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Dados da Catalogação na Publicação (CIP) Internacional

(Câmara Brasileira do Livro, SI', Brasil)

Paiva. Eduardo França


Escravos e libertos nas Mrnas ( icrais do século
X VIII: csrratégias de resistência através dos testamentos:
Eduardo França Paiva. -. São Paulo: Annablurne. 1995.
40(Jf-),
(Selo universidade: 43)
220 p. I 1.5 x 20 (111

ISBN 85·85596·50·3
Bibliografia.
ApOIO À PRODUÇÃO CIENTÍFICA

l
i. Escravidão - Minas Gerais 2. hera, idâo /\'1inas
Gerais .. História 3. Escravos .. Mmas Gerais
Emancipação 4.T estarnernos - Minas Gerais 1. Titulo. 11.
É com grande satisfação que as Faculdades Integradas Newton
Série.
Paiva participam deste trabalho do historiador Eduardo França,
95A5~ (_·D_D_._9_8_1._5_1
...J
professor de seu Departamento de Filosofia e Ciências Humanas.
indices para catálogo sistemático: Essa participação reflete o posicionamento decisivo da
I. Minas Gerais: Escravos e libertos: História 981.51
Instituição no estímulo à produção científica e ao debate acadêmico
com o objetivo de contribuir para o desenvolvimento integral de toda
a sociedade.
Revisão:
Dida Bessana Por constituir um espaço singular de desenvolvimento do
Capa. conhecimento, de aperfeiçoamento das ciências e das técnicas e de
Negras vendedoras de angu. Debret
novos encaminhamentos para as questões filosóficas, é
responsabilidade da universidade propiciar a reflexão critica de nossa
CONSELHO EDITORIAL
realidade.
Eduardo Penuela Cariizal Assim, as Faculdades Integradas Newton Paiva vêm
WilliBolle
Norval Baitello junior
incentivando junto aos professores e estudantes a produção do
Carlos Gardin conhecimento, editando publicações de alto nível e apoiando os
Lucrécia D'Aléssio Ferrara trabalhos de estudos e de pesquisa de seu corpo docente, como nesta
Ivan Bystrina
Sal ma 1. Mucilail publicação. Resultado de dissertação de Mestrado em História -
Ubiratan D' Ambrósio UFMG, a obra contribui, efetivamente. para a revisão historiográfica
sobre a escravidão em Minas Gerais.
Utilizando perto de 400 testamentos do século XVIII, o autor
I .• edição: dezembro de 1995
chama a atenção para a potencial idade dessas fontes históricas e para
2" edição: julho de 2noo a necessidade de se intensificarem os estudos sobre a produção
(; Eduardo França Pa iva documental no Brasil, trabalho que está sendo aprofundado pelo
próprio autor em suas recentes pesquisas para o doutoramento.
J\NNABLUMF editora. comunrcação
Rua Padre Carvalho. 275. Pinheiros
Belo Horizonte, setembro de 1995
05427· 100. São Paulo. SI' . Brasil
Tel e Fax. (011) 2126764
hup.z/www.annablurnc.com.br
40 ESCRA VOS E LIBERTOS NAS MINAS ('ERi\IS .. DISCUSSÀO SOI3KJ: AS FONTJ:S ... 4t

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a esta última uma dimensão mais ampla. Considerando-se. grosso caractcristicas de cada parte e não tinham localização determinada
modo, que o maior objetivo de um CSCf<!\'O era libertar-se e, por parte li priori. Trata-se sobretudo de confissões ou de dcsvclamentos cujos
do forro. tornar-se proprietário. resistir à instituição tão conteltdos. em alguns casos. parecem ter sido minirnizados pela
intrinsecamente violenta pode ter significado. até mesmo. a absorçào agonia e pela morte. Noutros caxo s. reconhecer' Caltas e tornar
de valores dominantes. tendo em vista objetivos prcestabclecidos. conhecidas algumas inumidudcs podem ter objcuvado o perdão
Ainda assim. é possivel vislumbr ar-sc um código de humano e divino, bem como a manutenção na memória coletiva de
comportamento que credcnciava escravos à libertação c forros ao uma imagem ou de um perfil que sc desejou duradouro.
status de proprietário, tanto de imóveis quanto de escravos. Entre os Corno escreveu Walicr Bcnjamim. "a morte é a sanção de tudo
primeiros, foram comuns as alforrias condicionais que previam o o que o narrador pode contar .. ..'6 O testador é também um narrador
bom comportamento, a obediência c prestação de serviços por mais c. neste sentido. valia-se de seu texto de morte como instrumento
alguns anos para serem, então, definitivamente libertados. bem como difusor de sua narrati va. As expressões mais importantes e. também.
as alforrias vinculadas aos bons serviços prestados aos senhores. as condições cotidianas de uma convivência material, espiritual e
Entre os libertos, sobretudo entre as mulheres c as crianças, o intelcctual, encontram-se rcgistradas nos testamentos. É certo que o
recebimento de dotes e legados materiais previstos em testamento uso destes documentos requer a avaliação de seu alcance social, isto
esteve, em muitas ocasiões, vinculado ao posterior "bom c. o conhecimento de seus limites como fontes históricas c de sua
comportamento"; para as meninas isto significou. inclusive, a rcprcscnuuividadc em relação a urna sociedade complexa corno foi
preservacão da virgindade ou o não estabelecimento de vida sexual a desenvolvida em Minas durante o setecentos. Uma vez ideruificada
~
regular até o casamento. Foi, ainda, de grande ser vent ia a ; a potcncialidadc dos testamentos para o resgate do universo ~olonial.
participação em irmandades e a incorporação de princípios e ~ cabe à leitura critica do historiador o aproveitamento do conjunto
costumes cristãos.ê" Uma análise mais profunda sobre esses assuntos I' de informações dai provenientes.
encontra-se nos próximos dois capítulos.
Esta terceira parte dos testamentos prima, talvez em maior grau .
do que as anteriores, pela riqueza informativa. Tal característica não A RESISTÊNCIA NO ESCRAVISMO MODERNO:
se repete, porém, nas duas partes finais. Na quarta parte finaliza-se UMA REVISÃO BIBLIOGRÁFICA
formalmente o texto por disposições operacionais - prazo dado ao
testamenteiro para cumprir cada item exposto, aprovação e abertura A política mercanti lista adotada pelas coroas européias a partir
- e das assinaturas. do século XVI determinou novas estratégias de exploração e
Os codecilos, por sua vez, nào eram comuns. Quando comércio e inaugurou nova fase de dominação politico-econômica,
registrados tinham por objetivo alterar legados ou disposições hoje chamada de colonialismo moderno. Os paises ibéricos deram
anteriores, embora não tenham representado modificações profundas inicio ao período das grandes navegações c foram os primeiros a se
nos textos originais. apropriar das terras americanas, no final do século XV. Décadas mais
Não obstante a divisão dos testamentos aqui adotada, é tarde a Espanha já contabilizava enorme quantidade de ouro e prata
necessário observar a existência de algumas questões que fugiam às proveniente de suas colônias. ao tempo em que os portugueses, sem
sucesso junto aos metais preciosos, já estavam trocando o
extrativismo vegetal na mata costeira do Brasil pela produção
35. Ver Baczko, Bronislaw. Op. cit .. p. 309. onde o autor observa a existência. em sistemática de açúcar, principalmente no litoral nordestino da
toda a comunidade, de um certo código de bom comportamento que instala
Colônia.
modelos formadores, corno o do "chefe" e o do "bom súdito". sustentando todo
o imaginário social em vigor e mantendo ativos os instrumentos de man ipulação
do imaginário social por parte do poder. 36. Bcnjanun. Walrcr. Op. C/I • p. 20X.
42 ESCRAVOS E LIBERTOS N/IS MINAS GERAIS ..
mscussxo SOllR I: AS FONTES .. 43

A introducâo da cana-ele-açúcar no 1\01'0 Mundo parece Ao findar O quinhentos o açúcar já havia alcançado importante
remontar à segunda viagem de Cr istóvâo Colornbo ú América. em luoélr na dieta da elite européia c a sua produção precisava. cada vez
1493. quando haveria transportado mudas da planta. da Ilha da m~is. de mão-de-obra escrava, o que parece ter contribuído com a
Madeira - onde morava e se casara - para as Antilhas. O historiador r~nlabilidadc do tráfico atlântico. Durante os mais de trezentos anos
norte-americano Stuart Schwar t z pensa que nova fase do que se seguiriam alguns milhões de negros africanos cruzariam o
deslocamento da cana-de-açúcar rumo ao Oeste estava se iniciando. Atl:llltico amontoados nos desumanos "turnbciros'v'" e outros tantos
A manufatura 00 açúcar de cana tem origem nas baixadas de Bengala milharcs morreriam antes de alcançar a costa brasileira ou logo que
ou no Sudoeste asiático e chegou à costa oriental do Mediterrâneo "., aqui desembarcassem.
por meio dos conquistadores árabes. que ti trouxeram da Pérsia. Em :~ Muitas são as estimativas sobre o número total de escravos
t.;
maior escala foi produzido e.m Chipre. Crera, Norte da África e na r- africanos introduzidos no Brasil e no restante da América cscravista,
Sicília, antes de chegar às ilhas ibéricas da costa africana, no século f. mas a quantidade exata jamais será conhecida, como observa Robert
XV, onde o processo produtivo aperfeiçoa-se. Em todos esses ~ E. Conrad.-ll Philip D. Curtin, em sua síntese critica da produção
momentos a servidão e o trabalho escravo foram empregados, o que ~ historiográfica sobre o tráfico, calcula terem sido trazidos para as
provocou o seguinte comentário de Schwartz: ~ regiões escravistas um total entre 9,5 milhões e 10 milhões de
"
escravos, no período que se estende do século XVI ao século XIX,
o sistema de grande lavoura, 011 regime de ;~
Desse total, aproximadamente. 35'Vo teriam vindo para o Brasi I, 15%
l" i
engenhos, havia amadurecido nas latitudes r.
para as colônias espanholas, o mesmo tanto para as Índias Ocidentais
meridionais. e podia. agora. cr u z a r () inglesas e para as colônias francesas, separadamente, e o restante
Atlântico com trágica desenvoltura. 37 distribuído entre as colônias holandesas, os Estados Unidos e as
colônias dinarnarquesas."
O escravismo veio junto com a cana para o Novo Mundo e as [. Os dados apresentados por Curtin parecem estar subestimados.
populações nativas foram escravizadas, Nas colônias espanholas "as ~I~. o que ele mesmo reconhece. Mesmo diante de cifras diferentes.v' não
Leis Novas põem tim, em 1542, à exploração irrestrita da mão-de- restam dúvidas de que 610 século XVIII o trático internacional
obra aborígine, dando lugar à e ncomien da de tributos e ao alcançou seu ápice, embora, no caso brasileiro, esta atirmativa seja
repartimiento de índios":38 Já no Brasil a cscravizacão legal dos válida para o século XIX, Mas, no contexto setecentista, é importante
índios durou de 1500 a 1570 aproximadamente, embora fossem ~ frisar, o Brasil e o Caribe importaram a maior parcela dos africanos
usadas "várias formas de coerção, bem depois dessa época, para se ~ vindos para o Novo Mundo e Minas Gerais foi, certamente, uma das
obter o trabalho indígena't.ê? Pressões religiosas sobre as coroas ~ regiões que mais forçaram o aumento da demanda internacional.
ibéricas no sentido de reconhecerem a "humanidade" de seus súditos Não obstante a grandeza e complexidade do sistema eseravista
indígenas e de convertê-los à fé católica, bem como a suseetibilidade ~ aqui engendrado, preferiu-se escolher um tema para ser abordado
dos nativos às doenças trazidas pelos europeus, concorreram para ~
que ao final do século XVI fossem introduzidos os eseravos ~
africanos, principalmente no Nordeste brasileiro e no Caribe. ~ 40. Conrad. Robert Edgar. Tumbeiros: o tráfico de escravos para o Brasil. (trad.).

I São Paulo: Brasiliense, 1995. Numa notado prefácio do livro o autor explica: "O
tenno 'tumbciros' referia-se não apenas aos navios negreiros, mas também aos
m caçadores ou compradores de escravos na África, que os conduziam até a costa.
37. Schwartz, Stuart B. Op. cit., p. 21-39.
38. Cardoso, Ciro Flamarion e Brignoli. Héctor Pérez. História econômica da
América Latina: sistemas agrários I' história colonial, economias de exportação
e desenvolvimento capitalista. (trad.). Riode Janeiro: Graal. 1984: 79.
39. Schwartz, Stuart B, Op. cit., p, 40.
I Os navios negreiros também eram chamados de 'túrnulos flutuantes':', p. 10.
4 L Idem, ibid., p. 34.
42. Curtin. Philip D. The Atlantic slave trade: II census. Madison, Wisconsin, t 969:
47-9.
43. Ver Conrad, Robert Edgar. Op. cit. p. 34-5 e 44 .

. ~'" • M'",.
44 ESCRAVOS E LIBERTOS NAS MINAS GERAIS .. DISCUSSÃO SOBR E AS FONTES ... 45

nesta revisão, evitando tomá-Ia demasiadamente extensa. Assim, no Exterior, e sessenta anos após a edição de seu primeiro livro
optou-se pela resistência escrava, um dos eixos centrais deste estudo, mantem-se como um dos estudiosos do terna mais citados c mais
quc será confrontada com uma bibliografia também selecionada. causadores de polêmica.'
.A. negação da visão benevolente de Gilberto Frcyrc viria a partir
dos anos 50, com os estudos de Reger Bastidc c Florcstan lcrnandcs.
A RESISTÊNClA ESCRAVA c dos anos 6()_ com os trabalhos de Ernilia Viott i da Costa, Fernando
Henrique Cardoso e Octavio lanni.:" Caía por terra a idéia de um
Há algum tempo os estudos sobre a escravidão vêm tentando paraiso racial no Brasil. fruto de uma integracâo harmoniosa das
aprofundar suas análises com relação resistência escrava no Novo
à
raças obtida a partir da formação católica do povo brasileiro _.
Mundo. De simples instrumentum vaca/e, resquício da teoria jurídica imagem contrária ao que teria ocorrido no Sul dos Estados Unidos.
rornana+' e de coisa, o negro cativo vem sendo examinado como difundida pelos trabalhos dc Frank Tannenbaum, nos anos 40. e de
agente do processo histórico, o que efetivamente o foi. Vem sendo Stanley M. Elkins, nos anos 50. ambos influenciados pela leitura de
des~eita a imagem de um ser inteiramente submisso ao poder e aos Gilberto Frcyre."? .A. revisão historiografica empreendida negava a
desejos do senhor, sem qualquer espaço para a expressão de suas análise patriarcalista e idílica e passava a enfoear a violência das
tradições culturais e de suas convicções, desprovido de cabedais e relações senhor/escravo. Com isto, entendeu o cativo mais como
de possibilidade de influenciar nas transformações sociais. no que objeto dessas relações e menos como agente histórico. limitando a
se refere ao estatuto da propriedade privada. Da mesma forma vem resistência às três formas mencionadas anteriormente. São
sendo contestado o entendimento de resistência somente como fuga, rcpresentativas do pensamento da época as seguintcs afirmações de
rebelião e violência contra o senhor ou representante, o que tem Emilia Viotti:
criado alguma polêmica entre os partidários das diferentes
concepções. Entre a casa-grande e a senz a lu houve
sempre Lima t e nsào per m a nent e que os
Um dos precursores desse revisionismo foi o sociólogo
Gilberto Freyre que, em 1933, edita sua obra mais importante: Casa- mecanismos de aco mo d açào e controle

grande e senzala. Já naquela época, esse pemambueano rejeitava a


noção de inferioridade dos negros em relação aos brancos, explicitava 45. Frevre. Gilberto. Casa-grande (' senzala: formaçào da [amilia brasileira sob
(}regime da economia patriarcal. 27' cd .. Rio de Janeiro: Rccord. 1990.
o destacado papel desempenhado pelos negros na formação da
46. Basiide. Roger & Fcrnandcs, Florcstan. Relações raciais entre negros e branco,
sociedade brasileira - refutando, dessa forma, a necessidade de cm São Paulo. 111: Anhembi, n° 10. p. 433-90. 1953/n." 11. p. 14-69.242-77 e
embranquecimento da população defendida pelas elites - e trazia os 434-67_ 1953/n° 13_ p. 39-71.1953: Basudc, Rogcr & Fcrnandcs. Ftorcstan.
escravos e seus descendentes para o primeiro plano de sua análise. Brancos e negros 1'111 São Paulo. São Paulo: Cia. Ed. Nacional. 1955 (citados
por Lara. Silvia Hunold. Op. c/t.): COSia. Emilia Vioüi da. Da senzala li Colônia.
Embora passível de críticas, sobretudo no que conceme à sua visão J' cd .. São Paulo: Brasihcnsc. I'1R9: Cardoso. Fcruando I lcnnquc. Capüalisnro
idílica da sociedade e das relações escravistas no Brasil (camuflando ('escravidão no Brasil meridional: o negro 110 sociedade' cscravocrata do Rio
os conflítos entre classes e a violência da instituição), o pioneirismo Grande do S,,1. São Paulo: Direi. 1'162; lunni, Ociavio. As metamorfoses do
eSCflH·V. São Paulo: Difel, 1962 e lanni, Ociavio. Raças e classes sociais lia
e a atualidade do autor são incontestáveis. Freyre ainda exerce
Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1966.
influência sobre as gerações mais novas de cientistas sociais, aqui e 47. A escravidão no Sul dos Estados Unidos terra-se dado de forma mais violenta e
cruel. uma vez que os senhores influenciavam diretamente a organizaçáo
eclesiástica c porque, naquele pais. vigorava lima estrutura econômica mais
44. Sobre esse aspecto da escravidão anuga e do direito romano e sobre sua
capitalista. dentre outros fatores. Tanncnbaum, Frank . U negra en Ias Amcricas.
sobrevivência junto à escravidão moderna ver: Anderson, Perry. Passagens da
(trad.) l3ucnos Aircs, Pardos, 1%8 c Flkllls. Sumlcy M. Slovcrv, a problcm in
Antiguidade ao feudalismo. (trad. port.) Porto: Afrontamentos. t 982: 24 e
American institutionaí and intettectuo! "fi' Chicago: The Uruvcrsuy of Chicugo
Gcnovese, Eugcne D. A terra prometida: o mundo que os escravos criaram.
Prcss. 1959.
(trad.), Rio de Janeiro: Paz e TcrraJCNPq. 1988: 22-3.

.".... ~",'
46 ESCRAVOS E LIBERTOS NAS MINAS GERAIS .. DISCUSSÃO SOBRE AS FONTES .. 47

social mal conseguiram disfarçar. Nem a Genovese POr um lado como instrumento de dominação e como
"benevolência patriarcal ,.com que às \·eze.' estratégia para impedir a solidariedade entre os negros. mas, também.
se tratava () escravo. nem (/ dureza dos como maneira de ultrapassar a contradição fundamental da
castigos aplicados com o objetivo de coisificaçàü. ao estabelecer mútuas obrigações entre as duas partes:
intimidá-Ia, conseguiam evitar a este era o entendimento senhorial. A leitura dos escravos não era a
indisciplina e a revolta. Insurreiçôes. [ugu« mesma. Tratava-se, para eles, de uma estratégia de resistência:
e crimes expressavam, por toda parte. o aceitava-se o paternalismo em troca da proteção senhorial. A religião
protesto do escravizado. O si st em a era tomada pelos negros como outra arma de defesa e a música
escravista assentava-se na exploração e na religiosa tomava-se um importante meio de protesto. O conjunto
violência e recorria à violência para se dessas regras de convivência permitiu aos escravos norte-americanos
manter. 48 conquistarem condições de vida iguais ou até melhores que as dos
trabalhadores livres europeus, assim como construírem uma estrutura
Ainda na década de 40 haviam surgido os primeiros sinais de familiar estável, embora dificilmente conseguissem a manumissão."
ampliação do conceito de resistência. Eric Williams chegou a No mesmo ano de 1974 foram publicados Roll, .!ordan, Rol/..
empregar a expressão "resistência passiva", o que significava e Time on the cross; lhe economias 01 american negro slavery de
ociosidade, tanto quanto possível, para designar uma das pressões
excrcidas pelos escravos em prol da libertação.'? Esta noção acabaria
abrindo espaço para afirmativas como a de Emilia Viotti, reproduzi da i Robcrt W. Fogel e Stanley L. Engcnnan, outra obra geradora de muita
polêmica52 Partindo de pequenas amostras quantitativas os ,autores
apresentaram estimativas contestadoras do nível de vida dos escravos

I
anteriormente, no que tange à "acomodação". De toda forma, as norte-americanos até então divulgado e reproduzido pela
idéias de acomodaçào (adaptaçào) e de resistência começavam a ser historiografia. Mais do que isso, demonstraram que o sistema
percebidas como não excludentes, embora posições antagônicas escravista do Sul dos Estados Unidos não havia sido instalado sobre
sobre o assunto sejam atuais, o que tem gerado discussões e a irracional idade dos proprietários, que era próspero na segunda
contundentes críticas por parte de estudiosos das mais variadas metade do oitocentos, que os cativos eram capazes de aprender c eram
formações acadêmicas. eficientes comparados à mão-de-obra livre. Nos campos as taxas de
A historiografia dos anos 70, sobretudo a norte-americana, vai lucro real por ano eram altas e nas cidades as indústrias fabris
intensificar os estudos sobre o universo das relações senhor/escravo, empregavam o trabalho escravo, obtendo altos índices de
restituindo a este último seu lugar de agente histórico, bem como produtividade. Assim, os autores provavam que a escravidão não era
expurgar o discurso abolicionista e racista que vinha sendo incompatível com a sociedade industrial.
reproduzido pelas ciências sociais até a década anterior. Eugene Em certos aspectos as obras de Genovese e de Fogel c
Genovese publica Roll, Jordan, Roll; lhe world lhe slaves made (A Engcrman abonam-se mutuamente. Um sistema escravista tão bem
terra prometida; o mundo que os escravos criaram), que traz no instalado e próspero pressupunha um controle social quase perfeito
título a clara intenção do autor: demonstrar o destacado papel da escravaria. Dada a pouca tradição das manumissões e a rara
desempenhado pelos escravos na formação da sociedade cscravista ocorrência de fugas c rebeliões, a resistência negra valia-se do
norte-americana 50 O paternalismo é visto de duas formas por patcrnalismo como instrumento de conquistas sociais, tais como a
redução dos índices de exploração senhorial, a manutenção de

4R. Costa. Emilia Viotti. Op. cit; p. 469.


49. Williarns, Eric. Capitalismo e escravidão. (trad.). Rio de Janeiro: Ed. Americana. 51. Idem, ibid .. p. 23-5 c 81-106.
1975: 224. 52. Foge!. Robcrt W. c Engennan. Stanlcy L. Time 01/ lhe cross; lhe economics of
50. Gcnovese. Eugene D. Op. cit. amCI"ICUII negro slaverv. Bosion: Liulc. Brown and Co .. 1974.

... >.'. '"'' ',. '.', s-. ~ • ''1 •


48 ESCRAVOS E LIBERTOS NAS MINAS GERAIS.
nrscussxo SOllR E AS FONTES .. 49

razoáveis condições materiais de vida e de rico regime alimentar e o , ~~raço para qualquer tipo de acordo. e é imputado aos cativos o papel
f!
reconhecimento da família escrava. de suas peculiaridades culturais de nbjcto nas relações sociais, cxccro quando s,10 part icipcs de
e religiosas. A sociedade sulista constituía-se e desenvolvia-se sobre rebeliões. fugas c atos violentos.
costumes e regras construidos por escra vos e senhores. Concepções distintas J;I eram. contudo. apresentadas por outros
Outro importante estudo é o de Herbert G. Gutman. The black hi,toriadores no Brasil. Em 1979. Kátia M de Qucirós Mattoso
family in slavery anel freedom - 1 750- 1925. lançado em 197653 rublic<\\a o artigo intitulado "Testamentos de escravos libertos na
Gutman reforça as conclusões dos autores precedentes no que se Bahia no scculo X J X: uma fonte rara o est udo de mcnta] idades", <iAs
refere à família escrava. De acordo com os registros de casamento inlluéncias da "Nova História" francesa se faziam presentes nos
investigados, o autor conclui que a unidade familiar havia sido a nor- estudOS sobre a escravidão brasileira. Mattoso ampliava a análise até
ma antes da Guerra de Secessão, inclusive em grandes plantations. os libertos. identificando estratégias usadas para alcançar-se a manu-
i<
Aceitação das uniões conjugais por parte dos senhores sem que a Ie- ~ missào e para. depois dela. obter-se uma certa ascensão econômica.
gislação as reconhecesse, casamentos duradouros, incentivos para ~ Uma dessas táticas passava pela absorção da mentalidade branca
a reprodução natural, número médio elevado de filhos. regime ali- ~ dominante. isto é, adaptações necessárias ii sobrevivência no mun-
mentar satisfatório e fortes relações de parentesco são características ~ do branco e discriminador Nào obstanic a riqueza das fontes e do
que completam o perfil traçado por Gutman. A origem dessa ~ universo mental investigado. a autora explora pouco as formas de
organização social remontaria ao início do século XVlll e se manteria tl resistência rcgisrradas. explícita e implicitamente. pelos testadores
no XIX, fato desautorizador
norte-americanos
das afirmações feitas por abolicionistas
que propagavam a inexistência da família escrava.
As teses defendidas nessas três obras abriam caminho para uma
i
~

~I
libertos
Nesse mesmo ano Mattoso lança, na França, a síntese sobre a
escravidão no Brasil (basicamente na Bahia) intitulada Être esclave
série de novos estudos. A rigidez das relações ~enlhor/escravo estadva j' (/11 Brcsil. posteriormente traduzido rara o português. Na passagem
sendo posta em discussão, pois era percepuve um certo acor o rcproduzida abaixo, expõe com mais clareza algumas estratégias e
estabelecido pelas partes, sobre o qual o sistema se mantinha. Com o principal objetivo da resistência empreendida:

I
relação à escravidão norte-americana, resta saber se esse acordo foi I'
suficientemente vantajoso para os escravos a ponto de compensar as Falamos também do caráter dessa vida
poucas alforrias. Já no que se refere ao Caribe e ao Brasil, a escrava de duas caras, dupla hierarquia,
possibilidade de libertação parece ter incentivado múltiplas formas dupla moral e dupla regra de conduta, única
de resistência, inclusive as disfarçadas. " solução possível, visto que a repulsa
A guinada empreendida pela historiografia norte-americana violenta que é a fuga 011 a revolta quase
não exerceu influência imediata sobre os historiadores brasileiros. sempre sôo frustradas. (... ) Na verdade o
Ainda na década de 70, Ciro Flamarion Cardoso e Jacob Gorender ·t
escravo termina por adaptar-se. acomodar-
~
enfatizavam o Modo de Produção Escravista Colonial,' rf

historicamente novo, baseado na violência, no paternalismo e na I se: mas se co nt in u asse escravo, sem
possibilidades de promoção individual, ele
reificação do escravo 54 Vale ressaltar que, nesse esquema, não existe ~ se integraria de maneira imperfeita ao
~
~ corpo social global. Somente ao tornar-se
53. Gutman, Herbcrt G. The blackfamity in slaveryand freedom - 1750·1925. Ncw
York: Vintagc Books, 1976. ! homem livre. ou ao menos quando começa
a divisar a possibilidade de allorriar-sc, é
54. Cardoso, Ciro Flamarion S. O modo de produção escravista colonial na América,
O modo de produção escravista colonial na América.ln: Santiago, Theo (org.).
América colonial: ensaios. Rio de Janeiro. Palias, 1975, p. 110-24 e Goreridcr,
Jacob. Op. cit, 55. Manos". Kátia M. de Queirós. Op. cit,
50 I:SCKA VOS E LIBERTOS NAS MINAS GERAIS .. DISCUSSÃO SOI3R I' ÁS FONTES ..

que o escravo cru : a a passagem que da escravidão determinurum, sozinhos, os


tra nsform a (I prisioneiro infe li: nUI/7 parôllletros da vida escrava, (: deixar de
a mbicioso alerta. m o vid o por um a lado o p ap«! csse ncia l dos cat i vos na
esperança tenaz. Entôo, o escravo adapta- criaçâu de sua propria cultura."
se verdadeiramente a seu meio (..) através
do astúcia. arma eficu : dos fracos e dos Uma noção de resistência às vezes parecida com a Schwartz é
oprimidos, que possibilita ao escravofingir- exposta por Rcbccca .I. Seul! em Slavc cmantipation in Cuba. th«
se obe dientc, fiel c humilde a nt e seus rransition to free labor, 18ó()-l(1C)C)5x A autora dá especial atenção
senhores, [ratern al (' digno junto aos à legislação em vigor, sobretudo à Lei Morct de IX70. que passou a
companheiros de servidão, A dupla r.::gulara gradual libertação dos escravos cubanos, em detrimento das
adaptação do escravo é, pois, vivida como anteriores pressões exercidas pelos cativos. Em determinados
coisa transitória, devendo levar a um mundo momentos a autora vincula a resistência às possibilidades deixadas
melhor, não o remoto paraiso prometido pela legislação, e coloca em oposição as idéias de "acomodação" c
pelos padres, mas à atforria conquistada, "resistência". De acordo com Scott,
penhor de /11/1 futuro palpável. 56
f
~
~ (.) contestar o senhor, uma rcsistenciu
O conjunto historiográfico sobre a escravidão nas Américas ~ medíocre, era mais seguro e mais provável
diversificara-se teórica e metodologicamente com o passar dos anos, de renderfrutos. O escravo que resistia o ser
Muitos caminhos haviam sido abertos e à década 80 estava reservada açoitado na década de 1860 arriscava-se
uma enorme e mais variada produção científica sobre o tema. até a um castigo maior e tinha pouca chance
Entre os estrangeiros selecionados está Stuart B. Schwartz, de i nflui r permanentemente sobre sua
Sugarplantations in theformation of Brazilian society; Bahia, 1550- si tu aç ão; o patrocinado que levava a
1835, no qual preocupou-se em chamar a atenção para a necessidade acusação de crueldade fiara as juntas na
de se empreender estudos sobre a família escrava no Brasil, dada a década de 1880 tinha alguma chance de
importância e a pequena produção dos historiadores sobre o assunto. conquistar a liberdade, e essa possibilidade
O autor discorda das opiniões que crêem ter a escravidão impedido podia ajudar a contrabalançar a ameaça de
a formação de núcleos familiares, embora reconheça as restrições retaliação,
impostas pela instituição. Schwartz adverte sobre a trivialidade do
conhecimento público em torno dos "aspectos mais comuns e E, mais à frente, concluía:
corriqueiros referentes ao lar, à família, ao trabalho e à recreação",
identificando aí a razão de não terem sido registrados. Neste sentido, Acomodação durante a escravidão podia
afirmava: render privilégios e favores, mas era mais
adequado simplesmente para se afastar do
As limitações do escravismo eram reais e sofrimento. Sob o patronato, acomodação
frequentemente também destrutivas, mas daí que levava à economia de alguns estipén-
crer (..) que a força inerente ao poder dos
senhores e o funcionamento da instituição 57. Schwartz, Stuart B. Op. cíl., p. 311 -3.
58. Scott. Rebecca J, Emancipação escrava em Cuba; a transição para o trabalho
56. Idem. ibid.,p /67, livre - /860- 1899. Rio de Janeiro/Campinas: paz c Terra/Ed. da Unicamp, 1991

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52 ESCRAVOS E LIBERTOS NAS MINAS GERAIS .. DISCUSS,\O S013RE AS FONTES., 53

dias do ano e à venda de um porco podia Minas Gerais era, de acordo com estimativas do último quartel
significar liberdade juridica. Os que da secull' XVIII. a Capitania mais populosa da Colônia."! Um dos
depositavam seu dinheiro com as juntas csmdas mais respeitados sobre o período é de Caio Ccsar Boschi.
reconheciam que o senhor tinha controle Sua all~\Iiscincidc sobre a atuacáo das irmandades leigas na Capitania
jurídico, mas eles estavam contestando seu c sobre as intrincadas relações de poder que por elas passavam,
direito de conservá-Ia. As iniciativas de resgatando, assim, um segmento pouco explorado da história mineira,
patrocinados sugerem, portanto, como lima Ao abordar as irmandades de negros o autor não deixa de reconhecer
atividade híbrida, nem totalmente de que, como as demais, serviram como instrumentos de controle e
acomodação nem totalmente de cooptaç~IO social, mas afirma:
resisténciaí" Se é verdade qlle (/.1' irmandades de negros
não lutaram pelofim do sistema escravista,
Adaptar-se significa, de acordo com a autora, criar a não é menos verdade que, sem elas.
possibilidade de se libertar. Nesta perspectiva, não é cabível a ccrt a m cnt e, d csa p a re ceri a qualquer
oposição entre acomodação e resistência escrava, proposit o de solidariedade introgrup al.
Resistir ao sistema significou diversificar as estratégias de Embora nào objetivassem u destruiçào do
acordo com as peculiaridades de cada região e de cada periodo do sistema, as irmandades davam aos negro,\'
escravismo. Num país tão extenso e tão internamente diferenciado a oportunidade de desaba/à r suas agruras.
como o nosso, a instituição, naturalmente, não foi construida dentro expressar suas necessidades e, até mesmo.
de um único padrão, A historiografia dos anos 80 parece ter-se tentar influir em seu futuro, procurando
conscientizado disso e passou a empreender estudos com marcos tornar suas vidas mais suportáveis. (,,) E,
espaço-temporais mais limitados, sem a pretensão de generalizar os nessa medida, os negros souberam utilizar-
resultados obtidos para todo o conjunto brasileiro. O caso mineiro se delas como um instrumento de defesa e
passou a receber mais atenção por parte dos pesquisadores, uma vez de proteção co nt ra os rigores da
identificado aqui um sistema escravista particularmente complexo escravidão=
e pouco conhecido, A população negra da Capitania (escravos e
libertos) transformou-se em objeto de análise de historiadores de Continuavam tímidas as discussões em torno da resistência
várias partes, advindo daí o interesse crescente sobre o papel negra e quando se tratava de estudos específicos prevaleciam as
desempenhado pelas mulheres negras nessa sociedade, abordagens tradicionais anteriormente discriminadas, sem com isso

O artigo de Luciano Raposo de Figueiredo e Ana Maria pretender desmerecê-Ias. Desta forma se caracterizam os trabalhos
Magaldi enquadra-se perfeitamente nesse contexto. Demonstrando de Carlos Magno Guimarães e João José Reis, onde exaustivas
a importância que as vendas (de secos e molhados) representavam pesquisas desvendam a surpreendente quantidade de qui lombos em

I
junto à economia mineira do setecentos, sobretudo em áreas urbanas, Minas Gerais e subsidiam uma nova leitura da rebeliào dos ma lês
os autores destacam o predomínio feminino sobre este ramo na Bahia em 1835, respectivamente.v'

comercial, bem como a função por elas assumida de amalgamar as


forças de contestação e de forjar "uma identidade entre seus pares 61, Ver Aldcn, Dauril. The population of Hraxilm lhe late eightccnth century: a
prclirninary survcy. l lispanic AmeriwlI Historical Review n." 43, p. 173-20 I,
pobres, explorados, mas até então divcrsos't.s"
1963.
62, 1l0SC11l, CIIO Usar, Op. cu.. p. 152,
63. Guimarães. Car los Magno. Uma negação da urdem escravista: quilombos <,m
59, Idem. ibid., p. 179-80,
Minas Gerais no sJC/I/o XVIII. Dissertação de me strado apre scntada à
60. Figueiredo, Luciano Raposo de & Magaldi, Ana Maria, Op. cit., p. 197.
54 ESCRA VOS E LIBERTOS NAS MINAS GERAIS .. 55
DISCUSSÃO SOI3RE AS FONTES

De maneira semelhante expressa-se Lcila Mezan Algranti em dominação, as estratégias de resistência e o cotidiano dasvivênci~s
seu trabalho sobre as relações escravistas no meio urbano. Tomando ~ foram buscados nos processos criminais e nos autos de inqumcao
como cenário o Rio de Janeiro, entre a chegada de D. João VI e a Jl de escravos fugidos. A opção mctodológica determinou os excelentes
independência brasileira, e como principais fontes de pesquisa os ',<-,;"
resultados obtidos. Ao concluir seu estudo. Lara observou:
registros da Intendência da Polícia do Rio de Janeiro. Algranti
diferencia sua análise quando estabelece alguns padrões de Ora, ((O longo deste trabalho deparamos
criminalidade escrava. Assim. a violência é discutida dentro dos f
com escravos que formalmente reiteravam
seguintes itens: as expectativas senhoriais de fidelidade.
- crimes contra a ordem pública: obediência e trabalho assíduo para obter
- crimes de violência; suas alforrias ou cumprimento de tratos
- crimes contra a propriedade: e sobre alimentação e vestuário, escravos que
- fugas de escravos.v' aproveitaram a ocasião de sua própria
venda para escolher seu senhor, que se
A mudança de concepção em tomo da resistência escrava tem recusaram a certos trabalhos, fugitivos que
como seu principal marco a publicação de Campos da violência, ~ depois de capturados tentavam ainda
primeiro livro da historiadora Silvia Hunoid Lara, em 198865 Lara § esconder-se de seus senhores através di'
desloca o foco de análise da violência intrínseca para o universo respostas propositalmente erradas nos
cotidiano das relações escravo/senhor, destacando os "acordos" AulaS de lnquiriçãoP'
estabelecidos pelas partes objetivando uma convivência menos
dolorosa e problemática. A abordagem da autora restitui aos cativos E continuou á frente:
o papel de agentes históricos, responsáveis diretos pelo
estabelecimento de padrões de sobrevivência c pela criaçào de sua lne gavelmente. estas são for mas de
própria cultura, como já assinalava Stuart Schwartz.v'' resisténcia. Não estão abarcadas, porém,
Influenciaram a discussão de Sil via Lara, como já vinha nem pelo binômio ação-reação, nem por
acontecendo com outros autores, o pensamento de alguns expoentes lima classificação baseada na "violência".
da "Nova História" francesa e do revisionismo marxista inglês, Mais ainda: muitas delas constituem ações
principalmente o de Edward P. Thompson.s? As relações de de resistência e ao mesmo t em p o de
acomodação, recursos e estratégias
Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte. 1983,e Reis, João José. variados de homens e mulheres que, em
Rebelião escrava no Brasil: a historiu do levante dos males (1835). São Paulo:
situação adversa, procuravam salvar suas
Brasiliense, 1986.
64. Algranti. Mezan. O [citor ausente, estudos sobre a escravidão urbana
Leila vidas, criar alternativas, defender seus
no Rio de Janeiro - 1808-1812. Petrópol is: Vozes, 1988. interessesP"
65. Lara. Silvia Hunold. O". cit.
66. Schwartz, Stuart B. O" cit .. p. 312.
67. Foucault. Michel. Vigiar e punir; o nascimento das prisões (trad.). Petrópolis: o esforço de Sílvia Lara rendeu frutos imediatos. Um ano
Vozes, 1977; Lefort, Claudc. Esboço de uma gênese da ideologia nas sociedades depois João José Reis c Eduardo Silva (rcjlançavarn vários artigos
modernas. In: As formas da Historia. (trad.). São Paulo: Brasilicnse, 1979; em forma de livro, buscando discutir as diversas maneiras de resistir
Thompson, Edward P. Thc poverty of theorv & other essa,·s. London, The
Merlin Press. 1978 e Thompson. Edward P. La sociedad inglesa dei siglo XVIII:
lucha de c1ases sin clases? ln: Tradicion, revuelta vconsciencia de clase. (trad.), 68. Lara, Silvia Hunold. Op. cit., p. 344.
Barcelona: Ed. Critica. 1979: 13-61.
69. Idem, ibid., p. 345.

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56 ESCRAVOSE LIBERTOSNASMINASGERAIS., DISCUSSÃOSOBREAS FONTES,. 57

e de ver a resistência. A negociação. empreendida no dia-a-dia, vários caminhos encontrados por eles, coletiva c individualmente.
integra, com destaque, as reflexões dos autores. que crêem ser para minimizá-Ia e/ou destruí-Ia. conquistando, cnrào. a libcrtacào
instaurada a ruptura - a fuga e a revolta, por exemplo - após a falha ~; Cabe assinalar que a cada nova estratégia de dominação. novas
das negociações ou mesmo quando elas nem chegavam a se ~ estratégias de resistência S;IO desenvolvidas e vicc-vcr sa: no
realizar.?? i.: escra\'isl11o imposto a vastas regiões americanas. durante lodo o
A participação das mulheres negras junto a essas práticas ~ lempO.tanto os escravos adaptaram-se ao sistema quanto este último
contestatórias permaneceu, todavia, quase inteiramente adaptou-se aos primeiros. talvez com maior intensidade.
desconhecida. Isto é constatado num estudo de Liana Maria Reis que No caso brasileiro c. mais especificamente. no caso mineiro.
aponta para o descuido da historiografia com questão tão relevante, os acordos acertados entre proprietários e propriedades. no dia-a-dia
sobretudo em áreas urbanas." das relações, assumiram contornos ainda pouco conhecidos pela
Ainda nesta linha de estudos Sidney Chalhoub promove uma historiografia. As variadas maneiras para que a libertação se
discussão sobre a escravidão na corte brasileira, em seus últimos anos concretizasse, assunto do próximo capitulo. é um desses traços
de vida. Retomando Genovese e Thompson o autor mostra que a merecedores de maior atenção.
interpretação da liberdade pelos escravos não era a mesma feita pelos
senhores. Enquanto para os primeiros o significado envolvia a
desvinculação do cativeiro e o direito ao movimento, os segundos
objetivavam a criação de uma rede de dependentes ao seu redor.
Chalhoub enfatiza, ainda, que as alterações ocorridas na legislação
- reconhecimento de alguns direitos adquiridos - foram conquistas
oriundas das pressões cotidianas dos escravos.F
A historiografia brasileira vem, sem dúvida, avançando
bastante em seu esforço de compreensão do sistema escravista que
por mais de trezentos anos perdurou no país e, por isso, marcou
definitivamente nossa sociedade. Entender os escravos como agentes
históricos que transformaram o seu tempo e construíram nossa
cultura, como homens e mulheres que resistiram de todas as formas
e a todo custo, inclusive adaptando-se ao sistema, à sua redução a
meros objetos do poder senhorial, não é negar a violência da
escravidão nem reabilitá-Ia, como entende Jacob Gorender. 73 Trata-
se, sim, de impedir que a virulência da instituição continue ocultando
a discordância de milhões de negros - inclusive os libertos - e os

70. Reis,JoãoJosé e Silva, Eduardo.Negociação e conflito; a resisténcia negra


no Brasil escravista. São Paulo:Cia.das Letras, 1989: 7-11.
71. Reis,LianaMaria.Mulheresde ouro:as negrasde tabuleironas MinasGerais
doséculoXVIII.Revista do Departamento de História. UFMG,BeloHorizonte,
n.? 8, 1989: 72-85.
72. Chalhoub,Sidncy. Visões da liberdade, uma história das últimas décadas da
escravidão na corte. São Paulo:Cia. dasLetras, 1990.
73. Gorender,Jacob. A escravidão reabilitada. São Paulo: ÁticalSecretariade
Estadoda Culturade SãoPaulo, 1990.

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