1. (FGV-2020) CAPÍTULO IX / VISTA DE PALÁCIO que estragara o doce “por pirraça”; e eu tinha apenas seis anos. No Catete, o coupé1 e uma vitória2 cruzaram-se e pararam a Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; um tempo. Um homem saltou da vitória e caminhou para o coupé. punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, Era o marido de Natividade, que ia agora para o escritório, um dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia — algumas vezes pouco mais tarde que de costume, por haver esperado a volta da gemendo —, mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um mulher. Ia pensando nela e nos negócios da praça, nos meninos “Ai, nhonhô!”, ao que eu retorquia: “Cala a boca, besta!”. Esconder os e na Lei Rio Branco3, então discutida na Câmara dos Deputados; chapéus das visitas, deitar rabos de papel a pessoas graves, puxar o banco era credor da lavoura. Também pensava na cabocla do pelo rabicho das cabeleiras, dar beliscões nos braços das matronas, Castelo e no que teria dito à mulher... e outras muitas façanhas deste jaez, eram mostras de um gênio Ao passar pelo Palácio Nova Friburgo4, levantou os olhos para indócil, mas devo crer que eram também expressões de um espírito ele com o desejo do costume, uma cobiça de possuí-lo, sem robusto, porque meu pai tinha-me em grande admiração; e se às prever os altos destinos que o palácio viria a ter na República; vezes me repreendia, à vista de gente, fazia-o por simples formalidade: em particular dava-me beijos. mas quem então previa nada? Quem prevê coisa nenhuma? Para Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas. Santos a questão era só possuí-lo, dar ali grandes festas únicas, No excerto, considerado no contexto da obra a que pertence, o celebradas nas gazetas, narradas na cidade entre amigos e narrador inimigos, cheios de admiração, de rancor ou de inveja. Não (A) traz ao primeiro plano da narrativa o tema central do enredo pensava nas saudades que as matronas futuras contariam às desenvolvido ao longo das Memórias póstumas de Brás Cubas: a suas netas, menos ainda nos livros de crônicas, escritos e escravidão. impressos neste outro século. Santos não tinha a imaginação da (B) demonstra que a relação entre senhor e escravo, não obstante a posteridade. Via o presente e suas maravilhas. desproporção entre ambos, poderia ser humana e benfazeja, não fossem certos proprietários de má índole, afeitos à crueldade. Já lhe não bastava o que era. A casa de Botafogo, posto que (C) justifica indiretamente a existência da escravidão, como mal bela, não era um palácio, e depois, não estava tão exposta como necessário em país novo, egresso da colonização e desprovido de aqui no Catete, passagem obrigada de toda a gente, que olharia mão de obra abundante e apta. para as grandes janelas, as grandes portas, as grandes águias (D) naturaliza a existência da escravidão, isto é, não a denuncia nem no alto, de asas abertas. Quem viesse pelo lado do mar, veria as questiona, mas a narrativa, objetivamente, dá a ver as mazelas dessa costas do palácio, os jardins e os lagos... Oh! gozo infinito! Santos instituição, indicando-lhe o caráter deletério. imaginava os bronzes, mármores, luzes, flores, danças, (E) focaliza o tratamento dispensado aos escravos de dentro, isto é, carruagens, músicas, ceias... Tudo isso foi pensado depressa, utilizados nos serviços domésticos, em geral tratados com mais brutalidade do que os escravos do eito e da mineração. porque a vitória, embora não corresse (os cavalos tinham ordem de moderar a andadura), todavia, não atrasava as rodas para que 4. (FGV-2017) No excerto, as atitudes do narrador e das personagens os sonhos de Santos acabassem. Assim foi que, antes de chegar diante da escravidão representam um momento histórico em que os à Praia da Glória, a vitória avistou o coupé da família, e as duas proprietários de escravos carruagens pararam, a curta distância uma da outra, como ficou (A) sentiam-se ainda bastante seguros quanto à continuidade do dito. trabalho servil, no País, tal como ocorre, também, em Memórias de Machado de Assis, Esaú e Jacó. um sargento de milícias. * Notas: (B) experimentavam um mal-estar difuso e culposo em relação ao 1 2: “coupé” e “vitória”: tipos de carruagem. trabalho escravo, sentindo-se já ameaçados pela revolta da massa escrava, à semelhança do que se dá em Til. 3: “Lei Rio Branco”: posteriormente, mais conhecida como Lei do (C) enfrentavam, já, a contestação frontal dos movimentos Ventre Livre, aprovada em setembro de 1871. Estabelecia que os abolicionistas, que os obrigavam a procurar justificativas legais para filhos de escravos nascidos a partir de então se tornariam livres os maus-tratos infligidos aos escravos, tal como se vê em O cortiço. aos 21 anos de idade; (D) preparavam-se para a iminente extinção do trabalho escravo, no 4: “Palácio Nova Friburgo”: atual palácio do Catete. Residência País, tratando o instituto servil como já superado, assim como ocorre palaciana construída (1858-1867) pelo barão de Nova Friburgo. em O Ateneu. Foi adquirida pelo governo republicano, que nela instalou a sede (E) consideravam-se acima das leis, continuando a submeter os da Presidência da República – o que perdurou até 1960, quando trabalhadores a condições semelhantes às do trabalho escravo, mesmo depois da Lei Áurea, conforme sucede em Capitães da Areia. a Capital foi transferida para Brasília. 5.(FGV-2018) Havia ainda, sob as telhas do negociante, um outro Na mentalidade da personagem Santos (o “marido de hóspede além do Henrique, o velho Botelho. Este, porém, na Natividade”), ao invés de se excluírem mutuamente, convivem e qualidade de parasita. se mostram compatíveis Era um pobre-diabo caminhando para os setenta anos, antipático, (A) raciocínios de caráter burguês-capitalista e consentimento cabelo branco, curto e duro, como escova, barba e bigode do mesmo com a escravidão. teor; muito macilento, com uns óculos redondos que lhe aumentavam (B) valores patriarcalistas e submissão ao mando feminino. o tamanho da pupila e davam-lhe à cara uma expressão de abutre, (C) aspirações aristocráticas e afinidade com costumes vulgares. perfeitamente de acordo com o seu nariz adunco e com a sua boca sem lábios: viam-se-lhe ainda todos os dentes, mas, tão gastos, que (D) projetos suntuários e aversão a realizar despesas. pareciam limados até ao meio. Andava sempre de preto, com um (E) fidelidade ao regime monárquico vigente e convicções guarda-chuva debaixo do braço e um chapéu de Braga enterrado nas republicanas enérgicas. orelhas. Fora em seu tempo empregado do comércio, depois corretor de escravos; contava mesmo que estivera mais de uma vez na África 2. (FGV-2020) Considerando-se o excerto, a visão que se projeta a negociando negros por sua conta. Atirou-se muito às especulações; partir da figuração da personagem Santos é a de uma elite econômica durante a guerra do Paraguai ainda ganhara forte, chegando a ser e social que se revela incapaz de bem rico; mas a roda desandou e, de malogro em malogro, foi-lhe (A) reconhecer a influência da política na economia. escapando tudo por entre as garras de ave de rapina. E agora, (B) efetuar cálculos econômicos dotados de racionalidade. coitado, já velho, comido de desilusões, cheio de hemorroidas, via-se (C) abandonar a corrupção como modo de acumulação de riquezas. totalmente sem recursos e vegetava à sombra do Miranda, com quem (D) alcançar uma efetiva consciência da história. por muitos anos trabalhou em rapaz, sob as ordens do mesmo patrão, (E) identificar as diferenças de classe social constitutivas da e de quem se conservara amigo, a princípio por acaso e mais tarde sociedade brasileira da época. por necessidade. Devorava-o, noite e dia, uma implacável amargura, uma surda 3. (FGV-2017) Desde os cinco anos merecera eu a alcunha de tristeza de vencido, um desespero impotente, contra tudo e contra “menino diabo”; e verdadeiramente não era outra coisa; fui dos mais todos, por não lhe ter sido possível empolgar o mundo com as suas malignos do meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso. mãos hoje inúteis e trêmulas. E, como o seu atual estado de miséria Por exemplo, um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me não lhe permitia abrir contra ninguém o bico, desabafava vituperando negara uma colher do doce de coco que estava fazendo, e, não as ideias da época. contente com o malefício, deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da travessura, fui dizer à minha mãe que a escrava é PROPOSTA DE REDAÇÃO Pré-vest FORTE O FORTE do Ensino! Aluísio Azevedo, O cortiço.
Entre as marcas do Naturalismo, que estão presentes no excerto, só
NÃO se encontra o que está na seguinte alternativa: (A) Configuração da personagem como um tipo, que reúne em si características de um determinado grupo social ou humano mais geral, tipificando-o. (B) Abundância de anotações oriundas da percepção sensível, sobretudo as de caráter visual, na figuração da personagem. (C) Caracterização da personagem por meio de comparações de caráter zoomórfico, isto é, que remetem a animais. (D) Personagem figurada de modo bastante redutor, o que lhe confere certo aspecto caricatural e torna bastante previsíveis suas ações. (E) Ênfase no caráter hereditário dos defeitos e das taras que acometem a personagem (determinismo biológico).
6. (FGV-2016) uma outra casinha do cortiço acabava de estalar uma
nova sobremesa, engrossando o barulho geral: era o jantar de um grupo de italianos mascates, onde o Delporto, o Pompeo, o Francesco e o Andrea representavam as principais figuras. Todos eles cantavam em coro, mais afinados que nas outras duas casas; quase, porém, que se lhes não podia ouvir as vozes, tantas e tão estrondosas eram as pragas que soltavam ao mesmo tempo. De quando em quando, de entre o grosso e macho vozear dos homens, esguichava um falsete feminino, tão estridente que provocava réplica aos papagaios e aos perus da vizinhança. E, daqui e dali, iam rebentando novas algazarras em grupos formados cá e lá pela estalagem. Havia nos operários e nos trabalhadores decidida disposição para pandegar, para aproveitar bem, até ao fim, aquele dia de folga. A casa de pasto fermentava revolucionada, como um estômago de bêbado depois de grande bródio, e arrotava sobre o pátio uma baforada quente e ruidosa que entontecia. Aluísio Azevedo, O cortiço.
A crítica literária costuma observar que, em O cortiço, considerado
como um todo, ocorre uma espécie de ampla personificação, na medida em que, convertido em um único ente, o próprio cortiço figurado na obra seria sua personagem principal. Esse mesmo processo de personificação ocorre, em escala menor, no seguinte trecho do texto: (A) “Em uma outra casinha do cortiço acabava de estalar uma nova sobremesa, engrossando o barulho geral (...).” (B) “Todos eles cantavam em coro, mais afinados que nas outras duas casas; quase, porém, que se lhes não podia ouvir as vozes, tantas e tão estrondosas eram as pragas que soltavam ao mesmo tempo.” (C) “De quando em quando, de entre o grosso e macho vozear dos homens, esguichava um falsete feminino, tão estridente que provocava réplica aos papagaios e aos perus da vizinhança.” (D) “E, daqui e dali, iam rebentando novas algazarras em grupos formados cá e lá pela estalagem.” (E) “A casa de pasto fermentava revolucionada, como um estômago de bêbado depois de grande bródio, e arrotava sobre o pátio uma baforada quente e ruidosa que entontecia.”
7. (FGV-2016) Bastante notável no texto, a grande quantidade de
anotações oriundas da percepção dos sentidos (no caso, sobretudo o da audição), constitui (A) resquício romântico, de ocorrência frequente nas obras de Aluísio Azevedo. (B) testemunho da influência da música na literatura do séc. XIX. (C) antecipação da estética do Modernismo. (D) marca de seu pertencimento ao Naturalismo literário. (E) vestígio do período parnasiano do autor.
ALMEIDA, Maria Regina Celestino De. "De Araribóia A Martim Afonso - Lideranças Indígenas, Mestiçagens Étnico-Culturais e Hierarquias Sociais Na Colônia"