas para
barira. Assaltado por milhares de persovejos, e os fazer, porque eu nenhumas tinha.
por nuvens de mosquitos, tive de abandonar a Jasse reúne os marinheiros e o chefe, e fal-
casa que me ofFerecêra o chefe, e ir procurar ao la-lhes n'esse sentido, mas nada obtém, e a re-
ar livre um refugio a tão cruel tormento. Ao ín- cusa de me deixarem ir á outra margem do
commodo produzido pelo ataque dos insectos vi- Cuando é formal.
nha juntar-se a anciedade da ideia de encontrar Vendo que nada fazia, pedi-lhes que fizessem
no dia seguinte um europeu, um homem des- chegar um recado meu ao inglez, e escrevi al-
conhecido, mas com o qual eu contava já para gumas palavras n um bilhete de visita. Foi o Ve-
sahir dos embaraços em que estava. Amanheceu ríssimo o mensageiro. A má noite velada, e a
finalmente o dia 19 de outubro depois de uma febre constante prostraram-me. Deitei-me ao ar
longa noite não dormida. livre, esperando a resposta á minha mensagem.
As primeiras noticias que pude colher foram Seria passada uma hora quando appareceu
de que o missionário estava a 12 ou 14 milhas diante de mim um homem branco. A sensação
d'alli, mas que do outro lado do rio Cuando vi- que experimentei ao vèr um europeu é indefi-
via um inglez. nível.
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O h o m e m que eu tinha diante de mim pode- binei com elles escrever ao missionário, a pedir-
ria ter de 28 a 30 annos, e possuia um typo per- lhe fazendas para o pagamento aos r e m a d o r e s .
feitamente inglez. Expedi um portador para Lexuma e voltei a
Barba pouca e muito loura, olhos azues, gran- a E m b a r i r a , onde me deitei ao ar livre, com a
des e vivos, cabello cortado rente e tão louro lembrança da noite terrível da vespera.
como a barba. Dormi a noite de um somno único e p r o f u n d o .
Vestia uma camisa de grossa tela, cujo colla- Ao amanhecer do dia 20, estavam junto de mim,
rinho desabotoado deixava vêr um peito amplo vindas de Lexuma, as fazendas precisas para os
e forte, como as mangas arregaçadas e x p u n h a m pagamentos das tripulações. Paguei tudo, e obti-
a vista uns braços musculosos, queimados pelo ve do chefe carregadores sufticientes para leva-
sol africano. rem as minhas cargas e o marfim a Lexuma, es-
.As calças de estofo ordinário estavam segu- crevendo por elles ao missionário, a q u e m pedi
ras por um forte cinto de couro, d'onde pendia hospedagem, e a quem pedia para pagar alli aos
uma faca americana. carregadores.
Nos pés, sobre umas meias azues de algodão Ao meio-dia, uma ligeira piroga, impellida
grosso, uns sapatos que pelas costuras, todas pelo r e m a r de clous pretos, corria por sobre as
feitas por fòra, logo se via serem obra d'elle aguas do Cuando, levando a seu bordo tres ho-
mesmo. mens brancos.
Disse-lhe quem e r a : expuz-lhe as minhas cir- A piroga velha e rachada fazia muita agua,
cumstancias, e pedi-lhe para me ceder a fazenda e por isso o homem que ia na frente descalçara
de que eu precisava, a troco de marfim que eu os sapatos que levava na mão, em quanto o da
lhe podia dar. Mostrei-lhe a necessidade que ti- ré, acocorado, esgotava incessantemente a muita
nha de me libertar d'aquelle encargo para esca- agua que colhia o frágil batel.
par áquella gente e ir encontrar o missionário. O do meio, magnificamente calçado á prova
R e s p o n d e u - m e elle, que não tinha fazendas, que d agua, comtemplava distrahido o deslisar dos
estava também sem recursos, e que só m a n d a n d o enormes crocodilos que fluctuavam á mercê da
eu a Lexuma as poderia obter. corrente, e pouco caso fazia da h u m i d a d e da ca-
O seu modo de fallar e a delicadeza das suas noa.
phrases mostravam-me logo que aquelle h o m e m Estes tres brancos, reunidos alli no centro
não era um ente vulgar. Elie dirigiu-se ao chefe, d'Africa, pelos azares das explorações, e r a m eu,
e convenceu-o a deixar-me ir á outra m a r g e m o dr. Benjamin Frederick Brahshaw, explorador
do rio, com a condição de que voltaria á noite zoologico, e Alexandre W a l s h , zoologista tam-
para E m b a r i r a . berp, p r e p a r a d o r de exemplares e companheiro
Partimos, e depois de atravessar um g r a n d e do doutor.
rio, aquelle Guando cujas nascentes eu havia Chegados á margem direita, foi logo posta á
descoberto e determinado mezes antes, chega- minha disposição uma das tres cubatas que elles
mos a um pequeno campo onde nos appareceu tinham.
outro branco. O d r . Bradshaw, optimo cozinheiro, como é
E r a h o m e m de elevada estatura, de longa hábil medico, sábio distincto, e caçador famoso,
barba e cabellos brancos, que mostravam não foi logo preparar um almoço de perdizes que elle
u m a edade provecta, desmentida pela agilidade tinha morto n essa m a n h ã . O cozinheiro do dou-
do corpo e expressão da physionomia, mas sim tor, um activo Macalaca, deitado de peito no
a velhice p r e m a t u r a , producto de longos soffri- chão, comtemplava a seu amo a t r a b a l h a r na co-
mentos e trabalhos. zinha, e contentava-se em o vêr trabalhar.
Vestia como o primeiro, e só estava um pouco O appetite, g u a r d a d o desde vespera, fazia di-
melhor calçado. latar as fossas nasaes ao sentirem o cheiro deli-
Conversamos sobre a minha posição, e vimos cioso que sahia em condensado vapor das caça-
que elles nada podiam fazer por mim, p o r q u e rolas do d r . Bradshaw.
estavam t a m b é m sem recursos. Os condimentos de que eu estava privado
Fui bastante absoluto e m p r e g a n d o a palavra havia tantos mezes, exhalavam aromas delicio-
nada, p o r q u e se não tinham outra cousa a dar- sos ao olfato de um faminto.
me, tinham um soffrivel jantar, e eu tinha fome. A cozinha estava feita, iamos para a meza,
Depois de saciar o meu voraz appetite, com- onde havia uma grande panella de milho cozido
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em grão, e um alentado prato de caril de per- ameaçando-nos e dizendo-nos as maiores inso-


dizes. Tinhamos dado a primeira garfada nos lências.
pratos, quando na barraca entrou um preto com Eu estava envergonhado e afflicto por vêr os
um objecto envolvido em alva toalha de linho. inglezes, que tanto me tinham obsequiado, met-
Vinha da parte do missionário francez. Des- tidos em u m a questão que me era particular, e
dobrei a toalha, que continha um corpo bastante serem insultados por minha causa; mas im-
pesado, e fiquei commovido diante de um enor- possível me tinha sido prever um tal aconte-
me pão de trigo, que tinha nas mãos. cimento.
P ã o ! pão, que eu já não via ha um a n n o ; Depois de mil exigencias a que era impossivel
pão, que era para mim sempre a cada comida satisfazer, elles com Jasse á frente declararam
em que o não tinha, u m a recordação saudosa; que iam a Lexuma rehaver as bagagens e o mar-
que era um sonho constante das noites de fo- fim, e que tomariam conta de tudo até serem pa-
me, do qual cheguei muitas vezes a ter um de- gos, partindo em seguida, mas deixando alli o
sejo immoderado, e pelo qual comprehendi que chefe Mucumba com um grande troço de gente
se possa commetter em crime para o haver, a vigiar-nos
quando privado d'elle por muito tempo. P o r conselho do dr. Bradshaw, nós entramos
As lagrimas vieram humedecer as minhas em uma das barracas e pozemos as armas á mão,
palpebras resequidas, e creio que foi aquella promptos a uma energica defeza em caso de um
u m a das mais violentas commoções que senti ataque provável.
na minha viagem. Ao cahir da tarde Mucumba começou a fazer
Esqueci um pouco as perdizes do doutor, uma grita enorme, e chamando a sua gente in-
para comer com voracidade d'aquelle pão, que vadiu as duas barracas, levando de uma d'ellas
saboreava com delicias nunca experimentadas a minha mala dos instrumentos, que fez logo
em gastronomia. transportar ao barco e passar á outra margem.
Foi Benjamin Bradshaw quem suspendeu o Voltaram a cercar a terceira barraca, em que
meu furor voraz, que me poderia ser fatal, e nós estavamos, exigindo que eu fosse com elles
que me fez tomar uma óptima chavena de ca- para E m b a r i r a . Receioso de que os meus hos-
cau, em seguida á qual um somno p r o f u n d o pedeiros se expozessem por minha causa a um
dormido n uma barraca, livre do sereno da noi- perigo eminente, queria-me entregar ao gentio,
te, veio restaurar as forças. e libertal-os de um conflito inevitável, quando
Toda a minha gente e as cargas haviam par- o dr. Bradshaw me pediu que o não fizesse, e
tido para Lexuma, ficando commigo apenas Au- declarou-me que me não deixaria partir, e que
gusto e Catraio e a mala dos instrumentos. deveríamos resistir-lhes a todo o transe.
Amanheceu alegre o dia seguinte, que deve- Na barraca estavamos quatro homens, tres
ria ser um dos mais attribulados da minha vida. brancos e o meu Augusto, dispostos a vender ca-
Depois de um optimo almoço de perdizes e :' ras as vidas, e era tal a nossa attitude que os
chocolate, e quando nos deliciávamos a fumar o gentios recuarem ante a ideia de um ataque que
aromatico tabaco de Chuculumbe, chegaram os seria fatal a muitos. Depois de um conselho pro-
carregadores que na vespera tinham partido para longado entre as cabeças, decidiram elles aban-
Lexuma, fazendo grande grita e dizendo que donar o campo e passar á outra margem.
não tinham sido pagos alli. Dava-me cuidado não vêr o meu muleque Ca-
Admirou-me o facto, sobretudo por o Verís- traio, que comecei a suppôr teria sido feito pri-
simo me não ter escripto, e por ter ido com as sioneiro, quando elle me appareceu na barraca,
cargas o marfim que seria garantia a todo o pa- com o seu riso intelligente e velhaco, trazendo
gamento que alli se fizesse. na mão os meus chronometros, que tinha ido á
Nós não tinhamos fazendas, e não sabiamos outra margem buscar á minha mala em quanto
que fazer diante das exigencias dos selvagens, os Macalacas nos cercavam e ameaçavam. Mais
que teimavam em que tinham sido roubados, uma vez Catraio impedia que os chronometros
porque tinham levado as cargas d'alli a Le- parassem por falta de corda.
xuma, e não tinham recebido o menor paga- Estavamos sós, mas muito apprehensivos,
mento. Pouco depois, chegaram o chefe de Em- porque o doutor, que conhecia bem os indíge-
barira Mocumba e Jasse, que começaram uma nas d alli, dizia que elles não passariam sem
questão fortíssima commigo e com os inglezes, voltar á carga.
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Á V O L T A DO .MUNDO

Pelas 9 horas da noite, chega ao campo o respeito, mas que em 10 ou 12 dias estaria de
missionário francez François Coillard, e saben- volta; e por isso me pedia que fosse esperar o
do tudo o que se tinha passado, afirmou-nos que seu regresso para Lexuma, onde me esperava
os carregadores haviam sido pagos generosamen- sua esposa madame Christine Coillard, e só en-
te em Lexuma, e que elle se encarregava de fazer tão poderíamos discutir maduramente o que con-
ouvir razão ao chefe Mucumba. vinha fazer de futuro.
No dia immediato, logo de manhã, o chefe Resolvi seguir para Lexuma no dia imme-
Mucumba, Jasse e innumeras gentes, passaram diato, porque queria determinar a posição d'a-
o rio e vieram ao nosso campo. quelle ponto, e fazer um certo numero de ob-
Mr. Coillard, que f a l l a a l i n g u a do paiz como servações. Durante a noite tive um violento ac-
falia francez ou inglez, fez um discurso ao chefe cesso de febre, e de manhã sentia-me muito mal.
de Embarira, mostrando-lhe a pouca vergonha O dr. Bradshaw não me quiz deixar partir
dos carregadores; que tendo sido generosamente sem tomar algum alimento, e por isso só ás 10
pagos em Lexuma, vieram dizer que nada ha- horas pude deixar a margem do Cuando. O
viam recebido, e que tinham sido roubados. doutor e seu companheiro deviam abandonar
Mucumba entregou logo tudo o que tinha aquelle ponto no mesmo dia, e irem para Le-
roubado na vespera, e deu muitas satisfações, xuma, porque as scenas dos dias anteceden-
fazendo recair a culpa sobre os seus homens que tes aconselhavam-nos de evitar o contacto com
o tinham enganado. Quando parecia que tudo aquelle gentio malévolo.
corria bem e se havia harmonisado, appareceu Eu parti por um calor de 40 graus centígra-
Jasse levantando uma nova questão. dos, n'um terreno arenoso, onde o caminhar era
Queria elle que eu pagasse aos seus mule- difficil. A febre tirava-me as forças, e mais me
ques particulares que tinham vindo em seu ser- arrastava do que caminhava. O terreno era co-
viço, e com quem eu nada tinha. berto de arvoredo, e elevava-se logo a partir da
Eu argumentei-lhe com o caso da tripulação margem do rio. Depois de cinco horas de mar-
de um pequeno barco que do Quisseque viera cha lenta e penosa, encontrei um pequeno cor-
em serviço dos outros remadores, e a quem rego, onde pude saciar uma sede ardente. Só
eu nada tinha dado. Depois de um curto debate, duas horas depois cheguei a Lexuma. E r a m 6
habilmente dirigido por Mr. Coillard, elle rece- da tarde.
beu duas jardas de fazendas para cada homem, e N u m estreito valle de oitenta metros de lar-
ficou terminada a questão. go, enquadrado em montes pouco elevados e
Fomos almoçar satisfeitos, julgando que es- de vertentes suaves, cresce uma herva grosseira
tariam terminados os incidentes desagradaveis e rachitica. Uma bella vegetação arbórea guar-
d'aquelle dia, mas não estava escripto no livro nece as montanhas que enquadram o pequeno
do destino que assim fosse valle, que se estende na direcção N. S. Na en-
Jasse voltou de novo á carga com nova exi- costa de E. algumas barracas aglomeradas for-
gencia. Queria elle que eu lhe pagasse e ao mam o estabelecimento de um sertanejo inglez.
chefe Mutiquetera, a quem eu ja havia pago com Mr. Phillips.
largueza. Em frente a oeste, duas aldeias abandonadas
Começou nova questão, em que de novo me são a feitoria de George Westbeech.
prestou grande auxilio Mr. Coillard, sendo pre- Ao N. das aldeias de Mr. Westbeech, uma
ciso para a terminar, o prometter um cobertor forte palissada cerca um terreno circular de 30
a cada um d elles. metros de diâmetro, onde havia uma casinha de
Mandou logo Mr. Coillard a Lexuma um por- colmo, dois wagons, ou carretas de viagem, e uma
tador buscar os dois cobertores, e a fazenda que barraca de campanha. E r a o acampamento da
elle havia tirado da sua pacotilha, para pagar á familia Coillard, era Lexuma emfim.
gente de Jasse. Entrei alli no recinto velado pel a alta estaca-
Assim terminou finalmente aquella serie não ria de madeira, com o corpo extenuado pelo can-
interrompida de questões, para o que concor- çasso e o espirito abalado pela commoção vio-
reu poderosamente a intervenção que n'ellas to- lenta que sentia.
mou Mr. Coillard, Diante de mim, á porta da casinha de colmo,
Disse-me elle que ia partir para o Quisse- estavam sentadas duas damas, bordando a côres
que, a receber a resposta do rei Eobossi a seu em grossa talagarça.
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Ao vêr aquellas damas alli, no centro d A f r i - A apparição das duas carinhosas senhoras
ca, a minha commoção foi indescriptivel. veio trazer nova perturbação a meu espirito. Eu
A recepção que me fez madame Coillard foi não sabia que dizer-lhes, e creio que só lhes di-
aquella que faria a um filho, se esse filho fòra zia disparates.
eu. Com uma delicadeza extrema, poz-me logo Foi mesmo sem consciência do que fazia que
perfeitamente á vontade, e disse-me que ainda eu lhes narrei um boato ouvido de manhã em
não tinham jantado, porque esperavam por mim Embarira, que apregoava ter havido um grande
para se pòrem á meza. Convidou-me a entrar na incêndio no Quisseque, nas casas do chefe Cari-
barraca de campanha, onde uma meza coberta muque, terem sido alli prêsa das chammas as
de fina e alva toalha sustentava um serviço mo- bagagens do missionário.
desto, contendo um jantar succulento. Defronte Deitei-me e creio que dormi.
de mim sentava-se madame Coillard; ao meu Ao alvorecer da manhã seguinte, as scenas
lado mademoiselle Elise Coillard, sobrinha d'ella, da vespera desenhavam-se confusamente na mi-
de olhos baixos e physionomia rubra de pudor, nha imaginação enfraquecida.
por vêr um estrangeiro desconhecido entrar tão Parecia-me sonho tudo o que se passava
de golpe na sua vida intima e velada, espalhava n'aquelle sertão longiquo.
em torno de si esse perfume de candura que Levantei-me, e ao vêr que era realidade o
cerca e envolve a mulher formosa aos dezoito que me cercava, o meu espirito volveu de novo
annos. a um deplorável estado de perturbação.
Madame Coillard multiplicava-se em cuidados Machinalmente, sem a menor consciência dos
extremosos, e pelo fim do jantar eu comecei a meus actos, por um podex filho do habito, dei
provar uma sensação estranha. Aquellas damas, corda e comparei os chronometros, fiz as obser-
o jantar, o serviço, o chá, o assucar, o pão, tudo vações meteorologicas, e registei tudo no meu
emfim se me baralhava na mente com traços mal diário.
definidos. Cheguei a não poder formular uma só Pouco depois, mademoiselle Elisa, com a sua
ideia, e a recear, que a cabeça enfraquecida não touca e avental branco, entrava risonha na bar-
pudesse supportar as impressões d'aquelle mo- raca, e vinha cuidar dos aprestes da meza para
mento. o almoço.
Não tenho a consciência de ter terminado Madame Coillard continuou envolvendo-me
aquelle jantar, sei apenas que me achei só na nos maiores disvelos.
barraca. Então um abalo violento sacudiu todo o Não posso ainda hoje explicar porque produ-
meu corpo; um soluço tolheu-me o ar na gar- ziam em mim, espirito forte, uma tal impressão
ganta, e as lagrimas saltaram ardentes dos meus aquellas d a m a s ; mas é certo que a sua appari-
olhos desvairados, banhando-me as faces que ção produzia-me logo uma especie de delirio.
queimavam de febre. Chorei e chorei muito, não Passaram dois dias que eu não sei como fo-
me envergonho de o dizer, e creio que aquellas ram passados; no fim d'elles succumbi. A fefre
lagrimas foram a minha salvação. Se eu não ti- apossou-se de mim com violência assustadora, e
vesse chorado, teria talvez enlouquecido. com ella veio o delirio. O meu estado era grave,
Que se riam aquelles que acharem ridículas mas dois anjos velavam á minha cabeceira.
as lagrimas n u m h o m e m ; pouco me importa o A 30 de outubro, o delirio deixou-me um mo-
seu motejar estolito. Infeliz de quem não encon- mento de lucidez. Conheci que a vida estava ape-
tra nos sentimentos do coração o pranto que vem nas presa por um fio a um corpo despedaçado
marejar nos olhos, e o soluço que estrangula a pelas fadigas e fomes da jornada, e pensei que
falia, mais verdadeiras provas da gratidão sen- não me levantaria mais.
tida, do que as phrases mais eloquentes em pro- N'esse dia entreguei a madame Coillard os
testos fervorosos. meus papeis, pedindo-lhe que os fizesse chegar
Eu por mim, não me envergonho de ter cho- com segurança ás mãos do governo de Portugal.
rado, e feliz serei se puder ainda chorar em O dr. Bradshaw fizera-me repetidas visitas
iguaes trances. durante os dias antecedentes, e empregara toda
Quanto tempo estive n'aquelle estado de ex- a sua sciencia medica para me salvar.
citação não o sei e u ; mas, muito tempo depois, Comtudo a febre não cedia, e o estomago não
entravam as damas na barraca e preparavam-me supportava medicamento algum. Decidi eu mes-
uma cama com cuidados extremos. mo tentar um ultimo esforço, e comecei a dar
A V O L T A DO MUNDO 171

repetidas injecções hypodermicas com fortes do- offender a casta menina, descuidosa na sua in-
ses de quinino. nocencia candida?
A 31 fiquei espantado de ainda estar vivo, e Tremia por mim e por ella.
redobrei a dose do quinino pela absorpção hy- Decidi, pois, fazer um estudo de mim mes-
podermica. O d r . Bradshaw aconselhou-me e mo até á volta do missionário, e calcular bem
fez-me tomar uma forte dose de laudanum. A 1 até que ponto eu seria capaz de ser honrado.
de novembro, começaram a manifestar-se as pri- Passei tres dias attribulados no estudo que
meiras melhoras. fazia do meu espirito. Poderia eu namorar-me
Nunca estive cercado de tão extremosos cui- d'aquella meiga creança? De certo não; e a lem-
dados como alli. brança sempre viva de uma esposa idolatrada,
As melhoras continuaram rapidas no dia se- era segura garantia aos meus sentimentos.
guinte, em que já me pude levantar um pouco. Mas, se o coração estava defendido, não o
Pareceu-me perceber que não sobejavam muitos estava a imaginação fervida, e podia, n u m mo-
os viveres, e isso tirou-me um pouco o somno mento de desvario, com uma phrase impruden-
durante a noute. Na m a d r u g a d a seguinte, quan- te, commetter uma infamia — porque infamia se-
do ainda tudo dormia no campo, levantei-me ria fazer subir o pejo ao rosto d'aquella em cuja
cauto e fui chamar os meus pretos. casa eu tinha sido recebido com a intimidade de
Sahi com elles cambaleando ainda nas per- um filho.
nas debilitadas, e internei-me na floresta, sem Além d'isso, o meu dever era ainda maior.
que alguém désse fé da minha escapula. Pela E r a preciso evitar a todo o custo, que a fama
tarde voltei com os meus homens curvados ao das proezas que os meus de mim apregoavam,
peso da caça que tinha morto. Madame Coillard que a posição, um pouco romantica, em que eu
estava afflicta, pensando que eu havia abando- me achava entre aquella familia, não fossem im-
nado o campo para sempre, e fui recebido com pressionar a novel imaginação dos dezoito annos
a maternal censura de quem ralha em familia. de uma mulher. Poderia eu sustentar durante
Como em todas as minhas doenças graves, mezes o papel de uma reserva absoluta, na gran-
não tive convalescença, e a minha forte organi- de intimidade da vida que ia levar?
sação fez-me passar do estado valetudinário ao Um dia pensei que era capaz de o fazer, e
perfeito estado de saúde, em transição rapida. desde esse dia tracei a minha conducta futura,
Com a robustez do corpo veio o socego do de que não arredei um só passo.
espirito, e só então pude encarar reflectidamen- Muitos mezes depois eu tinha comprehendido
te a posição em que o destino me collocara. Pela por uma mulher, que soube ler no intimo com
conversação repetida com madame Coillard, pu- essa fina perspicacia que só ellas possuem para
de perceber que não sobejavam recursos ao mis- ler nos arcanos da alma os mais reconditos sen-
sionário. O meu marfim, bem pago, mas pago timentos ; e não hesito em dizer, que fui com-
em fazendas a que os agentes da casa W e s t - prehendido por madame Coillard, porque na
beech and Phillips deram subido e exageradís- vespera da nossa separação, ella escreveu no
simo valor, pouco produziu. Madame Coillard meu diário um versículo do Psalmo 37, que me
só via um meio de sahirmos do apuro em que revelou o seu pensamento.
estavamos, e esse era, o de nos não separarmos, Estava resolvido a ficar com elles. quando
por não ser possível dividirem commigo os pou- más novas chegaram do Quisseque.
cos recursos que tinham. Mr. Coillard confirmava, em uma longa carta
Comtudo, esperavamos a volta do missioná- escripta a sua esposa, o boato do incêndio a que
rio, do Quisseque, para tomar uma resolução já me referi.
definida. Tudo quanto elle tinha em casa do chefe Ca-
A ideia de ficar com elles aterrava-me. rimuque fòra presa das chammas, e isso vinha
Havia alli uma formosa creança, que impres- ainda complicar a situação, diminuindo o seu
sionava a cada momento a minha imaginação ar- haver. Além d'esta, outra noticia veio consternar
dente de portuguez. mais a bondosa esposa do missionário. Dizia elle
Ser-me-hia possível, n u m viver tão intimo, que Eliazar, o homem que estava em Quisseque
n u m isolamento tão grande, impedir que uma e de quem já fallei, fòra atacado de um accesso
falia escapada n u m momento de loucura, um de febre de mau caracter, e estava em perigo.
olhar vibrado n'um lampejo de delirio, fossem iContinua.)
C l l l j i MIA II I MA MirniAl.HAliOHA. A h T I I , m : n : i iS CIUNEZE^ - [ k w i i h » de r. l i a í í o t . s e e ï m d o u m a |.lHi1.>i:rai>liia dp M. Tlium.-oii

PEKIN E O N O R T E DA C H Í N A
POR

M. T. C l l O T T / H
f irjt i riua'-àt i i!a !i l ! ; a . . . a m o

j jr i iN-KTA-M ' >r. K<) - ki ai. K a u g - kia - telv >ang. tiam a t r o c i d a d e s nas cercanias de T i e n - t s m . Tra-
P i 1 T s i õ n e - e h o i i e i - k o u . X a n - v a n r . IVin-tclmu- tava-se cie C o m b a t e r a li ira (cita p e l a s p o v o a ç õ e s
I anL". T c h uanir-kiamr. Iv<uci-t'>ei e c m l i m da- províncias atravessadas pelo lamoso e g r a n d e
1'ci-tan.ir-k-iu t a c - - a o o s n o m e s d a s povoa- canal i m p e r i a l , t o r n a d o m u t i l h a v i n t e a n n o s .
c ô e - q u e d e i x a m o s pela p o p a n a m a r r e m d i r e i t a . em v i r t u d e da m u d a n ç a cio leito do rio A m a -
( >s - e u s h a b i t a n t e - , a m a i o r p a r t e n u s ate a re!!'' q u e o a l i m e n t a v a , 1'stas p o p u l a ç õ e s cie
cinta, lumam p h i l o s , iphicamentc. sentados a territórios estéreis, não p o d e n d o então viver dos
p o r t a d a s s u a - c a - a s . tabac« > chi 1 ' a r t a n a em pe- t r a n s p o r t e s p e l o g r a n d e c a n a l , t i n h a m - s e revol-
q u e n - c a c h i m b o . - : >- e a e s l a d r a m , a- e r e a n c a s tado. iormanclo «grandes c o m p a n h i a s . " Lina
i n j u r i a m - n o s com tucla a. torça d o s s e u s p u l m õ e s cl esta,- c o m p a n h i a - a m e a ç a v a no dia >- d a b r i l
e as alcleas. vc-ticla< t r a r n d a m e n t e . n e m s e q u e r de iSó^ a t r a v e s s a r o l ' e i - h o a a l c u m a s m i l h a s
olham para nó-. d e l ien-tsin. h u a s c a n h o n e i r a s I r a n c e z a s e s t a -
S c j r u n d ' » a - c i r c u m s t a n c i a s a- a l d e ã s as vezes v a m n ' e s t e p o r t o ; a Lcircth>~n e a • Uy/c.
são m a i s a m a v e i s : eu p o d i a c i t a r , c o m o e x e m - | i d i r e c t o r d a s a l l a n d c g a - i m p e n a e s cios p o r -
plo. as a m a b i l i d a d e - d ' u m a a l d e ã cie P c i - t a n g - k o u tos do n o r t e p e d i u a<- c o n s u l t r a n c e / , em n o m e
ci Liando em i s , i 7 c e m mil r e b e l d e s s o b o c o m - cia h u m a n i d a d e e d o s i n t e r e s s e s o o m m c r c i a c s .
m a n e i d o p r í n c i p e í n l c r n a l Jène-onan.ir C o m m e t - que m a n d a s s e u m a c a n h o n e i r a oppòr-se a pas-
177 A V O L T A DO .MUNDO

s a g e m d o rio. A Lcbrethon, l e v a n d o a b o r d o u m não abanclonassemos aquelle p o n t o ; p o r q u e , di-


official ehinez de q u a r t a classe, desceu o Pei-ho ziam elles. b a n d i d o s q u e diziam ser imperiaes
no dia p r i m e i r o de maio. t i n h a m feito tão horrível c a r n a g e m na povoação
C e n t e n a s de cadaveres e r a m a r r a s t a d o s pela q u e não se podia la a n d a r sem se atolar em san-
c o r r e n t e ; p e r t o das q u a t r o h o r a s f u n d e o u o na- g u e até aos tornozelos. D u r a n t e este interroga-
vio francez a vinte milhas de Tien-tsin, em frente tório feito na c a m a r a do c o m m a n d a n t e o u v i m o s
de P e i - t a n g - k o u : ao a p p r o x i m a r - s e a c a n h o n e i r a gritos e tiros. Km seguida este b a r u l h o cessou
c o r r e r a m á m a r g e m e s q u e r d a m u i t o s aldeões, e vimos sahir da povoação <>s h o m e n s a r m a d o s
pondo-se de joelhos e d a n d o gritos atüictlvos, q u e já t í n h a m o s visto e n t r a r . Os dois aldeões
e m q u a n t o q u e n a m a r g e m direita g e n t e a r m a - alHrmaram-nos q u e e r a m ainda os b a n d i d o s q u e
da e f a r d a d a com o u n i f o r m e de soldados impe- t i n h a m feito das suas. M a n d o u - s e a terra o offi-
riaes e n t r a v a m na povoação. M a n d a r a m - s e bus- cial chinez q u e nos a c o m p a n h a v a : voltou breve,
car dois d aquelles aldeões; s u p p h e a r a m - n o s que dizendo que aquelles chinezes e r a m soldados

ANTIGO CONSULADO HE FKAXÇA — D e s e n h o de T a y l o r , s e g u n d o u n i a p l i U o e r a p I i i a do d o u t o r Morache

enviados pelo g e n e r a l L é o u , da cidade de Tchcng- os soldados do governo de q u e m muito receia-


ting-fou, p a r a p r o t e g e r os aldeões de P e i - t a n g - v a m e contra a protecção dos q u a e s os habitan-
k o u e q u e t i n h a m feito tiros p a r a o ar a fim tes nos p e d i a m que os p r o t e g ê s s e m o s .
d i n t i m i d a r os b a n d i d o s q u e p o r v e n t u r a esti- C o m o e r a m então amaveis sob a i n f l u e n c i a d o
vessem nas p r o x i m i d a d e s . m e d o estes bons aldeões do P e i - t a n g - k o u ! Hoje
Toda esta narrativa era fabula. O c o m m a n - já é o u t r a c o u s a : são p r e c i s a m e n t e elles q u e
d a n t e d o Lcbrethon e e u fomos a t e r r a . O s h a - m a i s o d i e n t a m e n t e g r i t a m : (O ang-koneitze. vang-
bitantes c e r c a r a m - n o s e o f f e r e c e r a m - n o s vinho e koneitze, Maotze, Maotze:» o que q u e r d i z e r :
c a c h i m b o s . As suas a m a b i l i d a d e s e r a m d u m a «Diabos d a l é m m a r e h o m e n s cabelludos.» K
o b s e q u i o s i d a d e , que n e m eu p u d e r a s u p p ò r com- a i n d a se elles só isso nos c h a m a s s e m !
patível c o m a civilisação chineza. R e p e t i r a m - n o s A rapidez da m a r c h a a p e n a s nos dá t e m p o
o q u e nos t i n h a m já c o n t a d o os seus d e l e g a d o s : p a r a os o u v i r ; em breve c h e g a m o s a um angulo
m a s q u a n d o quizemos vèr os c a d a v e r e s , respon- d o n o . c h a m a d o duplo oito. S ã o u m a s curvas r a -
deram-nos q u e os t i n h a m e n t e r r a d o . P e d i m o s pidas e a p e r t a d a s f o r m a d a s pelo P e i - h o . P a s s a -
que nos m o s t r a s s e m o logar onde t a n t a s victi- mos estas curvas fazendo r o d a r o v a p o r por meio
m a s e s t a v a m e a r e s p o s t a foi q u e estavam co- de cabos fixos a m a r g e m .
bertas por altos a r b u s t o s e q u e os tiros q u e tí- As casas e s t r a n g e i r a s da concessão de T i e n -
n h a m o s o u v i d o t i n h a m tido por fim fazer retirar L tsm c o m e ç a m a avistar-se ao longe, á nossa es-
VOLUME III rui.HA
1 74 A V O L T A DO MUNDO

querda. O m u r o de circumvallação de Tien-tsin cessidade dos mercados. Este facto tem por causa
apparece-nos e faz-nos lembrar que foi construí- o ser Tien-tsin inaccessivel aos navios de grande
do contra nós em 1858 pelo principe mongo- tonelagem. P o r t a n t o os negociantes de Tien-tsin
lico Seng-kolin-sin, que nunca pôde encontrar não foram durante muitos annos senão os com-
numero sufficiente de defensores para o guar- missarios dos chinezes para importação, e das
necer. Um forte em cada margem sustenta esta casas de que eram representantes para a com-
immensa muralha, a que os inglezes chamam pra de mercadorias destinadas á exportação. Na
Seng-kolin-sin's-foly. sua grande parte ignorantes da lingua chineza,
Depois de termos passado além d estes fortes, os negociantes estrangeiros fizeram sempre uso
na margem direita avistamos uma elegante casa dos compradores (do verbo portuguez comprar)
chineza, com os telhados de fôrma caprichosa: u m a especie de caixeiros-corretores fallando um
é o Leang-kia-yuane, ou jardim da familia Leang. inglez medonho o Pigine Inglish, cPidgine por
Esta casa está occupada por u m a repartição das Business (negocios.) O negociante estrangeiro,
alfandegas maritimas. Do lado de cima são cam- muito grande senhor, ou muito ignorante, para
pos e uma pequena aldeia chineza, constituindo ser elle quem trate dos seus proprios negocios,
a concessão americana, detraz da qual está a con- manda o seu comprador a informar-se dos pre-
cessão ingleza coberta de edificações europêas. ços correntes e das necessidades do mercado,
Na margem esquerda ha apenas montanhas coisa facílima, pois que (a maior parte dos ne-
de saccos de sal cobrindo a margem. Emfim o gociante ainda o ignoram) as grandes casas com-
Sinnan-tzing prolongou-se com o caes da con- merciaes chinezas publicam diariamente o preço
cessão ingleza. Reputamos-nos muito felizes por dos generos e as cotações da praça. Os compra-
só termos gasto oito horas vindo de Takou a dores muito impunemente alteram os preços,
Tien-tsin. para que além dos tantos por cento que lhes
cabe de cada operação augmentem os seus pro-
ventos com este latrocínio. D'este modo chegam
Tien-tsin — Os compradores—Estatística do commercio de
a ter lucros tão grandes como os patrões. 0 mais
Tien-tsin e da China
reles criado indígena tem a sua parte, e um ne-
gociante, que, sabendo a lingua chineza, queira
O porto de Tien-tsin é o verdadeiro celeiro
tratar directamente com os negociantes chine-
da capital, distante d'esta apenas vinte e quatro
zes, nada poderia conseguir; o porteiro e os cria-
léguas. A cidade propriamente dita não é muito
dos da casa não lh'o permittiriam. Ha alguns an-
populosa; mas junto das suas muralhas ha bair-
nos que os tien-tsinezes raciocinaram que, sendo
ros, onde uma população de cincoenta mil habi-
Shanghai o emporio da China para as mercado-
tantes se agita e a qual de 1860 a 1862 um re-
rias estrangeiras, era muito melhor ir alli com-
gimento inglez e um regimento francez soube-
pral-as, evitando assim as commissões que so-
ram conter em respeito.
brecarregam as mercadorias importadas pelas
N este logar não farei da cidade de Tien-tsin
casas estrangeiras de Tien-tsin; começam a des-
uma descripção mais minuciosa, todavia não pas-
locar-se e ha dois annos crearam uma compa-
sarei além sem dizer algumas palavras a respeito
nhia de vapores chinezes embandeirados com a
do seu commercio.
sua bandeira. Antes de muito tempo, como re-
Em 1860 o commercio da China estava quasi sultado da progressão natural do seu raciocinio,
completamente nas mãos de très casas estran- os chinezes irão comprar aos portos da E u r o p a
geiras : a casa Dent & Companhia, a casa Jardi- e America. Dentro em pouco veremos fluctuar
ne-Matheson, ambas inglezas, e a casa america- em Marselha a bandeira commcrcial da China,
na Russell & Companhia; esta negociava unica- a cruz de Santo André amarella sobre fundo ver-
mente com capitaes chinezes. Estas grandes casas de. Trata-se já de crear missões diplomáticas
tinham os seus principaes estabelecimentos em I que terão um caracter permanente nas princi-
Shanghaï e Hongkong, e onde esperavam a aber- paes capitaes do Occidente e da creação de con-
tura pelos novos tratados de numerosos portos sulados chinezes nos nossos portos.
no littoral chinez. Logo que p u d e r a m abriram
n'estes pontos agencias. As importações da E u - Entretanto parece-me conveniente o apresen-
ropa e da America enviavam-se directamente a tar aqui uma estatistica circumstanciada do com-
Shanghai e aqui se repartiam pelos différentes mercio de Tien-tsin, que é o de Pekin e de to-
portos, entre outros por Tien-tsin, segundo a ne- das as outras provindas do norte da China.
Á V O L T A DO .MUNDO '75

Em 1874, 300 navios estrangeiros, represen- As importações, representando setenta e cinco


tando 149,050 toneladas, no valor de fran- por cento do commercio, dividem-se em duas ca-
cos 141,600,000, entraram em Tien-tsin; isto é, thegorias: os productos chinezes e os productos
198 vapores com 120,092 toneladas e 102 na- estrangeiros.
vios de vela com 28,962 toneladas. Estes navios Os principaes productos chinezes são: papel,
pertenciam ás seguintes nacionalidades: a maior parte do qual vem de Swatow; ervilhas
Dos 198 vapores: 80 americanos, 77 inglezes, e favas; arroz, sendo no norte muito caro, não
39 chinezes, 1 sueco, 1 russo. tem consumo nas classes inferiores e é pelos me-
Dos 102 navios de vella: 44 allemães, 33 in- nos abastados substituído pelo milho; as sedas
glezes, 8 dinamarquezes, 5 americanos, 5 siame- de Soutcheou e Cantão; o assucar escuro, bran-
zes, 4 francezes, 2 hollandezes, 1 sueco. co, candi, proveniente de S w a t o w ; o tabaco pre-
Estes navios sahiram levando 124,910 tone- parado: os chinezes misturam-lhe azeite para
ladas de mercadorias representando apenas 15 °/o que o tabaco não seque; os chás de Hankow e
do valor da importação, isto é, 22 milhões de P'oochow, cujo consumo está ao alcance de to-
francos. dos conforme a qualidade; uma folha de chá
Em Tien-tsin a importação e exportação cal- passa por bastantes infusões antes de desappa-
cula-se em 373,964 toneladas, valendo 160,600,000 recer no estomago d u m mendigo; serviu pri-
de francos, isto é, 14 % do commercio total da meiro ao senhor, aos seus criados, na casa de
China com o estrangeiro, que em 1874 se elevou chá, no theatro, na hospedaria da cidade e na
para os quatorze portos chinezes abertos ao taberna aldeã; seccam estas folhas ao sol den-
commercio occidental a 1 milhar 169 milhões tro de cestos de vime, que nem ao trabalho se
de francos. dão de os esconder aos olhos dos que passam.
Os 163,600,000 de francos respeitantes ao O mesmo succede com o chá em tijolos desti-
porto de Tien-tsin são assim repartidos: francos nado aos mongols que fazem ferver em leite fer-
83,400,000 de productos estrangeiros importados, mentado de burra ou de camello femea: este
58,200,000 francos de productos chinezes impor- chá assim preparado serve de moeda n'aquelle
tados, 9 milhões de productos chinezes exporta- paiz. Uma companhia de cavalhnhos franceza
dos de Tien-tsin para o estrangeiro, 13 milhões vinda de S. Petersburgo a Pekin em 1870, no
de productos chinezes exportados de Tien-tsin grande numero d'espectaculos que deu durante
para consumo dos portos chinezes. a viagem, não recebeu outra moeda dos especta-
Os algarismos precedentes mostram clara- dores mongols. Teria sido necessário muitas ca-
mente a differença que se produz, não na quan- sas para guardar aquella receita se não se po-
tidade, mas no valor relativo das importações e desse trocar por carneiros, leite, manteiga, etc.,
exportações. etc.
Com effeito a exportação tem por artigos Segundo a importancia da sua respectiva ex-
principaes o algodão em bruto, açofeifas pretas portação por Tien-tsin em seguida damos a lista
e vermelhas, cornos de veado e d'outros animaes, dos portos chinezes:
de grande applicação na medicina chineza, flo- i.° S h a n g h a i ; 2.0 Cantão; 3.0 Hongkong; 4."
res seccas d'olphão, muito apreciadas pelos gu- S w a t o w ; 5.0 Foochow; 6.° Amoy; 7.0 T a k o w ;
losos meridionaes, tabaco d'Ytcheou e da Tarta- 8.° Chefoo; 9.0 Hankow; 10.0 Ning-po; i i . °
ria, lã de camello e de carneiro, em que se po- New-chwang.
dia negociar em larga escala, se se conseguisse As importações de productos estrangeiros,
laval-a para lhe tirar a porcaria que a faz apo- consistem principalmente em tecidos d'algodão,
drecer na viagem; o chá que chega do sul passa de lã, metaes, phosphoros, agulhas, madeira de
em transito por Tien-tsin com destino á fron- sandalo, pau de sapão, sargaço japonez e russo,
teira russa. chá do Japão, vidraça e emfim o opio.
Estas diversas mercadorias, representando As fazendas d'algodao e de lã veem na sua
uma somma de treze milhões de francos são ex- grande parte de Manchester, onde são expressa-
pedidas para os seguintes portos, que eu classifi- mente fabricadas para a China. Muitas tentati-
quei segundo o valor dos productos importados: vas infructiferas se teem feito para introducção
i.° S h a n g h a i ; 2. 0 Cantão; 3.0 Ilongkong; 4. 0 das fazendas d'algodao francezas. Os ingle/'."' e
F o o c h o w ; 5.0 S w a t o w ; 6.° Ning-po; 7.0 A m o y ; americanos devem o seu predominio aos gran-
8.° New-chwang: 9. 0 Hankow; 10." Chefoo. des sacrifícios que fizeram alterando as dimen-

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