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Sexo, Drogas e Diplomacia

ou
Katatúlio um Homem de Estado

Rui Branco

Rua Guerra Junqueiro Edf.9/7A

2670- Santo António dos Cavaleiros

TM 918392632/ruibranc@gmail.com

BREVE NOTA BIOGRÁFICA

Rui Manuel Ferreira da Graça Branco, nasceu a 22 de Abril de 1943 em Macieira de Cambra (Vale de
Cambra). Exilou-se em 1967, primeiro em França e mais tarde no Reino Unido onde acabou por se
licenciar em Economia e Ciências Políticas na Universidade de Oxford (Balliol College).

Tendo desempenhado funções de economista em várias empresas e organismos do Estado, foi Assistente
Técnico da CEE junto do governo Angolano sendo mais tarde nomeado Adido para a Cooperação na
Embaixada de Portugal na Costa do Marfim, tendo também desempenhado funções administrativas na
nossa Embaixada em Timor Leste.

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SEXO, DROGAS E DIPLOMACIA

OU

KATATULIO UM HOMEM DE ESTADO

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Excepto a figura do papagaio, qualquer

Semelhança dos personagens com a realidade

É pura coincidência.

Por outras palavras: O que não é verdade foi inventado.

Á Sandrinha que nunca se drogou e vive algures no Mundo.

Ao Paulo Pintor que me falou

da mulher que gritava.

À Ana Paula Branco que em noites

difíceis me obrigou a inventar esta

História.

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Se um prosador sabe o suficiente acerca daquilo que está a escrever, pode omitir coisas
que sabe, que o leitor, se o escritor está escrevendo com suficiente autenticidade, terá um
sentimento dessas coisas, tão fortemente como se o escritor as tivesse declarado. A
dignidade de um movimento dum iceberg é devida a só um oitavo dele estar acima da
água.

………….

Quando as pessoas defrontam o Mundo com tanta coragem, o Mundo só pode quebrá-las
matando-as e por isso é claro mata-as. O Mundo quebra toda a gente! Depois muitos
ficam mais fortes no lugar da fractura. Mas aqueles que não consegue quebrar mata-os.
Mata os muito bons, os muito doces, os muito corajosos, imparcialmente. Se não sois
desses também vos há-de matar! Mas nesse caso não será particularmente apressado”.
(Adeus às Armas, Hemingway, trad. Casais Monteiro).

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Kabanda, a Capital do país, erguia-se encostada a várias colinas. A seus pés estendia-se uma manta de
retalhos de casuineiras, palmeiras, massaleiras e acácias. Um pouco mais distante, num extenso manto
verde de prosperidade era frequente verem-se pacas, palancas e guelengues a pastarem. O rio Válio ao
chegar à cidade era já salgado e preguiçoso: Encontrava-se com o mar duma forma que parecia inventada,
criando o que se chamava a Ilha e a Baía.

Mais para longe, nas terras outrora prósperas das margens do Válio, subindo aos pontos mais altos de
Kabanda, avistavam-se as mornas planícies verdes, nutridas pelo rio, que em tempos idos eram
frequentadas ao domingo por caricaturas de criaturas civilizadas, que enquanto mamavam pernas de
galinhola, mandavam ao mais pequeno riso, calar os viventes seus rebentos. Para lá desta abundância
adivinhava-se a imensidão das florestas cerradas.

Toda a costa do país nunca se redimira de ter tido quota na negociata universal dos escravos.

O Xandinho na altura detestava andar de avião. Depois acabou por se habituar. Quando aterrou no
aeroporto de Kabanda, veio-lhe à cabeça a primeira vez que tinha posto o pé no continente africano:
Nesse dia, quando assomou à porta do avião, o bafo de ar quente que lhe molhou o rosto, lançou-lhe um
odor a suor. Agora, ainda sentado na cadeira, (esperando que grande parte dos passageiros saísse),
aguardava uma sensação idêntica àquela que tinha vivido há anos e cheirou-lhe a terra. O aeroporto de
Kabanda cheira a terra. Aos poucos, foi aprendendo que a terra cheira a gente.

- O que faço aqui?

Questionava-se e a pergunta tinha razão de ser:

Estava só! Absolutamente só! Tinha partido duma cultura suburbana para um Mundo onde se discutiam
geo-estratégias e onde supostamente se tinha uma palavra a transmitir sobre a ordem e o destino dos
povos.

Ao fundo das escadas do avião, tinha à sua espera um funcionário do Ministério dos Negócios
Estrangeiros e outro da Delegação da CEE em Kabanda.

Foi rapidamente conduzido ao salão VIP do aeroporto e apresentado Sua Excelência o Ministro do
Plano, na qualidade de Assistente Técnico da CEE Junto do Ordenador Nacional.

Percebeu mais tarde que o Ministro do Plano não o esperava a ele, mas aguardava o Alto-Comissário
para a Cooperação da Comunidade Europeia. De qualquer modo continuava sem saber o que era um
assistente técnico junto dum governo qualquer e muito menos um Ordenador Nacional. Para ele, tudo se
tinha passado muito rapidamente: No dia 20 de Abril de 1986 ainda estava em Bruxelas a ser submetido a
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exames médicos, para ver se estava apto para o cargo que ia ocupar e a 25 do mesmo mês aterrava em
Kabanda. O chamadouro de Xandinho assentava-lhe que nem uma luva. Fortemente marcado pela sua
estadia em Inglaterra, cultivava um humor sarcástico, misturado com uma certa brejeirice que lhe
aprontaram no berço.

O amor é uma enorme solidão se lhe subtrairmos os momentos êxtase (pensava ele)! Durante o êxtase,
dá-se o Mundo! Mas quando se espera o Universo em troca da dávida, nunca se sabe que outros cosmos
lhe dão de volta. No fundo, amargoso como estava, quando chegou à porta do avião, tinha imensas
saudades do carinho que a Susaninha lhe dava nas noites de quietudes!

Ao descer para o centro da Capital foi fácil aperceber-se que se tratava duma cidade sitiada. O aparato
policial, o vestuário esfarrapado e colorido das gentes, o aspecto surrado das ruas, a pobreza das crianças
e a prostituição evidente apontavam nesse sentido. Sentia-se só. Sobretudo sentia a falta da mulher a
quem se habituara às ternuras e às quezílias. Era absolutamente dependente.

A comitiva, chegou por volta do meio-dia ao Hotel Quatro Estações que pomposamente ostentava o
epíteto de “Cadeia Meridien”, o melhor e um dos únicos da cidade, onde viria a viver seis demorados
meses. Comparado com a miséria que tinha visto ao atravessar Kabanda, o Hotel parecia-lhe um paraíso
perdido.

Detestava estar só e os hotéis doíam-lhe: Cheiravam-lhe demais a silêncio e pisava-o a ausência de


vizinhança.

- Nos hotéis inventaram tudo para estarmos sozinhos (pensava).

Kabanda tinha uma minudência que era rara em qualquer outra parte do Mundo: Era ao mesmo tempo
nome de país e nome da Capital. No entanto no que se refere à língua e aos povos, não era fácil distinguir
quando falávamos da nação ou da sua Capital. Assim o dialecto ou o habitante da cidade era o
“Kabandino” ou Kabandês”, enquanto o habitante do país era Kabandano embora por vezes na linguagem
corrente também se chama-se Kabandês ou Kabandino. Era de facto uma grande confusão. Para aclarar a
forma de como

as pessoas se enalteciam, era vê-los a desenvolverem raciocínios comezinhos e observar a maneira como
o cidadão comum tinha necessidade de falar alto: Reactualizava fantasmas, que os mais velhos lhes
alvitravam estarem ainda nas Grandes Florestas. Estas exactidões (falando num Kabandês fluente) eram
dadas aos mais novos pelo gesto solene do cofiar velhas barbas eloquentes, só elas conhecedoras de
mundos que nunca sucederam.

Ao Xandinho as coisas tinham corrido muito depressa não só nos últimos tempos, mas também em toda
a sua vida: Rapidamente tinha passado de licenciado em economia pela London School of Economics, a
desempregado profissional na qualidade de habitante num bairro problemático nos arredores de Lisboa.

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Agora o Xande viajava de avião em primeira classe indo a caminho dum regulamento diplomático,
ignorando tudo o que seria exigido dele. Conhecia-se bem e sabia que nunca na sua vida tinha tomado
decisões dum modo racional: Tudo lhe vinha de dentro em forma de ímpetos e ao gosto de conceitos de
justiça que ele não sabia muito bem decidir. Era um vaidoso!

Na altura, professava ainda duas religiões: A dúvida metódica sobre o marxismo que tinha estudado na
Universidade e a esperança inconsciente no “Homem Novo” que ingenuamente pensava ir ajudar a
fabricar naquele país.

Pelo caminho tinha ficado a dádiva honesta ao Guevarismo e uma miscelânea que se situava por entre
teóricos do Maio de 68 que vivera em Paris e o desejo de ter uma vida de príncipe. Como está à vista o
leque das suas opções era largo. De tudo, o que o que ainda assumia com vaidade de macho era a
“libertação da mulher”, que resumia como uma ressalva aos seus recalcamentos sexuais, nascidos e
acariciados por uma cultura Judaico-Cristã, apreendida desde o berço numa pequena aldeia do Norte do
seu país. Era com estas bases que pretendia enquadrar-se no processo revolucionário da construção do
“Homem Novo”, e foi também com esta ingenuidade quase doentia que serenamente encarou as novas
funções de diplomata, ignorante do lugar que iria ocupar ou o que era exigido das suas funções.

Depois de almoço atirou-se para cima da cama e adormeceu. Para trás tinha ficado toda uma vidinha
onde em casa alguma fome era partilhada igualmente e a recordação dos amigos que tinham ajudado o
casal a dobrar algumas agruras. Esses permaneciam bem presentes nas suas estimações.

No dia seguinte, haveria de perceber algumas das suas utilidades e o que se esperava dele. De facto,
nesse dia ficaria a saber o que era um Ordenador Nacional e quais as funções dum “Assistente Técnico
Junto do Governo”:

O governo de Kabanda (pela guerra Civil que vivia e alimentava) estava na altura completamente
desorganizado. A guerra tinha partido o país em várias partes, e este por sua vez tinha-se deixado
aprisionar pela guerra-fria. Havia um Primeiro-Ministro de poderes dúbios e o Presidente da República
encontrava-se ainda no processo de conquista do poder, dentro do partido do governo. A sociedade civil
estava dividida e destroçada, reflectindo as indecisões e decisões certas ou inócuas dos seus dirigentes.
No meio deste caos, só o Exército Regular e a guerrilha pareciam ter alguma ordem. Contudo, estas
forças não eram visíveis na Capital. Estavam longe do centro político do País (onde voluntariamente se
tinha encarcerado quase 90% da população), que caminhava destemperadamente para um precipício a que
desde o princípio o Xandinho chamou nas suas notas de “Bolchevismo Sem Matriz”.

Em desespero de causa, alheio às consequências do compromisso que assumia ao juntar-se ao grupo dos
Países ACP (África, Caraíbas e Pacífico), O governo de Kabanda tinha recentemente aderido a este grupo,
que era uma espécie de manta de retalhos que procurava dar algum sentido à cooperação entre as Nações
imergidas das independências nas décadas de 60 e 70 e a própria CEE. Através da organização dos ACP, a
Europa, despendia um orçamento considerável na benemerente e religiosa tentativa de contribuir para o
desenvolvimento daqueles jovens Estados. Contudo, esta organização estava também votada ao fracasso:
Os neo-liberais de Friedemen e Popper, começavam a fazer os primeiros estragos. A supremacia e
magnificência do mercado sobre a política social eram agora a teoria dominante em quase todo o Mundo.
Como se isto não bastasse, as ex-potências coloniais, agrupadas na Comunidade Europeia, não tinham
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uma voz única e autónoma no concerto dos países. Com interesses diversificados, tentavam aprofundar e
estender as suas esferas de influência às “suas” ex-colónias, quando estes jovens países se encontravam
ainda na encruzilhada das teorias terceiro mundistas dos não alinhados e o começo do estertor do Império
Soviético.

A figura do Ordenador Nacional surgia em todo este contexto: Era nada mais, nada menos, um membro
do governo dum destes países encarregue de coordenar a nível nacional toda a cooperação com a CEE,
enquanto que o Assistente Técnico seria aquele que estabelecia a ligação entre o governo em causa e a
Delegação da Comunidade Europeia no País.

No caso vertente significava tão só fazer uma ponte entre o desgoverno reinante num país em guerra e
uma Europa dividida entre as encruzilhadas dos estados sociais e as teorias neo-liberais. Parte disto foi-
lhe aclarado naquela manhã pelos parceiros de contenda, o resto deduziu ele, certo ou erradamente.

Com o correr dos dias foi percebendo que nada disto era para ser levado a sério e decidiu começar a
trabalhar para o bronze nas praias de Kabanda, o que o ajudava a passar o tempo.

A vida parecia ter parado e o Xandinho foi passando os dias a contar as horas, entre o Hotel e o trabalho,
mas já tudo o entediava. Conhecia de cor os cheiros e perfumes do seu albergue e larga-lo, começava a
tornar-se a sua primeira prioridade.

O Delegado da CEE era uma figura incansável no afã de lhe encontrar uma habitação e neste aspecto
tinha os seus critérios bem definidos. Dum modo geral as casas tinham sido nacionalizadas com a
justificação de acabar com o Capitalismo e fazer o que se chamava em linguagem de esquerda justiça
social. A ocupação das habitações deixadas pelos colonos no auge da Guerra Civil tinha sido não só uma
palavra de ordem do partido mas também um direito adquirido pelas populações locais, na sequência da
Independência.

Como é evidente, esta ocupação tornou-se classicista: Os quadros do partido e do Estado tinham direito
a vivenda. Os habitantes dos subúrbios, tinham direito a ocupar as casas dos bairros periféricos. Os
refugiados de guerra, ou simplesmente os que procuravam emprego na cidade aguentavam-se nas cubatas
deixadas vazias nos subúrbios, independentemente das tribos, raças ou credos que perfilhassem.

No que respeita a habitação própria, o Xandinho, tinha a sorte do Delegado partilhar os mesmos
sentimentos que ele:

- É fundamental! É fundamental! Primeiro a sua estabilidade, depois falamos com mais calma. Dizia-
lhe o Chefe que era irlandês mestiçado de protestante.

Segundo ele, tinha já efectuado várias diligências. Numa delas teria contactado mesmo o Ministro da
Habitação do país a quem assegurara que para as boas relações entre a CEE e o governo, seria necessário
que este providenciasse para o seu funcionário, uma habitação condigna, ao que ele teria respondido:

- Com “digna” é difícil! Mas sem “digna” vou pensar…”

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Em Kabanda, o alojamento era mesmo problemático. Mas nesta altura a indecisão quase lhe convinha.
Procurar e não procurar casa dava-lhe sempre azo para se escapar até à praia ou então era uma boa
desculpa para desaparecer e estar em parte nenhuma.

Ponto alto tinha sido a chegada da sua viatura de funções, que viria a facilitar-lhe muito as suas
aventuras pela cidade. Tratava-se de um Peugeot 404, branco, de matrícula diplomática, que no meio dos
Ladas que abundavam na cidade, era como uma Limousine americana no meio do trânsito europeu. A
partir desse momento a sua liberdade crescera, e de conhecê-la melhor, começou a amar a cidade com
todas as suas feridas.

Na altura a Ilha, era um dos raros luxos que guerra Civil permitia na Capital. Quente como os corpos, a
praia, era onde ao fim da tarde o Xandinho despejava a ansiedade causada por mais um dia inútil.

Num país em guerra, nada faz sentido. Vive-se na cara das pessoas a ausência de calma. Mesmo os actos
vazios são assustados. As pessoas são invadidas pelo desejo de se tocarem e se aquecerem mesmo
debaixo dum calor tropical e procurar no vizinho ou desconhecido a esperança dum futuro mais calmo.

A Ilha era uma língua de terra encalhada na costa demarcada por um lado pela a água da Baía e por outro
pelo mar imenso. Naquela tarde, e no que para ele já se vinha tornando um hábito, deitou-se na areia do
lado da Baía a olhar a cidade que a cercava e adormeceu profundamente.

Nesse tempo, um dos encantos da cidade sitiada, era sem dúvida o recolher obrigatório, pela forma como
facilitava as relações e a intimidade entre as criaturas: Se uma pessoa convidasse outra para jantar em
casa ou no Hotel era certo e sabido que ele ou ela teriam que dormir lá, uma vez que não se podia transitar
depois das nove da noite. Sendo assim bastava demorar um pouco a conversa, o que o Xandinho fazia a
ouvir música no bar do Hotel ou a beber um copo e estavam feitas as demoras necessárias. Depois era
uma questão de untar as mãos ao indivíduo da recepção com um ou dois USD, e tudo estava preparado
para uma noitada até às tantas. Acontecia ainda que convidar um Makambino para jantar no Hotel mais
luxuoso da cidade era de certeza convite aceite e motivo para cancelar quaisquer compromissos
anteriores: Na cidade faltava tudo e até o que não fazia falta. A rodos, só a cerveja e a gasolina. Aliás o
país tinha inventado um sistema que não cabia em nenhum manual de economia: “A moeda líquida”!
Tudo se comprava ou trocava por uma lata de cerveja: A moeda nacional tinha-se desvalorizado
completamente ao ponto de um quilo de carvão ser trocado por um quilo de notas, tivessem elas o valor
facial que tivessem. A lata de cerveja era efectivamente a moeda bitola. Com uma simples lata de cerveja,
o Xandinho fazia o pleno do depósito de gasolina do seu 404.

Em tempos de paz os generais das partes em conflito iriam encarregar-se de formar as classes
dominantes, fazendo-se pagar a preço de ouro o descanso do guerreiro. Entretanto em Kabanda a
intensidade da guerra, media-se pela quantidade de estropiados, órfãos e prostitutas que deambulavam ao
acaso pela cidade

Naquela tarde na praia, o Xandinho acordou pelo que lhe pareceu, no sobressalto do sono interrompido,
um dedo de pé a roçar-lhe o nariz. Quando abriu os olhos teve que puxar pela memória, para se recordar
quem era aquela mulata a tempo inteiro, que se atrevia a interromper o seu sono.

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Há um bom ano que não a via. De súbito tinha desaparecido de Santo António e até os pais, que eram
vizinhos dele, diziam ignorar o paradeiro da menina que entretanto já se tinha sentado ao seu lado:

- Que, fazes aqui?

- Isso pergunto eu, exclamou o Xandinho espantado.

- Tive que sair de lá e ainda bem que o fiz. Mas isso não é assunto para agora. Falaremos depois. E tu,
que fazes na minha terra?

A sua voz mansa tinha o condão de o fazer fechar os olhos. Várias vezes, quando se cruzaram no
elevador lá na terra ele tinha-lhe dedicado pensamentos de lobo mau que rapidamente repudiava pela
amizade que ligava as suas famílias. Agora ali estava ela, e ao que lhe parecia muito mais mulher e de
certo modo desprotegida. A praia naquele tempo e nos dias de semana já de si era quieta ao pôr-do-sol.
Quando sentiu o dedo do pé a mexer-lhe no nariz, todo o seu corpo acordou a areia onde estava deitado.
Sabia vagamente das viagens dela pelas drogas e de repente apareceu-lhe ali a tapar-lhe um sol enorme de
fim de tarde. Era um caso como muitos que conhecia: Chegara quase bebé na avalanche dos “retornados”
e crescera por todos lados do corpo nos arredores de Lisboa.

Sentada, desenhando arabescos na areia, contava-lhe que estava ali fugida às cocas, aos cavalos e em
busca de paz.

- Contas-me tudo pelo caminho, disse o Xandinho! Queres ir ao Hotel Quatro Estações beber um copo?

- Nunca lá entrei.

- Entras agora. Levantou-se dum salto e sacudindo a areia do vestido disse:

- Que sim! Vamos!

Dirigiram-se para o carro, que ela saudou com um longo assobio. Naquele tempo era raro ver em
Kabanda um carro novo. Dirigiram-se para o centro da cidade a caminho do Hotel. Começava a anoitecer.
As ruas, esvaziavam-se de pessoas, e as sombras preparavam-se para adormecer.

- Há quanto tempo estás cá? Perguntou o Xandinho.

- Deve ir para sete meses. Mas o primeiro e o segundo foram muito difíceis. Foram os meses quando
cortei definitivamente com as drogas. A princípio ainda trazia alguma coisa e fui consumindo. Quando
acabou o stock foi terrível.

Sentiu-a, perfeitamente só e insegura, mas ao mesmo tempo experimentava uma grande necessidade em
falar sobre o assunto:

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- Passada a primeira fase (disse ela), quando o corpo dói, sente-se uma enorme necessidade de dormir.
Depois, quando acordas, tens toda a casa, os teus anos, os teus dias, as tuas horas completamente
destruídas. Tens que reconstruir tudo pedra a pedra e viver de novo.

Pararam em frente do Hotel. O porteiro, solícito, veio abrir a porta à Sandrinha. Como de costume vestia
um boné esverdeado, debruado a fios de ouro e casaco a três quartos da mesma cor. Desde o início que ele
lhe parecera um dirigente militar em traje de gala.

Com garbo de parada, curvou-se perante a Sandra, que o cruzou altiva como as Senhoras, dirigindo-se
em passada larga para a porta de vidro que o porteiro reverente abriu à sua passagem.

O Xandinho dirigiu-se com ela à recepção. Aí por razões de segurança os visitantes deviam-se identificar
e preencher uma ficha onde constava a hora de entrada e possível hora de saída. Neste ponto ele
esclareceu o funcionário, que obviamente era da polícia, que não escreveriam nada na hora de saída
porque ainda não tinham jantado e seria muito possível que passassem a noite a trabalhar. O empregado
do Hotel sorriu-lhe com um ar cúmplice:

- Subam! Subam.

Dirigiram-se para as escadas.

- Paramos no bar para tomar qualquer coisa ou não bebes?

- Ao contrário. O álcool ajudou-me muito nas alturas piores. Não substitui uma coisa por outra. Mas
tornou-se meu amigo e como amigo respeito-o muito. Bebo! Bebo uns copos.

- Vamos lá, então (disse ele pondo-lhe uma mão fingida de distracção em pleno rabo)!

O bar tinha quatro ou cinco clientes. Eram sempre os mesmos, contando as mesmas histórias e rindo das
mesmas graças. A um canto do balcão, com a camisa e as calças pretas de há pelo menos três meses, um
matulão local descansava a cabeça entre as mãos como se estivesse alheio a tudo o que se passava à sua
volta.

Levantou ligeiramente as pálpebras e mirou a Sandra de alto a baixo. Para ele era passarão novo e
enquanto ali estiveram não tirou nem os olhos dela, nem o ouvido da cavaqueira.

- Bebes um whisky (perguntou o Xandinho)?

Pediu ao barman dois whiskies e afastou-se o mais possível dos escutadoiros do homem das calças
pretas. Não lhe apetecia nada voltar à conversa das drogas e muito menos que ele a ouvisse.

- Há quanto tempo estás aqui? Perguntou ela.


- Faz uns bons seis meses...
- Mas isto é muito caro…
- Não sou eu que pago, e de qualquer modo é transitório. É só até arranjar casa.
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A meio do segundo whisky, tirou-lhe precipitadamente o braço que enrolara ao pescoço da Sandra e num
gesto quase teatral, exclamou:

- Sabes que horas são? Oito e meia! Temos que ir jantar se não fecha o restaurante.

Era óbvio que estava a utilizar o recolher obrigatório para a demorar. Levantaram-se e depois das contas
assinadas avançaram para o salão de jantar.

- Estás preocupado com as horas? Perguntou ela.


- Um pouco!

- Deixa lá. Eu disse-te que quando acordei dos pesadelos que vivi, tinha todo o Mundo para
reconstruir pedra a pedra. A aventura faz parte desta reconstrução. De qualquer modo já não vou
poder ir para casa. Prefiro ficar aqui a dormir no hall do Hotel até ser manhã.

- Não é necessário. Há um sofá, no meu quarto e por uma noite a gente arranja-se. Onde moras
(perguntou ele)?

- Longe, nos arredores da cidade com a minha tia Albina. Não é muito aconselhável uma mulher entrar
no bairro depois das sete da noite, portanto se por exemplo aceito um convite para jantar, já sei que é para
passar a noite, de modo que não te incomodes.

Ao fundo do salão, passeava-se um empregado do Hotel, com uma ardósia na mão, tentando mostrá-la
aos poucos comensais. O Xandinho esticou o pescoço para poder ver melhor mas sua miopia impediu-o
de o fazer. O empregado viu-lhe o gesto e aproximou-se: “Hóspede do quarto 3 042, atenda telefone”,
dizia a mensagem. O hóspede era ele. Dirigiu-se à extensão mais próxima e ligou para a recepção. Era a
secretária do Delegado:

- Ele já falou consigo? Perguntou-lhe.

- Não.

- Parece que se levantou uma hipótese dum alojamento para si e se é a vivenda que penso é óptima. É no
Bairro Novo, com vista sobre a Baía. Mas não lhe diga nada. Quer ser ele a dar-lhe a novidade…

- Neste momento nada me faria mais feliz. Mas como conseguiu assim dum momento para o outro?

- Foi numa recepção no dia dos anos da esposa. O seu problema preocupava-o muito. Falou com o
Director Geral duma empresa petrolífera que está aqui sedeada que lhe disse ter uma casa vaga, mobilada
a rigor. Se é a que eu penso é óptima (tornou a dizer). É um palácio digno de qualquer ministro! Para mim
o homem tem mais casas. Estas empresas não brincam em serviço. Era de um Director de Departamento
que não se deu bem com os ares e desertou.

- E então? Vem outro e eu tenho que sair da casa (perguntou-lhe o Xandinho)?

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- Não! Como lhe disse ele deve ter mais casas que lhe foram atribuídas pelo governo. Mas de momento a
que lhe dá mais dores de cabeça é esta que está mobilada com todos os electrodomésticos. É um luxo.
Segundo ele “está mesmo pronta para ser ocupada por o primo de um tio do sobrinho de um quadro
superior do partido e depois é uma chatice para o tirar de lá”. Aproveite! Isto não aparece todos os dias!

- Amanhã vê-se!

- Mas não lhe diga nada. Aproveite! Até lençóis tem! É só meter a chave e habitar. Até amanhã!

Voltou para ao pé da Sandra com um ar de quem respira felicidade.

- Está correr-te bem o dia?

Contou-lhe a conversa com a secretária:

- Que fazes amanhã? Perguntou.

- Pelos vistos vou para casa da Tia Albina logo de manhã. Porquê?

- Tenho uma proposta desonesta para te fazer. Se esta coisa da casa funcionar, ficas aqui no Hotel e
depois ajudas-me nas mudanças e a pôr uma certa ordem na nova casa. Tenho que arranjar um cozinheiro
e uma mulher de dentro.

- Para isso a melhor pessoa é a Tia. Ela diz que conhece ainda umas pessoas do antigamente que agora
estão a passar mal, mas que são bons cozinheiros e empregados de dentro. Vais conhecê-la mais cedo do
que eu esperava. Mas que seja. Vou regressar às minhas tarefas domésticas. Fica a fazer parte da
construção do meu edifício.

- Não fales dessas aventuras aos meus amigos. Comigo podes conversar à vontade. Mas também acho
que essas coisas não são para partilhar com toda a gente.

- Está descansado. Contigo foi diferente: Já me conhecias de Santo António, de certo modo já sabias a
minha história, conheces a minha família, fomos praticamente vizinhos. … Nem vale a pena falar
disso.

- Francamente, não me apetecia nada subir já para o quarto (disse o Xandinho a olhar as suas coxas
abertas e indulgentes).

Serviu-a de mais um copo e arranjou coragem para lhe dar a mão por cima da mesa.

Ficaram assim em silêncio durante alguns minutos, até que o Xande lhe perguntou:

- Olha é verdade o que dizem de ti lá na banda?

- O quê?
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- Que quando fazes amor e atinges o clímax, gritas que se ouve no andar de baixo e chamas por todos os
Santos?

- Os homens não se sabem calar. Isso foi contado pelo meu ex-namorado a toda a gente. Mas é verdade.
Perco completamente o controlo.

O Xandinho pediu mais uma garrafa de vinho, mas para ser servida no bar. Acabaram de esvaziar os
copos e foram para lá, onde uma pequena orquestra tocava uma música calma, como convinha ao bar dum
Hotel 5 estrelas. De momento não conseguia pensar em mais nada sem ser na casa, mas a mão dele
saltava para as pernas da Sandra, cuja carência de carinho consentia. O vinho aquece os sentidos e em
breve trocavam abraços e carícias com um ligeiro sabor à garrafa de Bordeaux.

Fixara os planos para o dia seguinte e ia adivinhando a ternura da noite que estava para vir: Ela ficaria
no Hotel enquanto ele ia à Delegação acertar os pormenores da casa. Fosse que casa fosse, mesmo
temporária, dispunha-se a aceitá-la. Depois se veria. O que estava em jogo era a sua intimidade e a sua
liberdade de movimentos. Logo que pudesse viria buscá-la para irem ver as novas instalações. Entretanto,
daria instruções no bar e no restaurante para ela consumir o que quisesse.

A orquestra continuava a debitar uma música lânguida e ele puxou a Sandra para dançar. O homem das
calças pretas ainda estava no seu posto e depressa arrebitou a cabeça para os medir. Eram o único par que
se fez à pista e a Sandrinha era de facto alguém que dava nas vistas.

Tantas vezes, quando se cruzaram nos corredores do prédio em Santo António ele tinha desejado
silenciosamente os seus segredos... Agora ali estavam nos braços um do outro como se fossem os únicos
viajantes dum paquete de luxo. No bar, continuavam os mesmos cinco ou seis clientes de sempre que
igualmente pespegaram os olhos neles e de certo modo o Xandinho sentia-se vaidoso pela cobiça que a
Dama causava. Mas a casa e a Susana não lhe saíam da cabeça.

- Que fizeste ao teu namorado? Sussurrou-lhe ao ouvido.

- Cansou-se da vida que eu levava e foi trabalhar para França!

- E se voltasse agora?

- Não poderia haver nada. Já te disse que estou a viver de novo e tudo tem que ser novo. É mais saudável
que remexer nas pedras para reconstruir outra vez o passado. De qualquer modo não seria a mesma coisa.
Em dois anos que passei naquilo, vivi pelo menos sete ou oito que ele não acompanhou. Já nem ele nem
eu somos a mesma pessoa. Sabes que isto é como perder a virgindade na cabeça. Nunca mais voltamos a
ser o que éramos.

Apesar do ar condicionado a humidade que se fazia sentir, escorregava-lhes pelos corpos. Quando a
música acabou desprenderam-se devagar já perto da mesa e continuaram no Bordeaux. No bar, os poucos
clientes dispensaram-lhes uma débil ovação. Há meses que o Xandinho estava no Hotel e nunca ninguém
se tinha atrevido a aproveitar aquela toada para um pé de dança. Riram-se. E num gesto de cerimónia
agradeceram à orquestra e aos seus companheiros de solidão.
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Diga-se de passagem, que tirando as tripulações dos aviões que de vez em quando pernoitavam no Hotel,
era raro ver uma mulher naquelas paragens. Os hóspedes, que não poucas vezes arranjavam noivas,
dificilmente as traziam para o bar, como se tivessem medo que gestos mais adúlteros fossem denunciados
por vias misteriosas até chegarem às caseiras virgens europeias.

Fitou os olhos verdes de Sandra e deu consigo a perguntar aos seus botões:

- O que a fará a estar ali com ele, pelo menos quinze anos mais velho?

As respostas foram as mais diversas: Tranquilidade? A certeza de estar a salvo de tentações antigas?
Uma certa ligação à família que de vontade própria tinha deixado? Poderia ser uma mistura disto tudo. No
Xandinho, teria sentido uma certa alegria quando se encontraram na praia e até certo ponto julgou que
tinha funcionado como um reencontro com parte dela própria. Talvez estivesse interiormente dividida
entre Kabanda, o país onde deixara a infância e o outro sítio onde viveu a juventude, mas donde se sentia
excluída. Fosse como fosse a moçoila (pensava o Xandinho) teria muito que fazer para reconstruir a casa
nova e neste caso os seus enormes olhos verdes, juntos com aquele corpo cheio e completo poderia ajudá-
la ou traí-la. Se ela tinha consciência disto (pensou), então era melhor estar ali com ele, recatada da
malvadez de outras almas ainda mais pecaminosas... Ver o filme assim não redimia os pecados do
Xandinho, mas descansava-lhe os escrúpulos. Tinham acabado o vinho.

- Vamos subir (perguntou)? Tenho um sofá no quarto onde podes dormir. Mas primeiro tenho que ir à
recepção dizer que ficas cá.

Não esperou a resposta. Desceu deixando-a no bar. Aproveitou para dizer ao funcionário do Hotel que
ela na manhã seguinte ficaria lá à sua espera e que se ela precisa-se de alguma coisa que fizessem como
se fosse para ele.

O recepcionista não aguentou sem perguntar:

- Quem é?

Embaraçou! Como lhe haveria de contar aquela história toda nem percebia porque é que ele teria que a
saber? Atabalhoou ainda mais:

- É minha sobrinha!

- Patrão! Sobrinha daquela cor?

- Sim! A mãe é irmã da minha mulher que também é mulata mas muito mais clara. Está cá de férias a
viver com uma tia por parte do pai e eu sinto-me na obrigação de lhe dar algum apoio. Mas
provavelmente já arranjei casa e vou levá-la comigo.

Ficou a sonhar com a sua primeira casa e a desejar ainda mais a vinda da Sandrinha. Ficou também sem
saber se ele engoliu ou não a história, mas também não estava muito preocupado. Subiu de novo até ao
bar e qual não é o seu espanto quando vê o homem das calças pretas sentado à mesa da Sandra.
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- Tio! Quase gritou!

O homem das calças pretas sabia perfeitamente o que é que o Xandinho fazia em Kabanda e a presença
da Sandra era o suficiente para ele ajuizar que os “países capitalistas” tinham uma moral que deixava
muito a desejar…

- Estava aqui a falar com a sua sobrinha!

- A bem dizer ela não me é nada (disse o Xande)!

- Nada? Interrompeu a Sandrinha. Tens sido mais que meu pai!

Percebia-se que ela estava em apuros e tinha arranjado aquela desculpa esfarrapada.

- Pois… Não é bem assim (dizia o Xandinho enrascado) … Ela foi criada desde bebé com a mãe da
minha mulher e eu conheci-a ainda ela andava na escola primária. Depois casei e ela veio viver connosco.
Agora veio cá passar umas férias com uma tia, que eu por acaso ainda não conheço...

- E os pais?

O homem queria saber tudo!

- Morreram na guerra (disse o Xande).

A Sandra estremeceu mas aguentou!

- Guerra Colonial?

- Não, não! Civil…

- De que lado estavam?

- Foi coisa que nunca me interessei de saber! Só sei que morreram na guerra civil! O resto quem deve
saber é a tia, mas como lhe disse ainda não estive com ela.

- Mas sabe que morreu muita gente na guerra Colonial?

- Imagino. As guerras são terríveis… Bem Sandrinha, vamos subir. Por hoje dormes no sofá e amanhã
logo se vê.

Despediram-se do homem das calças pretas e já iam quase na porta quando ele chamou o Xandinho:

- O Tio não quer deixar uma cervejinha paga? Este trabalho é uma chatice! Mandam-nos para aqui para
um bar e nem sequer dinheiro nos dão para uma cervejinha…

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- Entendo!

Pagou-lhe a cerveja.

- Que tipo chato (dizia a Sandrinha) quer saber tudo!

- Pois é! Quer tudo e mais uma cervejinha! Mas olha que na recepção também tive que dizer que era teu
tio. O melhor então é eu ficar teu Tio.

Subiram para o quarto.

- Amanhã deixo-te a chave da porta. Se comeres ou beberes alguma coisa, dizes para porem na conta do
quarto 3 042.

Quando acordou, a Sandrinha dormia a sono solto. Ele, a pensar na casa mal tinha dormido. É certo que
não precisava de falar com ela; tudo tinha ficado assente na noite anterior. Depois do banho vestiu-se e
desceu para o salão de pequenos-almoços. Só conseguiria apanhar o Delegado depois das nove e pouco
passava das oito. O único jornal existente estava nas ruas. Foi à recepção buscar um e sentou-se perto de
uma janela a tomar o café. Era na época das chuvas e a cidade cobria-se dum cinzento pesado. O
empregado trouxe-lhe as torradas; se quisesse mais alguma coisa teria que ir ao balcão buscar. Chamou o
empregado e perguntou-lhe:

- Este café é de cá?

- Não patrão é importado!

- Mas havia cá muito café!

- Pois, havia… Mas a guerra…

Encolheu os ombros para cima e para baixo! A guerra estava presente em tudo, menos no jornal.

O Xandinho meteu-se no carro e conduziu vagarosamente em direcção á Delegação na tentativa de


chegar o mais tarde possível e evitar as esperas pelo Delegado. A cidade era lenta a acordar. Os miúdos
saltavam para dentro dos contentores em frente das casas mais abastadas à procura de restos das festanças
das noites passadas e cá fora estropiados espreitavam para dentro deles à espera de alguma iguaria
desprezada. Por perto dos miúdos nem uma sombra de adulto protector. Alguns já se faziam à faina da
pesca, lançando para a água linhas de eficácia duvidosa. O certo é que aquela hora, outros putos
caminhava na marginal com uns peixitos pendurados nas mãos que procuravam vender aos passantes.
Quando chegou à Delegação o carro do Chefe já lá estava. Estacionou no sítio habitual e subiu as escadas
de dois em dois. Perto da porta a secretária avisou:

- Ele já chegou! Não despreze esta oportunidade e se precisar dum empregado diga-me. Tenho um que é
ideal para si. Agora vá lá. Ele está ansioso para falar consigo.

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O Delegado recebeu-o com um grande abraço.

- Parabéns! Eu e a minha mulher não resistimos e fomos vê-la a ontem. Parece que foi feita para si. É tão
boa como a minha mas tem um ar mais nobre. Tem uma coisa que é raro encontrar cá: Está muito bem
cuidada. De resto não precisa de comprar nada desde serviços de louça a toalhas e lençóis tem tudo. Até
tem telefone a funcionar e papel higiénico que eu reparei. A Helena (disse apontando para o lugar da
secretária), já lhe falou dos empregados?

- Já. Muito obrigado por tudo (disse o “Xandinho humildemente). Mas agora queria ver a casa.

- Ela que vá consigo. Sabe onde é! Tome as chaves!

Tudo isto era dito num português escorreito, mas com uma forte pronúncia irlandesa, o que lhe dava um
encanto especial.

- Vamos Helena?

Á porta do gabinete o Delegado ainda lhe disse:

- Tenho pena de não ir consigo para ver a sua reacção. Mas ela depois conta-me.

Era claro que o Xandinho estava contentíssimo e nem sequer punha a hipótese de dizer que não.
Desceram rapidamente as escadas e meteram-se a caminho.

- Queria falar-lhe do empregado (disse-lhe a Helena). Já trabalhou para mim, mas depois adoeceu e não
o pude guardar. Só não passa a ferro… Diz que é trabalho de fêmea! De resto faz tudo e sabe servir a uma
mesa, o que os mais novos não sabem. Aconselho-o a contratar também a mulher para lhe tratar das
roupas. Nesse aspecto mão mulher é outra coisa.

- Quanto é que ele quer ganhar?

- Se lhe oferecer vinte dólares por mês para ele e para a mulher, aceitam. É o que ganham com os
estrangeiros. Num nacional se tiverem uma grade de cerveja por mês é bem pago. Ás vezes dê-lhes algum
dinheiro para comprarem mandioca e coisas assim, para eles cozinharem à maneira deles. Ficam
contentes.

Com esta conversa, já tinham chegado. Era uma casa só de rés-do-chão com um excelente aspecto por
fora, rodeada de muros altos, situada no meio dum jardim enorme. Um medalhão feito em cimento,
representando um qualquer acto bíblico dava-lhe um ar nobre e antigo.

- Tem que arranjar um guarda que lhe abra os portões e lhe trate da relva. Mas o João Paulo, o
empregado, depois trata disso. Se calhar até terá algum filho ou familiar desempregado...

- Definitivamente, você quer colocar a família toda (disse o Xandinho).

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- Tenho pena deles. Lamento não os poder guardar. Mas agora também não quero mandar o que tenho
embora. É um velho do antigamente e muito crítico disto tudo. Foi empregado durante uma vida em casa
dum brigadeiro que o deixou quando se foi embora. Depois trabalhou para mim até apanhar aquela
doença.

Entraram na casa pela parte de trás. Tinha cinco quartos, dois deles com quarto de banho completo
privativo. O salão espaçoso, era comum com a sala de jantar e tudo estava mobilado num género clássico
e sóbrio. Não era de hesitar.

- Vamos, disse o Xandinho à Helena. Ainda me mudo hoje. Já não posso mais com aquele Hotel!

Quando chegaram ao escritório não tinha palavras para agradecer ao Delegado. Foi isso mesmo que lhe
disse, pedindo-lhe dois ou três dias de férias para se organizar. Agora precisaria de arrumar tudo no Hotel,
ir às compras e instalar-se.

- Nesta altura a Sandrinha poderá ser de grande utilidade (pensou).

Quando voltou ao Hotel estava ela a falar com o homem da recepção, a quem comunicou que sairia
hoje. A Sandra saltou-lhe ao pescoço:

- Tio! Arranjou casa?

- E que casa… Daqui a pouco vamos vê-la! Proponho-te o seguinte (disse o Xandinho): Ajudas-me a
fazer as malas aqui no Hotel e vamos levá-las à casa nova. Vês a casa devagar e pensas no que faz lá falta.
Depois vamos à “Loja Franca” e fazemos as compras: Detergentes, sabões, sabonetes, comida, álcoois,
etc. Arrumamos tudo, se quiseres tomas banho, dou-te dinheiro e vais para casa contares à tua tia o que te
aconteceu. Que dizes ao programa?

A “Loja Franca” era um género de supermercado europeu, onde havia de tudo, mas pago em USD.
Começou por se chamar “Loja do Povo” e tudo era pago em moeda local. Mas com a desvalorização
selvagem e os roubos, depressa se transformou na única fonte de abastecimento do mercado negro, o que
levou ao esgotamento sucessivo de stocks e consequente encerramento. Reabriu só para estrangeiros com
o pagamento em dólares. A Sandra concordou com o programa mas lamentou que a tia não pudesse ir
com eles. Levar um habitante local à “Loja Franca”, era levá-lo ao paraíso.

Ele era tremendamente desajeitado a fazer malas e a arrumar fosse o que fosse.

- Para isto tudo vais precisar de caixas, sentenciou-lhe a Sandra. Tens que separar a roupa suja da outra.
Vai à recepção e vê se arranjas caixas enquanto eu vou arrumando o que for possível.

O Xandinho entendeu a mensagem. Para ele, foi como se lhe tivessem dito: “Vai-te embora que não
percebes nada disto”. Cumpriu religiosamente os seus desejos:

- “Bem dita a hora em que ela me apareceu na praia”, pensou para consigo. Vou directo à recepção
pedir os necessários e depois enfio-me no bar a carpir as minhas frustrações de viajante que não sabe
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fazer malas. Saiu do quarto e dirigiu-se à recepção pedir as caixas. Depois foi para o bar deixando à nova
sobrinha o espaço livre.

Quando chegou de novo ao quarto, a Sandrinha fumava um cigarro refastelada num dos sofás. Da
recepção tinham trazido as caixas e ela dava a sua obra por terminada.

- Vê lá se falta mais alguma coisa, disse-lhe.

O Xandinho passou em revista os guarda-fatos, gavetas e cantos do quarto e não encontrou nada que
tivesse ficado de fora.

- Embalaste tudo o que estava no quarto de banho?

- Embalei.

- Agora falta uma ajuda para levar as coisas para o carro.

O Xande meteu-se no elevador e dirigiu-se ao porteiro do Hotel, a quem pediu ajuda.

- Vá para o quarto que eu já lhe mando dois miúdos (disse-lhe o porteiro). A Sandra ficou lá em cima
enquanto o Xandinho pôs o carro em frente à porta, esperando as bagagens que foram chegando e
perguntou ao homem mascarado de militar com farda de gala:

- Posso levar os miúdos para ajudar a descarregar as coisas em casa com a promessa de depois os trazer
ao Hotel.

- Onde vai morar? Perguntou o porteiro.

- No Bairro Novo!

- Não é preciso. Dê um maço de cigarros a cada um e eles depois vêem a pé. Na última carga a
Sandrinha desceu com eles e entregaram a chave na recepção.

As bagagens enchiam literalmente a mala do 404 e o banco de trás. “É impressionante as merdas que se
acumulam quando estamos quatro ou cinco meses no mesmo sítio”, disse aos seus botões, enquanto a
custo arranjava sítio no banco de trás para meter os miúdos.

- Acho que vou ao bar encomendar uma sandes e umas cervejas para comermos quando chegarmos.
Quando o Xandinho desceu, estavam todos acomodados dentro do carro e arrancaram para o Bairro
Novo.

- Quando chegarmos a casa, se quiseres podes abrir as malas e arrumar-me a roupa. O que trouxermos de
coisas para a cozinha convinha que fosse o empregado a arrumar da mão dele. Não sei se a D. Helena
vem com ele, mas se vier gostaria que já não estivesses lá. Percebes, não é?

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- Percebo! Também não gostaria que ela pensasse que sou uma galdéria. Com o tempo vou conhecer os
teus amigos mas ainda não é a altura. A tua Mulher?

- Deve estar a vir a qualquer momento. Só está a tratar de uns papéis para se meter no avião. Mas agora
com o telefone em casa vamos estar em contacto mais vezes.

Tocava-lhe no seu ponto mais fraco. Desejava que ela viesse a qualquer momento ou até que ela
estivesse já ali. Pela primeira vez iriam viver sós e construir o seu próprio ninho. Até ali tinham vivido
com os sogros. A bem dizer nunca tinham tido o prazer de ter uma cama que se dissesse ser deles e viver
numa casa própria. Agora poderiam construir o seu Mundo duma forma íntima. Já não era só o desejo de
tê-la perto de si. Era muito mais:

Com afã, a sua imaginação começava a construir carícias ou o seu próprio Universo ao sabor da
liberdade que desejava. Seria dar e receber carícias dentro do mais interior dos seus sorrisos.

- Quando a Susana vier será o momento de eu aparecer. Afinal somos amigas.

O Xandinho hesitou na resposta. Na verdade conheciam-se bem. Mas era igualmente verdade que os
papeis que ela estava a tratar tanto poderiam demorar duas ou três semanas como dois ou três meses e não
lhe convinha nada que a relação entre eles e nos termos de dependência que se estava a criar, se
aprofundasse. No fundo Kabanda era uma aldeia e mais cedo ou mais tarde tudo se viria a saber. “Era
sobretudo uma questão de respeito pela própria Sandra, pensava. Bastava-lhe ter passado pelas tormentas
que passou e só lhe faltava agora passar por amante de branco, na ausência da mulher”. Era uma questão
de respeito por ambas, que ele queria preservar a todo o custo. Mas havia também outras razões: Por um
lado, as bocas dos amigos que iriam mais ou menos neste sentido: Quando a mulher não está, tem a negra.
Por outro, os círculos diplomáticos que frequentava eram extremamente fechados e embora muito
permissivos quanto à homossexualidade por exemplo, a história das amantes era aplaudida em privado
mas reprimida e olhada de soslaio quando tornada pública.

- “Amantes, só mulheres de ministro” (dizia-se na gíria)! Aí eram festejadas pelos colegas e aplaudidas
pelas Missões dos respectivos países e Organizações Internacionais ou mesmo objecto duma informação
cifrada, urgente e confidencial, por parte dos Embaixadores e Chefes de Missão, para os respectivos
governos ou Organizações Centrais.

Tinham chegado. Da rua não se via a casa. Os muros altos que a cercavam eram como uma muralha que
punham o “Burgo” a recôndito de olhares curiosos. “Burgo”! Era um nome giro para a casa, pensava o
Xandinho enquanto metia a chave nos portões. Quando os abriu, a Sandrinha não se conteve e soltou um
estrondoso “Huáu”!

O branco das paredes e do muro alto contrastavam com o verde da relva cuidada. As janelas como
montras, corriam de alto abaixo ao mesmo tempo que os cortinados interiores, cor de areia, jogavam com
as sendas abertas pelos passos no verde do chão Os vidros fumados resguardavam a intimidade dos
interiores. Duas árvores frondosas, uma de cada lado da casa, subiam para alem do terraço que a cobria e
a ameigavam com sombra. Por dentro a sobriedade quase austera do mobiliário, só era quebrada pela luz
clara que entrava pelas janelas. As paredes estavam muito lisas para o seu gosto. Mas isso era qualquer
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coisa que o tempo haveria de resolver. A Sandra quando entrou correu para o grande sofá do salão e
literalmente mergulhou nele.

- Que casa! Exclamou. Dá vontade de ficar aqui…

Esta foi a parte que o Xandinho menos gostou. Ele tinha trazido do carro as sandes e as cervejas e
sentou-se no mesmo sofá afastando as pernas dela para o lado. Os miúdos começaram a carregar as
bagagens que iam pondo no meio do salão. Quando terminaram o trabalho ofereceu-lhes um maço de
tabaco, conforme o combinado com o porteiro e uma sandwish que devoraram apressadamente até ao
engasgo e foram embora.

Ele e a Sandra ficaram sozinhos no salão a mastigarem a comida e a sentirem o fresco das cervejas
escorregarem nas gargantas, usufruindo do silêncio duma casa nova.

Ela levantou-se. Para experimentar foi acender todas a luzes e ares condicionados da habitação. No salão
olhou à volta e notou:

- Falta-te aqui música e uma televisão.

- É melhor começarmos a fazer uma lista, disse o Xandinho a pensar no orçamento que tinha para se
instalar.

- Eu se fosse a ti, pensava em comprar um vídeo e uma parabólica na “Loja Franca”. Virá-la para um
país vizinho e até canais pornográficos tens.

Era a coisa que menos lhe interessava. Nunca tinha sido dado a tais modernices. Mas achava a ideia
interessante, pelo menos para as notícias que na “TEK” (Televisão Experimental de Kabanda) eram
totalmente filtradas pelo governo ou pelo partido. Um filmezito pensava, de vez em quando também fazia
jeito… mas tudo dependia dos custos, embora para estes extras valesse a pena mexer nas economias, que
eram a única explicação plausível para a sua estada no país.

A Sandrinha percorreu a cozinha a elaborar a lista das compras, abriu todos os armários incluindo os do
salão e foi até aos quartos. Parecia uma profissional. Tinha descido ao pormenor dos tapetes para os
quartos de banho e quartos de dormir, saboneteiras e duas carpetes para o salão.

- Uma vez fui à “Loja Franca” e havia umas carpetes chinesas muito bonitas. Sabes, dizia ela, sinto-me
como se estivesse a comprar coisas para a minha própria casa”.

Agora o Alexandre arrepiou. Era exactamente o que temia: Que ela se acomodasse à situação ou tirasse
produto das suas carências afectivas e servir-se delas para impor a sua presença na casa. É certo, pensava,
que a vinda dos empregados iria diminuir em muito a sua importância. Mas de qualquer modo importava
estar atento a todos os avanços nesse sentido da parte dela: -“Se em menos de quarenta e oito horas, já
está assim, o que seria se a sua mulher se demorasse”? Remoinhou com as suas entranhas.

- Sandra! Chamou.
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- Estou aqui!

Seguiu-lhe o rasto da voz e foi dar com ela no quarto maior a saborear a cama, com o vestido
provocador subido até meio das coxas.

- Estou tramado! Nem eu ainda experimentei a cama, disse num murmúrio.

- É confortável, dizia a Sandra batendo com a palma da mão no colchão, convidando-o a deitar-se
também.

O Xande de mão aberta experimentou o colchão e acabou por se deitar ao lado dela.

- É confortável! Mas temos que nos apressar. Com estas andanças são quase quatro da tarde e daqui a
pouco está a chegar a D. Helena com os empregados. A Sandrinha tinha-lhe feito a cama.

- Só me falta arrumar a tua roupa. Ao dizer isto pegou-lhe no braço e puxou-o para ela.
Vagarosamente abriu-lhe a camisa passando-lhe os dedos pelo peito. O Xandinho quis protestar mas
com doçura ela encostou-lhe a mão à boca.
- Espera um pouco! Vou ao quarto de banho (disse ela).

Quando voltou vinha embrulhada numa toalha de banho que a cobria da cinta para baixo. Retirou-a
olhando-o com um ar terno e a pousar um joelho em cima da cama.

O Xandinho não renegava prazeres mas tornou a temer que a história da casa se transformasse num hábito
e ela numa hóspede efectiva. Começou também a despir-se e reparou nos seus cabelos curtos que lhe
engrandeciam ainda mais os olhos verdes. A Sandra ainda ficou uns momentos de pé como se pedisse aos
lábios do Xande que lhe amansassem o corpo.

- Tu fumas (perguntou)?
- Já viste que sim (respondeu ele meio a tremer)!
- Não é disso! Vê-se mesmo que és virgem. Falo de erva e outras coisas...
- Não sou tão virgem como isso. Mas erva e chamon, álcool e tabaco foram as únicas drogas que
entraram neste corpo e assim desejo continuar.

Deitaram-se por baixo do lençol com o ar mais natural deste mundo e aconchegaram os corpos.

- Hei-de comprar erva perto da minha tia.

O Xandinho sentiu o seu ofegar quente junto ao pescoço e os lábios dos dois iniciaram pachorrentas
aventuras pelos corpos até se envolverem num gesto meigo e ritmado. Então aconteceu o que as bocas do
mundo anunciavam: Os murmúrios mansos foram-se transformando pouco a pouco em balbucios
ininteligíveis que subiram de tom amável até se transformarem em gritos continuados:

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- Minha Nossa Senhora!!! Ai!!! Ai!!! Meu Santo Antoninho!!! Meu Bom Jesus!!!

Quando se levantaram foram para o salão. Sentados no sofá ainda nus saborearam o sossego do lar e as
cervejas que tinham trazido do hotel. O “Xandinho decidiu telefonar à D. Helena a dizer-lhe que só
estaria em casa por volta das dezanove horas, pedindo-lhe ao mesmo tempo para transmitir ao Delegado
que no dia seguinte iria precisar duma carrinha de caixa aberta.

- Quando veio, não trazia assim tanta coisa, disse-lhe ela.

- Pois não. Mas preciso de comprar uma televisão, uma aparelhagem de música e uma parabólica, alem
doutras coisas. Mas para isso precisava da ajuda do empregado e talvez do condutor da carrinha.

- Eu digo-lhe. Até logo às sete e desligou o telefone.

Vestiram-se e arrancaram para a “Loja Franca”.

- Vamos deixar as coisas grandes para amanhã, carpetes, televisão etc. e concentrarmo-nos nas mais
pequenas. Depois volto à “Loja” com a ajuda do empregado que vem hoje.

Pelo caminho pensou que fez mal em sair do Hotel de forma tão apressada. Não tinha nada para passar o
resto a noite nem para jantar.

Como era de esperar, a Sandra quando se viu dentro do supermercado, encaminhou-se directamente para
a secção de roupas de senhora, mas naquele dia havia pouca coisa para alem de uns biquinis. Levou dois
ou três para o cubículo das provas e rapidamente encetou uma passagem de modelos. Depois de vesti-los
um por um, perguntou ao Xandinho com trejeitos de anca:

- De qual gostas mais?

- Do segundo, respondeu, na certeza de que não era aquele que ela tinha eleito.

- Eu gosto mais do primeiro, e pô-lo no carro das compras.

-“Porque será que as mulheres, fazem sempre esta pergunta quando experimentam roupa, sabendo que a
gente nunca acerta”? Pensou.

- Agora vamos só ali aos cosméticos, e não levo mais nada para mim.

Pacientemente ele arrastou-se até aos cremes e perfumes, onde a Sandra fez o pleno.

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- Há tanto tempo que não comprava destas coisas! Não te importas pois não? Sabes que isto no mercado
negro é um dinheirão e nós nunca sabemos se vêm da China, da União Soviética ou da Bulgária. Estes
não! Vêm de Paris, estás a ver? E mostrava-lhe os rótulos dos frascos.

- Já que estás aqui, aproveita e leva as coisas para os quartos de banho.

O carro ia-se enchendo. Passaram nos electrodomésticos para ver os preços das televisões, aparelhagens
e parabólicas, mas era algo que ele preferia escolher sozinho. Dirigiram-se para os produtos alimentares
onde o carro abarrotou.

- Vou levar óleo e arroz para a Tia Albina, disse a Sandra.

Fez ainda algumas compras de pouca monta para ela e dirigiram-se ás caixas. À volta da registadora,
havia alguns miúdos de roupa rota e suja que se guerreavam para ajudar a pôr as coisas em sacos de
plástico e transportar para o carro. Autoritariamente a Sandra estabeleceu alguma ordem naquela bagunça
elegendo dois ou três gaiatos para a tarefa. Tudo ficou à volta de trezentos dólares. A vida era cara. Os
miúdos, a quem deram um chocolate a cada um, levaram os sacos ao carro.

Em casa, despejaram as compras e tudo correu como o combinado. O Xandinho deu algum dinheiro à
Sandra para os transportes.

- Quando nos vemos, perguntou ela?

- Leva este número e telefona, ou então aparece.

A Sandrinha saiu. Pela primeira vez só em casa, entreteve-se a pôr as bebidas no frigorífico. Depois,
com uma lata na mão, abriu também pela primeira vez as grandes portas que davam para o jardim,
reparando que nas traseiras havia uma terceira árvore debaixo da qual o anterior inquilino ou a companhia
de petróleos tinha deixado uma mesa comprida e baixa, à altura de três divãs com colchões de espuma
forrados de azul, que o sol e as chuvas tinham desbotado.

Estendeu-se num deles. Reparou que a mesa de jardim ficavam ainda longe da cozinha e via-se mal
quando tivesse visitas de cerimónia começar aos gritos para chamar o empregado. Pensou em instalar
uma campainha ecléctica no tronco da árvore directamente ligada à cozinha. A passo calculou os metros
de fio que seriam necessários para a instalação.

- Aqui ficariam bem três ou quatro candeeiros de jardim, que dessem alguma luz à noite. Um deles
ficaria a meia altura, provavelmente também preso à árvore, para poder ler nas noites quentes.

Pensou também que seria ouro sobre azul, um pavão a passear na relva mas temeu que numa das suas
baladas de chamar fêmea ele voasse para cima do muro e desaparecesse para sempre, despojado da
luxúria das penas.

- Ainda acabava todo nu no fundo duma panela como aconteceu com os cães e gatos da cidade, disse
para consigo.
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Ficou a pensar que nunca antes tinha visto uma terra sem cães e sem gatos e voltou a deitar-se num dos
divãs. O sol começava a sua descida para o sono e agora imaginava todo o jardim nas noites luarentas e
claras. “Umas Sonatas de Chopin também ligavam bem! Mesmo uma boa passada de música local”…
Via-se por instantes com a Sandrinha apertada nos braços, ambos em calções numa dança íntima de
corpos colados pelo suor.

A campainha despertou-o destes torpores. Foi abrir os portões do jardim: Era a D. Helena com o
empregado.

O Xandinho cumprimentou ambos e fez-lhes menção de entrarem. O João Paulo era uma figura esguia,
alta de fartos cabelos brancos que fariam inveja a qualquer músico de jazz na América.

- O meu nome é Alexandre.

- Dr. Alexandre corrigiu a D. Helena.

- Para já sou só eu e os meus amigos. Depois há-de vir a minha mulher. Já pensou no ordenado?

- Com certeza que aqui a patroa, já lhe falou disso, disse o João Paulo, apontando para a D. Helena.

- Já! De começo dez dólares para si e dez para a sua mulher! Mas olhe que também vou precisar dum
guarda que me trate do jardim.

- Tenho um familiar meu. Falo com ele amanhã.

- É para ficar à noite “Sôtor”? Perguntou o João Paulo.

Ele encolheu os ombros por não saber os costumes.

- Normalmente um guarda fica de noite, esclareceu a D. Helena.

- Mas fica onde?

- De certeza que esta casa tem alojamento para os guardas no fundo do quintal. Vamos ver.

De facto, mesmo ao fundo havia uma casita tapada com arbustos altos, que o Xandinho não tinha
reparado. Dirigiram-se para lá. Era um quartito com uma cama de solteiro em ferro, uma saleta com uma
mesa, duas cadeiras, uma cozinha rudimentar e um quarto de banho com chuveiro.

- Sr. Sôtor perguntou o João Paulo. A Senhora dele pode vir ao domingo?

Liberal como sempre, o Xandinho respondeu:

- Pode vir quando quiser…

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- Ficar cá com ele?

- Pode.

- Ai, o “Sôtor” é um amigo!

Foi a custo que o Dr. Alexandre o impediu de se ajoelhar em agradecimentos.

- Mas eles têm um bebé, disse o João Paulo.

O Xandinho hesitou um pouco. Já não podia voltar atrás.

- Pois venha de lá esse bebé. Mas para isso tenho que arranjar uma cama de casal, e aquela que ali está
põe-se na saleta para o bebé.

- Uma coisa que o afligia era como a sua mulher iria passar o tempo em Kabanda. Haveria de se entreter
com o miúdo até não arranjar nada para fazer, e a mulher do guarda, poderia bem acolitá-la nas suas idas
ao centro da cidade.

- Quanto quer ganhar o jardineiro?

A D. Helena atalhou:

- Depois eu falo-lhe sobre isso. Agora tem que pensar em vesti-los e calçá-los. Normalmente o
cozinheiro veste safari branco com botões amarelos e sapato preto. O guarda veste azul-escuro e
sapatilhas. Na “Loja Franca” tem isso tudo. Se fosse a si comprava já dois conjuntos de cada para as
mudas. E não se esqueça de meias pretas para o cozinheiro. Convinha também uns aventais de plástico.
Se quiser eu vou lá consigo.

- Já agora agradecia, disse o Xandinho. E podia dar uma volta pela casa para ver o que faltará mais.
- Vamos! João Paulo vais começar a arrumar as compras todas da tua mão.

Ao empregado parecia ter saído a sorte grande. Eram menos duas pessoas numa casa num bairro de lata
dos subúrbios e mais importante do que isso, menos duas bocas a mastigarem (das sete que ainda
ficavam). Eram também menos uns choros e uns peidos por noite, numa cabana que só abrigava a família
toda com os corpos entrelaçados.

Em casa o João Paulo, começou a arrumar as compras e a D. Helena foi bisbilhotar tudo. Quando
chegou ao salão desabafou:

- Ou você é muito arrumado ou aqui andou mão de fêmea!

- Porque diz isso?

- Pela forma como a sua roupa está arrumada.


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- Não eu sou assim! As compras das coisas para a cozinha é que deixei para o empregado arrumar.
Achei melhor tudo ficar da mão dele. Claro que depois sou eu quem não sabe onde estão. Mas isso
depois vê-se. Qual é o seu dia de folga?
- Domingo. E a mulher só vem de manhã para arrumar a casa e passar a ferro.

- Quer tomar alguma coisa, perguntou o Xandinho? A estas horas pode ser um Porto se tiver. Mas
peça-lhe para ele servir e já vê o seu jeito.

Passado um pouco, o João Paulo exibia com habilidades de malabarista uma bandeja, forrada com um
paninho branco que tinha desencantado e serviu-os na mesinha de centro, botando sentença:

- Não tem bases de copos, nem peixe, nem marisco, nem especiarias e falta-lhe também o ferro de
passar.

- Eu vou com ele amanhã às compras e trazemos isso.

- Cuidado com as horas, disse o Alexandre.

- Não faz mal. Se for preciso levo-o a casa com o livre-trânsito. Mas é melhor não o habituar a isso. Eles
gostam de ser apanhados pela polícia e nós mostrarmos o livre-trânsito. Sentem-se importantes.

A D. Helena vivia há muitos anos em Kabanda e conhecia bem as terras e as gentes. Já antes da
independência, no fulgor da juventude, participara em reuniões clandestinas das elites revolucionárias e
hoje mantinha a tradição de frequentar assiduamente as altas esferas do poder. Este porém, estava
dividido entre a linha dura ou seja, aqueles que tinham participado directamente na luta armada,
chamados “matumbos” e os outros, que faziam parte das redes clandestinas das cidades – os
“intelectuais” ou “mulatos”. Muitos destes, devido às perseguições dos “matumbos”, como o pai da
Sandra, foram obrigados a sair do país ou alistarem o seu passado noutros partidos, onde não tinham
melhor sorte, passando a ser conhecidos dentro destes como “trânsfugas”. Por outras palavras, não tinham
lugar de cidadãos dentro de Kabanda.

A D. Helena tinha sobrevivido a tudo isso, mantendo-se próxima do partido no poder devido sobretudo à
protecção dada por um “intelectual” citadino e branco. Ele também tinha escapado à ferocidade
revolucionária pelas chamadas “necessidades do processo”: De facto a dada altura, tornara-se necessário
mostrar ao mundo a multi-racialidade do sistema e ele foi promovido a Membro Efectivo do Comité
Central. Nem culturalmente nem doutro modo qualquer (antes ou depois da revolução), teria sobressaído
da mediania da sociedade Kabandina. Mas era branco o que dava cor ao partido do governo e tinha
aderido há longa data de alma e coração a algumas práticas negras, nomeadamente no que se refere à
poligamia. O bisavô, dizia-se, fora um grande cultivador de café nas zonas do Sul, tendo o avô criado
uma empresa de transporte de mercadorias, da qual restava ainda alguma coisa na altura da
Independência. O Henriquinho, assim se chamava o último descendente desta casta, tinha descambado:

Os copos e as companhias tinham-no reduzido a uma boémia inconsequente, habitada por mil mulheres
e alguns livros de Freud, que passeava orgulhosamente debaixo do braço. Diziam as más-línguas, que já
tinha lido duas peças de teatro: O “Romeu” e a “Julieta”. A Independência de Kabanda fora a sua
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salvação: Doou ao Povo e ao Estado os restos da empresa de camionagem e entrou sem mais aquelas para
o Comité Central do Partido, tendo mais tarde, sido nomeado Ministro dos Negócios Estrangeiros da
Jovem República, porque falava línguas. De facto tinha aprendido algum francês, inglês e italiano com os
marinheiros que frequentavam os bares do porto em dias de chegadas de navios.

- Que vai comer? Perguntou a D. Helena ao Xandinho.

- Sou capaz de ir ao Hotel jantar qualquer coisa.

- Veja lá! Se tiver carne ele pode-lhe fazer uns bifinhos e já vê como ele cozinha.

Ela não podia disfarçar a mulheraça que devia ter sido na sua juventude. O João Paulo tinha deixado de
se ouvir e obviamente esperava ordens.

- Não vale a pena. Vou ao Hotel. Ainda não paguei a conta! Que fico aqui a fazer sozinho depois de
jantar, sem música nem televisão.

- Pois é!

A D. helena chamou o empregado:

- Vem para irmos embora.

O João Paulo entrou no salão:

- A que horas quer que venha amanhã, Sôtor?

- Podes vir às oito. O Senhor Doutor entra às nove, mas amanhã fica em casa

A D. Helena bebeu o resto do porto num trago:

- Pronto vamos embora. Eu levo o João Paulo a casa (disse ela). Amanhã trazes o guarda, a mulher e o
bebé. O Dr. Alexandre vai comprar cama, duas cadeiras, fardas para vocês e roupas de cama para eles.
Eles têm rádio?

- Não! Só têm crucifixo, Patroa!

- Então compramos-lhe um rádio pequeno. Mas olha que é para eles se portarem bem! E Sr. Dr. quer o
bebé limpinho, disse a Helena. Olha que patrões destes não se arranjam todos os dias!

- Sim patroa. Vamos embora.

Saíram os três. Pelo caminho a D. Helena disse ao Xande:

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- Ao guarda dê-lhe dez USD para os dois. E se estiver de acordo compre também umas roupetas para o
bebé. Deve fazer agora um ano! Não quer que ele ande pelo quintal todo sujo, pois não?

- Não. E a minha mulher quando vier vai trazer-lhe umas roupas usadas dos vizinhos. Por aí o problema
está resolvido. Então até amanhã às dez.

A Sandrinha começava para ele a ser uma obsessão. Aquela ideia de “refazer o Mundo pedra a pedra”
parecia-lhe no mínimo bizarra. De certo modo, pensava ele, é o Mundo que nos constrói a nós próprios.
Ela estaria a inverter os papéis e feita Deusa a refazer o seu próprio Mundo. –“Então e se ela puser uma
pedra mal posta ou uma árvore mal plantada, pode retirá-las? Se o homem inventou Deus, para não ter a
trabalheira de fazer o Mundo”…

Levantou-se e sentou-se de novo, com o peso da mistura de porto com cerveja!

- Que grande bebedeira com que estou! Disse em voz alta. E este porto, não está a ajudar nada.

Servindo-se do esquema que lhe ensinara a telefonista que encontrara na praia, pegou no telefone e
telefonou à sua mulher, para lhe dar o novo número de contacto em caso de emergência. Não lhe
perguntou como estava a sua vinda e a papelada, mas ela conhecendo-o bem devia ter-se apercebido que
ele estava bêbado e não ligou. Disse-lhe no entanto do seu encontro com a Sandra na Ilha, omitindo
obviamente detalhes adúlteros.

- Amanhã, já digo à família dela! Disse a mulher. Vão ficar contentes!

Foi a custo e aos tropeções que se levantou do sofá e foi para a cama. Dormiu como um justo! No dia
seguinte, acordou com a campainha da porta. Vestiu à pressa uns calções que desencantou numa das
gavetas arrumadas pela Sandrinha e com a boca sabendo a notas velhas, foi abrir. Eram os sete: O João
Paulo, a mulher, o sobrinho a mulher e a filhota, a D. Helena e o condutor da carrinha de caixa aberta. De
repente a casa enchera-se de gente. No salão a D. Helena começou as apresentações:

- Este, o Doutor já conhece, é o João Paulo. Esta é a esposa, a D. Irritação.

- Irritação? Perguntou o Xandinho espantado, deixando escapar um indesejável sorriso.

- Sim explicou a própria. Toda a gente se admira. É o nome cristão. O meu verdadeiro nome, o nome de
feitiço, o nome que a família nos põe lá na terra onde nascemos é Macala. Mas antes de eu nascer, os
meus pais trabalhavam para uma Senhora branca que tinha uma filha que andava sempre desaparecida. E
a Senhora chamava-a: Maria! Maria! Quando ela não aparecia, a Senhora dizia: Onde se teria metido?
Esta miúda é uma irritação… É uma irritação! Quando fomos à pia lá na igreja, os meus pais plantaram-
me Irritação. O Padre também achou graça, mas eu fiquei assim. Se preferir chame-me Macala.

- Prefiro chamar-lhe Maria!

- É como todos me chamam! Eu não me importo.

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- Este é o Jorge.

- Nome cristão? Perguntou o Dr. Alexandre curioso.

- Eu não tenho nome de feitiço. Ainda não fui à terra dos meus avós para ter nome de feitiço. Sou muito
novo! Quando nasci já tinha rebentado a guerra e eu nunca pude ir à aldeia. Ele apontou para a mulher e
acrescentou: É Isaura só. Apontou para o bebé é a Riqueta.

- Está bem! Disse o Xandinho, reparando no crucifixo que o Jorge trazia na mão. Ela trazia um saco de
plástico, provavelmente com algumas roupas e fraldas para o bebé. João Paulo (chamou)! Vá mostrar aos
seus sobrinhos onde fica a casa, para ver se eles gostam? E quando voltar prepare um café para todos.

Saíram os seis.

- Esta da D. Irritação, não lembra a ninguém! Disse para a D. Helena. Se não se importa vou tomar
banho. Quando ele vier que faça café para todos.

Saiu do salão a sentir a boca empastada. No quarto de banho privativo, as toalhas estavam
milimétricamente expostas pela mão da Sandrinha. Tomou banho e vestiu um safari de cor creme.
Quando voltou à sala já todos estavam de volta.

- Gostaram da casa? Perguntou o Dr. Alexandre.

- Muito, disse o Jorge.

O João Paulo tinha servido para ele e para a D. Helena o café na sala. O deles estava na cozinha.

- D. Maria! Chamou. Dê uma volta pela casa e veja o que lhe faz falta.

- O meu marido já me disse que só fazia falta o ferro de passar, o resto o Sôtor tem tudo.

- Mas é preciso fazer as camas todas enquanto nós vamos às compras. A Isaura pode ajudá-la!

- Abra as janelas e aspire ou passe a esfregona na casa toda. Acrescentou a D. Helena.

O chão estava todo ladrilhado, o que era muito mais higiénico. Quando o telefone tocou, o Xandinho,
precipitou-se para ele. Lembrou-se vagamente que na noite anterior tinha dado o número à sua mulher e
alguma coisa poderia ter acontecido. Era a Sandrinha:

- Estou… Olha… Podemos… Se quiseres, vai ter ao Hotel às dezoito… Vou-te lá buscar e escusas de
subir isto tudo a pé. Não quero que digas ao teu pai que eu te trato mal… Vem cá jantar… Vais ser a
minha primeira convidada da casa nova… Até logo… Até logo…

- Eu disse que aqui havia mão de fêmea e não me enganei, rematou a D. Helena.

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- É filha dum vizinho meu lá em Portugal. Chamou o João Paulo:

- Pensa no almoço para nós todos e à noite vem uma convidada para jantar. Vamo-nos preparar para sair.

- Sôtor! Disse o empregado. Vamos primeiro à Ilha comprar peixe e marisco. Esta é a hora de os barcos
chegarem.

- Dr. Alexandre tenha cuidado com as Kabandinas. Não estrague a sua vida. Olhe que eu sei do que falo!
Avisou a D. Helena.

A D. Irritação e a Isaura ficaram em casa. Os outros foram na caixa aberta e no carro do Xandinho
primeiro à Ilha e depois à “Loja Franca”.

- Que peixe quer? Perguntou o empregado.

- Compra o que quiseres. Tu é que conheces o peixe daqui. O Dr. Alexandre chegou agora, como vai
saber que peixe é que há.

Na Ilha as compras foram rápidas. Mas na “Loja Franca” tudo foi mais complicado.

- D. Helena (disse o Xandinho) vá com eles escolher as roupas, enquanto eu fico aqui a ver as
aparelhagens.

Ficou sozinho a pensar se não teria feito mal em convidar a Sandrinha para jantar, mas de qualquer
modo ela mais cedo ou mais tarde, iria aparecer. O que era preciso era não deixar crescer a relação entre
eles, de tal modo que ela pudesse pensar que se poderia acomodar à dolce vita. Deixá-la reconstruir o seu
mundo à vontade, mas que o seu namoro não fosse mais do que um episódio que passa sem deixar
marcas. E depois que iria ele fazer naquela casa sozinho sem ninguém para conversar? Se houvesse um
cinema ou um teatro para ir as coisas ainda se compunham. Todos os livros que tinha trazido já os tinha
lido e relido. O único sítio que até ali tinha conhecido na cidade para gastar o ócio era o Hotel e a Ilha.
Mas nunca se tinha aventurado a ir para a Ilha sozinho à noite. Talvez a Sandra conhecesse ou lhe desse
alguma dica sobre “Kabanda by night”.

Por fim escolhera duas aparelhagens de som, uma para o jardim, mais pequena e outra para o salão.
Informara-se também sobre a parabólica. A própria “Loja Franca” tinha funcionários para transportá-la e
montá-la. Mas de qualquer modo tinha que arranjar um electricista para lhe pôr as luzes no jardim, a
campainha junto à árvore e a tomada para ligar a aparelhagem. Quando eles chegaram, tinha comprado
tudo: Candeeiros, fio eléctrico, tomadas, aparelhagens e mesmo o radiosito para o Jorge. Eles também
vinham com dois carros de compras carregados. Coisas para bebé batas para as mulheres, fardas e mesmo
uma bacia para dar banho à miúda.

- Agora falta a cama de ferro e o colchão disse a D. Helena.

- Não se esqueça de guardar as facturas de tudo para mandar para Bruxelas, como despesas de
instalação!
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- E eles pagam?

- Se pagaram ao Delegado, também lhe pagam a si.

O Xandinho, pagou tudo na caixa e dois empregados da “Loja Franca”, ajudaram o João Paulo e o
condutor a carregar o carro de caixa aberta. O homem que monta as antenas ficou de ir lá a casa da parte
da tarde ou nos dias seguintes. Quando chegaram o bebé dormia no sofá do salão. O Alexandre entreteve-
se a montar a aparelhagem e a experimentar o melhor sítio para as colunas. O cozinheiro e o Jorge
experimentaram as farditas na casa do quintal e passeavam-se vaidosos pela casa. A D. Irritação e a Isaura
também vestiram as suas batas. Só faltava a bebé, mas ela dormia a sono solto e não a quiseram acordar.
Tudo aquilo dava um ar novo e outra vida à casa. Finalmente a música soou para a alegria de todos.

O empregado começou a pôr a mesa do salão para o Xandinho, a D. Helena e para o resto do pessoal na
cozinha que era ampla e espaçosa.

- Quanto é que vou dar ao condutor? Perguntou o Alexandre à D. Helena.

- Já lhe vai a dar de almoço. Ofereça-lhe duas latas de cerveja para completar. Olhou para o relógio.

- O tempo passa a correr. Temos que ir embora se não o Delegado dá-me um tiro. Vamos, disse ao
condutor. Passe bem, Dr. Alexandre, disse ela ao despedir-se.

Saíram. A Isaura veio buscar a bebé cuidadosamente para ela não acordar e levou-o para a casa do fundo
do jardim, conjuntamente com o rádio, dois pares de lençóis e a roupita que o Xandinho lhe tinha
comprado na “Loja Franca”. Durante a tarde entreteve-se a ouvir música e as rádios locais, que
continuavam a falar do VII Congresso do partido do governo que tinha sido há uns bons quatro ou cinco
meses atrás e depois de tomar o café acompanhado por um whisky velho acabou por adormecer sentado
no sofá.

Foi o João Paulo que o acordou. Preparou-se para sair.

Meteu-se no carro e apitou. O guarda solícito correu para abrir os portões. Quando chegou ao hotel os
empregados da recepção fizeram-lhe uma festa como se não o vissem há muitos anos. Deixou-lhes
recado:

- Se a D. Sandra aparecer eu estou no bar. O homem das calças pretas continuava no seu posto mas dos
fregueses habituais, não estava ninguém. Perguntou-lhe se bebia uma cerveja que ele agradeceu e foi
sentar-se a beber outra.

A Sandrinha não tardou. Trazia nas mãos duas sacas de plástico, uma com cassetes de música local,
outra com uma caixa meia esquisita.

- Que é isto? Perguntou.

- Depois digo-te!
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- Tomas alguma coisa?

- Não agora não me apetece.

Trazia os olhos avermelhados. – Então que te disse a Tia Albina?

- Está morta por te conhecer! Adorou aquelas coisitas que lhe comprei na “Loja Franca”, mas sobretudo
o arroz, o açúcar e o óleo. Ela já sabe que quando não apareço por volta das sete, não durmo em casa. Foi
bom anteontem, não foi?

- Foi mas não nos podemos habituar a isso. Quando a minha mulher vier, tem que acabar.

Pela primeira vez o Xandinho abordava o problema frontalmente.

- Não te aflijas, eu sei! A mim, faz-me bem. Tantos planos que os meus pais tinham para mim, e eu por
uma brincadeira, num instante, estraguei tudo. Mas não te amasses. Sem saber estás-me a ajudar e é isso
que interessa… É diferente fazer amor com um homem que sabe um pouco da vida, conversar com ele do
que com um ignorante. É só isso que quero de ti. O resto está bem claro que não posso esperar nada.

Fez uma longa pausa.

-A mim neste momento, basta-me carinho e alguém que me ouça, que é isso que me falta. Como te estás
a dar na casa? Vamos para outra mesa. Não gosto nada desse tipo. (Apontou para o homem das calças
pretas).

Mudaram de mesa para um canto do salão. Estavam agora mais juntos e as mãos do Xandinho insistiam
em passear pelas pernas da Sandra. Em breve trocariam meiguices. Ele bebeu o resto da cerveja num
trago, assinou a conta, pegou-lhe no braço e saíram.

A caminho de casa ela insistiu em continuar a falar dos seus dramas passados, ao mesmo tempo que,
como se buscasse a paz lhe acariciava o braço.

Quando chegaram aos portões de casa, o Xandinho apitou e rapidamente o Jorge abriu as portas do
jardim. Pouco a pouco o seu estatuto ia subindo para pasmo da Sandra. Já dentro apresentou-a ao
cozinheiro.

- João Paulo é a D. Sandra. Há-de vir cá mais vezes. Mesmo que eu não esteja abre-lhe a porta e deixe-a
à vontade. É uma grande amiga da minha mulher. Arranja qualquer coisa para lancharmos.

A Sandrinha, tudo o que lhe pediu com mais insistência foi um duche. Mais tarde quando foi a sua casa
viria a perceber porquê. Arranjou-lhe um robe chinês de seda artificial e ela entrou para o quarto de
banho, donde saiu uns tempos depois que ao Xandinho pareceram uma eternidade. Efectivamente ele
estava ansioso pelo cheiro a lavado daquele corpo generoso adivinhado por baixo das sedas, ainda
agarradas à pele apenas escorrida.

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O João Paulo, tinha-se apercebido que o momento era especial e de bem treinado, preparara uma salada
da lagosta que tinha sobrado do almoço, acolitada por um vinho branco fresco, acepipes que a Sandra
devorou numa avidez mista de sabores e de fome. Pouco a pouco a lagosta tornou-se no prato da casa em
maré de visitas.

O cozinheiro desencantou ainda um prato de carnes frias que fez acompanhar de torradas com manteiga
que ela engoliu com a mesma gula. A conversa alongou-se e o Xandinho falou-lhe das suas funções e das
enormes dúvidas quanto ao que fazia ali.

- Que sim! Que sim! Que podia ajudá-lo!

Ele espantou com tanta postura. Que poderia ela fazer (perguntava-se)? Ás 20 e 30, para obedecer ao
recolher obrigatório e para não parecer intruso naquela intimidade, o João Paulo, curvado em ângulo
recto, pedia desculpas pela sua retirada, avisando no entanto que no frigorífico estavam mais duas
garrafas de vinho fresco. A garrafa que estava na mesa tinha acabado, quando ela atirou à queima-roupa:

- Não tens mais nada (perguntou enfaticamente)?

O Xandinho olhou-lhe as vestes coladas a um corpo que não necessitava de sedas e a sua vontade foi
naquele momento que estavam sós, satisfazer-lhe todos os desejos. Duma forma atabalhoada, levantou-se
como uma mola para ir ao frigorífico buscar outra garrafa. Ela sorriu a entender-lhe os meneios, e
respondeu-lhe com voz de adormecer os olhos:

- Que não! Que não! Que não é isso.

- Também tenho tinto. Mas olha que está muito quente e tinto à temperatura ambiente aqui é uma pedra!
Só na Europa!

- Pedra, é isso que eu quero. Espera lá.

Abriu a caixa de sapatos que tinha trazido atulhada de erva. Puxou de um livro de mortalhas comprado
na “Loja Franca” e começou a fazer um charro.

Apesar do desapego que as suas palavras expuseram no Hotel, o Xandinho temeu de novo que ela
estivesse a assentar arraiais dentro do seu castelo. De qualquer modo era outra vez uma prisioneira de
guerra em trajes menores, vítima ou privilegiada do recolher obrigatório. É certo que ele podia exibir
sempre o livre-trânsito para ele e para a viatura, ou seja para qualquer pessoa que viajasse no carro, mas
fechou-se em copas. Preferiu ir ao quarto e vestir também um robe ligeiro. Todo ele hesitava em dizer um
rotundo não a toda a situação ou um sim aos olhos claros de Sandra. Quando voltou do quarto, sentiu-a
em paz. Parecia que tinha encontrado outras raízes por onde andara perdida e abraçou-o como a suplicar
que a deixasse viver aqueles momentos de serenidade e abastança. Sorveu demoradamente a “passa” que
depois entregou ao Xandinho. Ele pôs um piano de Chopin e ficaram calados a ouvir a música.

- O paraíso será assim? Quebrou ela o silêncio.

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Ele não respondeu. O Alexandre pôs-lhe a mão por dentro do robe chinês e procurou tudo com descanso.
Com os lábios procurou-lhe a boca e depois os seios. Os olhos pesavam-lhe e os pensamentos começaram
a enuviar-se. Para o Xandinho a mistura de erva com vinho era fatal. Nem sequer jantaram e foram deitar-
se logo que a música acabou. No dia seguinte de manhã foi levá-la a casa. Pela primeira vez se tinha
aventurado aos subúrbios de Kabanda. Mas levava a seu lado uma Kabandina embora disfarçada, o que
lhe dava uma certa confiança. A casa onde morava era meio adobe, meia tijolo, muito diferente do
primeiro andar que conhecera aos pais em Santo António. Perante a tia, a Sandrinha contou-lhe parte da
verdade:

- É um amigo e vizinho dos papás.

A Tia Albina, Senhora dos seus quarentas bem escorreitos, teve um requebro de anca que só as negras
sabem fazer e mandou-os entrar para a barraca.

- Que sim! Que também tinha lá estado em 75, mas não tinha gostado.

Mais tarde o Xandinho arranjou uma explicação para a moda Kabandina de começar as frases por “que”.
Para ele, era influência da mais que visível presença cubana e pensava na sua qualidade de linguista
improvisado que o castelhano inicia as frases por “que”: “que si”, “que non”, “que bien estás”, etc. Esta
teoria satisfê-lo e não a aprofundou mais.

A Sandrinha estava radiante. Mostrava o Xande aos vizinhos que tinham corrido para ver a Dona que
chegava em carro diplomático.

- “Gente Grande”! Pensavam, enquanto aprovavam a Sandra com gestos afirmativos de cabeça.
Convidavam-no a entrar em suas casas. Tocavam-no para testarem a sua singularidade, enquanto os
miúdos o cercavam troçando da sua cara pálida. Despediu-se dela com dois beijos de cerimónia e a
Sandrinha murmurou-lhe entre os dentes:

- Vou-te ajudar! Vou-te ajudar.

Ficou algum tempo sem saber como, mas soube-lhe bem acreditar no murmúrio da sua voz. A tia Albina
insistia para o Xandinho ficar mas ele tinha de partir. No dia seguinte iriam de visita de trabalho à Sitila e
ao Calibe.

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II

Monsieur Renault tinha chegado uma semana antes a Kabanda, e era o francês mais interessante que o
Xandinho tinha conhecido. Tratava-se de um alto funcionário da CEE, que confessava com certa
amargura que nunca poderia ter um lugar na política do seu país. Homem de direita coerente e convicto
tinha exercido funções idênticas às do Dr. Alexandre na República Centro Africana e daí a empatia
imediata que tinha nascido entre os dois. Tinha lá estado na altura do Imperador Bokassa e não se cansava
de contar histórias sobre aquela figura ímpar. Contava por exemplo que “um dia tinha ido em funções”,
como se dizia na gíria, ao Palácio Imperial. Algo que tinha comido, causara-lhe uma diarreia impossível e
no meio da recepção, pedira ao Chefe do Protocolo para ir a um quarto de banho. O Mestre-de-
cerimónias, nativo, espantou! Mas temendo pela sua segurança por não satisfazer as necessidades do
hóspede, fê-lo passar por salões e salões. Entre eles o célebre salão do Trono com um enorme cadeirão em
ouro maciço: Era o Trono do Imperador encimado por uma águia soberba. A grandeza Napoleónica
resplandece em pleno deserto” (dizia).

Á medida que ia avançando na história, os ouvintes iam ficando presos à sua narrativa como se lhe
bebessem as palavras:

- “A viagem até ao quarto de banho mais próximo, foi longa (narrava ele) e pelo caminho eu ia
apertando as nalgas, para a merda líquida não se escoar. Por fim, fui introduzido numa ante câmara,
depois numa câmara, depois num enorme quarto de dormir mobilado a talhas douradas, rico como a mais
grosseira imitação de Versalhes, e finalmente apontaram-me a porta do paraíso, para onde corri sem porte
nem postura à altura do meu cargo. Sentei-me e aliviado de rajada, quando admirei as imponentes
redondezas, vi que me estava cagando na suite imperial”.

Contava isto, num português com uma pronúncia engalanada, que tinha aprendido em seis meses de
destacamento no Brasil, o que lhe dava muito mais graça. Era um Gaullista ferrenho, que no tempo do
velho General, tinha passeado pelo Eliseu.

-“Olhei de soslaio para as torneiras de ouro (continuava) que me rodeavam”, e já pausado das minhas
necessidades, procurei o papel higiénico…Fui mesmo aos sítios mais costumeiros, segurando as calças
pelos joelhos, mas não havia. Os luxos do Império tinham-se ficado pelo ouro”!

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Rematava assim a história: “Quando voltei ao salão de Recepções, não pude deixar de rir de todos os
palermas presentes. Afinal eu era o único que sabia que o Imperador não limpava o real cu, e que debaixo
daquela farpela toda enfeitada de condecorações, havia provavelmente umas cuecas todas borradas”!

O Renault, estava feliz em Kabanda e nas reuniões de preparação para a viagem a Sitila e ao Calibe,
quando o Xandinho expressava uma opinião, ele olhava-o de alto a baixo, com medo que ele abrisse a
boca mal aberta, tal fora a cumplicidade que se tinha estabelecido entre os dois.

Não se podia viajar de carro para Sitila que ficaria a uns quatrocentos ou quinhentos quilómetros de
Kabanda. Mas o problema maior que se punha era como viajar de Sitila para o Calibe, que seriam uns
oitenta quilómetros atribulados. A D. Cesária, alta funcionária do Ministério dos Negócios Estrangeiros,
que lidava exclusivamente com os assuntos da Comunidade Europeia, sugeriu que fossem de avião até
Sitila e uma vez aí, com certeza que a eficácia conhecida do Governador Castro Lopo arranjaria viaturas
que descessem a Serra da Vaga, trajecto que compreendia cento e tal curvas e contracurvas que
desafiavam as leis da gravidade e imaginação de qualquer engenheiro rodoviário. Embora não
conhecessem a apregoada eficácia de Castro Lopo, foi decidido confiar nesta solução sendo agora o
problema o de arranjarem lugar nos meios aéreos regulares para a viagem para a Sitila, já que os voos
normais tinham normalmente uma lista de espera de meses, preenchidos que estavam com tropas e forças
de segurança alem das “mamanas”, quitandeiras e novos ricos que tinham naturalmente lugar cativo. O
Xandinho propôs sair de imediato para contactar as Linhas Aéreas Nacionais sabendo ainda que tinha que
contar com a concorrência de qualquer um dos partidos envolvidos no conflito que grassava em Kabanda.

O Camarada Presidente das Linhas Aéreas afiançava-lhes compreender a necessidade da viagem mas
não podia fazer nada. Só tinha dois aviões a voarem de quinze em quinze dias para a Sitila e para o Calibe
e os voos estavam cheios há três meses!

– Essas coisas, esclarecia ele do cimo da sua qualidade de Alto Quadro do partido e do Estado de uma
economia supostamente planificada, prevêem-se à distância.

Ir por estrada estava fora de questão e de qualquer modo só poderia ser feito em coluna militar, coisa que
nenhum deles estava disposto a arriscar. O Xandinho lembrou-se que de facto a Sandra pudesse ajudar,
bastando-lhe para isso conhecer alguma balconista das Linhas Aéreas Regulares, disposta a arriscar num
negócio de cerveja, mas era incapaz de voltar a dar com a casa dela e não se sentia muito à vontade, para
sozinho atravessar todos aqueles becos e travessas dos subúrbios da cidade. Por fim lembraram-se de
telefonar de novo para o Camarada Presidente das Linhas Aéreas para ver se ele conseguia desencantar
uma solução para o problema.

- Pela minha parte, respondeu ele, não tenho meios para a decifração do assunto. Mas tentem com o
Tony (Disse-lhes o Presidente das Linhas Aéreas).

- O Tony? Perguntou o Xandinho!

- Algures, explicou o Presidente, no Aeroporto Militar, existe uma pequena companhia semi-privada que
era capaz de dispor dum avozinho para vos transportar.

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Sexo, Drogas e Diplomacia
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Katatúlio um Homem de Estado

Deu-lhes o número de telefone do Director da tal companhia de aviação privada que alugava pequenos
aviões, mas o Xande preferiu ir lá pessoalmente. Kabanda era assim: Não havia nada, mas finalmente
tudo era possível, mesmo encontrar uma companhia de aviação privada.

Nesta altura dos acontecimentos, o Alexandre, achou útil meter na empreitada o Octávio: Era um
Kabandino, que no tempo colonial tinha sido piloto da Força Aérea, trabalhando agora no Ministério dos
Negócios Estrangeiros e que naturalmente seria ainda capaz de manter algumas intimidades com estas
coisas do ar.

Decidiram ir até lá. Mas pelo caminho o Xandinho quis passar por casa do Heitor. Era uma família da
classe média tradicional de Kabanda, que conviria ao Renault conhecer. Eram amigos desde Moçambique
e encontraram-se agora por acaso no país. Tratava-se dum homem bem disposto e prazenteiro, que
comunicava alegria mesmo à pessoa mais enfadonha que estivesse na sua tertúlia. Costumava aparecer no
Hotel Quatro Estações, com a família para jantar, o que em algumas ocasiões o ajudava a matar o tempo e
manter os espíritos altos. Convinha agora anunciar-lhe que já tinha encontrado casa e convidá-lo para
manter o convívio.

Ele não estava. Explicou à mulher ao que vinha, disse-lhe exactamente onde era o seu solar e ela ficou
de dar o recado ao marido.

O Ministério dos Negócios Estrangeiros, que em qualquer país se considera o salão de visitas a nível de
Estado, cheirava a WC mal lavado. Lá num gabinete escuro encontraram o Octávio.

- Que sim! Que conhecia o passarão! O Tony, explicou ele, tinha sido seu colega no liceu e nas Forças
Armadas. De algum modo depois da Independência tinha conseguido insinuar-se junto da assembleia do
Camarada Presidente e obteve autorização para abrir a tal de Companhia de Aviação. Depois, um dos
raros libaneses que naquele tempo havia descoberto Kabanda, tinha feito o resto. Contava-se mesmo, que
o primeiro avião da companhia tinha sido roubado à mulher do Mobutu, mas isto nunca se confirmara.

No Aeroporto Militar tratavam-no por Camarada Major ou Camarada Engenheiro, e espantavam-se por o
Xandinho o tratar simplesmente por Tony, mas foi assim que o Octávio os tinha apresentado.

- Como era possível tanto desrespeito (pensavam os seus mais directos colaboradores)!

Convinha ser o Renault a falar. Na sua pronúncia meia brasileira meia francesa, daria mais credibilidade
ao assunto. O Tony assegurou-lhes que era possível mas pôs uma condição:

- Que sim! É possível! Mas eu também tenho que ir, para comprar carne na Sitila.

O Renault e o Xandinho afastaram-se para trocar impressões e sussurraram sobre a possibilidade de


emagrecer a comitiva, mas não era possível. Esta hipótese iria certamente criar engulhos entre eles,
sobretudo alguns que tinham vindo de Bruxelas e que não queriam perder a mais pequena oportunidade
de cheirarem uma pontinha de África. Quase que iam cancelando o negócio.

- Somos dez, não cabemos!


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Katatúlio um Homem de Estado

- Mas eu posso dispor de dois aviões iguais, disse o Tony.

Os dois, sem perceberem nada do assunto, fora mirar os pássaros.

- E os pilotos são experientes? Perguntou o Renault.

- Do melhor que há em Kabanda. Ou acham que se não fossem eu iria convosco?

O argumento era forte. Agora faltava discutir os preços. Para espanto deles, os custos da empreitada
eram ridículos e ainda por cima em moeda local. O problema agora era arranjar moeda local: Ir ao Banco
Central trocar dólares, era impensável. A taxa de câmbio oficial era irrealista e inflacionada, pelo que a
solução seria ir à Delegação buscar dólares, depois ir à “Loja Franca” comprar cervejas e transformar
estas no mercado negro em moeda local. Concordaram com o aluguer dos dois aviões mas eles teriam que
ficar uma noite na Sitila e partir no dia seguinte para o Calibe. Com esta alteração, perderiam a descida da
Serra da Vaga, que todos diziam ser um enorme espectáculo.

- Não se pode ter tudo, dizia conformado o Xandinho.

- Ir ao Calibe, notou o Tony, não é problema. Eu também preciso de comprar marisco barato.

Nunca tinha passado pela cabeça da dupla Renault/Xandinho, ir às compras de avião, nem tão pouco
viajarem em cortejo de Cessenas. No aeroporto militar, dois aviões de carga, enchiam-se de jipes para
levarem para a frente de batalha.

- Esta guerra deve ser caríssima, pensava o Alexandre em voz alta.

- Deixa lá! Atalhou o Renault. Em compensação o combustível é de borla.

O negócio estava selado com um aperto de mão.

- Logo traremos o dinheiro, disse o Xandinho.

À tarde, quando investiram na Delegação, os dois levavam um ar vitorioso. Para espanto da D. Cesária,
tinham conseguido o impossível. O problema agora era convencer o Delegado, ex-padre católico irlandês,
que vítima de amores tardios, casara recentemente com uma tocadora de harpa australiana, pelo que
deixara o sacerdócio e abraçara o protestantismo. Não seria fácil persuadir a sua alma amassada em
puritanos princípios a comprar cervejas em dólares para irem ao Mercado Negro, obterem moeda local.
Da vida religiosa tinham-lhe ficado muitos pruridos, dos quais ele só abdicou de alguns, para realizar os
seus amores intempestivos.

- Estamos em pleno Socialismo Esquemático, como lhe chamava o falecido primeiro Presidente da
República do país, explicava o Alexandre ao Delegado. O esquema era o modo e a regra que as massas
encontraram para levarem a Revolução até à vitória final, ou pelo menos até sua à própria sobrevivência.

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Sexo, Drogas e Diplomacia
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Katatúlio um Homem de Estado

Nunca Ortega e Gasset teve tanta razão como no caso de Kabanda: “As massas, quando se revoltam por
lhes faltar o pão, a primeira coisa que fazem é destruírem as padarias”. Em Kabanda, só o impossível não
tinha sido destruído. E por esta razão o impossível conseguia arranjar-se.

- Está bem! Está bem! Vão à tesouraria buscar os dólares, mas afaçam-se para me arranjarem uma
factura que não seja de cerveja!

Através do esquema do Alexandre, que ele generosamente não metia nas contas da Delegação, o
Delegado conseguiu telefonar ao Governador Castro Lopo na Sitila, pedindo-lhe para de lá contactar o
colega do Calibe anunciando a chegada da comitiva dentro de três dias. Quando chegassem à Sitila ele
próprio se encarregaria de acertar melhor os horários.

Eram horas de almoço e os dois decidiram ir comer à casa do Xandinho. O João Paulo que fazia sempre
comida para um exército haveria de encontrar solução para aquele imprevisto. Era também altura do
Renault conhecer melhor os seus aposentos. Por agora ele encontrava-se alojado em casa do Delegado,
mas reconhecia que aquilo não era solução. Necessitava de mais liberdade e sobretudo não falar a toda a
hora de trabalho, assunto que às refeições era tema único e obrigatório.

- E depois, dizia ainda, o diabo da mulher, no último Domingo de manhã, deu-lhe para trinar a voz de
soprano enrouquecida e ensaiar exercícios de harpa. Hoje se tivermos tempo, vamos ao Hotel ver se eles
têm uma suite para me mudar.

No dia seguinte de madrugada, três condutores recolheram-nos em suas casas e a comitiva partiu para o
Aeroporto Militar com pompa e circunstância. Como era de esperar os aviões estavam atrasados. Tinham
ido fazer o pleno de gasolina e ainda não tinham chegado. No entanto, o Tony tinha-lhes preparado um
pequeno café madrugador, que os ajudou a abrir os olhos pesados do whisky e da noite preenchida com
conversa até às tantas da manhã. Quando os aviões chegaram, o Renault deitou ao Xandinho um olhar
vitorioso e cúmplice. Tudo estava a correr como previsto e até os intermináveis atrasos pareciam
previamente calculados ao minuto.

Durante a viagem os dois aviadores brincavam no céu, ultrapassando-se um ao outro, saudando-se


mutuamente e todos os passageiros, começaram a temer aquela brincadeira. Os aparelhos pareciam
aproximarem-se muito um do outro e parecia-lhes que do aparelho onde viajavam era possível reconhecer
as caras dos passageiros do outro. Claro que a luz do sol impedia que isso acontecesse, mas os viajantes já
imaginavam todos os cenários possíveis, inclusivamente um choque fatídico nas alturas. O Alexandre
pensava na forma louca como se conduzia em Kabanda e transportava para o céu os destemperos do
tráfego na terra.

Ao lado dele, viajava a D. Cesária. Era uma estudante da faculdade de economia que na hierarquia do
Aparelho de Estado estava quatro ou cinco furos abaixo do cargo de Ministro. A qualquer questão de
economia ou pura contabilidade respondia invariavelmente com duas ou três citações de Marx. Aliás
“Que Fazer” de Lenine foi o livro de cabeceira que escolheu para a viagem. O decote largo que ostentava
escarrapachado sobre os seios distraiu o Xandinho das acrobacias aeronáuticas que o atormentavam. Ele
tinha-lhe oferecido a cadeira do lado da janela. Mas ela explicou-lhe que preferia a coxia para estender as
pernas. Estas foram as únicas palavras que trocaram durante a viagem. No fundo, ela sentia tanto medo
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quanto ele e o livro de Lenine, só servia para marcar a sua diferença no meio de todos aqueles Capitalistas
desenfreados.

Os aviões aterraram finalmente na Sitila e todos respiraram de alívio. Pela primeira vez o Xandinho saíra
da Capital e continha mal a sua alegria de conhecer outra cidade.

Era uma terra pequena e arrumada. Os buracos nas ruas, os estropiados que deambulavam pelos passeios
com a farda do exército “Kabandino” e certamente a única roupa que teriam, mostravam ali também que
se estava num país em guerra. Ficaram hospedados no Grande Hotel da Sitila, nome pomposo para o
estado em que se encontravam as instalações. Como ele anotou no caderno que nunca o abandonava,
tratava-se dum pequeno Hotel de província, cujo aspecto geral denunciava tempos áureos vividos há vinte
anos atrás.

Algures no cimo das montanhas que cercavam a cidade, erguia-se uma imitação descabida do Cristo do
Corcovado.

O Governador Castro Lopo, tinha feito questão de ir ele próprio esperar a ilustre comitiva ao aeroporto
da cidade, tendo disponibilizado para ela três viaturas. Ele e o Delegado arrancaram mais cedo para o
Palácio do governo, onde certamente teriam trocado pontos de vista, e só mais tarde vieram ao Hotel para
as apresentações protocolares.

Um dos condutores insistiu em mostrar aos viajantes o que outrora teria sido o salão de visitas da cidade:
O Casino.

Era rodeado por uma piscina enorme e os salões exibiam um luxo poeirento, fora de moda. Mas tudo
estava desactivado e num abandono que deprimiram o Renault e o Xandinho.

Um dos projectos que tinham levado a comitiva à Sitila, tinha sido a reabilitação duma escola agrícola
colonial. Diga-se que Bruxelas era um pouco avessa a propostas de reabilitação de estruturas em
Kabanda, já que o Orçamento Geral do Estado só previa realmente investimentos em obras de raiz. Mas
nele as despesas com manutenção eram pouco claras se não inexistentes. Por esta razão, havia na CEE
uma explicável sensação que as reabilitações, quando efectuadas teriam o destino de nova degradação.

Da parte Kabandina, havia a ideia que o Bolo que a Comunidade atribuía ao país, era para satisfazer as
necessidades sentidas pelo governo e portanto a única coisa que haveria a fazer era disponibilizar as
massarocas, que o Estado se encarregaria de aplicá-las. É fácil de ver, que as posições estavam
completamente estremadas, e era aqui que entrava o Assistente Técnico a quem cabia a tentativa de
desbloquear situações, ou se quisermos amolecer as partes.

A parte Kabandina, logo que chegou ao Hotel, começou a tratar de outras vidas em busca de carnes ou
quaisquer outros produtos em conta que se pudessem comprar na Sitila. Mas não seria nessa noite que o
problema da chicha ficaria resolvido. O Delegado anunciou-lhes que o Governador o tinha convidado
para jantar no Palácio e ele conhecendo a sua importância dentro do Aparelho de Estado, queria
aproveitar a ocasião para conversarem sobre o momento político, tendo dito ao Renault que havia

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necessidade de falar com os pilotos e com o Tony e estudar a possibilidade dos aviões ficarem mais um
ou dois dias na Sitila.

- Talvez seja possível, disse o Renault. Mas olhe que teremos que levantar mais dólares para comprar
mais cervejas e obter mais moeda local para pagar os aviões. O Delegado riu.

Ele e o Xandinho foram falar com o dono da frota, que não levantou problemas.

- O que eu quero, disse ele, é que quando precisarem de transporte, vocês se lembrem que eu que existo.
Foi coisa que ainda não me tinha lembrado, foi fazer uma prospecção junto das Organizações
Internacionais e das Organizações não Governamentais. Vocês foram os primeiros mas agora, vou dar-vos
como referência.

- Nesse caso, disse ele, não vale a pena meter o Delegado nisso. Dê o nome do Dr. Alexandre.

Acabaram por passar mais dois dias na Sitila a deambularem dum lado para o outro. Era notório que o
Governador queria estar em cima de todos os acontecimentos e enquanto duraram as suas amenas
cavaqueiras com o Delegado, todas as conversas com o resto do grupo, foram sendo sucessivamente
adiadas.

Na tarde anterior à partida, juntaram-se cinco Kabandinos e decidiram entre eles comprar um boi. Ao
Alexandre, fez-lhe confusão como iriam acomodar tanta mercadoria, mas tudo estava previsto: Dos
quartos começaram a surgir grandes sacos de plástico que tinham trazido de Kabanda e aí armazenaram
tamanha abundância, que naquela província, por estranho que pareça, existia precisamente devido à
guerra: Da cidade de Sitila, também sitiada, só era possível sair mercadoria por terra para o Calibe, onde o
peixe e o marisco abundavam. As estradas para quaisquer outros sítios estavam interditas. Assim a Sitila,
que sempre foi um grande parque de gado, não podia transportar os seus excedentes para parte nenhuma,
pelo que o número de cabeças não parava de crescer e envelhecer.

Por outro lado o Castro Lopo era um Governador e tanto: No que se refere a produtos distribuídos pelo
Estado, arroz, açúcar, calçado etc. negociava sempre em excesso, usando o gado como moeda de troca, de
tal modo que a província não conseguia consumir tanto maná. Por outro lado, os soviéticos ignoravam
que a província era quase exclusivamente agrícola e inundavam o mercado negro com sapatos de salto
alto de gosto e qualidade duvidosa, bem como de outros produtos inúteis como champôs para cães, fatos
completos etc. os quais, dado o clima e os hábitos só serviam para ornamentar as montras do comércio
antigo. Mas numa potência produtora de imenso petróleo como Kabanda, na Sitila este produto rareava;
só chegava em comboio militar. Contudo, pelo caminho ia ficando metade, gasto em trocas e baldrocas
que o próprio exército ia fazendo para garantir a sobrevivência dos soldados e a abastança dos oficiais.

As figuras do “velho colono”, daqueles que quiseram ficar na terra contra ventos e marés, fascinavam o
Xandinho: Incapazes de compreenderem a nova situação que se vivia, saudosos das vidas do antigamente,
soltavam gritos e impropérios contra a anarquia reinante. A um deles, velho dos seus setenta anos, ilhéu
dum arquipélago distante, que pelo menos há cinquenta anos não ia à sua terra natal, o Alexandre
perguntou:

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- E este Governador que está aqui?

- Esse, respondeu-lhe, quase em cochicho, deixem-no ficar que ele sabe que o açúcar é para o chá e o sal
para a comida! Dito isto foi-se, embrulhado no seu fato preto coçado, colete aberto e o inevitável fio de
ouro a pender-lhe do pescoço. Estas palavras foram o elogio máximo que o Xandinho conseguiu arrancar
ao velho homem quanto à situação.

O Alexandre conseguiu falar com o Governador, sobre o impasse em que se encontravam as negociações
sobre a reabilitação da Escola Agrícola, explicando-lhe exactamente os pontos de vista em confronto.
Homem culto, conhecedor da realidade Europeia, membro do Bureau Político do partido no governo,
sempre anunciado como substituto possível do actual Presidente, compreendeu a situação e ali mesmo
desenrolou outros projectos susceptíveis de entusiasmarem a Comunidade. Um deles entusiasmou o
próprio Xandinho: Tratava-se de uma pequena fundição, ainda privada, que pretendia adquirir nova
maquinaria. Visitaram os dois a unidade e ele pasmou com tanta imaginação: A guerra tinha feito de
Kabanda dum modo geral um imenso depósito de sucata. Havia para todos os gostos: tanques de guerra
parados, que o tempo se encarregara de destruir, invólucros de munições de artilharia pesada etc. De
acordo com o projecto, tudo isto era fundido rudimentarmente e transformava-se em tachos, panelas,
frigideiras, panelas de pressão etc.

Restava ao Xandinho esperar que o bom governador, falasse com os seus pares de partido, a quem ele
não tinha acesso e lhes expusesse exactamente a posição da Europa.

O Xandinho explicou detalhadamente a sua conversa com o Governador à inevitável D. Cesária, que
cumprindo medos das suas instâncias superiores advertiu-o de dedo em riste, que essa conversa deveria
ter tido lugar na frente dela. Assegurou-o ainda que as posições de Kabanda não estavam em saldo e que a
coragem das suas tropas na frente de combate exigia da retaguarda posições firmes. O discurso era
grandiloquente e feito para uma plateia que naquele momento estava mais interessada na partilha do boi
do que em outra coisa qualquer. Da forma mais despropositada e quase aos berros, falou-lhe ainda dos
ensinamentos de Marx e Lenine e da grande Revolução de Outubro, que conforme lhe explicou, não foi
feita “duma forma empírica”, mas com sólidas bases científicas.

O Renault emparveceu de todo! Face ao histerismo do discurso o Governador alarmado com o alarido
acabou por entrar no salão. Limitou-se a encolher os ombros e a sossegar o Xandinho dizendo-lhe: “isto
são as bebedeiras do socialismo… O pior é quando vier a ressaca”…

As tripulações tinham ficado em casas de cooperantes estrangeiros que entretanto tinham vagado e só
iam fazer as refeições no Hotel. Disseram-lhes que partiriam nessa tarde às dezassete horas para o Calibe,
mas pediam-lhes encarecidamente para não repetirem as mesmas brincadeiras que fizeram quando vieram
para a Sitila. Riram. E num jeito de acalmar toda a gente, o Tony assegurou:

- Não tenham medo! Andaram os dois na guerra e foram pilotos de Migs.

Quando o Renault ouviu isto, a sua pele rosada de francês, esbranquiçou.

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Durante a tarde, foi-lhes servido um almoço alancharado pelo Governador que os acompanhou ao
aeroporto, onde chegaram por volta das 17 e 30. Os pilotos ainda não tinham chegado. O Governador
pegou num braço do Xandinho e puxou-o para um canto:

- Sabe, os nossos quadros superiores, só souberam ler as resoluções do VII Congresso e não quiseram
ouvir o que foi dito e aquilo que foi dito e não está escrito foi muito importante. A D. Cesária não vai lá
estar muito tempo!

O Xandinho pensou numa daquelas purgas à boa maneira Estalinista e sentiu-se em parte culpado por
isso. Os aviões chegaram. Todos tomaram os seus lugares, rendidos à simpatia do Governador. Estavam
cansados, quando alguém no avião desencantou umas cervejas reparadoras que distribuiu a todos os
passageiros. O Alexandre ia outra vez do lado da janela, mas a D. Cesária não se tinha sentado a seu lado.
Tinha trocado de avião com o Renault que queria desabafar com ele:

- Esta viagem só serviu para esclarecer posições, o que já não foi pouco. Mas continuamos sem saber o
que se passou no tal VII congresso. Parece que isto vai começar a mexer. O que é que se irá passar no
Calibe?

O Xandinho interrompeu-lhe o raciocino, chamando-o à atenção para o que se passava na pista.

Era uma cena pavorosa: À Sitila iam chegando refugiados de guerra, sobretudo da massacrada Vila
Estanislau, mas não queriam ficar ali. Queriam ir para Kabanda juntar-se às suas famílias e achavam a
presença deles compreensiva e protectora. Era pelo menos uma massa de vinte pessoas, constituída por
mulheres de cara esfaimada e soldados andrajosos que tentavam tomar de assalto os dois Cessenas.
Desespero e ódio estavam estampados nos seus rostos. A invasão eminente dos aviões só parou quando
um dos soldados zeladores da segurança disparou duas rajadas de Kalashenikov para o ar, enquanto outro,
apontava a arma ameaçadoramente para o bando em fúria. Por momentos dentro dos aviões temeu-se o
pior, mas finalmente conseguiram avançar na pista.

Contrariamente ao que se passou na Sitila, no Calibe, não havia ninguém à espera deles. Já fora das
aeronaves, os funcionários de Bruxelas descarregaram aquela falta de cumprimento do protocolo para
cima da D. Cesária.

- Que não! Que não, dizia ela, atemorizada! Que não podia dar ordens ao Governador do Calibe!

- Então resolva a situação, dizia-lhe o Renault. Como vamos sair daqui para a cidade?

Ela tentou amenizar a situação:

-Eu sei onde é o Palácio do Governador. É só uma questão de arranjar dois ou três carros para nos
transportar!

O Xandinho desconfiou um pouco da eficácia da Dama e ele próprio dedicou-se à tarefa de encontrar as
viaturas. A noite ameaçava começar a descer. Finalmente as suas diligências tiveram êxito, e após
demoradas negociações que compreenderam maços de cigarros a trocarem de dono, o Alexandre
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conseguiu os automóveis através da polícia aérea ali aquartelada. Um dos militares, o mais graduado,
pedia imensas desculpas aos visitantes pela situação criada, e assegurava-lhe que o Governador deveria
estar “nalguma reunião séria, impeditiva da sua presença”!

Nesta conversa de amolecer ânimos, meteram-se nas viaturas e chegaram ao tal de Palácio. Era um
edifício imponente do tempo colonial. Com todas as demoras eram já vinte horas quando o Renault olhou
para o relógio. O sítio estava deserto. Bateram literalmente a uma portada de madeira minuciosamente
ornamentada por mãos indígenas, mas o resultado foi nulo: Nem um guarda, nem uma sentinela, nem um
contínuo apareceram.

- Devem estar todos na frente de batalha, gracejou o Xandinho, sentando-se numa das escadarias de
entrada. Em breve todos lhe seguiram o exemplo, excepto a D. Cesária, que embaraçada tinha
desaparecido do local. Alta, uma lua redonda e branca desenhava-se já no céu, iluminando as ruas
silenciosas. Nem uma viatura passava. Do deserto, que começava ali mesmo ao lado soprava uma brisa
quente, que contrastava com o ruído do bater das ondas do mar que podiam ouvir, vindo do lado oposto.

Uma alma solitária atravessou a estrada na direcção deles, mas olhou-os de soslaio e continuou caminho.
Depois hesitou e voltou atrás.

- Se for da segurança estamos safos, disse o Xandinho!

Tinha-lhe parecido estranho que um grupo de cinco negros e cinco brancos estivessem sentados à porta
do Camarada Governador àquela hora. Indagou quem eram e ao que vinham e prometeu-lhes ir à procura
do homem desejado. Ainda aguardaram uma boa meia hora, até lhes surgir um homem baixinho e magro,
rodeado por três ou quatro matulões que agiam como pajens dum príncipe insignificante: Era o
Governador. Dizia-se que um irmão seu tinha sido literalmente grelhado pelas forças dum partido rebelde
durante as atrocidades cometidas no país em 1975. O homem apertou-lhes a mão efusivamente. O
Xandinho já tinha sido avisado, que contraditando a sua fraca estatura os seus apertos de mão eram de
estalar ossos e tinha agora oportunidade de o comprovar. Desculpou-se exaltadamente, dizendo que dum
momento para o outro tinha sido chamado a uma reunião à qual, não podia de modo nenhum deixar de
comparecer. O desenrolar da guerra assim o exigia.

No entanto para o Renault, tratava-se simplesmente duma distracção, negócios de saias ou simplesmente
um modo de marcar as diferenças entre ele e o Governador da Sitila. A verdade porém, é que o seu andar
e o seu hálito, contradiziam as explicações. Do bolso tirou um enorme molho de chaves e duma forma
desconjuntada introduziu uma delas na fechadura do portal, que abriu com custo. Não encontrou
facilmente as luzes no grande hall de entrada. Depois tudo foi lento: Subiu tropegamente a longa
escadaria de mármore, adornada com plantas carnívoras do deserto vizinho.

Para o Xandinho era claro, que algures no tempo, o Palácio tinha sido pilhado por algum bando de tropas
ou populações em fúria. De facto, as sujas paredes brancas, apresentavam ainda marcas feitas pelo tempo
por quadros ou telas que ali estariam expostas. Naturalmente, pensava ele, tratavam-se de telas originais
de algum pintor do regime antigo, representando perigosos colonialistas falecidos há séculos. A hipótese
no entanto mais provável, é que estas obras tivessem sido censuradas por uma populaça dotada duma

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ideologia exigente, estando hoje a apodrecer em qualquer sótão esquecido, ou simplesmente tenham sido
objecto de saque e repousem hoje nos armazéns de algum museu estrangeiro.

A primeira reunião foi longa e inconsequente mas realizou-se de imediato:

Foram levados por uma cossada passadeira vermelha, até a um enorme salão de jantar e acomodados ao
calha, sem quaisquer preocupações protocolares, a uma longa mesa de ébano, minuciosamente trabalhada.
Por acaso, o Xandinho, tinha ficado sentado mesmo em frente do Governador, que depois de se acomodar
na cadeira de braços e como se nada do que se estivesse a falar fosse com ele, abriu o Jornal local e
calmamente começou a lê-lo. Naquele dia o Presidente da República tinha feito um discurso sobre as
famosas decisões do VII Congresso que ele lia avidamente em voz alta num Kabandês quase perfeito. O
patético da cena embaraçava os próprios Kabandeses presentes, que olhavam os visitantes como se
suplicassem mil e umas desculpas. Repentinamente cessou as leituras e começou uma frase: “Kabanda é
uma jovem nação, que conquistou a sua Independência pela força das armas” … Parou ali e retomou a
leitura do jornal. Era óbvio que o estado da fluência oratória do homem não passava pelos seus melhores
momentos.

Por volta das 21 e 30 daquela sessão embaraçante um dos pajens anunciou que o Camarada Governador
tinha uma chamada no seu gabinete. Quando ele saiu, todos respiraram de alívio. A forma como este
telefonema alterou o decorrer dos eventos, levou o Renault a pensar que a sua origem estivesse no seu
colega da Sitila, ou então no próprio governo central de Kabanda.

Efectivamente, quando ele chegou de novo ao salão da suposta reunião, vinha completamente mudado,
de faces rubras por cima dum negro retinto e num tom afável sugeriu-lhes jantar:

- Infelizmente não poderá ser no Palácio, pois os empregados já saíram! Perdem a oportunidade de
provar uma cozinha “Kabandana" genuína, mas há mais marés que marinheiros. Este não será certamente
o nosso último encontro.

“Isto cheira-me a forte puxão de orelhas. Provavelmente, um dos pajens da segurança alertou algures
alguém para o patético da situação” (pensava o Renault). O Governador, sugeriu irem ao único
restaurante ainda aberto na cidade. Antes porém, desculpou-se pois tinha de fazer uns telefonemas.

Finalmente saíram. Na rua o Xandinho comentou com o Delegado o bizarro da situação, que obviamente
era para esquecer. Finalmente foram conduzidos pelos pajens para o local do repasto: Uma boite escura de
decoração dúbia. Cá fora estava um magote de 20 ou 30 pessoas desenvolvia conversas furiosas e dava
para perceber que o local tinha sido mandado evacuar pelo Governador para receber na intimidade a
ilustre comitiva. Dum momento para o outro, a hospitalidade hostil tinha-se transformado num zelo
serôdio.

Não fora a obscuridade do local e algumas luzes dum vermelho e azul vivos e o local mais parecia uma
betesga do que uma boite. Mas a natureza e tom da música também lhe conferiam este estatuto. O
Governador que se tinha ausentado para ir ao que parecia ser a cozinha, veio anunciar que só poderiam
comer galinha assada na brasa. A larica no entanto apertava e todos acederam de bom grado à sugestão
irrecusável do Chefe. Para a mesa, vieram umas garrafas de vinho búlgaro de carácter confuso. Embalado
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pelos acordes da música, o Xandinho foi pedir a D. Cesária para dançar, no que foi seguido pelo resto dos
convivas. Numa curva mais apertada, sem querer, ele passou-lhe a mão pelo rabo. A Dama, talvez
entusiasmada pela sua pele branca, puxou-lhe com mansidão o ouvido para junto da boca e segredou-lhe.

- O meu marido é muito ciumento.

O Xandinho estacou por momentos, mas depois cedeu aos pedidos da carne e puxando mais os bastos
seios dela para junto de si, estreitou as passadas com prazer. Estava um calor estranho, feito pelo vento do
deserto, e a brisa do mar que se adivinhava. Dum momento para o outro ouviu-se da parte de trás do salão
onde estavam o grito de galinhas fugitivas. Quase de seguida foi o cacarejar típico de facas a penetrar em
carnes indefesas. Dum momento para o outro, do lado exterior cessaram os barulhos estranhos à música e
o baile continuou.

- Pelo menos as galinhas são frescas, comentou o Renault para o Xandinho, mas este estava demasiado
ocupado com os suores que o colavam às faces do seu par, do que com bocas provocativas. O próprio
Delegado exerceu uns passos de baile com uma Kabandina esquelética que estava sentada a um canto do
salão e que por razões obscuras, tinha escapado às ordens de despejo do Governador. As agruras da
reunião tinham sido esquecidas, mas ainda tinham que esperar uma boa meia hora para que as defuntas
aves fizessem as honras da mesa e acalentassem as azedias do estômago.

Para gáudio do Governador, já se dançava de copo na mão e este não se cansava de elogiar a festança
improvisada. O seu metro e sessenta mal medido, foi buscar para par de dança uma matulona sardenta
alemã – Fraulein Waltraude-, que tinha sido colocada há pouco na Delegação de Kabanda, que nem o
Xandinho nem o Renault sabiam muito bem para que servia. Desde que chegara ainda não tinha aberto a
boca, limitando-se a tirar notas desenfreadamente que ninguém sabia sobre quê.

O nariz do Governador ia marrando ao sabor da música nas avantajadas mamas da Fraulein, mas o
homem ria (quiçá contente da eficácia da sua hospitalidade), enquanto Waltraude fazia dos ombros do
Governador parapeito de qualquer varanda para a rua. Por fim as galinhas acudiram à larica dos
visitantes.

Tinham sido albergados no único Hotel disponível na cidade, sempre com o Governador a lamentar-se
que se tivesse sido prevenido com mais tempo, teriam ficado alojados no Palácio. Mas assim, com o
pouco tempo de que dispôs era o máximo que poderia fazer. Já noite alta, insistiu em levar a fraulein
sozinha no seu jeep para o Hotel, hipótese que do alto dos seus princípios ela enjeitou veementemente.
Enquanto durou a festança ele pôs os seus acólitos a procurar viaturas para a comitiva, o que dado o
adiantado da hora foi impossível.

No dia seguinte tudo mudara. O Governador mostrava-se agora uma pessoa afável, delicada e a comitiva
deslocou-se em quatro carros: O primeiro, o seu jeep de luxo, reservado para ele e para o Delegado. Pelos
outros três, inevitavelmente Ladas brancos, repartiram-se o resto dos visitantes. O famoso telefonema e o
baile da noite anterior tinham alterado o curso da história.

Despediram-se do Governador do Calibe com o tal aperto de mão de fazer estalar os ossos e a viagem
para Kabanda decorreu sem incidentes. As tripulações tinham percebido que os seus passageiros não
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gostavam de acrobacias aéreas de encher o olho e tinham-lhes proporcionado um regresso aquietado. No


Aeroporto Militar tinham as viaturas da Delegação à espera deles, que os transportaram rapidamente às
residências.

Quando o Xandinho chegou a casa, passava das quatro horas da tarde e o João Paulo admirou-se:

- Julguei que o Sôtor passasse o fim-de-semana na praia do Calibe.

Ele tinha-lhe trazido da Sitila uma boa quantidade de carne, que o empregado abençoou e agradeceu em
sucessivas vénias quase de ângulo recto. Depois de desfazer as malas ao patrão, passou às más notícias: O
vinho tinha acabado.

- O Sr. Heitor esteve cá e conheceu a D. Sandra. Foi mesmo ela que o mandou entrar. Eu também o
deixava entrar, porque vi logo que era amigo do Sôtor. A menina disse-me que voltava hoje. Estivemos aí
a tarde toda a conversar com eles, e eu afinal conheço a família dela! Ainda vêem a ser aparentados com a
minha mulher. Dela não me lembro que era muito miúda. Mas do pai e da mãe, lembro-me bem.
Moravam ali no Bairro das Cassulas, numa boa vivenda. O Senhor Leandro!!! Então não me havia de
lembrar do Sr. Leandro e da esposa? Depois a falar com a mulher é que me lembrei que havia também o
irmão dele, o Sr. Victor que vivia lá em casa com a tal de Albina. Ela não se lembrará de mim… já
passaram tantos anos… E olhava para o passado, cofiando a cabeleira branca. É gente de respeito Sôtor.
O bisavô da D. Sandra era mulato e foi lá para a aldeia da minha Senhora vender sal. Que é que lhe
acontece, Sôtor? Que é que lhe acontece? Insistiu.

- Não faço a mais pequena ideia. Respondeu o Xandinho, deleitado com o colorido da história.

- Tome lá: Apaixonou-se por uma das filhas do Soba e nasceu um cafuzo que era o avô da D. Sandra mas
o mulato, homem sisudo, trouxe a filha do Soba e o bebé para Kabanda. Gente do antigamente! Agora
não! Fazem-lhes os consequências, dão-lhes umas tangas e já está. Eu é que sei! A rapariga fica em casa
com os pais e prontos!

- Então conte lá o resto da história.

- Onde é que eu ia? Já Sei no cafuzo. Então o cafuzo cresceu e ele pô-lo a estudar. Foi uma guerra!
Naquele tempo um cafuzo estudar? Não havia patrão. E prontos! Foi assim até chegar à Sandrinha. Mas
olhe que é família estudada. O pai da D. Sandra parece que ainda teve uns problemas com a polícia, mas
também estudou. Na altura desta Independência ele já trabalhava nos escritórios da fábrica de cervejas.
Depois desapareceram todos. A casa onde moravam, nas Cassulas, ainda há dias lá passei, foi ocupada por
um matumbo qualquer e está quase a cair.

- Está bem! Disse o Xandinho. Mas agora trás uma cerveja bem fresca e se quiseres serve uma bebida
para ti e vem aqui contar o resto dessa história.

O João Paulo trouxe a cerveja e serviu-se copiosamente de uma garrafa de água ardente que o Alexandre
tinha comprado na “Loja Franca”.

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- Então e o Soba? Perguntou.

- A minha Senhora ainda conheceu os netos dele, continuou o empregado. Gente afazendada. Era o Soba
Afilala. Dizem que uma vez perguntaram a uma das mulheres dele, quantas cabeça de gado tinha o
marido e ela agarrou uma mão cheia de areia, abriu os dedos e disse: Tantas como estes grões.

A água ardente arranhava-lhe a garganta mas afinava-lhe a voz.

- Então e o Sr. Heitor? Aproveitou o Xandinho para tirar nabos da púcara.

- Muito simpático. Também é casado com uma Kabandina mulata. Falou muito tempo comigo e
combinou encontrar-se sempre aqui com a D. Sandra. Numa das noites fiz-lhes jantar. Depois fui-me
embora e ficaram aí. No dia seguinte não havia vinho.

O Xandinho apercebeu-se que no mínimo a conversa tinha sido longa, e talvez tivesse metido umas
“passas”. Imaginava o João Paulo com a sua figura esguia e farda branca a fazer as honras da casa.
Provavelmente, refastelado como estava agora numa das poltronas, a servir copiosamente os seus
hóspedes de taças de vinho fresco. Do que conhecia do Heitor, sabia que ele era pessoa para aceitar com
prazer tais liberalidades, e não desdenharia deitar olhos libertinos ao corpo pródigo da Sandrinha.

- O Sôtor não quer comer nada?

- Não, mas bebia outra cerveja. Ligou a televisão sem saber que a parabólica já estava montada. O
empregado trouxe-lhe a bebida e dois ou três pastelinhos de bacalhau que saboreou com gosto e ficou
estendido no sofá, tendo dito ao João Paulo para lhe arranjar qualquer coisa para jantar. Depois, se não
tivesse mais nada para fazer poderia ir para casa. O que ele lhe tinha dito não alterava em nada a ideia que
fazia da Sandra. A história do Soba dava-lhe de certo alguma cor local. Mas aquela figura lampeira e
atribulada que conhecera nas ruas desassossegadas de Santo António era a que se mantinha na sua cabeça.

Levantou-se e foi até ao jardim, onde estranhou que a D. Helena ainda não tivesse providenciado para
mandar pôr as luzes no jardim, que por estranho que pareça, eram absolutamente fundamentais para as
funções que desempenhava.

Em Kabanda, as recepções, sobretudo nos meios diplomáticos sucediam-se, já que era o único modo de
socializar. Não só as faltas de água e luz na cidade (que há noite metamorfoseavam o silêncio numa
mescla de sombras e bruaás de geradores), mas também as questões de segurança (que tinham incutido
nas gentes uma autêntica histeria colectiva), impunham temor ao mais afoito tasqueiro e o medo era factor
impeditivo para a abertura de locais de divertimento público, como cafés restaurantes, etc.

Assim, as casas mais abastadas e sobretudo as dos estrangeiros eram olhadas como locais não só de
fartura, mas também de diversão. Já não era tanto o recolher obrigatório que era impeço à boémia. O
Kabandino tinha inventado o seu próprio livre-trânsito, que consistia em deambular depois da hora, com
duas ou três latas de cerveja no “tablier” do carro e entregar uma a uma aos militares que lhe aparecesse
no caminho.

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Impeditivo era encontrar um local para onde ir na cidade semi-apagada. Assim os jardins (ou os quintais
na versão local), tornavam-se essenciais para a vida nocturna, desde que a mesa fosse lauta e a bebida
escorresse. O jardim do Xandinho, com as luzes que ele imaginava, transformaria aquele espaço no local
ideal para festanças e regabofes: O assombramento das árvores, música apropriada, a macieza da relva e a
abundância de sítios pardos, construiriam um cenário suficientemente acolhedor para comerões ou outros
conventículos mais terra a terra.

Quando voltou para dentro, tomou um banho e vestiu umas bermudas floridas. Estendeu-se no sofá.
Continuou a fitar a televisão local. Assim adormeceu.

Não se lembrava quanto tempo tinha passado mas acordou sobressaltado com o som duma campainha
persistente. Estremunhado, esperou de novo que ela tocasse na esperança que João Paulo fosse abrir. Não
aconteceu. O empregado tinha ido embora durante o seu sono e ele não se tinha dado conta. Quando abriu
a porta, uma bola de luz estava colada ao céu. A lua já tinha aparecido. Era o Jorge e a Sandrinha.

- Desculpe, Patrão. Sabia que estava em casa e toquei muito. Até pensei que lhe tivesse dado alguma
coisa.

- Não faz mal Jorge. Ainda não vos tinha visto desde que cheguei. O bebé? Já jantaram, perguntou o
Alexandre.

- O João Paulo fez-nos um peixe frito com mandioca cozida e para o Patrão pediu-me para lhe dizer que
tinha feito maionese. Deve estar no frigorífico.

A Sandra foi entrando e acomodou-se num dos sofás do salão.

- Onde é que ele tinha ido buscar a mandioca? Não me digas que anda a trocar cerveja por mandioca?
Perguntou à Sandra.

- Não sei. Mas o Heitor deu-lhe algum dinheiro. Esteve cá.

- Eu já sei. Acabaram com o vinho todo!

- Foi ele, disse a Sandrinha rindo.

- Imagino que estiveste a “reconstruir o mundo” com ele!

- Não gozes com essas coisas, e ficou em silêncio contente com os ferrunchos que lhe estava a provocar.

A televisão ainda estava ligada. A Sandra procurou outro canal. Na sua ausência, vieram montar a
parabólica no terraço da casa. Tinha sido ela que comandara as operações e dava-lhe agora detalhes sobre
o funcionamento da antena. Conseguia mesmo apanhar a televisão internacional portuguesa e servia
também para sintonizar as estações de rádio com uma excelente nitidez. Passaram em revista todos os
canais possíveis e detiveram-se brevemente num canal pornográfico estrangeiro.

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- Vou tomar um banho. Disse a Sandra. Desta vez trouxe roupa de dentro para mudar. Quando voltou,
trazia na mão a já familiar caixa de sapatos e entreteve-se a desfazer a erva e a metê-la dentro de dois
grandes frascos para cereais que tinha ido buscar à cozinha.

- Posso telefonar ao meu pai?

O Xandinho abanou afirmativamente a cabeça. Para seu espanto, ela também tinha um esquema e
rapidamente conseguiu a chamada. Quando o telefone tocou, foi ele que instintivamente atendeu e ouviu
do outro lado da linha: “A chamada que pediu para Lisboa”. Depois reconheceu a voz cava do Sr.
Leandro: Sou eu, o Alexandre! Do outro lado sentiu uma grande alegria:

- A sua mulher já me disse que tinha encontrado a minha filha.

- Vou passá-la.

Ouviu as primeiras palavras antes de ser invadido por sentimentos contraditórios: Ali estava ele, contente
por estar a contribuir para este reencontro familiar. Mas a sentir-se traidor a valores que lhe eram caros
como a amizade e doloso por ter dormido com a jovenzinha filha do vizinho. Ficou absorto, até que a
Sandra o despertou para a realidade:

- Ele quer falar contigo e passou-lhe o telefone.

- Proteja-a, pediu-lhe ele. Ela precisa da sua protecção.

A sua confiança nele, na sua família e nas funções que o Xandinho desempenhava, eram para o pai o
garante que nada de mal iria acontecer à filha e rejubilava em gratidão e agradecimentos paternos.

- Deus há-de lhe pagar! Deus há-de lhe pagar!

A campainha da porta tocou de novo tirando-o daquele martírio com que sem querer, se tinha sido
confrontado. Ela foi abrir. Era o Renault.

- Interrompo alguma coisa? Perguntou mirando a Sandrinha de alto a baixo, com o seu ar conhecedor de
assuntos africanos. Aprovou com um estalar de língua e cara malandreca, refastelando-se no sofá.

- Não é nada do que estás a pensar, respondeu-lhe no seu melhor francês, é filha dum amigo meu em
Lisboa. Trouxeste o condutor? Se ele quiser pode entrar.

- Oui! Oui! Diz-me o que pensaste da viagem? De repente olhou para a mesa de centro e reparou nos
cadáveres das cannábis. Também praticas deste desporto? Se assim é também sou servido se ainda tiveres.

Mostrou-lhe os frascos que ainda estavam à vista.

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- Vês uma das razões pelas quais eu quero sair de casa do Delegado? Já nem é a harpa nem a sua voz de
soprano arrepiada, é o à vontade com que se está. Tenho mesmo que ir para o Hotel. Claro que lá também
não vou fumar disto, mas estou muito melhor.

O Xandinho pediu à Sandra para fazer um “charro”, que os três fumaram calmamente. Atrás desse o
Renault fumou outro e mais outro sem cessar. O Alexandre estava abismado. Já tinha visto fumar mas não
em tamanha sequência. O magano parecia um perdido no deserto que de repente encontra água.

- Que diz o Delegado da ida à Sitila e ao Calibe?

- Veio contente, mas pouco adiantou sobre as conversas que teve em privado com o Governador da
Sitila. Mas o importante e foi isso que me trouxe aqui, foi a grande remodelação ministerial que está a
acontecer: Caíram os Ministros do Plano, das Finanças e dos Estrangeiros. O Delegado não foi apanhado
de surpresa. Julgo que de algum modo o Governador lhe tinha assobiado aos ouvidos, mas o Embaixador
de França confirmou-lhe tudo esta tarde pelo telefone. A Sandrinha foi à cozinha arrumar os frascos das
mesinhas e o Renault acrescentou: Deve estar a dar na rádio!

O Alexandre foi para a aparelhagem que tinha comprado na “Loja Franca” e procurou algumas estações
estrangeiras tendo por fim localizado a Rádio Nacional, que repetia a notícia de dez em dez minutos:

“Na sequência das importantes decisões, tomadas no decorrer do VII congresso do partido, o Camarada
Presidente decidiu demitir os seguintes ministros: Bla… Bla… Bla…” e confirmava a notícia do Renault.

- Tantos ministros? Isto não é uma remodelação, é um golpe de estado! Quem irá para o Plano?
Perguntava o Xandinho.

Por vezes tinha medo de pensar. Lembrava-se muito dum poeta que dizia: “A inteligência é um cancro”!
De facto ele temia-se a si próprio e fazia intermináveis exercícios sem consequências para conter a sua
verborreia cerebral.

- Fala-se dum tal Katatúlio, que o Delegado fartou-se de dar voltas e fazer telefonemas, mas ninguém
conhece. Disse o Xandinho.

Da cozinha ouviu-se um grito da Sandra que caiu como uma bomba:

Quando surgiu no salão empunhando um pires de maionese eles olharam-na espantados. Um sorriso de
orelha a orelha abria-se-lhe no rosto e saltando ao pescoço do Xande repetia” em pasmo:

- Só pode ser ele! Só pode ser ele! É irmão do pai! Posso telefonar outra vez?

- As vezes que quiseres.

Ela pegou no telefone não contendo uns tremeliques nos pernões e o Alexandre foi contando ao Renault
a história da Sandrinha, desde o Soba até aos brilhos das montras de Lisboa que a levaram a ambicionar
luxos e meter-se em sarjetas até que de tropeço em tropeço veio parar de novo a Kabanda.
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- De ti, disse o Renault ao Xandinho (também visivelmente contente), começo a esperar tudo!

O telefone tocou de novo e a Sandrinha atendeu.

- Mas se for ele, disse o Xandinho, calamo-nos bem calados e só quando ele tomar posse é que dizemos
ao Delegado. O João Paulo também diz que o conhece, mas que já não se lembram um do outro.

A Sandrinha pousou o telefone:

- É ele. É o tio Victor, disse a Sandra radiante. Já se fala em Lisboa.

- Mau! Victor ou Katatúlio?

- Victor é o nome cristão. Katatúlio é nome de feitiço. Logo a seguir à Independência ele cumpriu as
tradições todas da família e puseram-lhe o nome de Katatúlio.

- Tu conhece-lo, perguntou-lhe o Alexandre?

- Lembro-me vagamente dele a brincar comigo e com o meu pai num jardim de Santo António. Mas não
me recordo de mais nada. Sei que depois desapareceu e de se dizer lá em casa que tinha ido para França,
ou que tinha vindo para Kabanda para se alistar na frente. Correram muitas versões e boatos mas lá em
casa ficou assunto tabu.

- Se for ele, pode ser que as relações connosco estejam muito facilitadas (dizia o Renault), que dava
grande apreço a este tipo de aproximação aos problemas

Apesar da empatia evidente nas relações entre eles, havia uma certa cerimónia, mais para resguardarem
a intimidade do que por questões hierárquicas.

- Será que ela conhece de facto o novo Ordenador Nacional? Era importante termos a certeza. Se for,
assim tens um filão na mão e é importante explorá-lo.

A Sandra embalada pelas emoções ou pelo peso das cannábis, começava a fechar os olhos.

- Que idade terá o Katatúlio? Perguntou o Renault.

- Deve rondar a idade do pai dela, mais coisa, menos coisa: 60 anos sofridos (acrescentou). Os dois
deviam ter feito parte duma elite colonial cafusa, que já não se apegava nem às máquinas da fábrica nem
às obras. Foram escriturários numa grande empresa e se não fosse a Independência teriam chegado a
chefes de departamento, ou uma coisa parecida.

O Renault também já bocejava:

- Bem vou andando. Amanhã vou ver se arranjo tempo para ir ao Hotel ver uma suite. Queres que a leve
a casa?
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- Não. Ela fica aqui. Dorme no sofá ou num dos quartos.

- Pois? Onde querias que dormisse, disse com o seu ar magano. O Xandinho levou-o à porta. Quando
chegou ao salão a Sandrinha respirava a paz sonolenta dos cannábis. Sentou-se a pensar que agora ela já
começava a trazer mudas lá para casa e portanto era melhor atribuir-lhe um quarto onde pudesse arrumar
as suas roupas e fazer a sua decoração própria. Se quisesse dormir com ele, bastava-lhe desfazer a cama
do quarto, como se lá tivesse dormido, e depois passar-se para o seu. No dia seguinte, antes do João Paulo
chegar, ela transladaria o resto do sono para a outra cama. Assim, estavam desfeitos alguns equívocos e
não se daria azo a falatórios desnecessários. Diria mesmo ao João Paulo que aquele seria o quarto da D.
Sandra quando ela fosse lá dormir. Disse tudo isto à Sandra depois de sentado nas bordas do sofá grande,
onde a ela estava deitada.

Fumou o resto do charro que tinham deixado no cinzeiro e começou a planificar o dia seguinte: A Sandra
ficaria lá em casa enquanto o Xandinho ia com o Renault ver a suite. Depois se tudo corresse bem, e não
havia razão para o contrário, iriam a casa do Chefe buscar as embambas do Renault que ela ajudaria a
organizar no Hotel. Esta solução parecia-lhe ideal. Enquanto pensava assim, as suas mãos mergulhavam
vagarosamente por baixo dos vestidos dela. Por esta altura ela já tinha aberto os olhos e deixava-se
entregue àquelas carícias. Os dedos dele procuravam o acolhimento húmido dos seus segredos mais
íntimos. Estiveram assim por momentos, até ele se lembrar dos sentimentos religiosos da Sandra que em
breve iriam celebrar matinas ou nocturnos e achou que aquela não seria altura propícia para tais preces
pagãs. Afastou-se religiosamente destas práticas e mais prosaicamente falou-lhe na decoração que tinha
pensado para os quartos da casa.

- Será inevitável que mais cedo ou mais tarde venhas a conhecer o Delegado e a mulher! Disse-lhe o
Xande.

- Estás a querer meter-me com essa gente. Mas eu para ir conhecer a mulher do Delegado vou ter que
arranjar roupa adequada, que não tenho. Se vocês me quisessem comprar um ou dois vestidos na “Loja
Franca” e um par de sapatos altos, passaria muito melhor por uma amiga tua recém chegada de Lisboa.
Falo assim, e não só é por mim, é para que a história jogue. E depois não queria passar por nenhuma
galdéria que se afraguesa com estrangeiros. É também por vocês que penso assim.

- Não sei. Mas falamos nisso amanhã. Se conseguires que para essas coisas, a “Loja Franca” te passe
facturas de facas, pratos e panelas, acho que o Renault não se oporá.

O Xandinho foi-se deitar, a pensar que o passo que deu tinha sido mal dado: De certo modo, estaria a
avalizar a sua mudança lá para casa, ao disponibilizar-lhe um quarto, armários, etc. Mas por outro lado
reconhecia que neste momento a sua presença poderia ser vital para as relações entre Kabanda e a
Comunidade. O meio-sono tinha-o invadido e ainda não tinha adormecido completamente, quando sentiu
a Sandrinha a avassalar-lhe a cama. Sentiu-lhe o corpo a moldar-se ao seu e ajeitou-se para acomodar a
solidão.

No dia seguinte, conforme o combinado, a Sandra mudou-se para o outro quarto antes do João Paulo
chegar, e ficou em casa. O Alexandre tomou o pequeno-almoço que o empregado lhe preparara e arrancou

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para a Delegação. Cumprimentou a D. Helena com quem manteve uma conversa trivial sobre a viagem à
Sitila e as vantagens da casa e dirigiu-se ao gabinete do Renault:

- Acabei de falar com o Delegado sobre a muda. Simpático como sempre, disse-me que por ele e pela
esposa poderia ficar o tempo que fosse preciso. Mas que compreendia muito bem a situação. Dispensou-
nos para irmos tratar hoje da suite.

- Falaste-lhe do Katatúlio?

- Claro que não! Mas enquanto a situação do novo ministro não se decidir, não estamos aqui a fazer
nada. Talvez resulte irmos falar com a D. Cesária e ver se as informações que temos jogam com as dela,
mas só depois de tratarmos do assunto do Hotel.

- Vou cumprimentar o Delegado, disse o Xandinho.

Quando voltou seguiram para o Hotel:

- O Delegado, veio com muito boa impressão do Governador da Sitila, disse o Renault já no carro. Mas
não se abre sobre as conversas que teve com ele.

- Deixa lá. Talvez ele também pense que sabemos mais do que lhe contamos.

Pelo caminho, o Alexandre contou-lhe que a Sandra ficou em casa à espera de ordens. Se ele ficar com a
suite, ela vai ajudar na muda de casa do Delegado para o Hotel e falou-lhe da sua preocupação quanto ao
vestuário.

- De facto ela é bonita, mas tem que mudar de visual. Vamos fazer dela uma Senhora. E se a história do
Katatúlio for verdade, merece-o. Viste o Jornal de hoje? Fala dum académico para o plano.

- Académico?

- Essa é nova e não joga muito bem com a descrição. Se calhar ensinou português nalguma Universidade
Albanesa, disse o Renault. Mas eu já vi de tudo. Já vi um sargento do exército francês chegar a Marechal.
Olha o Idi Amin, o Bokassa e o próprio Mobutu, todos condecorados com a Legião de Honra da França, o
que é uma verdadeira ofensa aos antigos combatentes como o meu pai e o meu avô. Ainda hás-de ver um
deles como Secretário-geral da ONU.

Com esta conversa, chegaram ao Hotel. O Xandinho dirigiu-se à recepção.

- Bom dia. Trago-vos um novo cliente. Mas este é mais fino: Quer uma suite.

- Temos duas vagas! Não são iguais. Uma é Presidencial, corrigiu o “garçon”.

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- Então quero a presidencial, atalhou a Renault. Não creio que nenhum Presidente visite Kabanda, nos
tempos mais próximos, e se visitar de certeza que não vai ficar num Hotel. Irá para o Palácio do
Presidente. Se vier alguém posso sempre mudar-me para a outra. A Sandrinha dá uma ajuda. Riu.

Tratava-se dum pequeno apartamento, constituído por um grande quarto, umo salão de estar e uma sala
de jantar, alem dum quarto de banho. As mobílias eram todas locais em ébano e a colcha da cama feita
num veludo creme que amenizava um pouco a severidade da decoração.

O Xandinho apontou-lhe o salão do meio dizendo-lhe:

- Aqui podes fumar à vontade, desde que abras o ar condicionado.

- Posso. Mas sabes que me chateia enrolar? Tenho que arranjar uma empregada para isso. Talvez a
Sandra tenha alguma prima. Mas é uma chatice… tenho que vesti-la.

- Aproveita agora as minhas despesas de instalação. É uma questão de arranjares uma factura da “Loja
Franca” de tachos e panelas e tens o problema resolvido.

- Bruxelas não faz a mais pequena ideia do que é isto, pois não?

- Nem pequena nem grande. Mas olha que não é fácil. Se não forem estes pequenos devaneios, damos
em loucos. Já viste o que seria porem aqueles altos funcionários a aturarem as Tias Albinas, os Katatúlios
e as Cesárias?

Demoraram-se uns tempos a contemplarem as vistas sobre a Baía. Deus tinha privilegiado Kabanda.
Desceram com o garçon até à recepção.

- Ficamos com a Presidencial, disse o Renault.

- E qualificam? Perguntou o recepcionista.

- Que é isso? Ofendeu-se o Xandinho. Queres que eu diga ao Protocolo de Estado para reservar a suite
em nome da Delegação?

- Não vale a pena, respondeu atemorizado.

- Então tens aqui os papéis do Senhor e faz a inscrição, enquanto vamos buscar as bagagens dele.
Voltamos daqui a pouco com a minha sobrinha para o acomodar.

De saída, foram dar a notícia ao Delegado e dizer-lhe que passariam mais tarde por casa dele buscar as
malas do Renault. Na rua, cumprimentaram o condutor. Como funcionário da Central tinha direito a
condutor e carro próprio. Decidiram aproveitar esse bónus. Entraram para o banco de trás a pensarem
como usufruir do resto da manhã.

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Enquanto o Alexandre esteve no Hotel, este funcionou também como afirmação de estatuto social.
Quando encontrava algum funcionário bem colocado no Aparelho de Estado, convidava-o para almoçar
ou jantar no Quatro Estações, o que resultava sempre como um bónus em favor da sua simpatia que saía
ainda mais enobrecida, se o convite fosse extensivo às famílias. Até o Heitor e a Betinha regozijavam com
tais convites.

Efectivamente naquela altura, para os funcionários Kabandinos, ou os esquemas ainda não estavam
suficientemente estudados ou as benesses do sistema, ainda não lhes tinha batido à porta o que fazia do
seu dia a dia uma vida difícil. Para eles uma ida ao Hotel, poderia representar ou o preenchimento duma
refeição na dieta caseira ou uma lauta jantarada a funcionar como um intermezo nas dificuldades
quotidianas.

Quando chegaram casa do Alexandre o condutor apitou e o Jorge abriu os portões de acesso à garagem
com vagares tropicais.

No salão, a Sandrinha, tinha vestido o robe de seda chinês e tranquilamente tomava café. Cumprimentou
o Renault com dois beijinhos na cara.

- Queres ir à “Loja Franca” e ainda estás assim? Perguntou o Xandinho.

- É rápido. Já tomei banho.

O João Paulo veio à porta dar os bons dias e ele aproveitou para o avisar que não viriam almoçar. Pediu-
lhe para servir café no salão.

- Vou pôr a rádio para ver se dá mais alguma coisa sobre a remodelação.

- O jornal oficioso alcunha o Ministro do Plano de eminente académico. Esta é que não rima mesmo. –
OH! João Paulo traz depressa os cafés que precisamos de falar contigo. Ele não demorou um minuto a
fazer o seu número de malabarismo com duas chávenas, um açucareiro e um pote de café, em cima de
uma bandeja coberta com um pano imaculadamente branco. O próprio Renault agradeceu e aplaudiu,
enquanto que o Xandinho, que a meio do número quase viu duas chávenas irem pelo ar, não apreciou
muito a habilidade, mas sorriu com a destreza. Pegou-lhe calmamente no braço que segurava a bandeja,
convidando-o a deixa-la em paz em cima da mesinha de centro. Depois apontou-lhe delicadamente um
sofá para se sentar, e disse: “Vá lá! Agora serve os cafés, acalma-te e responde-me a esta pergunta: Que
pensas do Victor da Tia Albina, vir a ser Ministro do Plano”.

- ” Sôtor e eu percebo coisa disso? Nem já me lembro dele! Só sei que no outro tempo não havia
Presidente da República e havia água até para lavar o rabo. Não havia Ministros, mas havia luz! Só sei
isso, não sei mais nada.

- Mas sabes que o Victor foi professor da Universidade?

- Essa, eu também não sabia, disse a Sandrinha já meia aperaltada. Tudo o que sei é que ele viveu aqui
no Bairro das Cassulas com os meus pais, que namorou com a Tia Albina de quem tem um filho: O
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Katatúlio um Homem de Estado

Márito. Depois em 1975 foi para Lisboa, mas ao que dizem não se adaptou aquela vida e desapareceu.
Duvido mesmo que os Papás saibam mais alguma coisa dele.

- Parece que não avançamos grande coisa, disse o Renault. Mas olha que já lá vão onze anos, e neste
tempo muita volta deu o Mundo. O melhor é esperar para ver.

A Sandra estava aprontada e tinha ouvido as últimas palavras dele:

- Também nada impede que durante este tempo ele tenha tirado um curso qualquer num desses países
que agora são amigos do governo.

- Que eles eram estudados, eram! Disse o João Paulo. O Xandinho cortou a conversa:

- Deixem lá isso! Voltou-se para a Sandra: Já pensaste no que vais comprar?

- Pensei nuns jeans que dão para tudo, um vestido, uns sapatos e talvez umas chinelas de praia decentes.
Já tenho os biquinis e assim fico vestida para a praia e para a cidade.

Saíram pelo jardim, onde uma bebé fazia exercícios de equilíbrio para se suster de pé.

- Quem é? Perguntou o Renault.

- É a filha do jardineiro. Agora ficaste a conhecer a família completa. Falta a mãe, a D. Isaura, mas o
João Paulo deve tê-la mandado às compras.

Dirigiram-se para o carro, onde o condutor solícito abriu as portas para os três entrarem.

- É melhor o tio comprar vinho e manteiga que já não há! Avisou a Sandrinha.

Na “Loja Franca” ela dirigiu-se directamente para a secção de roupas de Senhora. O Xandinho detestava
andar com meninas às compras, e pelo ar de enfado o seu amigo também:

- Olha, trata da tua vida, compra as coisas para casa e resolve o problema da factura. Quando estiveres
pronta, vai ter connosco ao bar. Sentaram-se numa das poucas mesas disponíveis e ficaram em silêncio a
matutar na história do Katatúlio.

O bar da “Loja Franca”, ao fim da manhã, era o lugar preferido pelo Kabandino sofisticado para o
“engate” e para os carteiristas o sítio de eleição. Frequentado quase exclusivamente por donas de casa
brancas, mulheres e filhas de diplomatas ou funcionários internacionais, passeavam-se pelo supermercado
a ver as últimas novidades chegadas dos países de Leste ou da Europa e ultimavam as suas compras para
o habitual piquenique de princípio de tarde nas praias da Ilha. As vestimentas variavam entre a autêntica
passagem de modelos das mamãs quarentonas e os calções relaxados de aprofundar as formas das
jovenzinhas adolescentes. Sentados no bar, os jovens Kabandinos, tentavam a sua sorte para encontros
multirraciais, donde pudessem provir prazeres carnais supostamente diferentes, ou carteiras mais
recheadas.
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Sexo, Drogas e Diplomacia
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Katatúlio um Homem de Estado

O Xandinho detestava ser tomado por um daqueles brancos, que quando chegam aquelas paragens, a
primeira coisa que fazem é procurarem o exotismo da amante negra, situação que neste caso era agravada
pelas formas da mulatinha escura e olhos verdes, que dentro de momentos surgiria no bar, cheia de
compras de roupas de Senhora.

- Não penses mais nisso! Dizia-lhe o Renault, supostamente a referir-se ao Katatúlio.

- Por acaso, estava a pensar nos filmes que às vezes somos obrigados a viver.

Com um ar de menina ressarcida, a Sandrinha chegou-se junto da mesa, fazendo menção de abrir os
sacos para mostrar as compras.

- Deixa estar, disse o Xandinho. Depois veremos isso em casa.

- Está tudo tratado. Só falta ir pagar, mas a minha amiga depois vem cá receber.

- Então deixa-te estar. Temos tempo. Ir buscar as minhas coisas, só convêm à tarde. Daqui a pouco o
Delegado chega a casa para almoçar e depois vai fazer a sua sesta, que não convêm interromper. Se não
chegarmos a tempo de almoçar no Hotel, come-se qualquer coisa em casa do Dr. Alexandre. Pede alguma
coisa para tomares, disse o Renault, martelando em jeito de gozo o atributo de Doutor.

Ficaram ali um bom bocado feito basbaques, a olharem o cosmopolitismo da “Loja Franca”, como se
estivessem em Paris no Quartier Latin, refastelados na esplanada de qualquer café a apreciar as modas de
início de Verão. A Sandrinha tinha acabado de chegar do balcão com mais três cervejas quando o Heitor e
a mulher se aproximaram da mesa. Todos reparam, especialmente a Betinha, no ar de desejo mal contido
que o marido despejou sobre a Sandra e não era caso para menos: Esquelética, pequena, de pernas
arqueadas e com quistos plantados na cara, a Betinha, só podia sobressair pelo à-vontade de enfermeira de
profissão e por um interior generoso.

Oficialmente, não exercia a profissão. Era secretária do Director da Cruz Vermelha Internacional, mas
nunca esquecera o seu mister de enfermeira. Com a guerra, médicos ou enfermeiros que o governo tinha
conseguido formar, eram inevitavelmente absorvidos pelas necessidades das tropas da frente. Os que
restavam em Kabanda ocupavam cargos políticos, eram professores da Faculdade ou estavam adstritos
aos parcos serviços hospitalares. Uma enfermeira dava sempre jeito. Durante o dia, no emprego, recebia
pedidos de prestação de serviços, e ao fim da tarde passava por casa dos seus clientes para dar uma
injecção, fazer um penso de mordedura de cobra ou recomendar um antibiótico, que oportunamente até
tinha trazido da Cruz Vermelha. O mais vulgar porem, era casos de paludismo, para os quais receitava a
tradicional Resoquina, que abundava no seu trabalho e no mercado negro. Assim ia angariando nas
redondezas a reputação de bom João Semana, ofício normalmente indemnizado em frangos, cerveja e
outros géneros que compunham o orçamento familiar.

O Xandinho, desviando a conversa e para atenuar o mal-estar que os olhares do Heitor sobre a Sandrinha
causavam, aproveitou para elucidar melhor o Renault sobre a família da Betinha.

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Katatúlio um Homem de Estado

- Tem uma irmã que é advogada e trabalha numa Empresa Estatal de exploração de diamantes, ou coisa
que o valha. Não recebe salário, mas tem o privilégio de ao fim do mês trazer para casa um opíparo cabaz
de compras, donde consta whisky, vinhos, cerveja, óleo de cozinha e outras coisas que só no Mercado
Negro se encontram. Tem um cunhado branco, que logo a seguir à Independência foi Ministro do
Comércio e actualmente está desempregado. Praticamente quem sustenta a casa, e a casa do cunhado, é
ele e a Betinha.

- Que estão para aí vocês a cochichar? Perguntou o Heitor a alisar o bigodaço farto e louro.

- Nada, respondeu o Xandinho. Estávamos a falar de coisas do trabalho. Um dia destes vou convidar-vos
a ir almoçar lá em casa com os miúdos. A Betinha ainda não conhece a casa.

- Nem eu! Disse o Heitor, lançando um ar cúmplice à Sandra.

- Pelo menos têm o número de telefone que eu tive o cuidado de ir a vossa casa deixar!

A amiga da Sandra, empregada da “Loja Franca”, chegou com a factura:

- É isto? Perguntou: Um trem de cozinha, um conjunto de facas de corte, 12 copos e seis pratos.

- É isso, respondeu o Alexandre.

- Cento e vinte seis USD certos.

- Temos de ir, disse o Xandinho. Ainda temos muito que fazer. Adeus Heitor e apareçam.

Foram para casa. Quando chegaram, o João Paulo ficou visivelmente admirado com a presença deles.
Não os esperava tão cedo e ainda não tinha feito nada.

Sentaram-se os dois a dar na cerveja e o Alexandre continuou a conversa sobre o Heitor:

- É um bom amigo que me apareceu por acaso aqui em Kabanda, e vale a pena frequentar a casa dele,
nem que sejas tu a ter que levar a bebida. A vida deles não é tão fácil como a nossa. Não é pago como
funcionário internacional, mas como estrangeiro contratado localmente o que faz uma grande diferença.

- Eu sei. Mas conta-me o que começa a ser um grande mistério para as gentes da Delegação: A tua
mulher vem ou não? És ou não és casado?

- É uma história interessante que eu te posso contar, se me prometeres que arranjas três ou quatro
versões que não a verdadeira, para contares a quem te fizer essa pergunta a meu respeito.

- Juro!

Foi ao quarto e trouxe dois álbuns de fotografias que foi explicando ao Renault:

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Katatúlio um Homem de Estado

- Tens bom gosto, comentou. Mas conta lá a história.

- Sabes como vim parar aqui?

- Sei do lado de Bruxelas. Por acaso fui eu que te escolhi!

- Agora és tu que tens que contar.

- Fui! Havia 30 ou 40 candidatos. Como deves saber, por causa da vossa revolução nos anos setenta,
ainda há muito a ideia na Europa, que os portugueses são uns marxistas-leninistas desenfreados. E o facto
de teres tirado o curso na London School of Economics, contou muito para a minha avaliação.

- Nunca te passou pela cabeça que eu estivesse em Londres, exilado político como o Karl Marx, pois
não? Pois a verdade é essa! Mas vamos por partes. Não queres que eu te conte a minha vida toda numa
tarde! Eu vi no jornal a abertura de concurso para este lugar e respondi. Passaram-se uns tempos sem
qualquer resposta até que um dia recebo um telefonema de Bruxelas a dizer que se eu ainda estivesse
interessado no lugar, para ir prestar provas em Bruxelas. Fui, sem grandes esperanças, mas pelo menos
lucrava o passeio. Como sabes a coisa correu-me bem e dada a urgência da minha vinda para Kabanda,
começamos, sempre acompanhado por uma expedita burocrata a tratar dos assuntos administrativos.
Viajamos pelos labirintos daqueles corredores que conheces, subimos e descemos elevadores sem conta,
até que finalmente demos com o homenzinho do pessoal. E continuou:

- Eu e a Susaninha estávamos juntos há cerca de cinco anos, numa união de facto. Tínhamo-nos
conhecido em Moçambique na minha primeira incursão Africana. Ela era estudante de veterinária em
Maputo e talvez fosse por isso que se apaixonou por mim. Era uma jovenzinha órfã, não dos pais, que
estavam em Lisboa bem vivos, mas da súbita saída deles do país. Na altura havia lá muitos jovens na
mesma situação. Eram órfãos da revolução: Os pais não se tinha adaptado à nova realidade e decidiram
partir. Por vontade própria, ela, como muitos outros, tinha ficado.

Moçambique era, até finais da década de setenta para qualquer jovem português de esquerda, um país
apelativo. Para nós o discurso anti-racista do Samora Machel e todo aquele ideário, talvez funcionasse
connosco como uma espécie de terceira via para o socialismo, sobretudo para aqueles que como eu
tinham vivido em França o rescaldo das guerras da Argélia e mais tarde do Vietnam, olhavam a
independência das colónias portuguesas como um oásis no meio do deserto das experiências igualitárias
do tal “homem novo”. Hoje estou convencido, dizia o Xandinho, que se tratava dum exercício de catarse
que consistia em provar a nós próprios que os longos anos de exílio e proscrição valeram a pena.

Á medida que o Alexandre ia debitando este discurso, o Renault ia deixando escapar por entre os dentes:

- Parvos! Parvos! Mas então a tua mulher?

- Já me tinha perdido. Estávamos a resolver os problemas burocráticos, quando o funcionário me


perguntou:

- Estado Civil?
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- Casado, respondi eu. De facto no íntimo dos meus princípios e para a sociedade que nos rodeava, nós
éramos casados mas não nos tínhamos inscrito oficialmente nesse rol.

- Nesse caso (disse-me ele), tem que apresentar a certidão, pois como casado recebe mais 21% do
ordenado se a sua mulher o acompanhar.

- Ainda me desculpei, com a burocracia em Portugal e que demorava meses a obter a tal certidão.

- Não faz mal, dizia o homem. Aqui fica casado. E logo que tenha o certificado, mande para cá para o
seu dossier ficar completo.

- Como deves imaginar, não hesitei. E nessa tarde telefonei à minha mulher a comunicar o fim do meu
estatuto de desempregado e a explicar-lhe a necessidade urgente de nos casarmos. Os tais 21% a mais, no
ordenado queriam dizer em termos portugueses, mais três ou quatro vezes o salário mínimo nacional.
Percebes, não é? Casamos por procuração, já eu estava em Kabanda. Agora ela só está á espera do diabo
da certidão e isso sim parece que demora. Agora que já sabes a história toda, vê lá que versão vais
arranjar para a contar a esses ouvidos curiosos.

Enquanto o Xandinho contava a sua vida, a Sandrinha fez duas ou três passagens de modelo,
bamboleando as ancas pelo salão. O João Paulo tinha deixado os caranguejos na mesa, e os três
precipitaram-se para eles. A Sandra tinha posto o seu vestido novo com os sapatos de salto alto e a sua
carinha gaiteira, abria-se num brando sorriso de alegria.

- Isto está óptimo. Tens um cozinheiro de fazer inveja, disse o Renault. Pediram mais cerveja.

- Ele é bom. Mas agora temos que nos despachar. A hora da sesta do Delegado está a passar, e ainda
quero passar pelo trabalho para trazer o carro.

Quando chegaram à casa do Delegado, o Renault, olhou pela primeira vez para a Sandra, com olhos de
ver e pensou para consigo: “Está de facto apresentável. Qualquer história que se conte sobre ela assenta-
lhe bem! Valeu a pena o investimento e ela iria precisar daquela mudança de visual, sobretudo se a
história do Katatúlio se concretizar”.

À entrada do salão de visitas, surgiu a Senhora Paterson, esposa do Delegado que o Xandinho
cumprimentou respeitosamente, mostrando a intenção de lhe beijar a mão. O Renault fez o resto das
apresentações:

- A D. Sandra amiga de Portugal do Dr. Alexandre!

- Não é a esposa? Perguntou a harpista.

- Não é uma vizinha minha em Lisboa de origem Kabandina que está cá a passar férias com familiares e
que vem ajudar a fazer as mudanças ao Renault e organizar as roupas no Hotel. As Senhoras têm sempre
mais jeito que os homens para fazerem essas coisas.

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Katatúlio um Homem de Estado

- Ainda bem que reconhece. Foi coisa que o meu Irlandês nunca reconheceu! Mas vão lá arrumar as
coisas. Eu fico aqui a fazer companhia ao Dr. Alexandre.

O Renault e a Sandrinha saíram.

- “É pena que o Renault se vá embora! Já nos tínhamos habituado à sua presença e ele não incomodava
nada”. A sua pronúncia inglesa era dum australiano serrado. “Toma alguma coisa”? Perguntou. “Devo
dizer-lhe que depois da sesta, não dispenso uma cerveja bem fresca. De preferência Fosters. Mas aqui não
há”!

A Fosters era uma cerveja australiana, que conjuntamente com a bandeira e o canguru constituíam os
verdadeiros símbolos nacionais.

- Pode ser, respondeu o Xandinho. Faço-lhe companhia.

A Senhora Delegada chamou o empregado, impecavelmente vestido de branco, a quem encomendou


duas cervejas em copos frescos.

Uma das coisas que distinguia as casas dos Chefes das Missões das do resto do seu pessoal era o número
de empregados, a decoração e os serviços de mesa. Nestes, abundavam as pratas e as faianças que as
centrais mandavam de empréstimo para os seus representantes como mostra da luxúria e requinte da sua
origem. A decoração, normalmente era pessoal, mas composta de quadros, gravuras ou tapeçarias
originais, normalmente compradas a metro numa galeria de moda. O mobiliário, esse também vinha dos
organismos centrais, como se as Sedes duvidassem do gosto dos seus representantes. Normalmente, vinha
um decorador de fora, pago a peso de ouro, que dispunha tudo, mesmo as peças pessoais, no milímetro
preciso onde deveriam estar. A um canto do salão de visitas estava a famosa harpa que o Xandinho foi
admirar. Se não soubesse que a Senhora Paterson era a instrumentista, poderia pensar que o objecto fazia
também parte da decoração.

- Nunca me ouviu tocar?

- Nunca tive esse prazer, respondeu o Xandinho.

- Há-de ter! Mas diga-me a sua esposa?

Apeteceu-lhe responder que não tocava harpa. Mas achou a brincadeira demasiado rude:

- Ainda há pouco, eu e o Renault estávamos a falar disso. Só está à espera da certidão de casamento para
vir. Mas a burocracia em Portugal, é deveras complicada. É certo que ela podia deixar lá alguém a tratar
disso. O pior seria depois o envio pelo correio para Kabanda e o perigo de se extraviar.

- Uma solução seria enviar de Lisboa para Bruxelas e de lá para cá vir por mala diplomática.

Não era sugestão em que o Xandinho não tivesse pensado. Mas agora já pouco tempo faltava para os
problemas estarem resolvidos. O Renault desceu com a Sandra para o salão de visitas. Estava tudo pronto.
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A Senhora Paterson chamou a sua frota de empregados para carregar as malas e ofereceu ao seu hóspede
a última bebida.

- Posso fazer-vos companhia numa cerveja.

- Se a Senhora não se importa eu preferia um gin com muita água tónica, disse a Sandra, compondo o
vestido novo e afivelando o seu ar mais chic.

- A menina é muito bonita! Disse a Delegada. Donde lhe vêm esses olhos verdes?

- Nem eu sei. Dizem que eram do meu bisavô, que era mulato.

- E casado com uma filha do Soba de Vila Estanislau. Como vê ascendência aristocrática, disse o
Xandinho.

- Mas lá na terra da minha bisavó, segundo dizem havia muita mistura: Holandeses, Belgas, Franceses,
Portugueses e se calhar muitos mais.

O empregado de dentro veio dizer que as malas já estavam arrumadas nos carros, mas ainda tinham que
fazer um pouco de mais salão para acabarem as bebidas, pensou o Renault. O Dr. Alexandre continuou a
conversa:

- Dizem que o Soba tinha muito gado!

- O meu pai é que sabe bem essa história! Quando estiveres com ele fala-lhe disso. Mas parece que os
grandes negócios que tinha com os brancos eram marfim, pedras e madeiras. Se eu pudesse ainda ia até
lá. Mas a guerra… E encolheu os ombros em conformação…

A guerra estava sempre presente em qualquer gesto ou palavra do Kabandino.

- A Senhora sabe, continuou a Sandra, a sociedade tradicional, está sempre presente nas nossas cabeças.
Mesmo eu, que saí daqui novinha e nunca fui a Vila Estanislau, sinto que pertenço a algures, que não sei
localizar, mas que é de lá que venho. Mas isso também é muito pelas mentiras que inventaram sobre
África.

- Quais mentiras? Perguntou a Harpista-Delegada.

- Que isto era tudo muito rico, antes da chegada dos brancos! Que era um paraíso e coisas assim… Então
nós ficamos a pensar, que lá na terra dos nossos antepassados ainda temos muita riqueza e tesouros
escondidos.

As bebidas tinham chegado ao fim e o Xandinho mostrou alguma pressa.

- Temos que ir, disse o Renault.

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Todos se levantaram. A Senhora Paterson pegou no braço do Dr. Alexandre e foi à frente para abrir
caminho:

- Alem de bonita é muito simpática e vê-se que tem a cabeça no sítio. Um dia destes convido-a para vir
tomar chá comigo.

“Cabeça no sítio? Só se é agora que anda a reconstruir o Mundo”. Pensou ele, ao entrar para o carro. A
Sandrinha foi com o Renault, repimpando-se no banco de trás. Deveria ser a primeira vez que andava com
“chauffeur” às ordens e lia-se vaidade no seu rosto.

Quando chegaram ao Hotel, os estafetas do hall, vieram ajudar a carregar as malas. Apesar de em
princípio se tratar duma pequena estadia, segundo ele pensava, quando vinha para África, trazia sempre
bagagens para dois ou três meses e uma malinha cheia de nada para ter espaço para as coisas que vai
comprando por esse Mundo fora para casa e para os filhos.

A Sandra encantou-se com a suite:

- Vão para o bar, disse ela. Quando isto estiver pronto vou ter convosco mas deixem-me um dos
empregados para me ajudar com as malas.

De gorjeta, deram ao moço que se foi embora um maço de tabaco e desceram para o bar. A figura
omnipresente do homem das calças pretas lá estava e o Xandinho apresentou-o ao Renault.

- Este é o meu amigo que me vem substituir aqui no Hotel.

Cumprimentaram-se os dois. O Renault encomendou cerveja para toda a gente:

- Ponha na conta do quarto 1001.

- Da Suite Presidencial? Perguntou o barman, mirando-o de alto a baixo.

- Exactamente, disse o Xandinho. E foram para uma mesa recatada. Estava a pensar não ir à Ilha.
Quando a Sandra vier, vou à “Loja Franca” comprar um filme e vou para casa ver televisão. Amanhã de
manhã pego nela, levo-a à Delegação e ela vai com o teu condutor a casa da Tia, convidá-la para jantar.
Pode ser que consigamos saber mais alguma coisa do Katatúlio.

- Acho uma boa ideia, disse o amigo.

Mal a Sandrinha chegou, partiram para a “Loja Franca”, onde o Alexandre comprou três filmes.

- Sabes que estes filmes, depois podem ser alugados e arranjas dinheiro para comprar mais? Com o
argumento de que nunca tinha visto nenhum, ela insistiu para comprarem um filme pornográfico. Gastou
o Xandinho todos os seus argumentos a explicar que aquilo era uma seca, que eram todos iguais, que
eram todos a mesma coisa, mas não a conseguiu demover.

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- Isso nem parece teu! Disse ela. Como é que eu hei-de saber o que é uma coisa diferente, se não sei o
que é uma coisa igual? Com esta lógica o Alexandre ficou desajeitado e acabou por comprar o desejado
filme.

- Se queres ver essa porcaria, fecha a porta do salão. Não quero que o empregado nos conheça esses
gostos, e quando acabar, acorda-me e põe um dos outros. O Alexandre preparou-se para fazer uma sesta
tardia no sofá e logo que o filme começou, ela também se estendeu encostado a ele.

Não demorou muito a fechar os olhos a ouvir aquela lenga-lenga das cenas pornográficas de ais e
suspiros. Antes a Sandrinha a chamar por todos os santos do que estes gemidos parvos ainda, pensou
antes de realmente adormecer.

Não sabia quanto tempo tinha passado até que a sentiu mexer. Abriu os olhos e viu-a deitada de barriga
para baixo, com os joelhos dobrados. A sua cabeça, estava à altura do peito dele, e a Sandra encostava-lhe
vagarosamente a língua e os lábios. Com a mão direita desceu-lhe os calções e com ternura agarrou-o
completamente. O Xandinho afagou-lhe o cabelo espesso. Ela passeou-lhe a língua pelo corpo, até
quedar-se a olhar o sexo, como se nunca tivesse visto nada parecido. O seu olhar ficou preso a perguntar o
que iria fazer a seguir. Beijou-o como se recusasse. Mas acabou por encostar-lhe os lábios e mergulha-lo
na boca morna.

- “Deve estar a reconstruir o Mundo. Daqui a pouco sou eu que estou a chamar pelos santos todos”!
Pensou o Alexandre sem recusas.

A mão dela movimentava-se também e ele acabou por achar muito egoísta aquela situação. Devagar
afastou-lhe a cabeça. Foi certificar-se que a porta do salão estava fechada e quando regressou ao sofá,
deitou-se com a cabeça voltada para os pés dela, começando a retribuir carícias. Sentiu as pernas dela a
tremerem e a apertarem-lhe a cara. As suas mãos, agora, vagabundeavam pelo seu corpo todo. Ficaram
assim quedos a saborearem aquele momento de prazer mútuo. Ele levantou-se sem pressas e levou o resto
da cerveja à boca. Ela insistia em apertá-lo na mão e em movimentá-la de vagar. A Sandrinha ajoelhou-se
junto ao sofá e afastando-lhe as pernas, afincou-lhe de novo os lábios. O Xandinho afagava-lhe a cabeça e
a saborear o fresco da cerveja, não começou a gritar pelos santos do mundo, mas começou a sentir o céu
muito perto.

A Sandra levantou-se par ir abrir a porta do salão. Pediu ao João Paulo mais duas cervejas, foi pôr outro
filme e sentou-se de novo no sofá com o robe entreaberto.

- Gostaste? Perguntou-lhe.

- Muito disse o Alexandre.

- Acreditas que é a primeira vez que faço isto até ao fim? Sempre tive uma certa relutância em engolir.

O filme começou e eles calaram-se. Já com o dia a cair, o empregado veio dizer que ia deixar carnes
frias preparadas no frigorífico, para comerem quando quisessem. O Xandinho foi ao quarto buscar um

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despertador que pôs para as vinte e uma horas. Não queria perder pitada das notícias e continuou a beber
cerveja.

- Sandrinha! Não queres fazer um “charro”? Ela fez uma pausa no filme e foi à cozinha buscar o frasco
das mezinhas.

Às 21 horas, as notícias insistiam na remodelação, nos mesmos termos do que a narraram durante a
manhã. Mas desta vez acrescentavam outros dados novos: Juntavam ao apelido de Katatúlio, o nome de
Simiano. Davam como certa a tomada de posse do novo elenco governativo, para o dia seguinte de
manhã, no palácio do Camarada Presidente e anunciavam para a parte da tarde a presença nos novos
Membros do governo nos respectivos Ministérios para se apresentarem aos funcionários e receberem
cumprimentos das populações agradecidas.

- Nada disto joga! Disse o Xandinho à Sandra. Agora o teu tio Victor já se chama Simiano e continuam a
apelida-lo de ilustre académico. É como se ele fosse o cunho intelectual do novo governo, mas o que é
certo é que ninguém o conhece, e das duas uma: Ou não se trata do teu tio, ou ele deu uma volta de
trezentos e sessenta graus desde a Independência.

- Acho muito estranho! Disse a Sandrinha, sobretudo porque já se sabe em Lisboa.

- Amanhã quando acordarmos, vais comigo até à Delegação. Pegas no carro do Renault e vais com o
condutor convidar a tua tia para jantar, talvez ela tenha mais alguma coisa a juntar a toda esta história.
Depois, à tarde vais para o Ministério do plano com o resto da população e tentas por todos os meios falar
com o tal de Katatúlio. Arranja-te como quiseres. Convence a segurança que és sobrinha dele, mente, diz-
lhes que nunca mais o viste desde que foste ferida na frente de combate e que vieste de propósito de
Lisboa para a posse dele. Faz o que quiseres! Deixa-lhe uma carta com este número de telefone, mas é do
teu e do meu interesse, saber se ele é ou não o teu tio.

Os dois foram à cozinha e lá mesmo mastigaram as carnes frias. O ambiente entre os dois estava pesado;
ficaram com um ar macambúzio a meditarem na situação.

- Afinal, não tenho culpa nenhuma disto, pensava a Sandrinha, mas vai dar-me um certo prazer passear
por Kabanda com condutor e viatura diplomática. Se ele me der algum dinheiro ainda sou capaz de ir ao
bar da “Loja Franca” tomar qualquer coisa, ou mesmo à Ilha dar um mergulho”!

Não trocaram mais nenhuma palavra; quando acabaram de comer o Xandinho despediu-se a dizer:

- Se dormires comigo, não te esqueças de desfazer primeiro a cama do quarto de hóspedes.

A Sandra ainda ficou a acabar de ver um filme ou a deleitar-se de novo com a pornografia. O Alexandre,
naquele momento não queria saber de mais nada. As cannábis e a cerveja fizeram-no dormir um sono
inteiro.

No dia seguinte, quando chegou à Delegação o Renault e o Delegado estavam em amena cavaqueira.
Depois de os cumprimentar, o Xandinho atabalhoou-se:
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- A Sandrinha está lá em baixo.

- Sandrinha? Temos mosca na sopa ou pirata na costa! Exclamou Sir Paterson. A minha mulher já me
tinha dito qualquer coisa.

- Não é o que está a pensar, disse ele, tentando vender a versão da amiga de Lisboa, que encontrou por
acaso em Kabanda, mas já era tarde e ali mesmo decidiu contar ao “velho” a verdade toda. Falou-lhe do
Katatúlio e contou-lhe as partes da vida da Sandra menos escabrosas.

- Isso é importante, disse o Delegado. Até que enfim aparece alguém com notícias possíveis do homem
mistério do novo governo. Vão tratar disso! Pelo que dizem é uma pista que vale a pena percorrer.

- Mas pode ser tudo falso, atalhou o Renault!

- Pode! Mas também pode ser tudo verdade! Não digam nada a ninguém e vão lá tratar disso.

Os dois saíram e combinaram ir para casa do Xandinho, enquanto a Sandra iria com o condutor a casa da
Tia Albina.

- E se eu me demoro? Perguntou. Onde é que o chaffeur almoça?

- Leva 20 USD, mas faz o possível por vires almoçar a casa com a tua tia, para à tarde ires para o
Ministério do Plano.

Quando chegaram a casa, o João Paulo ficou surpreso por ver o Renault e foi a correr à mesa de centro
do salão buscar o frasco das mezinhas que a Sandra lá tinha deixado durante a noite.

- Não deixe isto aqui, Patrão! Disse do alto da sua cabeleira branca. Vou dizer à menina para ter mais
cuidado com estas coisas! À pressa limpou os cinzeiros e a mesa.

- O que é que podes arranjar para almoçar?

- Para quantos?

- Para quatro! Lembraste da Tia Albina? Vem cá almoçar com a menina.

- Não sei se ela me vai reconhecer. Mas o melhor é fazer de conta que nunca nos vimos e evitar
conversas. Faço as lagostas de entrada e a seguir bifes com tempero.

O Renault riu-se das lagostas. Dava a impressão que era o prato nacional.

- Se calhar vamos ter um jantar de cerimónia e esta tarde ou amanhã de manhã vou ter que ir com a
menina às compras.

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O João Paulo não gostou da ideia da Sandrinha ir com eles às compras. Quando foram a primeira vez à
“Loja Franca” sobraram para ele um punhado de dólares, em troca dos seus sábios conselhos e agora
temia que as sobras fossem para ela.

- A menina vai ficar a viver aqui com o Sôtor? Perguntou com uma ponta de ciúmes que acordaram os
seus temores.

- Nem penses, respondeu o Xandinho. A dona da casa, deve estar a chegar. Ouviste falar dos novos
ministros?

- Ouvi falar dum tal Katatúlio que ninguém sabe quem é. Mas é nome de tradição da terra da minha
mulher.

Os olhos dos dois brilharam com uma reprimida esperança. O Renault, telefonou para o Delegado, que
lhe perguntou se havia novidades.

- Disse alguma coisa de importante? Perguntou o Xande.

- Sabe tanto como nós, se é que não sabemos mais. Mas disse-me que era preciso tomar uma decisão
sobre a Sitila e o Calibe. Nem parece dele! O governo está ainda mais paralisado e desta vez não é por
causa da guerra. A ela soma-se a incapacidade do governo! Não sabemos quem é o novo Ordenador
Nacional e ele quer tomar decisões! Para mim o que é de facto urgente é conhecer o homem e saber que
ideias ele tem. Afinal ele quer negociar com quem? Com a D. Cesária que segundo o Governador da Sitila
também está de saída?

O telefone tocou e os dois ficaram paralisados. Seria que a Sandra tinha conseguido falar com o
Katatúlio? Seria que ela lhe deu aquele número de telefone e era o próprio Ministro? Seria de novo o
Delegado que teria puxado alguns cordéis e tinha novidades? O telefone continuou a tocar e o Xandinho
pediu ao João Paulo para atender.

Bem treinado pelo tal brigadeiro levantou o auscultador:

- Está a telefonar para casa do Dr. Alexandre. Deseja alguma coisa?

- Tens secretário, disse o Renault, com ar gozão.

Do outro lado, soou a voz feminina da Sandra.

- É a menina:

Atendeu o telefone:

- Não imaginas o que já andamos hoje. Estou aqui no Hotel com a Tia Albina!

- No Hotel?
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ou
Katatúlio um Homem de Estado

- Sim! Quis dar-te a notícia o mais rapidamente possível e como sabes na cidade não há telefones
privados a não ser para os estrangeiros como tu. A Tia está comigo e diz que só pode ser ele. O nome de
Simiano vem da parte do meu avô que era pastor duma igreja protestante. Mas quanto aos dotes
académicos não sabe nada. Deve ser qualquer coisa que se tenha passado depois da Independência

- Essa notícia merece uma prenda. Toma o que quiseres aí no Hotel e põe na conta da suite 1001. Se
tiverem dúvidas que me telefonem!

O Renault fez cara de zangado.

- Entretanto já fomos ao Plano, continuou ela. Deixamos-lhe uma carta assinada por mim e pela Tia.
Vamos já para aí.

Desligou o telefone e o Xandinho contou ao Renault o teor do telefonema.

- Vem também o condutor deste senhor, mas come contigo e com o Jorge. As coisas parecem que se
estão a compor. Põe uma mesa bonita, disse ao João Paulo e foram os dois até ao jardim onde a Riqueta
brincava com a mãe. O Jorge apareceu e informou o Xandinho que já tinham ido pôr a campainha na
árvore:

- Vieram esta manhã logo que o Patrão saiu, pôr isto. Eram uns senhores brancos.

“Se calhar, ainda vêm esta tarde pôr as luzes! Pensou para consigo experimentando a campainha”. O
João Paulo apareceu e o Xandinho pediu dois gins com água tónica. Foram os dois sentar-se nos divãs do
jardim. Não havia mais nada a fazer se não esperarem e ficaram silenciosos a entalarem nas mãos o
gelado dos copos.

Perante os pais embevecidos, o Xandinho deitou-se no chão a brincar com o bebé.

- Tem comido? Vejam lá! Se precisarem de alguma coisa para ela digam. E dêem-lhe só água fervida.

A oferta não caiu em saco roto.

- Ainda tem papa, mas está a acabar.

- Cinco dólares chegam? Perguntou o Renault, dando-lhes o dinheiro. A campainha tocou e o Jorge
ensaiou uma corrida tímida para o portão.

- Era tão bom que o Patrão quisesse ser o padrinho, disse a Isaura. Ainda acabava por ir estudar para
Lisboa, avançou-se.

- Quando a Senhora vier, falamos disso.

A Sandrinha e a Tia assomaram ao fundo do jardim. O Renault levantou-se e o Alexandre fez as


apresentações necessárias. Sentaram-se todos nos divãs.
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Sexo, Drogas e Diplomacia
ou
Katatúlio um Homem de Estado

- Bebem alguma coisa? Perguntou.

- No Hotel, tomamos um gin com água tónica. Podemos continuar, disse a Tia Albina. Só pode ser ele.
Não percebo é donde lhe vem as coisas de Professor nem a razão de tantos segredos. Mas que vou gostar
de o ver, vou! Já lá vão doze ou treze anos, disse a recordar o passado. Talvez ele tenha notícias do
Márito.

- Quem é o Márito? Perguntou o Xandinho.

- Ela não gosta de falar disso, cortou a Sandra. Mas é o filho deles!

Os olhos da D. Albina humedeceram: - Desapareceu daqui das ruas de Kabanda, logo depois desta
Independência. Mais tarde falaremos disso. Depois de almoço vamos ao Plano fazer-lhe uma espera. Não
gostava que ele visse onde vivo, naquela casa de adobe. Posso convidá-lo a vir cá jantar?

- Claro que sim, antecipou-se o Renault!

O Xandinho, não estava assim tão entusiasta: “Caiu-me a sobrinha e agora cai-me a tia, pensou. Daqui a
pouco cai-me o Ministro também”!!!

A D. Albina não deixava a sua presença por mãos alheias. Gasta dos tempos que passaram por ela, devia
rondar os quarenta e poucos anos, mas ainda era bonita. Trazia um vestido aprumado que lhe realçava as
formas, mas um bocado coçado e fora de moda.

- No dia do jantar, disse ela, reparando que lhe estavam a olhar para a roupa. Vou vestir uns panos,
sapato de salto alto e um turbante. Tenho um colar e uns brincos de libras antigas que também vou usar,
mas só os ponho no carro. Onde eu moro, chamam-lhe o Bairro dos Mãos Leves, se me vêm com aquilo,
desaparece num instante.

- Se calhar ainda casam outra vez… Disse o Renault.

- É difícil! Aquilo que ele me fez! Deixar-me sozinha em Lisboa e abalar não sei para onde sem nunca
mais dar notícias. Valeu-me a minha irmã e o meu cunhado que arranjaram dinheiro para as passagens de
volta e nunca mais lhes paguei. Dizia, e eu tinha ido com ele. Desculpe mas eu não gostava daquela vida
de Lisboa.

- Pode ser que tenha ido para a frente de combate!

- Diz-me o coração que não foi. Mas eu ia com ele. Aqui em Kabanda as mulheres vão para a guerra,
disse com laivos de patriotismo. Primeiro, tinha perdido o Márito e depois ele… É muito, em tão pouco
tempo!

Desta vez, pela cara da Sandra e da Tia Albina duas lágrimas suculentas escorregavam.

- Deixemos isso, disse o Xandinho. E eu tenho muito prazer que o reencontro seja aqui em casa.
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- Não seja assim bondoso. Olhe que ninguém lhe agradece e muito menos estas galdérias de agora.
Apontou para a sobrinha. Querem é baile!

O Renault tinha ido buscar dois lenços de papel. Também estava comovido: - Este gin puxa ao
sentimento, mas está no fim, murmurou sarcástico.

O Alexandre pegou nos copos e foi à cozinha servi-los. Também queria ver em que ponto estava o
almoço.

- Arranja outras tantas bebidas, enquanto eu vou ao quarto de banho. Chamou a Sandrinha que veio a
correr: Não queres fazer uma maconha no meu quarto. O almoço está quase pronto.

A Sandra tratou desse assunto. Depois de sair da casa de banho. A Sandra já fumava, encosta a uma
janela. O Xandinho aproximou-se dela e lembrando-se das lágrimas: Puxou-a contra si e pôs-lhe os lábios
em cada uma das pálpebras. “Há olhos que não mereciam chorar”!

- Deixa-me, disse ela. Ou queres dar bandeira, com a Tia e o teu amigo cá em casa?

O Alexandre tirou duas passas à pressa:

- Podes fazer outra e deixá-la no cinzeiro do quarto. Vou chamar o meu amigo.

Quando chegou ao jardim o João Paulo já tinha servido as bebidas e no melhor francês disse ao Renault
para ir ao quarto dele.

- De que nacionalidade é? Perguntou a Tia Albina logo que ele voltou costas.

- Francesa!

- Nota-se pelo falar. Mas é muito simpático também!

- Quer dizer que eu também sou? Perguntou o Xandinho.

- E é! Pelo menos a minha sobrinha gosta muito de si. E olhe que ela não vai com um qualquer.

O Alexandre corou. “Será que a Sandrinha lhe contou das suas aventuras”? Mesmo que não tivesse, ela
era uma mulher vivida e com certeza não ia pensar que iam passar as noites em que ela dormia fora, a
fazer croché. No salão onde já estavam o Renault e a Sandra todos elogiaram o gosto da mesa, onde as
lagostas já assentavam arraias enfeitadas com rodelas de tomates, acompanhadas de um molho espesso
feito do resto das suas cabeças, tudo bem misturado com conhaque e gindungo. Sentaram-se.

- Até dá pena estragar esta beleza. O Katatúlio, precisava era dum empregado destes para mostrar aos
brancos que em Kabanda também há quem saiba, disse a Tia Albina. O Renault trocou com o Xandinho
um olhar de cumplicidade e debruçaram-se sobre a lagosta. Como conheceu o Ministro?

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Katatúlio um Homem de Estado

Ela esperava a pergunta e começou a narrativa: - O tio, ajudante de camionista, muito antes da
Independência, tinha morrido algures no Norte duma doença misteriosa, que era guardada como um
segredo de família. Tinham tentado tudo para o salvar, mas nem o feitiço foi capaz. Os brancos ainda
tentaram com um tratamento através da uretra que o fazia berrar como um leão amaldiçoado até que
morreu com o corpo coberto de feridas, mas tudo foi em vão. Já era muito velho. O Katatúlio, ou seja o
Victor, que ainda era aparentado com a viúva, começou a frequentar a casa do falecido no Bairro das
Cassulas, por causa do pai da Sandra de quem era colega na fábrica das cervejas. Foi num bailarico do
Bairro que acabaram por se conhecer. E daí nasceu um aconchego para nós dois, terminou a Tia Albina.

“A cerimónia no Palácio da Presidência deve estar a terminar e temos que nos apressar, para ganhar um
lugar na primeira fila no Ministério”. Disse a Sandrinha.

- “Não fora a Política e a Independência que nos separara e ainda hoje estaríamos juntos”, continuou a
Tia Albina.

O João Paulo tinha acabado de servir os bifes, elas atiraram-se a eles, como se não tivessem comido as
lagostas. O Renault chamou o condutor:

- Daqui a pouco vais levar as Senhoras ao Ministério do Plano, e tenta aproximar-te o mais possível da
porta principal. Pode ser que os militares ao verem uma matrícula diplomática, pensem que é algum
Embaixador que vai assistir aos cumprimentos do Ministro e te deixem passar com facilidade. Mas não
tires os olhos delas e não me apareças aqui sozinho.

- Está certo, Patrão!

- Se conseguir falar com ele, posso convidá-lo para jantar cá amanhã? Perguntou a Tia Albina.

- Claro que pode! Respondeu o Renault provocador.

Quando acabaram comer, saíram os três. O Renault e o Xandinho foram para o jardim com o frasco das
mezinhas e prepararam-se para uma longa espera estendidos nos divãs. O Alexandre aproveitou para
experimentar a aparelhagem pequena que tinha comprado na “Loja Franca”, sintonizando a Rádio
Nacional para ouvirem as notícias.

- Será que o João Paulo reconheceu a D. Albina? Perguntou ainda o Renault.

No jardim, os cigarros sucediam-se uns atrás dos outros e a ansiedade só era disfarçada a golpes de
cerveja. Já passava das seis e a tarde chegava ao fim, quando na rua um carro buzinou. O Jorge saiu de
sua casa do outro lado das sebes do fundo do jardim imitando sinais de pressa e foi abrir os portões.
Vinham radiantes:

- O Katatúlio é o Victor! Dizia a Tia Albina.

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- O Tio havia de ver o beijo que trocaram no gabinete dele. Foi um beijo de muita saudade e tempo
perdido. Em cima da sua secretária estava um ramalhete de flores vermelhas que ele arrancou para pôr ao
peito da Tia Albina. E apontou para ela.

- Estas flores não me cabem na alma. Ele deixou toda a gente, fechou o gabinete e ficamos ali uns bons
minutos a falarmos. Depois, o dever chamou-o e ele teve que lhe ir abrir a porta.

- A mim também me conheceu logo e esteve abraçado a mim muito tempo! Disse a Sandra.

- Foi difícil, chegar até ele? Perguntou o Renault.

- Não! Respondeu a Tia Albina. Estava muita gente do partido, da Organização Democrática das
Mulheres e até dos Pioneiros.

- Pioneiros? Perguntou o Renault, em dificuldades de língua.

- Sim! Aqueles miúdos que ainda não têm idade para pertencerem aos Jotas.

- Jotas? Tornou a perguntar.

- Sim as Juventudes dos partidos! Respondeu o Xandinho já meio agastado com as interrupções do
amigo. “Este tipo, nunca mais vai perceber a diferença entre Jotas e Pioneiros”. Pensou ele. Mas
continuem.

- Pois! Estava muita gente, mas o condutor fez milagres. Rompeu pelo meio das massas e dos militares,
mostrando a matrícula diplomática e foram os próprios soldados a darem-nos escolta. Nós duas íamos
muito repimpadas no banco de trás feitas “madames” e ele deixou-nos mesmo na escadaria principal,
isoladas do resto das gentes. Nunca me tinha visto numa coisa assim. Ele chegou num carro da
Presidência e conheceu-nos logo. Quase que correu para nós. Foi ali o primeiro abraço e as primeiras
lágrimas que ainda agora as sinto. Ai Senhor Alexandre! Estou-lhe muito “agardecido" de me dar este
momento para viver”.

- Agradecido, Tia! Agradecido! Agora tem que olhar a maneira como fala.

- Isso! “Agardecido”, insistiu. Mas nós não bebemos nada? Perguntou a D. Albina. O Xandinho tocou à
campainha para chamar o João Paulo. Falaram da Universidade e dos estudos, perguntou.

- Falamos muito por alto. Mas ele amanhã vem cá jantar. Foi lá na União Soviética por onde andou,
disse a Sandra. Estou morta que chegue amanhã! Eu bem disse que te podia ajudar!

As flores vermelhas à entrada do decote largo rejuvenesciam-lhe os seios quarentões. Quando o


empregado chegou, pediram dois whiskies bem aviados com muito gelo, e a Tia Albina sacou da carteira
um embrulho em jornal que pôs em cima da mesa: Eram amendoins. Quando o João Paulo chegou com as
bebidas. Os lábios grossos da Tia Albina, ornamentados com um baton vermelho carregado, sorveram o
whisky, como uma bebida almejada que há muito tempo não lhe escorria pelo goto. Bateu ruidosamente
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com o fundo do copo na mesa e pediu em voz alta: Outro! Desta vez não foi preciso tocar à campainha.
Ela própria se levantou e foi a casa servir-se.

A Sandrinha abriu as pernas num gesto simples de mostrar as coxas e refastelando-se no divã, estendeu
as tíbias no lugar vago que a tia deixou. Quando ela voltou, trazia o copo quase cheio de whisky simples.

- Tenha cuidado com a bebida, Tia. Disse a Sandra mais comedida. Não a quero ver aqui a vomitar como
fez há dias lá em casa.

- Não faz mal! Hoje é dia de festa e o Sr. Alexandre não se importa. Esperei anos por este dia, com o
peito tão apertado que ninguém sabe! Amanhã ele vem cá jantar, disse como se vivesse um sonho. Se o
Senhor Alexandre não se importar, vou-lhe fazer uma caldeirada de cabrito picante com funge que ele
adora. A entrada pode ser uma coisa qualquer que o João Paulo saiba fazer. Nós aqui não ligamos muito a
isso. Mas ele agora é gente fina e se calhar aprendeu dessas modas por onde andou. Mas temos que ir ao
Hotel do partido buscá-lo. É onde ele está hospedado. Ainda não tem casa nem carro. Chegou há três dias
e parece que o antigo Ministro levou o carro do emprego para casa e ainda não o trouxe. O João Paulo
aproximou-se para perguntar se as Senhoras jantavam.

- Não disse a Tia Albina. Eu não! A menina pode ficar. Mas se o Sr. Doutor me der dinheiro eu tenho que
ir a casa comprar o cabrito. E depois, há lá uma galdéria que para estas coisas me empresta sempre umas
roupitas especiais.

- Oh Tia! Não fale assim da D. Maria!

- Não? Eu é que sei o que digo! A menina não se meta nestas coisas que é muito novinha.

Com a excitação, o verniz da Albina tinha estalado irremediavelmente. O Xandinho deu instruções ao
João Paulo:

- Amanhã, quem vem fazer o jantar é aqui a Dona. Mas traz o cabrito e tem que vir cedo. A D. Irritação
que esteja cedo também porque pode ser precisa.

- Sim Patrão! Aquiesceu o empregado, quase em sentido, como aprendera com o brigadeiro.

Tudo se preparava para parecer uma boda e de facto era o reencontro dum casal separado por guerras
antigas. O Alexandre começou a imaginar o seu Peugeot novo, com um cabrito feito diplomata sentado no
banco de trás, a soltar més-més aos passantes e ele feito condutor do ilustre passageiro. Arrepiou com a
ideia e disse ao Renault:

- O teu condutor pode levar a Tia Albina a casa para saber onde é e amanhã vai lá buscá-la.

O Renault não gostou muito da ideia, mas acabou por concordar:

- Vou telefonar para casa do Delegado para lhe dar a boa nova! Ele vai gostar de saber.

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- Tia, disse a Sandrinha! O condutor que me traga o conjunto jeans que o Xande me comprou na “Loja
Franca”. Vou estreá-lo amanhã. Estes sapatos de salto alto vão ficar bem com ele.

A Tia Albina ainda ficou mais um bocado a acabar o balde de whisky que tinha servido mas a seguir
partiu.

Nessa noite, fosse porque a época das chuvas tivesse terminado, fosse para tirar o brilho às
manifestações populares que tinham tido lugar durante a tarde referentes à tomada de posse dos novos
Ministros, as principais cidades do país, foram vítimas dum ataque cerrado por parte da guerrilha.

A vinte e poucos quilómetros da Capital, tinha caído uma chuva de róquetes que se ouviu na casa do
Xandinho.

A Sandrinha que o tinha avisado de naquele dia não queria nem cheirar homem, veio aconchegar os
medos na cama do Alexandre. Pela primeira vez ele subiu ao terraço da casa para poder observar a cidade
do ponto mais alto que aquela hora lhe era possível atingir:

Dos bairros periféricos, saíam rajadas de metralhadora que riscavam o céu negro com balas tracejantes.
É certo que um mês antes tinha começado uma grande ofensiva por parte das tropas regulares no sul do
país, com aquilo que alguns observadores internacionais, consideravam as colunas de guerra mais bem
montadas que tinham visto. Este ataque podia ser agora uma retaliação. A ofensiva ao Quartel-General da
guerrilha em Vila Estanislau, tinha abortado, segundo se constava, por falta de apoio logístico dos aliados
do regime. Mas o que é certo é que a ofensiva tinha obrigado o Líder rebelde a uma interrupção forçada
da visita que tinha iniciado a França, onde tinha sido recebido com honras de Chefe de Estado e ditado o
seu regresso ao teatro de operações.

O Xandinho desceu ao salão por volta das vinte e três e trinta, quando o Delegado telefonou a chamar
todos os seus conselheiro para uma reunião de emergência. Quando se dirigia para o centro da cidade,
pode observar bandos de pessoas com ar desgarrado que vagueavam pelas ruas a emitirem gemidos mal
contidos. Saiu da rua principal para se aperceber mais detalhadamente dos movimentos das pessoas com o
objectivo de recolher o maior número de informações possível e apercebeu-se que estas almas penadas
vinham sobretudo dos arredores em busca de refúgio no centro da Capital. Na noite, distinguia mulheres,
velhos, crianças e alguns homens empurrando carros atulhados de comida vindos da “Loja Franca”, que
obviamente tinha sido vandalizada. Algumas destas sombras, vagueavam para trás e para a frente por não
terem encontrado destino.

O Xandinho sintonizou a rádio na esperança de ouvir algumas notícias, mas esta limitava-se a repetir
elogios ao brilho da cerimónia de posse dos Ministros que tinha tido lugar naquela manhã e durante a
tarde.

No dia seguinte, a ausência de versão oficial sobre os acontecimentos, dava origem à mais dispare e
contraditória rede de boatos e rumores.

Alguns militares, acolitados por elementos das forças armadas tentaram ainda impedir a marcha da sua
viatura, mas ele escapou ao possível linchamento acelerando o máximo que lhe foi possível. Sentiu que
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tinha batido em alguma coisa mole, ou possivelmente numa pessoa, mas continuou viagem deixando para
trás uma massa humana que tinha surgido nem ele sabia donde. Duas ou três balas vadias bateram-lhe no
tejadilho do carro. Era o seu primeiro contacto real com a guerra e teve medo.

- “Se aquela gente, tinha surgido não sabia donde, as bermas da estrada devem estar pejadas”! Pensou. E
conforme lhe tinham ensinado, decidiu pedir refúgio no quartel mais próximo. Não devia parar nem para
socorrer possíveis vítimas, nem para raciocinar melhor.

Quando chegou à porta de armas, meia dúzia de soldados cercaram-lhe o carro de arma apontada.

- “Vou de mal a pior”! Disse em voz alta.

- É um diplomata! Alguém mais avisado, levantou a voz. Era um graduado.

Abriu o vidro do carro e esbaforido gritou:

- Levem-me ao General!

- Não está cá nenhum General, disse a mesma voz. Estou eu que sou o oficial de dia.

Mais calmo o Xandinho pensou: “Que ideia a minha de querer falar com um general, quando sei que os
generais nunca estão nos quartéis”! – Desculpe mas não vejo a sua patente.

- Está tapada com adesivo, mas sou Major.

- Senhor Major, fui atacado por populares e soldados quando me deslocava em serviço para a Missão a
que pertenço, disse com um ar grave. Preciso de entrar imediatamente e contactar pelo telefone com os
meus superiores.

- É a guerra… Acalme-se! Na frente vivemos isto, todos os dias. Venha telefonar do meu gabinete.

Meteu-se no carro e seguiram os dois por uma longa rua de terra batida dentro do quartel:

-É aqui, disse o Major. E ainda dentro do carro explicou-lhe que se ele omitisse ao telefone que entre as
pessoas que o atacaram, também estavam soldados, prometia-lhe escolta militar blindada para o levar ao
seu destino.

O Major saiu da viatura e começou a observar o tejadilho. Deteve-se numas marcas na pintura branca e
observou clinicamente:

- Isto são balas! Depois, deu duas voltas e apalpou uma mossa suja no guarda-lama, sentenciando frio
como uma pedra:

- É uma chatice. Atropelou alguém. Isto é sangue, disse cheirando os dedos.

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A ideia apavorou o Xandinho.

- É uma chatice! Continuou o oficial de dia. Omita que há soldados metidos nisto, damos-lhe escolta
blindada e esquecemos. Caso contrário tenho que levantar um auto de ocorrência e arrisca-se a passar
aqui a noite.

O gabinete do homem tinha um aspecto sujo e espartano. Uma mesa e três cadeiras gingonas constituíam
todo o seu mobiliário. Alguns papéis pardos, uma almofada de tinta e um carimbo, repousavam talvez há
dias em cima da mesa. Duas Kalashenikoves, aparentemente inofensivas e fanadas de outras guerras,
repousavam a um canto da saleta. O Major apontou-lhe o telefone. Antes de fazer o desejado telefonema o
Xandinho perguntou-lhe:

- Onde estou?

- Caçadores 128. Respondeu-lhe o soldado, com uma forte pronúncia Kabandina.

O Alexandre procurou no seu corpo alguma compostura e discou o número. Atendeu-lhe directamente o
Delegado.

- Estávamos em cuidados consigo! Onde está?

- Pedi protecção a Caçadores 128. Fui atacado por civis, quando me dirigia para a Delegação.

O Major suspirou descansado e ele continuou:

- Acho que atropelei alguém, mas o oficial de dia do Batalhão, já me prometeu protecção blindada para
ir até aí.

- Não se preocupe, respondeu-lhe o Delegado. Não é nada de urgente e eu amanhã vou a sua casa. O
Renault já me disse que iam ter um dia muito ocupado. Peça ao oficial de dia o nome e o posto para
mencionar os seus serviços nos protestos que vou elaborar para o Ministro dos Negócios Estrangeiros.
Peça-lhe também protecção para sua casa esta noite. Sempre dorme em mais sossego.

Ali estava ele, depois de possivelmente ter atropelado alguma criança e correndo o risco de ser linchado,
a receber a notícia que tudo aquilo fora por qualquer coisa sem importância e sem urgência! Quando
pousou o telefone, contou ao Major o teor da conversa com o Delegado e pediu-lhe a identificação militar.
Por momentos sentiu-o vaidoso da farda e a imaginar algum louvor ganho com gentileza na retaguarda de
combate. Assegurou-lhe para essa noite, protecção blindada à porta de casa.

Para o Xandinho, isto era aparato demais para a sua modéstia. Quando perto da meia-noite o Xandinho
foi chamado de urgência à Delegação, pensara que finalmente a Comunidade Internacional se movia para
encontrar um fim para aquela guerra. Afinal era coisa que poderia esperar para o dia seguinte.

Segundo o Major, pelo menos seis cidades de Kabanda tinham sido seriamente bombardeadas com
obuses, ignorando-se o número de vítimas. Contudo sabia que na Vila Estanislau os deslocados que
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abandonaram a cidade contavam-se por centenas e rumavam para parte nenhuma, sem eira nem beira,
procurando refúgio no mato. Quanto aos mortos, como de costume, também não havia números. Mas pela
força do fogo perto da Capital, podia imaginar-se que as baixas fossem elevadas. Para o Mundo porém,
esta guerra continuava esquecida e fora dos roteiros da Paz. Fossem os mortos GIs dos EUA ou soldados
da ONU a caírem dia após dia, e as partes já se teriam sentado debaixo dum embondeiro, à mesa de
negociações. Infelizmente eram negros que tombavam numa África longínqua.

A pequena coluna militar chegou a casa e o Jorge veio ao portão assustado. Mas quando o Comandante
da força se perfilou em posição de sentido, à passagem do Xandinho respirou fundo, descansou.

Já dentro, a Sandrinha-Corpo-de-Ébano, nua da cinta para cima, surgiu no salão e perguntou:

- Onde foste?

- Desci aos infernos! Respondeu o Xandinho a pensar na criança que possivelmente teria atropelado.

No dia seguinte, acordou com o João Paulo, a bater-lhe à porta do quarto. Estremunhado apalpou o lugar
da cama ao lado do seu. A Sandrinha já tinha ido para o quarto dos hóspedes.

- Entra!

- Está lá fora um senhor que diz que é Delegado.

Olhou para o relógio. Eram já 10 horas. Lembrou-se ainda das suas atribulações da noite anterior, da
possível criança atropelada e ficou a remoer remorsos injustificados.

- É o Senhor Embaixador! Manda entrar e diz que já vou.

- Se é Embaixador é Vossa Excelência disse o João Paulo conhecedor de protocolos.

- Se calhar é, mas manda entrar! Diz que eu vou tomar banho e já vou. Pergunta se Sua Excelência quer
um café. Se houver umas bolachinhas serve-lhe.

- Há daquelas que eu costumo fazer…

- Isso dá-lhe dessas sem lhe perguntar nada.

O Xandinho levantou-se à pressa e enfiou-se no quarto de banho para tomar rapidamente um duche.
Vestiu-se de forma atabalhoada. Quando passou pelo quarto da Sandra avisou-a que tinha visitas e pediu-
lhe para não sair. Chegou ao salão ia em chinelos e cumprimentou respeitosamente o Delegado.

- Que empregado educado você tem.

- Foi a D. Helena que o arranjou. Toda a gente me diz isso.

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- E as bolachas que faz são uma delícia. Parece que têm gengibre. Foi directo ao assunto: Ontem à noite,
tive uma longa conversa com o Renault. Parece que vocês hoje vão conhecer o famoso Katatúlio.

- Como está a cidade? Cortou o Alexandre ainda traumatizado pela noite anterior.

- Está calma! Parece que nada se passou. Dos tumultos de ontem não há um único vestígio, excepto
nalguns bairros que estão sem luz. Eu desde ontem que tenho o gerador a funcionar. Trataram-no bem no
quartel?

- Trataram. Só me pediram para não mencionar que foram militares que me alvejaram.

- Mas foram militares? Então talvez seja melhor não se falar disso.

- Continua a ser uma guerra terrível mas escondida, não é Senhor Delegado? É melhor fechar os olhos e
a consciência.

- E dê graças a Deus por estar vivo. Não se esqueça que estive na Somália e não queira ver o que eu já
vi!

- Mas na Somália eram americanos e a BBC viu. Aqui, os que vêm fecham os olhos. Basta limpar as
estradas e o assunto está arrumado.

- O carro sofreu alguma coisa?

- Acho que sim, mas eu ainda não tive coragem de ir ver.

Levantaram-se os dois e foram à garagem.

- Isto são marcas de balas calibre de guerra. Teve sorte, disse o Delegado. E aqui é sangue. Você
atropelou alguém!

- Senti que bati nalguma coisa mole, mas não vi. Se calhar foi uma criança.

- Não pense mais nisso. A água limpa tudo. Mande lavar o carro. Quando não precisar dele, põe-se a
pintar e a desamolgar o guarda-lama. Agora tem que se concentrar no Ministro. O Renault foi hoje com o
condutor buscar a tal D. Albina e o cabrito. Ainda me lembrei de vir jantar convosco, mas seria oficializar
muito a coisa. Sem mim ele estará mais à-vontade. Tratem de saber o que é que o governo pensa fazer das
suas relações com a Comunidade.

- Acho que ainda é muito cedo para ele saber alguma coisa.

- Mas pensa que o Presidente e o partido já não têm conhecimento que ele vem cá jantar? Acha que ele
não tem instruções precisas para saber o que lhe há-de dizer? Segundo os outros Chefes de Missão o
encontro dele com a ex-mulher no Ministério do Plano foi muito óbvio e não me admira que façam dela
uma heroína da OMK (Organização da Mulher Kabandina). Tem todos os ingredientes para isso: Fugida
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das calamidades da guerra em 75, perde o filho e o companheiro. No regresso dele, está fiel no seu posto
de esposa para saudar o marido nas altas funções que vai assumir. Claro que no meio disto ninguém vai
contar a história do cabrito a atravessar a cidade com condutor num carro diplomático, nem ninguém
mencionará os papéis que tiveram em toda esta saga o Dr. Alexandre e o Renault|! Mas a história faz-se
assim. Porque é que julga que o Guilherme Tell acertou na maçã? Porque não teve pontaria para acertar
no filho, que desconfiava não ser dele. Mas o que conta para a história com agá grande é que ele acertou
na maçã. E por falar nisto: Que é feito da D. Sandra? A minha mulher quer oferecer-lhe um chá, tocar
harpa e cantar para ela, ou julga que ela também não vai ficar na história e ingressar na OJK (Organização
dos Jovens Kabandinos)?

O Xandinho fez um ar de perplexidade!

- Então pense: A jovem heroína foi obrigada a deixar a Pátria, levada pelos pais numa altura conturbada
da Nação. Regressou pelos seus próprios meios para saudar o exemplo do tio quando a Revolução teve
necessidade dele!

- Mas não foi nada disso que se passou! Disse o Xandinho exaltado.

- Então ela que negue para ver o que lhe acontece. Ainda acaba nalgum campo de concentração sem
honra nem glória. Não me admirava nada se ela um dia aparecer na televisão a contar as lutas que travou
com os pais para puder regressar à Pátria.

- Mas isso seria muito injusto para os pais, disse o ingénuo do Dr. Alexandre.

- Mas é a justiça da história. E agora parto. Pensem assim! Pensem assim se querem ser diplomatas com
futuro. Parto! Se quiserem dois dias de férias para tratarem do assunto, passem pela Delegação para
assinar os papéis. Até amanhã ou depois, com o relatório escrito se querem um elogio para Bruxelas ou
até um aumento de ordenado. E não pense mais no acidente. É o que com propriedade se chamam “danos
colaterais”.

O Dr. Alexandre acompanhou-o à porta arrepiado com tanta sabedoria gelada. Quando voltou para
dentro foi directo ao quarto de hóspedes e abraçou-se à Sandrinha, chorando convulsivamente.

- O que foi perguntou ela?

- Nada! Nada! Respondeu entre soluços. És uma heroína!

- Porquê? Por ter saído da droga?

- Não! Por teres servido a Pátria!

Naquele exacto momento, ela não sabia ao certo onde estava a Pátria ou sequer o que seria. Ele
acariciou-lhe o cabelo. A Sandra deixou-se estar muda e queda.

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Katatúlio um Homem de Estado

Quando se acalmou, levantou-se, foi lavar a cara, vestiu uns calções e foi para o salão. A Sandra não
demorou muito a aparecer com o robe de seda chinês aberto. Era o que ele precisava para descansar os
olhos:

- Nunca te vi assim! O que tens?

- Nada! Faz-me um charro!

Ela compôs-se, foi à cozinha buscar o frasco e ouviu o João Paulo dizer-lhe quase aos berros:

- A menina não torne a deixar isso no salão. Sobretudo hoje que temos visitas.

O Xandinho pôs uma música mansa para não ferir mais os ouvidos logo de manhã e começou a remoer
as palavras do Delegado. De repente, sem saber porquê, veio-lhe à mente a máxima do “Che”: Hasta las
últimas consequências! Pátria ou muerte! Fumou o charro como o Fidel fumaria um havano e tentou ler
na palma da mão dela os caminhos do destino. Amainou e silenciosamente, continuou a ouvir o Bhrams.
Aquela modorra demorou ainda algum tempo até que a pausa foi interrompida pelo apito dum carro ao
portão da casa. O carro entrou no jardim, e em breve o velho Bach, era substituído pelo mééé….
Prolongado dum cabrito. À pressa a Sandrinha, com medo da Tia, arrumou o frasco das mesinhas e
limpou os cinzeiros. Depois desapareceu do salão para se ir vestir. O Xandinho foi ao jardim ver o bicho,
resignadamente atado à árvore.

Quando viajam, quando são tirados aos seus pastos ou deixam de ver os seus donos, por mais apetitosa
que seja a relva, o cabrito, fica sempre com os olhos tristes. Este parecia que sentia que ia ser imolado aos
Deuses em favor das boas relações Kabanda/Comunidade. O Renault cumprimentou o Alexandre:

- Estás macambúzio.

Ele contou-lhe a conversa com o Delegado.

- Mas o pior é que ele é capaz de ter razão, disse o amigo. Viste onde elas moram? Não me admira que a
Sandra não queira sair daqui. A Tia Albina aproximou-se deles com um saco de plástico, cumprimentou o
Xandinho e pediu-lhe para ir levar o saco à sobrinha. Eram os jeans:

- Ela deve estar lá dentro no quarto de hóspedes ou então no quarto de banho.

A Dona vinha radiante com as libras a brilharem-lhe nos ouvidos e no peito. Para o género balzaquiano,
não estava mal. Os primeiros cabelos brancos estavam-lhe a romper por entre a carapinha e usava um
vestido creme claro com saia acima do joelho. Calçava uns sapatos altos de pele de cobra e o tornozelo
ostentava um pechisbeque dourado.

- Está muito bonita. Disse o Xandinho.

- Já venho vestida para logo à noite. Mas o João Paulo já me disse que há aí uma bata da Dona Irritação
que eu posso vestir para tratar do cabrito. Vou dar isto à Sandrinha e aproveito para me vestir.
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Katatúlio um Homem de Estado

- Conhece a D. Irritação? Perguntou ele.

- Não me lembro. Parece que ela é lá debaixo da minha aldeia, mas eu não me recordo. Desculpou-se e
foi para dentro tratar das aparências.

O cabrito tinha-se calado. Ele e o Renault Sentaram-se nos divãs do jardim, pedindo ao empregado para
servir duas cervejas.

- Ainda não falamos disso. Conta-me lá as tuas aventuras de ontem à noite.

- Já te falo. Mas mais importante: Na tua viagem a casa da Tia Albina, viste alguns sinais dos motins?

- Nem sombras! É como se não tivessem existido.

- É estranho este povo: Revolta-se à noite e levanta-se tarde de manhã. Quem teria limpo as ruas? Que
dizem os médicos nos hospitais? Certamente que a pessoa ou a criança que atropelei foi parar ao hospital!

- Esquece! Não atropelaste ninguém, ou se calhar foi algum cão. Nem foste parar a um quartel, nem te
tentaram virar o carro. O blindado que te puseram à porta, se o condutor não adormeceu, arrancou daqui
antes da luz nascer. Aliás se queres que te diga, a noite de ontem não existiu.

- E as marcas das balas que tenho no carro? E o guarda-lamas amolgado? E o sangue?

- O sangue e o guarda-lamas foi o cão. As marcas de balas são merda de pássaro. Nada disso aconteceu.
Vamos tratar do cabrito que é o que interessa. Tens cerveja e álcool que cheguem?

A Sandrinha entretanto chegou ao jardim. Tinha o conjunto de jeans vestido:

- A Tia diz que tem que matar já o bicho. Tem de ficar umas horas morto, a descansar as carnes e de
preferência embrulhadas em folhas de mamoeira para ficarem tenras e perderem o sabor do mato.

- Não estão à espera que eu fique aqui a ouvir o animal berrar, pois não? A mim chegaram-me as
galinhas na boite do Calibe! Disse o Renault.

- Deixa lá (disse o Xandinho)! O cabrito depois de comido também deixou de existir.

- Eu também não fico (disse a Sandra). Vamos no teu carro com o condutor e damos uma volta pela
cidade. Vou-te mostrar onde tudo se passou, mas avisa a tua Tia que tem duas horas para matar o cabrito.
Depois voltamos. Vamos levar os fatos de banho e ainda damos uns mergulhos na Ilha.

- A Sandra que faça duas passas para fumarmos na praia.

Enquanto foram aos quartos vestir os fatos de banho e trazer o Xandinho, foi à cozinha pôr cerveja numa
arca frigorífica. Afinal estavam de férias como sugeriu o Delegado.

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- Vamos lá sair, à espera que o cabrito dê o último suspiro e orar para que as suas carnes mortas
repousem em paz (disse o Alexandre). Damos uma volta pela cidade. Tem que haver alguns sinais do que
se passou ontem à noite. Já no carro, armado de máquina fotográfica, perguntou ao condutor: - Sabes
onde fica Caçadores 128?

- Não! Respondeu ele.

- Mau! Não me digas que também já não existe. Que os blindados foram um sonho, que a criança foi um
cão e que Kabanda nunca existiu! Que nós não existimos e provavelmente nos antecipamos aos russos e
americanos e estamos a viver na lua.

Face à sanha, o condutor saiu e foi informar-se onde ficava o quartel de Caçadores 128.

- Sabes como é Kabanda à noite (disse o Xandinho ao Renault). Só se vêem as luzes do carro e o resto
tudo são sombras, a fugirem delas próprias.

Mas a noite de ontem é impossível ser escondida, pensou ele. Já de volta ao carro, o condutor dirigiu-se
seguro para o quartel. A partir dali, o Alexandre poder-se-ia lembrar de algum pormenor que o ajudasse a
localizar a sua aventura da noite passada.

Caçadores 128, como pode verificar, ficava localizado entre a “Cidade de Cimento” e o arremedo de
casas de adobe. A situação do quartel dava-lhe uma ideia das distâncias que tinha percorrido ainda sobre o
efeito atordoador do atropelamento: Pelos boatos que persistentemente corriam sobre a violência dos
subúrbios, no seu estado normal, ele nunca se teria atrevido sozinho a tão recônditos lugares. A própria
Sandrinha admirou:

- Andaste por aqui ontem à noite?

O Xandinho não respondeu. Ao passarem pelo quartel, o carro abrandou e pode verificar que tudo estava
normal: à porta de armas, de pé, respirava uma sentinela adormecida, com arma encostada a uma das
paredes da guarita. O carro abrandou ainda mais a velocidade e ele pode espreitar para dentro. Uns
soldados vagueavam na parada sem destino aparente. Pode vislumbrar a avenida em terra batida que
percorreu até ao gabinete sorumbático do oficial de dia. Tudo era bem real. Mas pelo caminho não
entreviu sinais de motins.

- Tem que haver alguma coisa. Dizia aos seus companheiros. Subitamente lembrou-se dos carrinhos de
supermercado cheio de mercadorias e disse ao condutor: Vamos para a “Loja Franca”.

- Dizem que está fechada, respondeu.

- Porquê? Perguntou o Xandinho.

- Não sei!

Era o medo que respondia e o Alexandre teve vontade de apertar o pescoço ao condutor.
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- Acalma-te! Aconselhou o Renault.

O carro fez inversão de marcha e dirigiu-se para a linha de fronteira entre o centro da cidade e a
periferia. No trajecto, os sinais de motim, teimavam em não se manifestar. Estavam mais ou menos a um
quilómetro de distância da “Loja Franca”, quando ao fim da estrada que atravessava uma planície deserta,
vislumbraram um ajuntamento de civis, misturados com outros civis fardados de militares armados com
Kalashenikoves, descuidadamente penduradas aos ombros.

Um militar mais avisado, mas bem descomposto, muito antes da pequena multidão, mandou parar a
viatura e pediu as identificações. Os dois mostraram tudo: Livre-trânsitos, passaportes, vistos, cartões
diplomáticos etc. A Sandrinha manteve-se impávida na sua farda de jeans a estrear, sentada no banco da
frente. O agente da ordem olhou-a com um ar inquisitório e talvez pelo modo como vestia pensou tratar-
se de alguma secretária, ou mesmo um elemento da Segurança de Estado em serviço rotineiro.

- É melhor não se aproximarem mais. Disse o soldado.

- Mas é para lá que queremos ir. Respondeu o Xandinho na sua lógica Europeia.

- É muito proibido avançar mais ordenou o militar falando um Kabandês profundo. Depois fitando o
Alexandre: Espere! Não esteve em Caçadores 128 hoje de madrugada? Eu estava na porta de armas.

Sem saber porquê, talvez por ser o hábito, o Xandinho meteu-lhe um maço de cigarros nas mãos que ele
agradeceu:

- Então podem passar! Mas não se aventurem muito. As coisas não estão fáceis.

“Se o Major lhe deu escolta blindada, é porque é gente importante”, teria pensado o militar.

Nos estados policiados, o medo impera até na cabeça da mais alta patente. Temem sempre que o
desconhecido seja uma fonte de poder superior à sua, e com receio de reprimendas desfazem-se em
Salamaleques, quebrando ordens e regras. Avançaram duas centenas de metros até depararem com um
enorme sinal de sentido proibido que por baixo tinha inscrito, com tinta vermelha ainda molhada: “LOJA
ENCERRADA POR MOTIVO DE OBRAS”! As letras eram garrafais. À socapa o Renault tirou três ou
quatro fotografias e o Xandinho exortou de satisfação:

- Tinha que haver vestígios!

- Estamos a aproximarmo-nos do enxame. É melhor regressarmos, antes que as abelhas acordem. É


melhor irmos embora! Ainda vamos ser declarados “persona non grata”, disse o amigo.

A própria Sandrinha, o futuro ícone da OJK (Organização da Juventude Kabandina) estava assustada:

- E agora onde vais fazer compras? Perguntou.

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- Não sei! Provavelmente teremos que alugar um avião ao Tony, para ir a um país vizinho comprar
peixe. Ironizou o Alexandre, visivelmente satisfeito por ter provado a si próprio a sua sanidade mental:

- Vamos para a Ilha!

O carro retrocedeu. Tornaram a passar junto do soldado que os tinha identificado anteriormente, que à
passagem deles se perfilou numa desconjuntada saudação militar. Responderam amigavelmente com um
ligeiro aceno de mão como fazem os príncipes nas suas carruagens puxadas por cavalos de raça. O
Renault mandou apagar o ar condicionado da viatura e abriram as janelas do carro para sentirem a brisa
tropical de Kabanda. Descansados, rumaram à ilha, com o sentimento reconfortante de um dever
cumprido e apesar de tudo, desencomendado.

Quem sabe ler nas entrelinhas duma cidade sitiada, apercebe-se quando algo muda. Ao aproximarem-se
da Ilha, começaram a ouvir uma música rouca a troar em milhares de decibéis. Vinha do morro que se
debruça sobre o mar, mesmo à entrada daquela língua de terra que se estica entre o Oceano e a Baía. Era
um som desusado que parecia vir de várias e potentes aparelhagens, cada uma tocando a sua moda de
momento. Por instantes, ao Xandinho pareceu-lhe estar na terra natal por altura das festas das colheitas.

- Vamos para lá! Disse ele.

Subiram o caracol da estrada do morro, sempre a olharem para trás para contemplarem a beleza da Baía.
Sabiam, de anteriores aventuras, que à sua frente se iria erguer um imponente castelo colonial, muito
provavelmente de século XVI ou XVII. Mas desta vez as ameias antigas davam sombra a um arraial
constituído por uma massa humana engalanada de vestes e turbantes coloridos a cores vivas. Um velho
com túnica branca, suja e figura de Gandi, sustentava-se encostado a um bordão luzente, olhando de
espanto as modas alteradas.

- Vamos sair. Disse o Xandinho.

O carro parou. Assombrados olharam à volta. Provavelmente de madrugada, inúmeras tendas feitas de
caniço, ramos de acácias e palmeiras tinham sido levantadas. Eram barracas de comércio. Algumas, dos
postes de electricidade, tinham feito puxadas que alimentavam frigoríficos novinhos em folha. Geradores
a funcionarem, faziam das músicas saídas aos berros das aparelhagens um barulho ensurdecedor.
Sentaram-se os três num banco tosco feito com uma tábua grossa, assente em dois troncos de árvore. O
Renault foi a uma quitandeira buscar três cervejas. Vinha pasmado:

- Só em dólares!

A soldadesca armada, a troco de alguns cêntimos vindos das “mamanas”, faziam segurança. Vendia-se
de tudo e coisas que nunca se tinham visto nos mercados paralelos: Frigoríficos, batedeiras, faqueiros,
copos, pratos, etc. Descansaram os olhos na Baía, até que este pasmo e doce remanso foi interrompido por
uma figura mancante que se aproximou do Alexandre:

- Não perdes pitada, disse ele.

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Era o Celso. Uma velha figura da rádio Kabandina, que se insinuara junto dele numa noite em casa do
Heitor e que uma vez tinha convidado a jantar no Hotel. Combatera na frente em 1975 sob a patente e
pseudónimo de Coronel Hofman, mas as diabetes em último grau, tinham-no desmobilizado. Arrastava-se
a custo, que as úlceras tinham-lhe rebentado nos pés. Vivia de favores prestados por amigos brancos, que
lhe davam sopas e proporcionavam bem-estar, a troco das suas história e bom humor. Conhecia de alto a
baixo a sociedade Kabandina e não sem justificação odiava visceralmente o exército rebelde:

- Ninguém para este povo! Dizia ele com orgulho. Olha o que fizeram do dia para a noite. Não pagas
uma cerveja? Mas olha que agora só em dólares democráticos, ironizava.

O Xandinho passou-lhe um dólar e ele arrastou-se até à quitandeira mais próxima. Apresentou-lhe o
Renault, sabendo que mais cedo ou mais tarde lhe apareceria no Hotel a sorver um jantarinho. Nisso era
uma pessoa organizada. Elaborava minuciosamente uma lista de pessoas a quem poderia recorrer em
horas de necessidade apertada, sabendo perfeitamente quem era o último que o tinha socorrido.

- Sabes que já tenho casa. Disse-lhe o Alexandre.

- Boa! Já sei onde bater em horas de falta. Boémio desde sempre, não escondia as vergonhas da
necessidade. Onde é?

O Xandinho explicou-lhe minuciosamente onde ficava o “burgo”, na esperança que em noites de mais
solidão ele aparecesse a animar o seu tédio.

- Já sei! Era a casa do Director duma empresa de petróleos! Estás a viver bem!

- É essa mesma. Aparece! Nós vamos até à Ilha!

- Eu fico a admirar o meu povo! Sabes qual é o nome do novo mercado? Pensa como se chamará.

- Não faço a mais pequena ideia.

- VII Congresso! Palerma. Não tens imaginação nenhuma.

Todos se riram, e os três enfiaram-se no carro.

Chegaram à Ilha e como de costume, escolheram o lado da Baía para se deitarem.

- Podias chamar o condutor e dizer-lhe para ir ao VII Congresso buscar dois frangos assados. Disse o
Xandinho. Comíamos aqui, passávamos um bocado da tarde e depois íamos para casa. Não estou nada
disposto ir para lá assistir ao esquartejar do cabrito.

O Renault foi tratar desse assunto com o chauffeur. Ela deitou-se ao lado do Alexandre e ele não teve
outro remédio se não ir sentar-se na toalha que estava vaga. A Sandra ficou no meio deles.

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Àquela hora, a Ilha estava praticamente deserta. As Senhoras da Alta ainda não tinham vindo fazer o seu
piquenique habitual, ou então por a “Loja Franca” estar fechada, não tinham encontrado nada para
trazerem para a praia. Mesmo que conhecessem o VII Congresso, não se atreveriam em tais águas turvas
à procura de víveres. Só meia dúzia de miúdos nus brincavam no mar calmo. O silêncio fazia-se ouvir e
era cortado de vez em quando, pela brisa que agitava as acácias que povoavam a praia.

- É impressionante a paralisia deste governo. Sabe que a “Loja Franca” foi assaltada. Sabe que os
assaltantes praticamente a transportaram para o morro da ilha e não mexem uma palha. Disse o Renault,
pedindo com um gesto um charro à Sandra.

- Que queres que eles façam? Viste as centenas de pessoas que estavam no VII Congresso? Queres que
chamem o exército e o ponha a disparar sobre a multidão desarmada?

- É! Trata-se de um acto de rebelião descarada, contra esta ordem. Logo podíamos falar nisto ao
Ministro.

- É melhor não. Disse o Xandinho. Deixa-o pensar que nós vivemos em gaiolas douradas e que não
ligamos a esses pormenores.

O condutor tinha trazido os frangos e a mala frigorífica com cervejas. Enquanto a Sandra procedeu ao
seu desmancho ele amanhou-se com metade de um e foi comer longe, sentado à sombra duma árvore. As
bebidas foram saindo da mala e o Renaut, acendeu o segundo charro. De barriga cheia, com os olhos
pesados das cannábis, acabou por adormecer. O Xandinho, com o braço dobrado e a cabeça deitada na
palma da mão, voltou-se para a Sandra. Sem querer tocou-lhe e ela voltou-se para o lado dele na mesma
posição. Ficaram assim uns momentos a olharem um para o outro. Ela debruçou-se mais sobre ele como a
pedir autorização para qualquer coisa que o Xande não entendeu. Sem esperar respostas fez o dedo
indicador, passar-lhe com placidez pelos ralos cabelos do peito. Depois, calmamente num gesto visto nos
filmes, roçou-lhe as costas da mão pelos lábios, como se estivessem os dois sozinhos no paraíso. Puxou-
lhe a mão para o peito, só coberto por um biquini mingado. Acariciou-lhe o corpo, e os dedos meigos
ultrapassaram a cintura do fato de banho do Xande. Com olhos de amansar bestas segurou-o por inteiro
com gestos melosos. Compassou os dedos.

O Xandinho certificou-se que o Renault dormia:

- Tira-a para fora, para eu não me vir nos calções.

Desajeitadamente procurou agradecer-lhe as carícias, mas ela afastou-lhe a mão tornando a pô-la no seu
peito. Era claro que fosse pelo que fosse, pretendia comandar a situação sozinha e que não pretendia mais
nada senão a dádiva. O ritmo dos dedos parou por instantes. Sentiu a mão molhada e quente. Tirou-a com
pressa de a enxugar. O Xandinho agradeceu-lhe os favores com uma carícia. Os dois foram até à borda de
água para apanharem melhor o fresco da Baía. Mas num gesto inesperado ela puxou-o para dentro de
água. Voltaram em busca das toalhas e o Renault acordou com os salpicos de areia:

- Os barcos estão achegar! Não queres aproveitar para comprar peixe e marisco (perguntou a Sandra)?

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- Marisco ainda deve haver do que trouxe do Calibe. Mas de qualquer modo pode-se comprar. Deu-lhe
dinheiro e ela encarregou-se da missão.

A cerveja ainda estava fresca. Chamaram o condutor para levar para o carro a mala frigorífica e a
Sandrinha esperou por ele para a ajudar na carga. Comprar peixe na Ilha, era às carradas.

- Trás também para ti, disse o Xandinho. (Combinaram encontrar-se no bar do fim da Ilha).

Ele e o Renault detiveram-se ainda a ver o rabo reboludo da Sandra a afastar-se, com o Alexandre a
lembrar-se da agilidade dos seus dedos. Os dois dirigiram-se ao bar, caminhando pela estrada com duas
cervejas presas à mão. Sentaram-se na esplanada a ver-o-mar, silenciosos, possivelmente a pensarem no
jantar da noite. Chegaram a casa carregados de peixe e o João Paulo perguntou espantado:

- Para que é isso tudo? O Senhor Heitor esteve cá e olhem para a arca.

Estava meia cheia de peixe. Constava entre os amigos que ele costumava fazer isso. Desenfiava-se do
trabalho e ia para a Barra pescar. Mesmo quando estava no Hotel, sobretudo ao Domingo de madrugada,
o Xandinho costumava ir com ele. Foi o Heitor que o apresentou à sociedade local da Barra: Gente
simples, que vivia do mar e que a troco de meia dúzia de cervejas, enchiam um saco de peixe a qualquer
visita. Muitas vezes ele se lamentou por não ter casa que lhe permitisse saborear aquelas frescuras. Tinha
visto muitas vezes um pescador, o Arriscado, de quem se fez amigo, por uma garrafa de whisky rosqueiro,
encher a mala do carro dum passante.

O Heitor tinha outra particularidade: Talvez para esquecer as borbulhas sebáceas da Betinha, burra de
saias não lhe escapava.

O Arriscado vivia na praia da Barra numa cabana à beira-mar, feita de folhas de palma, com portas e
janelas sem vidros, retiradas de casas abandonadas ou destruídas pela guerra.

Quando ia à cidade, procurava no lixo coisas velhas com que se vestia e adornava a sua cubata onde
havia de tudo: Móveis gastos pelo tempo, estatuetas antigas variadas e sobretudo livros aos quais dava um
lugar de destaque. Lia tudo o que lhe viesse à mão e isso via-se na sua linguagem rebuscada. Era um
intelectual como lhe chamavam os seus companheiros de faina.

Um dia, quando o Xandinho chegou com o carro cheio de iguarias como óleo de cozinha, whisky e rum
o Arriscado atirou-lhe:

- Vais-me fazer o alambamento!

- Alambamento? Perguntou o Alexandre manifestando a sua ignorância de coisas da terra.

- Sim! Explicou-lhe o Heitor. É o casamento, o pedido da noiva, a compra da mulher, como quiseres
chamar-lhe. Olha que em termos locais é uma honra.

De imediato o Xandinho disse que sim. A sua curiosidade não o fazia perder pitada de cenas assim.
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- Mas olha que é complicado! Continuou o Heitor: Para começar ficas directamente ligado à tribo dos
pais da noiva. Depois, como se fosse uma encenação duma peça de teatro, tens que convencê-los que o
Arriscado é o marido ideal. A seguir, discutes o preço da Dama, que depende do estatuto social dos pais.
Como membro de pleno direito da tribo, tens que lá ir de vez em quando e nunca de mãos a abanar.

- Não importa! Pago para ver! Disse o Xandinho. Quanto é o dote?

O Heitor afastou-se para ir negociar com o Arriscado. Quando voltou, esclareceu o amigo:

- Ela já tem trinta anos o que em termos tradicionais quer dizer que está semi-velha. Com um garrafão de
aguardente e um bode velho, safaste.

O Alexandre conhecia a Dona, mas sempre a julgou como sendo a mulher do Arriscado com papel
passado. Viviam juntos de cama e pucarinho, tendo uma vida de regalo na cabana: Peixe, que era o pão do
mar como ele dizia, não faltava. As visitas dos turistas de fim-de-semana completavam a dieta com arroz,
óleos, álcoois etc. De vez em quando as redes traziam alguma tartaruga, que as devassavam. Mas era mais
um pitéu que o Arriscado não descurava, para raiva da mulher que tinha recozer as redes e a linha bem
como as agulhas rareavam.

- Vêem da China que é longe, explicava o Camarada Director da Cooperativa a que pertenciam: Há que
poupar os fios! Pesquem onde não haja tartarugas, soltava como mesinha.

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III

Quando chegaram a casa examinaram bem os lotes de peixe que o Heitor tinha trazido e o que
compraram na Ilha:

- Há que reparti-lo! Dizia o Xandinho com a aprovação de todos.

- Ainda bem que fizeram o VII Congresso, pensava o Renault. As pessoas acabarão por se habituar a
frequentá-lo e os trafulhas continuarão a abastecer o mercado negro em moeda local. Se não esta gente
que vive de esquemas ia passar mal até a “Loja Franca” abrir.

Na cozinha a Tia Albina ia-se azafamando na cozedura do cabrito.

- A que horas têm que se ir buscar o Katatúlio? Perguntou o Alexandre.

- Morro por a hora chegar, disse a Albina. Mas é às sete que temos de telefonar para o Hotel do partido.
Oh Senhor Doutor: Vamo-nos tratar por tu. Afinal somos quase família, acrescentou.

O Xandinho apreciou pouco aquela intimidade, mas não ligou. Saiu da cozinha empunhando o frasco
dos remédios para as más ocasiões, e entregou-o ao Renault.

- Diz à Sandra para vir lá para fora enrolar! Aqui pode ficar o cheiro e de qualquer modo detesto fazer
os cigarros.

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A Sandrinha tinha ido tomar banho. Vestiu as calças jeans da “Loja Franca” que Deus haja e uma
blusinha de seda que lhe ficava acima do umbigo. Os sapatos altos ficavam-lhe a matar. Ambos sentiam
orgulho daquele pedaço que entrava no jardim: De certo modo, o “new look” tinha sido obra deles.

- Não te preocupes com o cheiro. Tenho a impressão que aqui todos fumam, sobretudo os mais velhos.
Desconfio que mesmo o João Paulo! Esse pelo menos sabe o que está no frasco e já me advertiu para não
o deixar em cima da mesa. É uma espécie de tabu aturado!

O Xandinho tocou à campainha da árvore pediu ao empregado para trazer a aparelhagem do jardim. Os
dramas da noite anterior estavam completamente esquecidos. Sintonizaram a rádio local que arengava
sobre o papel da mulher Kabandina na revolução socialista. A Tia Albina tinha-se juntado a eles ainda em
traje de cozinha com a bata da D. Irritação, que não a favorecia em nada:

- Senhor Doutor! Posso trazer cervejas?

- Mau! Não percebo nada! Não me quer tratar por tu?

- Não sei o que parecerá melhor ao Katatúlio: Por tu, mostra mais intimidade. Mas por você mostra mais
respeito.

- Faça como quiser e vá lá buscar as cervejas.

Quando voltou, pôs as bebidas em cima da mesa e sentou-se familiarmente num divã:

- Há quanto tempo não o via! Deve estar agora a fazer onze ou doze anos.

Nervosa, retorcia a ponta do avental:

- Só queria saber do Márito! Não tivemos tempo de falar disso, mas hoje não escapa. O Márito é o meu
único filho. Entendem não é? Cá na terra, mulher que não deita raízes, não presta! E afinal pari-o não sei
para quê! Mal o criei! Dizia com a voz embargada: Quando veio a Independência, os do Norte vieram
para a Capital! Os do Centro vieram para a Capital! Os do Sul, vieram para a Capital e a cidade
desconchavou-se. Logo de madrugada, ainda o sol via as estrelas, os pioneiros desertavam de casa para o
Centro. Depois era vê-los dizer aos do Norte onde se escondiam os do Centro e aos do Centro onde
moravam os do Sul e assim por diante. E claro os exércitos pumba: Matavam toda a gente. Um dia o
Márito desapareceu, desconfio com o dedo do Katatúlio, ou seja do Victor ou seja do Simiano, como
quiserem! Mas naquela altura entrava e saía tanta gente da cidade, como é que eu ia encontrá-lo? A
polícia tinha varrido. Ainda corri as igrejas a pôr velas à virgem! Ainda fui aos hospitais que
funcionavam! Mas nada. De vez em quando, o Katatúlio, quer dizer o Victor, para me esconder alguma
coisa dizia-me: Vi-o na paragem dos machibombos. Vi-o no Bairro das Catitas! Vi-o aqui e acolá! Mas
aquilo era para me esconder qualquer coisa, que isto de coração de mãe adivinha. Quais machibombos
quais quê: Os autocarros já nem paravam! Eram só cheios de tropas do Norte do Centro e do Sul a
fugirem às balas e às granadas. Chegou a altura da fome e fomos os cinco para Portugal: Eu, o Simiano, a
Sandra o meu irmão Leandro e a minha cunhada, que é como se fosse minha irmã.

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Sexo, Drogas e Diplomacia
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Katatúlio um Homem de Estado

- E o Márito? Perguntou o Xande.

- Nada! No aeroporto o Victor ainda me disse: “Não te preocupes que ele está bem. Se calhar ainda volta
para as Cassulas”! Quando cá cheguei, a primeira coisa que fiz foi ir ao Bairro, mas a casa já estava
ocupada.

- E o Katatúlio? Também desapareceu? Perguntou o Renault.

- Foi connosco para a Banda, mas não fez vida. Andavam lá sempre uns Kabandinos a rondar a porta,
que nem o deixavam dormir em casa, até que desapareceu também: Uns diziam que tinha ido para França.
Outros que se houvera alistado na frente, mas eu desconfiei sempre. Para mim tinha ido para um daqueles
países novos que apareceram cá depois desta Independência. Mas o Márito refilão, nunca me saiu da
cabeça. Coitadinho! Ainda nem idade tinha para ser Jota!

- Jota? Tornou a perguntar o Renault com dificuldades de tradução.

- Sim! O Xandinho tornou a elucidá-lo, com a impaciência de quem quer ouvir o resto da história: Idade
para pertencer à Juventude dos partidos!

- Pois (continuou a Tia Albina): Ele era só Pioneiro.

E a narrativa acabou ali com os dedos nervosos de Senhora a retorcerem a bata da D. Irritação.
Levantou-se e foi ver o guisado, talvez para disfarçar uma lágrima:

- Está na altura de meter o óleo de palma! Ás sete telefono ao Victor.

- Estava a ver que ainda deixava queimar o refogado e não nos deixava fumar a erva descansados.

- É o chamado conflito de gerações! Sentenciou o Xandinho. Tu lembras-te do teu primo Márito?

- Só de treparmos às laranjeiras do vizinho para roubarmos fruta. Disse a Sandra.

Para o Renault o prazer modorrento das cannábis, não tinha fim. Eram sete em ponto, quando a Tia
Albina assomou ao jardim a informar que o Katatúlio ainda não tinha chegado ao Hotel:

- Mas o condutor pode ir buscá-lo enquanto a gente se veste. De certeza que ele não nos vai fazer a
desfeita de não aparecer.

- Fizeram alguma coisa para entrada? Perguntou o Xandinho.

- O João Paulo está a fazer lagosta com molho de limão, salsa, cebola e picante.

Como convém aos protocolos latinos, o Ministro chegou às 20 e 45.

- Muito prazer em cumprimentar V. Exa. Disse o Xandinho, apresentando-lhe o Renault.


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Katatúlio um Homem de Estado

- Ora, vamo-nos deixar disso. Trate-me por Camarada Ministro.

- Não tenho a honra de pertencer ao partido de Vossa Excelência, disse o Dr. Alexandre com o seu ar
mais grave. O Renault pisou-lhe um pé.

- Então tratem-me só por Katatúlio. Gostava que este jantar cimentasse as relações de Kabanda com a
Comunidade e que fosse o mais informal possível.

Ao dizer isto o Katatúlio tropeçou no degrau de entrada e o Xandinho comentou entre dentes para o
amigo: “Lá se vai o cimento das nossas relações”.

- “Está dado o toque da conversa”, balbuciou o amigo. Estavam os dois vestidos com finos Safaris, como
notou o Ministro, apalpando o tecido:

- Onde comprou?

- Foi a minha mulher que comprou num indiano em Lisboa. Se Vossa Excelência quiser, mando vir mais.

- Tenho outros planos! Disse o Ministro tropeçando de novo da soleira da porta.

- Não me diga que Vossa Excelência pensa ir como primeira Visita de Estado, a Lisboa! Se assim é,
telefono já ao meu Embaixador a dar-lhe a notícia em primeira-mão.

Irritou-se e levantou a voz: “ Tenho outros planos, já disse”!

Com estas acrimónias, estavam a entrar no salão, onde os aguardavam ladeando a porta, A Tia Albina e a
Sandrinha. O Ministro ficou descomposto e saltou literalmente ao pescoço da Albina, tentando ao mesmo
tempo abraçar a Sandra. Ficaram assim longo tempo, entre lágrimas e soluços. Quando finalmente se
dirigiu à Sandrinha esta disse-lhe: Pode abraçar-me à vontade, Tio. Aqui está em casa.

O Xandinho não gostou muito desta saída, mas aguentou. Foram mais lágrimas e mais beijos. Por fim,
quando as largou, exclamou-lhes, limpando o rosto:

- Caralho! Julguei que nunca mais vos via.

- Oh Victor! Tu não vens bom!

- Desculpe Senhor Doutor. Mas é muita emoção! Disse ele atirando-se para cima dum sofá a esbodegar o
nó da gravata e o botão do colarinho. E depois sabe, almocei com o Camarada Presidente. Estivemos a
tarde toda na conversa. Por isso é que cheguei tarde. Nós somos muito chegados. Digo-vos que ele tem cá
um vinho! Daqueles garrafões que havia cá antigamente… Mas genuínos! Quando tiver casa, também
vou ter. Ele já me disse que me ia mandar alguns.

- Vossa Excelência vai-me desculpar mas só tenho Piriquita e Bordeaux. Disse o Xandinho!

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- Homem acabe lá com as Excelências e traga o Piriquito!

- Oh Victor. Olha que este senhor é muito amigo do Leandro, da tua cunhada e da Sandrinha.

- Pois, mais uma razão! Somos todos família e assim é que vai ser daqui para a frente. Não é, Oh
Alexandre!

- Pois que assim seja, Oh Victor!

- Paneleirices para quê (dizia o Ministro)?

- O homem é terra a terra, segredou o Renault ao ouvido do amigo.

- Tu não vens bom! Insistia a Tia Albina! Eu conheço-te tão bem!

O João Paulo ia a servir o Piriquita Reserva, mas o Xandinho emendou-lhe a mão:

- Não tragas desse! Trás daquele que tu gostas! Mas para nós serve desse.

- Oh Victor tens a cara toda borrada de lágrimas e batons. Se entra alguém é uma vergonha. Pede ao
Alexandre e vem-te lavar.

- Vão ao quarto de banho do meu quarto. Sempre tem desodorizante e ele pode refrescar-se.

- Se o Alexandre não se importasse, um banho é que dava jeito.

- Oh Ministro! Esteja à vontade, disse o Xandinho.

A Tia Albina foi-lhe ensinar o caminho. Demoraram.

- Sandrinha! Vai lá ao outro quarto de banho e faz uma ou duas maconhas que nós vamos lá fumar.
Sempre ajuda a aguentar o filme.

- Mas para Ministro é simpático, não é? Perguntou ela ao levantar-se.

- Sabes orientar esta conversa. Perguntou o Alexandre ao Renault.

- Com umas passas, sou capaz de lhe dar um jeito. Mas se não dermos conta do recado, telefonamos ao
Delegado para ele vir com a mulher e a harpa.

Estavam os dois sozinhos no salão, e riram com vontade. O Xandinho pôs uma música local.

- Com banho e tudo, isto vai demorar!

- Ninguém te mandou dizer para irem para ao teu quarto.


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Katatúlio um Homem de Estado

- Meu amigo são saudades de 12 anos! A Sandrinha entrou no salão:

- As maconhas estão prontas. Uma está acesa e eu abri o postigo para sair o cheiro. O Renault
precipitou-se para o quarto de banho, com que a mesma pressa com que se sentou na sanita do Bokassa.

- Não achas que se estão a demorar muito? Vai lá ver se está tudo correr bem?

- Deixa-os estar. Ou gostavas que há pouco na praia o teu amigo nos tivesse interrompido.

O Alexandre lembrou-se da boite do Calibe e puxou a Sandra para dançar:

- Pode ser que um pé de dança ajude a passar o tempo. Pensou!

- Assim é que é! Descontrai que vai tudo correr bem! Disse ela, apertando-o contra si.

Quando o Renault entrou no salão, nem um bilhete de metro passava entre caras deles que se esfregavam
uma na outra:

- Tenham cuidado com isso, se não têm que ir tomar banho no quarto para tirar o baton. Acabei aquela
maconha e há outras duas no armário do quarto de banho para não estarem ali à mostra. Se quiserem
podem ir fumar lá para dentro! Não façam cerimónia! Estamos todos em família como diz o Katatúlio.

- Está bem abelha!

Riram-se todos.

O Ministro entrou na sala com a Tia Albina. Vinham com um ar fogoso e radiante. O Katatúlio olhou o
baile e não se conteve:

- É assim mesmo! Música da nossa! Oh Albina vamos nisto! E puxou-a para dançar.

As semelhanças com o Calibe eram evidentes. O Alexandre entregou a Sandra ao Renault e o baile
continuou enquanto ele foi ao armário do quarto de banho. Quando voltou sentou-se num sofá a olhar a
dança atamancada do Renault e não pode deixar de pôr os olhos na Sandrinha. Estava mudada. Não só em
relação a Lisboa, como ao dia em que com o dedo do pé lhe amaciou o nariz na praia. Não era só o “new
look”, ou os jeans elásticos a concentrar-lhe as formas pródigas, mas era qualquer coisa que lhe vinha de
dentro e que não tinha só a ver com aquele encontro familiar. Desde que ele tinha casa, talvez se sentisse
mais segura e à-vontade para reconstruir o tal Mundo. O João Paulo, mesmo na sua ausência, tratava-a
como uma parente. Só não sabia como estaria a sua conta telefónica. Na ausência de pilhas no mercado,
ou faltas de corrente sem gerador, o telefone em Kabanda chegava servir para ouvir os relatos de futebol
da Banda. Ele imaginava que quando esteve na Sitila e no Calibe, todas as suas amigas receberam
chamadas telefónicas da Sandra. O João Paulo tinha-lhe contado que na sua ausência ela passara algumas
tardes sozinha no jardim a rebolar-se no chão, a brincar com a neta da D. Irritação.

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A música parou. Todos se sentaram, mas a conversa ia ter a lado nenhum e por vezes conduzia a longos
silêncios, que só eram preenchidos pelo idílio entre o Katatúlio e a Tia Albina. Outras vezes a Sandrinha
cortava o silêncio:

- Tio! Donde lhe vem o nome de Katatúlio se o papá é só Leandro?

- Sabes minha filha, no tempo do colono até o nome nos roubavam. Por exemplo: Tu querias-te chamar
Kurika, que em língua do Sul, quer dizer leão. Sabes que nome é que o padre te punha, sabes? Era mesmo
Leão. Agora pudemos chamar-nos como quisermos: Baramíneo da Costa ou Empecilho da Silva.

- Então o que quer dizer Katatúlio? Perguntava ela.

- Em Kidolo, que é uma língua do Norte, quer dizer gaivota.

- Chi, Tio! Gaivota não é nome de homem!

- Mas sabe voar e nadar como eu!

- Agora vai um whisky, Ministro, ou quer mais baile? Perguntou o Xandinho esforçando-se para não
achincalhar a situação.

- Agora vai. Já reparaste, Alexandre, desde que estou cá em casa estás mais socialista? Já te deixaste
dessas coisas das Excelências… Disse refastelando-se no sofá.

- É! Ele habitua-se. Disse a Tia Albina. Mas sabes amor, também é uma questão de respeito. Mas olha lá,
Victor: Tu nunca gostaste dos Kidolos, como é que foste buscar um nome a essa gente?

- Não gostava nem gosto. Mas olha que no novo governo vamos ter um Ministro e dois Secretários de
Estado Kidolos. Eu não devia estar a falar assim, porque os secretários ainda não foram nomeados. Mas
hoje não faz mal! Somos todos da mesma Pátria.

O João Paulo tinha feito uns pequenos canapés, de queijo e presunto bem aquecidos no forno com uma
azeitona sem caroço a enfeitar.

- Hum! Disse o Ministro. Estão mesmo picantes como eu gosto. Foste tu que fizeste? Albina.

- Que não, que não! Fora o João Paulo!

- João Paulo! Chamou ele.

O João Paulo apresentou-se no salão com a sua farda branca impecável como sempre.

- Não queres ser empregado aqui do Camarada Ministro (perguntou o Katatúlio)?

- Que não! Que Não! Gosto deste Patrão.


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- Ele paga-te em Dólares. Não é? Ou julgas que nós não sabemos? O partido sabe tudo. Perdes uma
oportunidade de servir a Pátria e ela ficar-te reconhecida.

- O meu berço é nos Lixungos, não é na Pátria.

- Ai então és do Sul.

- De avós e bisavós nascido! O meu pai é que já nasceu em Kabanda, trazido por um branco. Se o Patrão
não me quiser eu vou. Mas olhe que já tenho um presente preparado para quando a Senhora vier.

Esta confissão comoveu o Xandinho.

- É velho, mas sabe muito, disse o Renault.

- Então Victor, de Lisboa foste para França?

O João Paulo tornou a encher os copos com vinho, tendo respeitado o que o Ministro bebia e os outros,
também.

- Não! De Lisboa vim para Kabanda, buscar o Márito!

A Tia Albina saltou:

- Sabes onde está?

- Sei! Sei! Já lá vamos. Eu tinha intenção de quando cá chegasse, ir-te procurar em Portugal. Não fazia a
mais pequena ideia que estivesses em Kabanda. Tinha a direcção do Leandro e ia escrever-lhe para saber
de ti e não te podia dizer nada do Márito porque o partido não deixava. Mas isto não era vida para ele.
Tinha-se mostrado um Pioneiro importante.

- Pioneiro? Perguntou o Renault.

- Sim! Eu depois explico-te. Disse o Xandinho enfadado! Deixa ouvir a história.

- Deixei-o cá com uns camaradas graúdos que trataram dele como um filho.

- E onde está? Saltou outra vez a Tia Albina.

- Há-de vir! E Há-de vir a falar línguas, com curso cursado na Universidade Patrice Lumumba. Pelo
menos Português, Cubano e Russo já fala.

- Quem diria! E tu sempre soubeste dele.

- É verdade! E sempre estive com ele. Não te dizia nada, porque o partido não deixava.

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- Então o primo está vivo (perguntou a Sandra)? E o papá Leandro sabe?

- Qui non! Qui non!

De vez em do o Katatúlio, metia umas palavras cubanas. Aliás, como viria a dizer durante o jantar, na
Rússia só se dava com camaradas cubanos e portugueses: “Russos, nem vê-los”! Dizia ele. “São racistas”!

A Sandrinha lembrava-se pouco do tio, mas tinha ouvido muitas histórias suas:

- Podíamos telefonar ao Papá e à Mamã a dizer isso. Aproveitámos e o Tio Victor fala com ele.

O Xandinho achou uma boa ideia e disponibilizou o telefone. A Sandra pediu a ligação e usando o
esquema dela. Falou com a telefonista:

- Eu falo com ele e hás-de cá vir. Pois… Ele até tem um amigo francês que está cá sozinho. Dá tempo ao
tempo. Mas agora faz-me essa chamada depressa. Olha que é para um Camarada Ministro que está cá em
casa.

- Mas nem lhe deste o numero! Admirou-se o Renault.

- Ela já sabe. É só para os papás que eu telefono. Ela tem é que no fim do mês receber a grade de
cerveja. Imaginem que ao fim do mês tem vinte ou trinta clientes como nós, vejam lá o ordenado que ela
tira.

- Até eu ia para lá! Disse a Tia Albina.

- “Tenho outros planos para vocês (disse Ministro)”. Temos que recuperar o tempo perdido”! Mas digam
lá: “Como é que querem que este país vá para a frente? Até para telefonar há esquemas. Assim não se
pode planificar”. Sentenciou. “Se toda agente fizer isso, ela ganha mais do que Ministro. Bem, é certo que
não tem direito a casa, carro e guarda-costas. Mas é um bom ordenado. E dizem que no Socialismo se
vive mal”!

- Oh Tio. Se esta chamada fosse para o Plano, nem daqui a cinco anos cá estava.

O Telefone tocou e o Xandinho atendeu:

- Sou eu, Senhor Leandro! O Dr. Alexandre. Imagine quem está aqui: Eu, A tia Albina, a filha e o seu
irmão Victor. O Victor sim, o Senhor Ministro! Vou passá-lo.

Passou o telefone ao Katatúlio. Era o reencontro:

- Não! Dizia o Ministro! Sabia! Soube sempre! O Márito vem aí e já fala duas ou três línguas! Há-de!
Há-de ir longe!!! Sim, Sim… Venham até cá. Se quiserem eu mando as passagens. Aproveitem agora que
sou Ministro, e nestas coisas da política nunca se sabe. Não… Tão depressa se está em cima como se está
em baixo. Pois… A não ser que se seja Presidente, mas para isso é preciso muitos anos…
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Ouviu uma voz de mulher.

- Mana? Gritou: Faz tanto tempo! Estou em casa do teu amigo Alexandre, com um amigo francês, a
Albina e a Sandrinha. Está… Está uma mulheraça! É, eu sei que é teu vizinho! É… É um porreiraço!
Falo. Falo. Mas sabes que há muita coisa em jogo! Pois! A Pátria, umas comissões e tal! Vamos falar esta
noite! Já disse ao Leandro para virem até cá! Depois falamos disso! Vou-te passar o Camarada Alexandre!

Era a força do hábito que o fazia falar assim. O Xandinho pouco mais fez do que dar as boas-noites à
Senhora e passar o telefone à filha. O João Paulo interrompeu:

- Patrão! Vou dormir aqui. Já passou o recolher obrigatório.

- Pois dorme, mas põe a mesa.

- Está posta.

O Alexandre já tinha desistido de protocolos e cerimónias, mas acabou por dar uma vista de olhos na
mesa:

- Quando acabarem os telefonemas, podes servir!

No salão sentiu-se o cheiro da lagosta grelhada que já enjoava toda a gente, excepto as visitas. O
Renault, enquanto o telefonema durou, foi servindo mais vinho ao Katatúlio, que via-se pelo seu ar feliz,
ia topando cada vez menos o passado e enxugando cada vez mais o futuro. De facto os seus olhos
rebolavam-se cada vez mais pela Tia Albina abaixo e ela fingia mágoas pelo abandono. O certo é que
começava a sentir poder ao mesmo tempo que se afundava cada vez mais na poltrona.

O telefonema acabou, sem a Tia Albina falar com a família. A Sandra tinha rejuvenescido por ter falado
com a mãe e o Xandinho convidou o Ministro a passar para a mesa.

- Não é preciso levar os copos? Perguntou ele.

- Não! Agora vamos beber branco. Quero que o Ministro saia cá de minha casa bem tratado.

O Katatúlio sentou-se à cabeceira da mesa, dizendo à Sandrinha para ficar ao seu lado direito e o
Renault do lado esquerdo. O homem estava visivelmente turvado. O Alexandre e a Tia Albina ficaram em
lugares secundários, tendo o dono da casa proposto que ela ficasse do lado da cozinha, no caso de ser
preciso intervir em alguma coisa. As duas mulheres estavam suculentas, o que fazia da mesa um lugar
composto decotes avultados.

- Mas conte Ministro. Quando chegou? Não tem cá estado, abriu o Xandinho.

- Não. Cheguei há coisa de uma semana de Moscovo onde ensinava Marxismo Tropical na Universidade
Patrice Lumumba.

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- Marxismo quê? Perguntou o Renault.

Os seus olhos avermelhados pareciam querer sair das órbitas. Tinha sido um dia difícil e notava-se pelo
tropeçar da língua. Primeiro tinha sido a tarde de trabalho com o Presidente. Depois o reencontro de
amores antigos que lhe faziam adejar a imaginação.

- Pode parecer estranho para um Ocidental, continuou. Mas trata-se mesmo de Marxismo Tropical: Um
dia o Conselho Científico da Universidade reparou que os jovens países que tinham abraçado as teoréticas
de Karl Marx tinham climas quentes enquanto que os que tinham climas frios optaram por regimes
socialistas de origem burguesa, como o caso sueco. Ora, esclareceu o académico, eu tinha defendido tese
de doutoramento naquela Universidade sobre “A Natureza do Marxismo em Função das Condições
Climatéricas das Pátrias – Teoria e Prática”. Falava bem Russo e naturalmente fui convidado para
seleccionar aquela cadeira opcional, mas muito procurada por jovens do nosso continente e mesmo do
Médio Oriente.

- Professor, dizia-lhe o Renault com uma grande palmada nas costas. Mas isso abre-lhe um enorme
campo de “recherche”! Como se diz “recherche”? Perguntou com um sorriso.

- Pesquisa disse o Xandinho.

- Isso pesquisa! Já pensou em alargar a sua pesquisa à Austrália?

Babada, a Tia Albina interrompeu:

- Lembraste quando jogavas basquete nos Cassulas? Eras um rapagão! E brancas atrevidas não te
escapavam

- Nunca tinha pensado na Austrália, anotou o Ministro.

Fez-se um longo silêncio que o Xandinho aproveitou para repetir o branco fresco, acompanhante da
enjoativa lagosta. O João Paulo começou a servir. Ainda nenhum dos convivas tinha começado a comer,
já o Victor comentava entre dois goles:

- Está qualquer coisa! Foste tu que fizeste o tempero Albina?

- Como tu gostas: Bem picante!

Ao Alexandre e ao Renault mordia-lhes a língua, que nem puderam acabar o pouco que se tinham
servido.

- Fazem falta mais convívios destes para nos conhecermos melhor! Disse o Xandinho para fazer
conversa. Na Sitila e no Calibe, já encontramos dois ou três projectos capazes de serem financiados pela
Comunidade dentro dos seus critérios. Era interessante descobrir um na Capital!

- Na Capital? Perguntou o Ministro.


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- Embora as nossas prioridades sejam aquelas duas províncias. A Capital talvez interessasse a Bruxelas
por uma questão de visibilidade. Afinal é aqui que se encontra uma boa parte da população do país.

- Nada que um bom jantar em família como este, não possa resolver!

O Ministro parecia agora interessado em mostrar à Tia Albina e à sobrinha os seus poderes de estado.
Limpou um palito com os dedos e perguntou: - “Já pensaram no Hospital Vladimir Illitch, aquilo está a
cair e faz muita falta à população”!

- Nós estamos mais voltados para a agricultura ou indústrias que não dependam da importação de
matérias-primas, disse o Xandinho.

- Pois Voltem-se para as necessidades das massas. Hoje, a falar com o Camarada Presidente ele disse que
nós apreciaríamos muito o vosso envolvimento no VLadimir Illitch.

A Tia Albina meteu a farpa: -“O Vladimir está uma barraca. E era um Hospital tão bom quando se
chamava D. Isabel”!

O recado parecia estudado. O Delegado tinha razão quando advertiu o Xandinho que o Presidente já
tinha conhecimento daquele jantar:

- Pois pode assegurar o Senhor Presidente que a ideia será registado.

- Depois do VII Congresso, reconhecemos que Kabanda tem tomado atitudes extremas face à
Comunidade. Mas agora vão ver que as coisas vão mudar.

O tom da conversa tinha sofrido uma rotação de 360 graus.

- Vocês, têm que aprender a ler nas entrelinhas, continuou. Mas para isso, como professor, cá estou eu
para vos ensinar. Sabem que num regime democrático de partido único, as coisas importantes escrevem-
se nas entrelinhas, para não ferir as opiniões dos diversos sectores. E a abertura do regime, está bem clara
nas entrelinhas. Nem eu aceitaria o cargo se assim não fosse.

- Temos aliado! Disse o Renault dando-lhe outra forte palmada nas costas.

- Claro! Quero dar um empurrão a isto. Não foi por acaso que o Presidente me foi buscar à Patrice
Lumumba. Quando ele esteve em Moscovo, antes desta crise dentro do partido ter estourado…

- Crise? Interrompeu o “Xandinho a tirar nabos da púcara.

- Pois, crise e grave. Vocês estrangeiros estão de fora e não se apercebem!

O Ministro estava muito mais calmo e parecia agora recitar um texto decorado:

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- Mas houve uma crise tão grave, que levou à queda de quatro ministros. Um ainda não caiu, mas está
quase.

- Qual? Perguntou o Renault?

- Guardem segredo! Cochichou o Katatúlio. Mas é o da Saúde. Por isso é que o Camarada Presidente
pensou no Vladimir Illitch. Sabem? Isto é gente sem ideias que não sabem aproveitar as oportunidades
que o Camarada Presidente lhes dá.

- Olha que tu aproveita! Disse a Tia Albina. Caga-te nas ideias! Olhou para os esqueletos das lagostas
que jaziam nos pratos e pediu desculpa por falar assim à mesa. Levantou-se e foi à cozinha. Quando
voltou com as carnes, o João Paulo seguia-a. O Ministro provou os segundos e estalou a língua.

- Era isto que me faltava na Rússia. Como eu ia a contar aqui à Albina: Quando o Camarada Presidente
lá esteve, puxou-me para um canto e falou-me da necessidade de abertura do sistema. Claro que eu
percebi que ele me estava a apalpar e concordei imediatamente. Fiquem a saber que abrir era a palavra de
ordem.

E começou a divagar:

- A princípio pensei que ele me quisesse para a pasta da cultura. Sugeri-lhe mesmo a realização do I
Encontro Nacional de Bruxos e Feiticeiros.

- Oh! Victor! Cruzes diabo! Nem parece teu.

- Claro Albina. Isto dentro do mais profundo respeito pela nossa tradição popular. Olha que o congresso
iria servir para separar o trigo do joio e lançava as bases para a formação dum Instituto Nacional de Alta
Tecnologia Adivinhativa! As iniciais até ficavam bem era o INATA.

- Aproveita! Repetia a Albina! Inteligência não te falta e empregos desses não aparecem todos os dias.
Pode ser bom para todos. E casa? Como vais resolver?

- Com tempo! Respondeu! Para já estou numa suite no hotel do partido que é um luxo mas quero ver se
arranjo uma aqui no Bairro Novo.

- Era bom! Disse a Sandrinha. Ficava perto do Alexandre e se precisasse de alguma coisa era só bater à
porta.

- Não é isso que me preocupa.

Olhou demoradamente a Tia Albina:

- Faz-me falta uma mulher madura, bem apresentada e que soubesse de coisas de cozinha tradicional.

Sonhava por entre o álcool e os sabores da mesa:


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- Se a tivesse, era uma questão de a mandar a Lisboa vestir-se e pôr umas jóias.

A Tia Albina arrebitava as orelhas.

- Queria uma que gostasse de cabelo trançado, mas isso fazia-se cá.

O Ministro rebolava os olhos pelo decote da Tia Albina.

- Assim até eu cá ficava! Disse a Sandrinha. O Tio vai ter carro?

- Claro! Mas tinhas que estudar. Mas agora também já há aí dessas escolas novas, onde as meninas
andam fardadas como na Rússia.

- Eu não me importava de estudar. O condutor ia-me buscar?

- Com segurança! Disse o Ministro.

Ninguém lhe queria interromper os sonhos, mas o Xandinho lembrou-se que o segurança estava à porta
sem comer nada e disse ao João Paulo para ir servi-lo. Levantou-se para ir vê-lo e de caminho foi ao
quarto de banho tirar uma passa da maconha. O Segurança tinha a kalashenikove encostada ao muro.
Confessou-lhe que ainda não tinha comido nada nesse dia e agradeceu-lhe a pratalhada.

- Não te esqueças que já disseste aos manos para virem cá. Tu na Rússia não arranjaste nenhuma branca?

- Tinha lá uma miúda, mas não era marxista! Não dava para trazer para cá.

- Mas olhe que com a abertura do VII Congresso… Provocou o Renault.

- Com a abertura, o melhor é uma Kabandina. Entre nós entendemo-nos melhor. Atirava lampejos à
Albina. Então e o Vladimir Illitch?

- Conte connosco Ministro. Vamos fazer o que pudermos. Disse o Renault, que se começava a habituar à
familiaridade.

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IV

No dia seguinte parecia que um furacão tinha passado pela casa. A primeira coisa que veio à cabeça
dorida do Xandinho foi o hospital. A Sandra dormia no sofá grande e o João Paulo que tinha ficado na
casa do jardineiro, tentava pôr alguma ordem sobre a mesa de jantar onde a toalha branca ainda sofria das
nódoas amarelas do óleo de palma. Custou-lhe a entender o Sol e a manhã clara.

- Que noite! Disse em voz alta.

Acordou a Sandrinha:

- Vai dormir para o quarto! Contigo aqui o João Paulo não consegue fazer nada.

Em cima da mesinha de centro havia pontas de cigarro, pratos de sobremesa com comida, chávenas de
café e até um ananás semi-descascado. O Alexandre voltou para o quarto com desânimo e dor de cabeça.
Atirou-se para cima da cama onde a Sandrinha se deitara de barriga para baixo e pensou: “O Delegado
tinha razão. Uma coisa destas é para meter três dias de férias”.

Com o toque insistente da campainha, acordou por volta das três da tarde. Ainda tinha vestido o safari da
noite anterior. O João Paulo, provavelmente tinha ido às compras como o fazia sempre àquela hora:
Conhecia uma vizinha que cultivava uma nesga de terra e lhe fornecia vegetais a troco de uma ou duas
cervejas.

A campainha continuava a tocar sem que minimamente incomodasse a Sandra. Foi abrir: Era o Heitor:

- Fui à Delegação para te falar e disseram-me que estavas de férias. Cheguei a pensar que a tua mulher já
tivesse chegado, mas o Jorge disse-me que não.

Já estava familiarizado com todo o pessoal da casa e subitamente ocorreu ao Alexandre que ele tinha
vindo à procura da Sandra;

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- Espera um pouco. Disse-lhe. Vou tomar um banho e mudar a farpela.

No quarto, acordou a Sandrinha, anunciando-lhe a chegada do Heitor. Depois, já no banho, sentiu que
ela se levantava e ouviu música do lado do salão que certamente a visita inesperada tinha posto. Quando
chegou perto do Heitor com as suas bermudas coloridas, ele já se tinha abastecido de uma cerveja gelada.
Foi à cozinha ver se o empregado lhe tinha deixado alguma coisa para comer e serviu-se de um café
quente que trouxe para o salão.

- Que fizeste à Sandrinha?

O Xandinho fez-lhe sinal para falar mais baixo apontando-lhe os quartos e contou-lhe a história toda da
família dela, das drogas e do Ministro. A sala estava como nova não havendo o mais pequeno vestígio da
noite anterior. Que se teria passado com o Renault, a Tia Albina e o Ministro? Perguntou-se.

- Gostava de conhecer a Tia Albina, disse o Heitor com melancolia de arrastar a asa.

- Também queres tudo: Tia, sobrinha! Olha que o Katatúlio prometeu ao irmão passagens para cá! Se
quiseres também o pai e a mãe posso apresentá-los.

Ele sorriu num claro usufruto da fama de mulherengo que lhe ornava a cabeça e disse cofiando o bigode:

- Hei-de ir com ela à Barra abanar uns coqueiros. Já pensaste no alambamento?

- Já e não quero perder pitada.

- Se deres um pano estampado à noiva, ficas com amigos para a vida. Eu já fiz dois ou três e quando ia
às aldeias não me faltava nada. Nem vinho de palma nem “dubais”. Agora a guerra é uma chatice. Não se
pode sair daqui!

- Que raio são “dubais”? Perguntou o Alexandre?

- És mesmo branco! Não sabes nada. Quando ficas filho da aldeia, os sobas dão-te à escolha uma
“dubai” para tratar de ti. É uma moça nova e dizem que virgem, mas eu nunca liguei a esses detalhes. É
uma ofensa não aceitar. Ela faz-te tudo: Almoço a preceito, jantar e zela para que à noite não te falte nada!

O Heitor riu-se.

- Cada rapaz solteiro que sai da aldeia para trabalhar na cidade, continuou, deixa lá uma “dubai”. Aqui
não têm as mesmas facilidades que têm lá, onde marcha tudo desde irmãs a tias até às enteadas e têm que
ir às putas apanhar sida. Quando voltam para o campo as “dubais” encarregam-se de espalhar a doença.
Tens sorte que a aldeia é a uns vinte quilómetros daqui e podes lá ir quando quiseres. Mas as minhas são
no Norte e a guerra tirou-me dessas divagações.

- Viveste no Norte? Perguntou o Xandinho.

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- Não, mas fiz ajuda alimentar com o PAM (Programa de Alimentação Mundial).

- Distribuías mesmo comida? Perguntou o Alexandre curioso.

- Não! Ia à frente para fazer a logística. Ver onde a alimentação iria ficar armazenada e avaliar quem
estava em condições de fazer uma distribuição mais ao menos justa. Quando havia padre ou pastor, eram
eles. Se não tínhamos que recorrer aos mais velhos. Quem depois seguia com a alimentação era um primo
afastado da minha mulher que dorme lá em casa no sítio dos criados. Era pago com meia dúzia de dólares
que lhe davam muito jeito, mas o risco era muito.

- Risco?

- Imagina que sais daqui com um camião carregado de comida. Passas a primeira aldeia e a segunda sem
te acontecer nada. No caminho para a terceira, começas a ouvir tambores loucos na savana. É o telégrafo
africano a funcionar. Adivinhas que estás a chegar à aldeia mais próxima porque pela estrada começam-te
a aparecer pessoas com paus e catanas. Aceleras o camião, mas as pessoas na estrada crescem quilómetro
a quilómetro até que tens de parar para não atropelar ninguém. Depois vandalizam o camião e a fome
rouba tudo. Quer dizer: O teu trabalho de logística vai por água abaixo e em menos de cinco minutos
desaparecem cobertores, farinhas para bebé etc. A distribuição passa a ser feita segundo a lei do mais
forte. Depois uma grande parte dos produtos vai aparecer no mercado negro.

- A Comunidade tem um projecto de ajuda alimentar. Disse o Xandinho.

- Na altura falas comigo que o Zezinho, o primo da Betinha dá-te uma ajuda. Ele tem um método eficaz.
Pagas-lhe em dólares e ele faz-te isso. Mas digo-te já que é horrível: Ele começa a ouvir tambores e põe o
ajudante na parte de trás em cima do camião. Ouve mais tambores e sabe que as populações estão
escondidas no capim. Quando vê cinco ou dez pessoas na picada, apita. É o sinal para o ajudante atirar
fora dois ou três sacos de ajuda. Atrás do camião ficam dezenas de pessoas a arranharem-se e a
catanarem-se por aqueles sacos de comida, mas o grosso dos alimentos pode avançar, até chegar ao
próximo ajuntamento onde a operação se repete. É horrível!

O Heitor levantou-se visivelmente nervoso como se estivesse a afastar fantasmas. Lá dentro ouviu-se um
bater de porta e perguntou:

- É ela? Está no teu quarto?

- Não! Está no dela. Respondeu o Alexandre.

- Vou lá.

A música tinha parado e do quarto de visitas saíam murmúrios. O Xandinho sentiu uma ponta de ciúmes
como se lhe estivessem a roubar o fruto proibido, mas pensou que se o Heitor conseguisse afastá-la dali,
resolveria o problema da chegada da sua mulher. Por outro lado nesta altura dos acontecimentos a
presença da sobrinha e da tia do Ministro eram importantes. Teria que falar com o Renault sobre este
assunto e pensou que seria melhor meter o próprio Heitor na jogada. Poderia mesmo usar o cunhado dele,
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que tinha sido Ministro do Comércio e convidá-lo para um futuro jantar. O problema era se dentro do
partido pertenciam a facções diferentes. Teria que se informar melhor. O telefone tocou. Era o Renault.
Do outro lado da linha, ouviu alguns vitupérios cúmplices vindos duma voz roufenha. Era claro que ele
tinha também acabado de se levantar. Contou o resto da noite:

- Deixaste-me sozinho com essas prendas e adormeceste. Nós saímos da mesa de jantar e viemos para os
sofás onde nos refastelamos. O Ministro sentia-se em casa. Pediu-me para lhe ensinar o funcionamento da
aparelhagem. Pôs música de dança. Estava exaltado pelo o reencontro com a Tia Albina. A Sandrinha
passou a noite toda a ensinar-me a dançar. É atiradiça! De vez em quando íamos ao armário do quarto de
banho. Desde o tempo da República Centro Africana que não passava assim uma noite. O whisky correu!
Se calhar tens que ir ao VII Congresso fazer abastecimento. Mas o Ministro, mesmo com a língua
entaramelada não parava de falar no Vladimir Illitch.

Segundo a narrativa do Renault, a certa altura, estavam todos sentados no chão com as costas apoiadas
nos sofás. A Sandra sentara-se ao lado dele e adormeceu com a cara encostada ao seu ombro. O Ministro e
a Tia Albina, acabaram por dar as mãos, sempre a trocarem ternuras e olhos bebidos.

- O casamento está feito! Dizia o Renault. Foi feito em tua casa. Por fim eu e o Katatúlio já nos
tratávamos por tu. Ele insistia em não te acordar, mas levei-te para o quarto.

- E a ele e à namorada ou à mulher, ou lá o que é que lhes aconteceu?

- Levei os dois para o Hotel do partido; à saída tropeçamos no corpo do guarda-costas que estava a
dormir à entrada da porta. Entrou para o carro como um passarinho adormecido; já íamos a caminho
quando o Ministro reparou que ele não trazia a kalashenikove. Tivemos que voltar atrás; a arma estava
ainda encostada ao muro. Fiquei a saber que o guarda-costas ainda era primo dele. Estava na frente de
combate onde parece que caem como folhas de árvore no Outono e conseguiu uma cunha para o trazer
para aquele serviço na Capital. No carro repreendeu-o: - “Não é assim que se olha pela segurança dum
membro do governo”!

- Não queres vir cá jantar? Perguntou o Xandinho. Não gosto destas conversas pelo telefone. Poderemos
falar do relatório que vamos fazer para o Delegado ou mesmo fazer um rascunho.

A conversa acabou aí. O Heitor continuava no quarto com a Sandrinha, e o João Paulo já tinha chegado.
O Alexandre chamou-o:

- Hás-de fazer um petisco para a noite. Vem cá o senhor Renault.

O empregado deu a receita que ficou ali mesmo aprovada:

- Coso um bocado de cabrito que sobrou, com sal, hortelã e piripiri. Deixo arrefecer e corto aos bocados.
Faço um molho com muita salsa, poucos coentros, cebola picada, azeite e pimentão. Mas primeiro ponho
os bocados de cabrito no frigorífico em vinho branco doce. Passado umas horas tiro-o, enxugo-o e rego
com um bocadinho de vinho do porto. Misturo tudo e sirvo com torradas. O Sôtor vai ver. Comem mais
do que ontem. É uma receita do Senhor Brigadeiro.
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- Podes fazer isso. Mas o Senhor Heitor e a menina estão aí. Vai lá ver se eles têm fome.

O João Paulo torceu o nariz, mas foi ao quarto das visitas. O Xandinho ficou a pensar que
provavelmente o empregado iria interromper algum idílio, o que de algum modo reconfortava o seu amor-
próprio. Ainda tinha a boca a saber a notas velhas e arrastou-se para cima do sofá.

- Que noite! Balbuciou.

Fez tensão de fechar os olhos mas nada lhe apetecia. Um café forte com bastante açúcar e um pouco de
rhum provocaria um choque, mas depois talvez a cabeça aquietasse. As mãos tremiam-lhe e sentia
necessidade de fazer alguma coisa que desembravecesse aquela agitação. Decidiu-se pelo rhum com café
e umas gotas de limão. Tinha sido um médico cubano que lhe dera a receita. Sorvia devagar a mesinha
bem quente, quando o Heitor e a Sandrinha entraram no salão de rostos afogueados:

- Sabes que ela nunca foi à Barra? Disse o Heitor.

O Xandinho olhou-os de alto a baixo com um pouco de mancha:

- Pois vai-lhe mostrar a Barra!

- Hoje já não, que é tarde. Mas combinei com ela e de madrugada venho cá buscá-la.

Ao Alexandre se não fosse o padecimento, esta situação convinha-lhe. No dia seguinte tinha que ir à
Delegação com o Renaut preparar a informação para o Chefe e não gostava de a deixar sozinha em casa.
A mulher ia começar a enviar algumas das bagagens mais pesadas, o que queria dizer que se aproximava
a sua vinda. Aquele movimento do Heitor funcionava um pouco como o desfazer da embrulhada em que
se metera um pouco por prazer e um pouco por ossos do ofício. Esta última versão permitia-lhe consolar
dois cuidados: Um, a traição ao matrimónio. Outro, o dolo que no seu intimo estava a provocar à amizade
que o agarrava à família Leandro. O Heitor, não tinha pruridos desses; desejava só viver a vida até ao
mais perigoso vibrião. “O certo é que os chavelhos, fazem sempre padecimento a um homem ou uma
mulher”. Pensava o Alexandre sem grandes cuidados.

A Sandrinha deambulava pelo salão alheia a estas metafísicas caseiras, ainda vestida com os jeans da
noite passada. Com um andar descompassado foi à cozinha fazer umas sandes que veio comer para o
salão:

- Como acabou a noite? Perguntou.

- Não me lembro! Respondeu o Alexandre. Mas esta manhã estavas estendida no sofá.

- A Tia estava feliz! E o Tio é um tipo fixe.

O Xandinho começou a pensar que não seria conveniente quando o Renault chegasse, discutirem na
frente do Heitor o tipo de informação que iriam fazer para o Delegado e era forçoso fazer alguma coisa:

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- Daqui a pouco não queres ir mostrar à Sandra “Kabanda by night “? Perguntou-lhe. Tenho a impressão
que ela conhece pouca coisa.

O Heitor ficou pensativo e pouco depois desatou a falar da Betinha:

- Não parece mas admiro-a muito. Com aquele corpinho franzino em 75 alistou-se como enfermeira para
a frente de combate e não queiras saber o que passou nas primeiras linhas. Chegou a fazer operações à
apendicite com facas de mato e amputações sem anestesia geral. Um horror!

Fez um grande silêncio na narrativa como se também hesitasse entre prazeres clandestinos e a
estabilidade oficial do matrimónio. A Sandrinha tinha ido tomar banho. Apresentou-se no salão com o seu
vestido azul e quebreiras de anca. Era o que faltava para derrotar as dúvidas do Heitor:

- Podias telefonar daqui a pouco à Betinha e dizer-lhe que eu janto cá. Nós saímos e tu telefonas por
volta das nove horas.

- Só espero que ela não apareça por aí. Disse o Alexandre.

- Não pode. Nem tem livre-trânsito, nem carro e não se vai aventurar a saír sozinha à noite. Tens vinte
dólares que me emprestes?

O Xandinho sabia que o dinheiro era dado. A Betinha controlava todas as saídas de dinheiro até ao
último cêntimo. O que sobrava ia directo para um banco belga para gastar nas férias europeias, em roupas
e vestidos. Por ele, nem sequer ia à Europa. Descansava nas areias da Barra entre dubais, pescarias e
Kabandinas. A noite tinha caído quando o Heitor e a Sandrinha saíram. Antes porem, insistiu no
telefonema para a mulher. Pouco depois, o recolher obrigatório obrigou o João Paulo a ir também embora.
O Alexandre ficou sozinho em casa, entretido a ouvir música clássica. Vieram-lhe à cabeça algumas das
situações do jantar de ontem e pensou. O “Grande Humor”, o humor com agá grande, é uma fase superior
do drama. O outro, o cabotino, raspa o ridículo e atinge a parte mais inferior da tragédia! Ficou pensativo.
Telefonou para a Betinha.

Pouco depois das nove, chegou o Renault:

- Não esperava ver isto tão arrumado. Ontem quando saí olhei para trás e pareceu-me estar no Louvre a
ver o “Naufrágio da Medusa”. Mas o namoro pegou. Ele e a Tia Albina já faziam planos para o futuro. O
que pensará a D. Cesária quando vir esta intimidade toda?

- Não sei! Mas o melhor é sermos discretos. Temos que pensar na informação que vamos fazer para o
Delegado, dizia o Xandinho. Mas há uma coisa que te quero dizer: Vou contar o sarau ao meu
Embaixador.

- Também eu! Antes de ser europeu era francês. Porque é que não convidas os dois para virem cá jantar
com as respectivas embaixatrizes? Tens um bom cozinheiro e pedíamos ao Irlandês um empregado para
servir à mesa. De certeza que ele não se importava e até te emprestava uma baixela. Se calhar a Senhora
Paterson até vinha cá dar uns sons de harpa.
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- Se pagarmos a meias, tudo bem. Não tenho verba para alimentar o teu Embaixador.

Riram os dois.

- Agora o importante é pensarmos na informação para o Delegado. Convém ser em francês. O melhor é
pegares tu na máquina.

A informação rezou assim:

NOTA VERBAL

Senhor Delegado da Comunidade Económica Europeia,

Excelência:

Os abaixo assinados tem a honra de apresentar a Vossa Excelência os seus mais respeitosos
cumprimentos e informar que na noite de tantos de tal, teve lugar em casa do Senhor Dr. Alexandre Graça
Albergaria, que agora desempenha em Kabanda o cargo de Assistente Técnico junto do governo, um
jantar em que estiveram presentes, Sua Excelência o Senhor Simiano Katatúlio actual Ordenador
Nacional e Ministro do Plano de Kabanda, bem como alguns seus familiares.

Os abaixo assinados, durante o jantar tiveram oportunidade de manifestar a Sua Excelência a sua opinião
sobre a forma como decorreu a visita que alguns membros dessa Delegação efectuaram recentemente às
província da Sitila e do Calibe, com o objectivo de procurar novos projectos capazes de virem a
beneficiar e alargar a cooperação entre a Comunidade Económica Europeia e a República Popular de
Kabanda, bem como aprofundar os laços de entendimento entre este Estado e a CEE.

Pessoa de trato simples, Sua Excelência manifestou a opinião que a sua actuação no alto cargo para que
foi nomeado, será o de estimular as boas relações já existentes entre a CEE e o seu País, tendo realçado de
forma particular o interesse das altas instâncias do Estado na recuperação do Hospital desta cidade,
Vladimir Illitch Lenine, cujo o abandono após a Independência, devido à situação de guerra civil que o
país vive, atirou para a mais completa ruína.

A insistência neste ponto foi tal, que conjuntamente com a percepção que os abaixo assinados
recolheram, que a sugestão da referida recuperação partia das mais altas instâncias do Estado, levou os
signatários a assegurarem a Sua Excelência que iriam exercer toda a sua influência, para que esta sugestão
fosse tomada em consideração por essa Delegação.
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Mais acrescentam, que todo o seu discurso foi no sentido de que o envolvimento da CEE neste projecto
seria tomado pelo seu governo como um sinal positivo no sentido de incrementar as relações entre a CEE
e o Estado de Kabanda.

Os signatários aproveitam a ocasião para renovar a Vossa Excelência os seus mais respeitosos
cumprimentos.

Os Signatários, etc. etc.

- Os detalhes e mais imbróglios ficarão off-record. Disse o Xandinho. Queres comer alguma? O João
Paulo parece que fez um petisco e ainda não comi nada hoje:

Foi buscar o resto do cabrito e enquanto depenicavam, leram e releram a Nota Verbal.

- O prato está melhor que o de ontem. Disse o Renault.

A ressaca do Xandinho tinha passado e os dois dedicaram-se à cerveja com parcimónia.

No dia seguinte o Delegado ansiava-os e o Renault foi particularmente gozado. Alguém que tinha visto o
seu carro passear-se na cidade com um cabrito no banco de trás, contou à D. Helena e esta encarregou-se
de espalhar a notícia por toda a Delegação. O próprio Delegado ria com o relato e não resistiu em
perguntar a cor do pelo do bicho.

Sentaram-se à mesa de trabalho e puseram-lhe a Nota verbal na frente, que ele leu com atenção, mas
queria mais:

- Como é ele?

- Alto, magro e com bigodinho. Disse o Dr. Alexandre.

- Está bem! Exclamou quase irritado. Mas e que mais?

Entraram nos detalhes. Puseram ênfase particular nas relações com a Tia Albina e em toda a história da
Universidade Patrice Lumumba. Encolheram naturalmente o fim de festa e os pormenores mais
impróprios.

- Good! Good! Repetia. Quando é que mo apresentam?

O telefone tocou.

- “Bom dia! Mas que prazer ouvir um passarinho a cantar aos meus ouvidos logo de manhã”! Era o
humor irlandês a funcionar. “Como vão os meninos”? Piscou o olho ao Xandinho. “Não a vejo desde o
Calibe”! Era a D. Cesária. “ A Senhora dança como um anjo”! Era o cristianismo a subir-lhe à cabeça. “E
o marido”? Era uma mistura de humor inglês com a inconsciência irlandesa. “Que posso fazer por tão

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bela voz”. Era um misto de diplomacia rosqueira com arrufos de cinquentão mulherengo. “Está mesmo
aqui comigo. Quando acabarmos eu digo-lhe”!

Pousou o telefone.

- A D. Cesária quer falar consigo. Disse ao Alexandre. Corra para o Ministério. Eu acabo aqui o trabalho
com o Renault. Será que o Ministro… Como é que se chama?

- Katatúlio! Simiano ou Victor Katatúlio! Como queira.

- Será que ele já contou à D. Cesária o que se passou no jantar?

- Duvido. Disse o Xandinho. E se falou com ela não lhe disse tudo. Acho que ele ficou a depositar
confiança suficiente em nós para não contar nem as vergonhas, nem o importante.

O Alexandre partiu sem grandes demoras nem grandes despedidas para o Ministério da Relações
Exteriores. Tinha sono e sentia um ligeiro ardor na face. O Heitor tinha-o acordado de madrugada para
levar a Sandra para a Barra e ela tinha chegado a casa tardíssimo. Felizmente o Xandinho tinha deixado a
chave da porta com o Jorge. Mas mesmo assim estes despertares destemperados, para quem tem o sono
leve como ele, amoleceram-lhe as vontades, e a perspectiva do encontro com a D. Cesária, não lhe
aguçava muito o empenho. Preferia pensar na Sandra, a aplicar os sentidos noutra óptica qualquer. A
propósito da droga lembrou-se do Malraux e da Servidão Humana que era um livro que lhe estava na
garganta porque nunca o tinha conseguido ler. Sempre que tinha tentado começar a lê-lo parava no título e
tirava passaporte para uma longa viagem que ia desde a tragédia da toxicodependência até à tão
apregoada resistência francesa, passando pela descoberta do caminho marítimo para a Índia. Ainda hoje
não sabe do que se trata. Só o título enche-o. Agora já não quer sequer lê-lo, com medo que o conteúdo
lhe destrua as peregrinações que já fez, montado unicamente em cima do título. Ler, talvez seja isto:
Interromper relatos de caminhos e inventar veredas íntimas.

O Xandinho nos momentos de mais abatimento, já tinha tentado esgalhar alguma poesia. Mas a meio
inventava avenidas onde as multidões se cruzavam a respirar dramas, a desatar conversas, ou a abrir
sorrisos e nunca tinha conseguido acabar uma quadra que fosse. Agora pensava na Sandrinha como se
fosse um livro, do qual ele se tornara um personagem ambíguo. Repudiava as saudades que sentia dela,
mas magoava-o imagina-la a “abanar um coqueiro” com o Heitor, algures numa plantação da Barra. Não
podia sentir-se enchifrado, porque só a memória dos parentes e a liberdade dos gozos os uniu. Mas a
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proximidade do seu corpo estatuado, cheio de artes e engenhos, afiavam-lhe o ego e a auto estima.
“Prazeres” seria também a certeza de lhe estar a proporcionar duches e higienes do corpo, juntamente
com alguma estabilidade pomposa relativamente abastada. Talvez fosse esta a tal “ajuda” à qual a
Sandrinha estava grata e de que tantas vezes lhe falara. Pouca gente imagina o prazer que é num clima
tropical uma pessoa chegar a casa dum amigo, suada e com desalento, e este oferecer-lhe um duche. É
presenteá-lo com a sua intimidade! É prova de fidúcia, por que nos quartos de banho estão gravados as
impressões digitais da nossa privança. “Normalmente em vez disso”, pensava o Xandinho, “perguntamos
alarvemente: - Queres uma cerveja geladinha? E o amigo lá fica com os prazeres da goela, desbaratado
pelos calores e fedores do corpo”.

- Tenho que escrever um livro de boas maneiras para uso tropical, dizia para consigo o Alexandre, onde
vou recomendar que nestas circunstâncias, a cerveja só deve ser oferecida depois de se ter obsequiado o
visitante com um duche. Só aí, quando os entendimentos estiverem levantados, e as carnes recompostas
dos pivetes, se deverá presentear uma cerveja. Assim saboreia-se a bebida com limpeza de alma e pode
abrir-se uma boa conversa sem lástimas.

Estes pensamentos levaram-no num instante ao Ministério mal cheiroso dos Negócios Estrangeiros. O
elevador de vidros estilhaçados não funcionava. Tinha que ir “de escadas”, como se dizia em Kabanda,
mas sentia uma certa repugnância em encostar-se ao corrimão seboso. O ar soturno dos corredores sem
luz era rematado por alcatifas esmaecidas pela antiguidade dos luxos. Sabia de cor e salteado onde era o
gabinete da D. Cesária. Mas talvez por ser estouvado ou porque seu subconsciente lhe dissesse que ia
gramar mais uma seca de Marxismo, subia sempre um andar a mais e abria a porta dum funcionário que
ou bebia chá ou lia o jornal. Descia depois lentamente a praguejar contra o tempo perdido.

- Bom dia D. Cesária! Disse abrindo a porta.

Mandou-o sentar no sofá das visitas com pompa e circunstância:

- Contrariamente ao que vocês fazem, que têm conversas com Governadores das províncias nas minhas
costas, gostava de dizer-vos que esta tarde vou-me apresentar ao novo Ordenador Nacional e Camarada
Ministro do Plano e gostaria que alguém da Delegação me acompanhasse.

- Não tenho nada contra, mas devo dizer-lhe que jantei com ele ontem há noite.

Foi como se um corisco tivesse caído na cabeça dela. Levantou-se devagar e foi até à janela respirar ar
fundo. Quando voltou vinha a desabafar entre os dentes:

- Deve ser um desses militantes feitos à pressa que nem viveram a clandestinidade, nem o mato, nem as
guerras de 75.

O Xandinho deu a entender que tinha percebido o zunir:

- Pareceu-me que ele é muito íntimo do Senhor Presidente.

Acirrou-a ainda mais.


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- Veio do Palácio directamente para minha casa. Ela ficou acirrada de todo.

- Ele e o Senhor Presidente estiveram juntos em Moscovo. Além disso o Ministro tem um longo
curriculum académico.

- Mas como é que o conheceu, se mesmo dentro do partido não me quiseram falar dele?

- Eu sou muito amigo do irmão que está em Lisboa e o Senhor Simiano Katatúlio tem cá a mulher de
quem estava separado e uma sobrinha que também jantaram lá em casa.

- Eu vi logo que aí andava o dedo de Portugal. Não bastava terem-nos colonizado durante quinhentos
anos, agora metem-se nos nossos assuntos internos, com almoços e jantares.

O Xandinho não respondeu. Pensou que hoje, se ainda pudesse passaria pela sua Embaixada para dar
novidades ao Embaixador.

- Ele falou-lhe de projectos? Perguntou a D. Cesária.

O Alexandre hesitou:

- Não!

- Vê? Se eu tivesse ido teria falado. Pois fique a saber, disse com ar emproado, que o governo da
República tenciona propor que a Comunidade assuma a reabilitação do hospital Vladimir Illitch.

- Pela parte que me toca, apoio inteiramente. Disse o Xandinho. É uma questão de a Senhora fazer essa
proposta à Delegação em nome do seu governo, e garanto-lhe sob minha palavra de honra, que nesse dia a
pretensão seguirá para Bruxelas, com o meu voto de aprovação. Quase lhe garantia também o voto do
Delegado mas não posso falar por ele.

Os olhos da D. Cesária brilhavam. Quando fosse falar com o Ministro já levaria na manga a conversa
que tinha tido com o Dr. Alexandre e talvez dizer-lhe que graças ao seu tacto e força revolucionária a
Delegação tinha decidido apoiar a pretensão do governo.

O Xandinho olhava para o relógio. Agora sentia um ligeiro rubor na face.

- Já o conhece, mas logo pode ir ao ministério cumprimentá-lo.

- Vou. Com certeza que o Renault quererá ir.

- Então estejam aqui às dezassete. Despediram-se.

Olhou de novo para as marcas das balas no carro e para a amolgadela no guarda-lamas. Deu-lhe um
calafrio.

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- Tenho que mandar arranjar isto. Disse para consigo. Eram quase horas de almoço e decidiu ir directo
para casa.

Estavam a 25 de Outubro de 1986. Fazia naquele dia nove meses que o Xandinho estava em Kabanda e
nada tinha mudado. O lixo continuava amontoado nas ruas dando a ideia duma cidade abandonada ao seu
destino. Uma poeira fina e doentia enevoava o céu e a guerra mantinha-se num impasse que estava para
durar. Em qualquer dos lados, havia uma elite que temia o seu fim. Vítimas à parte, um conflito traz
sempre privilégios aos seus actores e estes são metodicamente treinados para fecharem os olhos à
devastação. Lembrou-se que uns dias antes de chegar, a Delegação tinha recebido instruções de Bruxelas
para fechar as portas em Kabanda, tal era o estado a que tinham chegado as relações entre o país e a
comunidade. Sentado no carro, o Alexandre experimentou uns suores frios seguidos de arrepios intensos,
mas não ligou. Manteve o rumo traçado.

Quando chegou a casa sentiu-se quente e pediu ao João Paulo um copo de leite. Tentou almoçar mas a
comida não lhe passava na garganta. Pensou o pior: “ E se ficasse doente num país sem médicos”? “Mais
um argumento para apoiar a reabilitação do Vladimir Illitch” (pensou). Telefonou para a Delegação a
dizer que não estava em condições de ir trabalhar de tarde, mas tinha urgência em falar com o Renault e o
Delegado até às dezasseis horas. Deitou-se no sofá e o João Paulo veio cobri-lo com uma manta. Tiritava
como ramos verdes.

- Isso é paludismo, Patrão.

- O Senhor Heitor já veio? Perguntou o Xandinho.

- Ainda não!

Antes de adormecer pensou nas danças do Calibe e do jantar lá em casa para concluir que as relações
diplomáticas entre Kabanda e a Comunidade iam de vento em popa. O que estava na moda agora na
cidade eram os “Cai-Cai”. Ele não sabia donde vinha aquele nome, nem nunca tinha frequentado nenhum.
Mas sabia tratar-se de casas particulares situadas normalmente nos bairros chiques, que por volta das seis
da tarde se abriam aos bem-vestidos e estrangeiros. Mantinham toda a intimidade duma casa particular,
desde fotografias de família, bugigangas de adorno, reproduções baratas de quadros de renome, etc. mas
os móveis principais eram arrumados noutros quartos cuidadosamente fechados à chave e substituídos por
mesinhas de plástico redondas cobertas de toalhas brancas. O chão era cuidadosamente encerado e a um
canto, erguia-se um bar em contraplacado a imitar mogno antigo. O soalho era de boa madeira em
rectângulos de jambir com várias tonalidades. Normalmente os “Cai-Cai” pertenciam a descendentes de
famílias tradicionais que para manterem as vidinhas, abriam as portas da sua intimidade e faziam dela
negócio. Quem quisesse tomar alguma coisa ia ao bar de talha em contraplacado e pedia o que quisesse,
pago a preço de ouro. Para os melhores da casa ou para os mais aperaltados, havia mesmo dois quartos
com camas de solteiro e sofás cobertos de plástico para assuntos mais íntimos ou que carecessem de mais
recôndito. A regra porem, era de que a porta não podia ser fechada. Para tais clandestinidades pagava-se a
dobrar, mas havia criados no corredor a quem os clientes davam propina para afastarem olhares mais
curiosos. Eram um vespeiro de boatos. Falava-se de tudo. Vendiam-se carros, armas e até moedas antigas.

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Foi a mão doce da Sandrinha que o acordou. Ali estava ela com o Heitor, os dois de pé, a olharem para
ele com um ar de comiseração. Agora, mal se podia mexer. Doía-lhe o corpo.

- Isso é paludismo. Repetia o Heitor.

- Já me lembrei de pedir à Betinha para me trazer alguns comprimidos. Mas o Delegado deve estar a
chegar e com certeza que trás.

- Telefona à Beta, disse ele.

Estavam queimados do sol e exibiam ares de cumplicidade. O Xandinho fez de conta que aqueles ares
felizes não eram nada com ele. Pensou que a companhia o ajudava a sair daquele mau estar horrível:

- Não querem pôr música baixinha?

Ele admirava a lata do Heitor. – “Se a mulher viesse com os comprimidos que história lhe iria contar
acerca da Sandra”?

- Onde foram ontem à noite? Perguntou.

- Corremos três ou quatro “Cai-Cai”. Mas eu gostei mais da Mamalhuda por causa da música. É mais
barata e podes pagar em cerveja. Disse a Sandrinha.

- Espera lá que não estou a perceber. Então tu pagas em cerveja num sítio onde bebes cerveja?

- Pois! Mas tens música e nós fomos para um quarto para o Heitor não ser visto. Podiam ir dizer à
mulher.

- Já percebi. Disse o Xandinho.

- Estás com ciúmes? Perguntou ela sentando-se na beira do sofá.

A conversa foi interrompida pelo João Paulo:

- Está ali Sua Excelência com o Senhor Francês.

- Vocês devem querer falar de serviço. Vamos até ao jardim (disse o Heitor para a Sandra).

Eles iam a sair quando o Delegado entrou:

- Trouxe-lhe comprimidos para o paludismo. Disse ele. Esta pelos vistos é a Sra. D. Sandra. A minha
mulher falou-me da sua beleza e pelos vistos não exagerou. Quer convidá-la para um chá. Eu depois falo
com o Dr. Alexandre para combinarmos isso. O Xandinho apresentou-lhe o Heitor e fez tensão de se
levantar. O Renault impediu-o.

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Sexo, Drogas e Diplomacia
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Katatúlio um Homem de Estado

- O Senhor Heitor trabalha para o PAM. Já troquei com ele ideias sobre a distribuição de ajuda alimentar.

- Nem doente para de trabalhar. Disse o Delegado. Melhore e depois falamos de ajuda alimentar. Tem
aqui os comprimidos. É um de seis em seis horas. Fique em casa. Com tantos amigos à volta o que quer
de mim?

O Alexandre fez um sinal à Sandra para saírem e contou ao Delegado o seu encontro com a D. Cesária.
Riram a bom rir:

- Mas convinha que o Renault fosse com ela ao Ministro e desculpasse a minha ausência com a doença.
Já leu a “Nota Verbal”? Perguntou o Xandinho.

- Já. Fizemos umas pequenas alterações mas o essencial manteve-se. Seguiu por fax para Bruxelas,
acompanhada com um ofício meu a apoiar a ideia. Era bom que os nossos burocratas se dessem conta da
importância que para nós e para eles tem este assunto. Já falei com o grupo que foi connosco às
províncias para os convencer do nosso interesse. Estão cá e podem bem avaliar a situação.

- O Renault, quando for para lá, também pode pôr alguma água benta. Disse o Xandinho.

- Diz bem quando for e se for...

O Renault olhou-o com um ar surpreso. Nunca lhe tinha aventado tal coisa mas manteve-se calado.

- Pede ao João Paulo um whisky velho para o Senhor Delegado. Disse-lhe o Alexandre.

O Delegado acabou de beber e saiu.

- O que é que ele quereria dizer com aquilo?

- Não faço a mais pequena ideia. Disse o Alexandre.

Quando a Sandra e o Heitor voltaram do jardim ambos gozaram com ela por causa do chá.

- Ainda vais aprender a tocar harpa. Dizia-lhe o Renault.

- Ou apareces aí feita Maria Callas. Disse o Xandinho.

Raramente o Heitor falava de política mas tinha estado num “Cai-Cai”, e trazia novidades: Falava-se
intensamente na introdução da pena de morte no país. Na realidade ela já existia. A polícia de choque era
quase exclusivamente composta por soldados que vinham da frente habituados à morte, para quem as
vidas pouco ou nada lhes interessava. Ladrão ou simplesmente desordeiro em primeiro grau, podia em
pleno dia ver os seus segundos chegarem ao fim. Uma vez, contava o Heitor, tinha assistido a um
linchamento na via pública, em frente a uma esquadra da polícia.

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Sexo, Drogas e Diplomacia
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Katatúlio um Homem de Estado

- E porque é que julgam que eu não entro no meu Bairro depois das sete da noite? Perguntou a Sandrinha
com a voz meio embargada.

A ordem mínima, nunca pode ser instalada num país em guerra. Pensava o Renault, que tinha vivido
várias situações de conflito. Aqui, a maior parte dos soldados têm origem camponesa e foram arrancados
às suas aldeias. Para eles a guerra é a grande aventura. Depois as mortes fazem parte dos seus currículos e
os massacres são um posto. Ele achava piada à expressão “ o ataque atingiu os seus objectivos”! O que
eles querem dizer em língua de gente é que a ofensiva fez uma grande matança! Dizia peremptório.

Durante os dois primeiros dias que o Xandinho ficou em casa, o Heitor e a Sandra, à tarde vagueavam
pelo jardim e à noite invariavelmente iam para um “Cai-Cai”. Claro que na manhã seguinte a Sandrinha
ficava na cama até ao meio-dia. Ao terceiro dia de doença não aguentou mais e ao fim da tarde vestiu-se a
preceito. Resolveu ir sozinho a um “Cai-Cai”. Animava o Alexandre não conseguir estar muitos dias
deitado. Sentia uma pontinha de ciumeira e também receios injustificados de que a Betinha acirrasse com
as horas tardias a que o Heitor chegava a casa e lhe deitasse culpas. De resto já estava quase bom, embora
ainda sentisse uma pontinha de febre. Apontou para si o retrovisor do carro e pensou:

- Emagreci um bocado nestes dias. Era cedo para jantar.

O preço da solidão é tomar uma bebida no mais completo silêncio. Partiu para um “Cai-Cai” que lhe
diziam estar na moda. Era uma espécie de boite nos arredores da cidade, mas mais para o fino. As mesas
de plástico irritavam-no mas condiziam com umas rosas também de plástico que estavam sobre um
móvel. O Celso, ou o coronel Hofman, tinha-lhe dado a conhecer o Seripipi. Era um quintal de terra
batida onde reinavam patos e aves de capoeira. No tempo antigo era o ponto final de estroinas e
bebedeiras para artistas, putas, poetas e músicos. Ainda hoje a música da terra senhoreava por lá. Por lá
paravam também alguns homens da rádio e locutores da televisão actual mas fora em tempos idos um
ponto de encontro de jovens independentistas, muitos dos quais acabaram na guerrilha. Agora tinha sido
ocupado por um jovem do partido no governo, no mesmo dia em que o dono tinha vindo a Lisboa visitar a
família.

Parecia que toda a gente que frequentava o Seripipi e que o Celso tinha apresentado ao Xandinho,
decidira aparecer na Mamalhuda, o “cai-cai” que escolhera naquela noite. Para grande espanto de todos os
frequentadores habituais, aqueles que tinha conhecido no Seripipi saudavam-no com reverência.

- Quem é? Perguntavam alguns clientes à dona da casa. Ela respondia invariavelmente com um encolher
de ombros.

Antes de se sentar, cumprimentou efusivamente cinco ou seis pessoas, entre elas o Director da Cruz
Vermelha Internacional, patrão da Betinha, português branco, casado com uma inglesa que em pouco
mais dum mês tinha ficado mais preto de alma que os kabandinos de raça. Tocava congas e marimbas
como poucos, mas naquela noite entretinha-se com uma bateria manhosa que estava a um canto do salão e
gozava de prazer com os solos desarticulados que conseguia arrancar à caixa, ao bombo, à pandeireta e
aos pratos.

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Katatúlio um Homem de Estado

O menu, como em quase todos os restaurantes de Kabanda na altura, era frango assado na brasa.
Mandou vir uma garrafa de vinho búlgaro que era o único que existia no cardápio. “A solidão custa um
vinho rasca” (pensou). O baterista tinha acabado o seu solo e a aparelhagem tocava uma daquelas
harmonias de constituir família. Ainda dançou duas ou três músicas com uma desconhecida odorada a
corpo com falta de água. Mas o Xandinho ainda não estava em forma. Sentia-se quente e tinha que ir para
casa tomar o último comprimido do dia.

Quando chegou, há muito que o João Paulo tinha partido mas deixou em cima da mesa um bolo coberto
de chocolate que tinha feito durante a tarde. Viu as últimas notícias da televisão local.

Despertou a meio da noite com a sensação de ter dormido algumas horas e agora tinha receio de não
adormecer. O desastre do seu sono era mesmo o receio da insónia quer no princípio da sossega quer no
meio do descanso. Nessas alturas sentia um afogo que lhe dizia que ia passar umas horas de vela,
torcendo-se e retorcendo-se na cama até que um espinhoso cansaço o obrigasse a subjugar-se aos braços
de Morfeu. Sentiu o canastro sem o aconchego da Sandra. Agora o seu grande problema era a solidão e o
medo. Talvez seja a esta mistura explosiva que os psiquiatras chamam ansiedade. Nessa noite teve e nítida
sensação que o único caminho que a Sandrinha encontrou para desfrutar o aconchego da paz e do
entendimento próprio, passava pelo sexo carinhoso. Aos vinte e poucos anos, quando já finaram os
devaneios de juventude, a solidão consciente e conformada, devem ser um sentimento destruidor. Nada
como dádivas intimas para se sentir a importância do ser, e desatrofiar os impulsos do ego. A libido
satisfaz tantos sentimentos que até a ansiedade sucumbe. O Xandinho voltou a adormecer com estes
pensamentos confusos.

Passou-se quase uma semana rotineira. O encontro do Renault com o Katatúlio correu sem incidentes
mas segundo ele contava o Ministro de vez em quando a enganava-se e tratava-o por tu, para grande
espanto da D. Cesária. Tudo tinha entrado nas usanças costumeiras. Ia de casa para a Delegação e daqui
para os Negócios Estrangeiros conferenciar com a D. Cesária, que estava mais calma e evitava falar de
Marxismo. Ao fim da tarde os dois amigos partiam invariavelmente em direcção à Ilha. A única novidade
era que o Heitor, a Sandra e a Tia Albina, tinham desaparecido por completo da circulação.

- Que estranho. Disse um dia ao colega! Estou aqui à mais de sete meses e nunca fui ao Ministério do
Plano.

- Não perdes nada. Disse o Renault. O Simiano diz que quer fazer obras e bem precisa para dar alguma
dignidade ao edifício. Deixa-o fazer as obras e depois vais lá. Antes podes apanhar um choque.

Nessa tarde o Xandinho tirou-se dos seus cuidados e foi a casa do Heitor: Era a mesma agitação de
sempre. O ex-Ministro do Comércio era obviamente uma boa fonte de informação. Nesse dia discutia-se
ainda a remodelação ministerial e a incógnita que era a figura esguia do Katatúlio. Sentiu-se um
privilegiado mas não abriu o jogo. A casa ao princípio da noite era uma espécie de encontro de jovens
turcos que ansiavam claros sinais de mudança e uma abertura do sistema espartano que a guerra tinha
imposto à cidade. A velha, a mãe da Betinha, ostentava uma beleza grisalha comida pela idade. Só às
horas do regresso do trabalho é que a família não estava desmembrada. O Justino, assim se chamava o ex-
Ministro, vivia com a mulher e os filhos na casa de funções que não tinha deixado. Na enorme vivenda do
centro da cidade, que certamente tinha sido ocupada na voragem do abandono dos colonos, viviam a
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Betinha, o Heitor e os dois filhos pequenos no rés-do-chão. A Senhora de beleza grisalha vivia no
primeiro andar como convinha ao seu estatuto. Havia também o Zezinho. O tal que tinha métodos
infalíveis para levar a bom termo a ajuda alimentar! Esse exigia independência e vivia nuns anexos ao
fundo do quintal onde guardava uma aparelhagem potentíssima que animava algumas noites de convivas
estrangeiros que traziam para as festas cerveja e outros álcoois. Tirando essas noitadas de luxo, na
vivenda a ração era vinho de palma bem fresco que escorregava em abundância pelas goelas.

- Para mim, dizia o Justino sabedor dos assuntos: A remodelação ainda não acabou. A seguir vão alguns
Secretários de Estado. Não se concebe por exemplo que o Comércio só tenha um Ministro e nenhum
Secretário de Estado.

A Betinha chegou tarde. Alguma consulta fora de horas ou uma injecção imprevista tinham-na
demorado. Quando chegou foi a correr ter com o Xandinho:

- O Heitor? Perguntou.

- Não sei! Exclamou surpreendido. Vim cá de propósito procurá-lo.

- Pois eu julguei que estivesse em tua casa. Desde que telefonaste a dizeres que jantava lá, nunca mais
apareceu. Sei que tem ido trabalhar, o que me descansa. Mas aqui não aparece há quase uma semana. É o
costume: Alguma mulata que arranjou na noite e vai estar quinze dias sem aparecer.

- Nem muda de roupa?

- Aqui não são precisos luxos desses. As cuecas secam da noite para o dia.

As coisas estavam agora envoltas num grande mistério. A ausência Tia Albina não o admirava. Com
certeza estaria no Hotel do partido a fazer tirocínio para Ministra. Mas a Sandra e o Heitor não
aparecerem incomodavam-no. Imaginou-os a viverem de casa e pucarinho algures nos subúrbios mas
achou a hipótese falsa: O Heitor e mesmo ela não passariam sem um bom banho. Decidiu dar pouca
importância ao assunto e avançou para casa onde o João Paulo o aguardava de mesa posta.

Foi à cozinha buscar uma cerveja e telefonou ao Renault desabafando-lhe as dores destas ausências. O
empregado ouviu o telefonema e veio a correr:

- Patrão! O Senhor Heitor e a menina já cá vieram duas ou três vezes à tarde. Comem qualquer coisa,
tomam banho e saem. Não disse ao Sôtor porque pensei que soubesse. Praticamente eles são da casa.

- Deixa! Não faz mal. Tranquilizou-o.

- Devem ir para a Barra, porque o Sr. Heitor uma vez trouxe peixe para a casa e sardinha para mim.
Como já levaram um cobertor, penso que vão para o mar.

O Xandinho voltou a telefonar ao Renault para contar mais novas:

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- Devem ir para a Barra passar férias numa cabana.

Acabou por convidá-lo para jantar com a promessa de uma comida caseira para fugir à rotina do Hotel.
O João Paulo adorava que ele lá fosse. Sentia-se mais útil e por ventura evitava a D. Irritação. O Renault
agradecia-lhe sempre as atenções com um dólar na mão e de vez em quando ia à cozinha oferecer-lhe um
cigarro ou um pouco de rhum que mais ninguém bebia lá em casa a não ser a Tia Albina. Quando estavam
os dois sozinhos ele também ia até ao salão se o convidassem. Eles adoravam ouvir histórias do
Brigadeiro. Naquela semana o Alexandre também não tinha parado muito em casa.

- O jantar é escabeche.

O Renault não sabia o que era. Era uma palavra que não cabia no seu linguarejar e das ementas francesas
só constava para o arenque.

- Vem e depois vês o que é. Pousou o telefone.

VI

Há já três dias que não ia à Delegação. Este tempo passado no remanso de casa aquietaram-lhe as
saudades da mulher e fizeram-no madrugar. Passeava-se pelo jardim onde tomava o pequeno-almoço.
Brincava com a Riqueta ainda de cueiros. Um dia ralhou com a D. Isaura por a trazer mal vestida,
inspeccionou a casa do jardineiro e pregou com eles por fazerem fogo dentro de casa:

- Não quero isto aqui! Disse ele. Querem fazer fogo, utilizem o grelhador que está à porta da cozinha.
Ainda pegam brasa a tudo ou pior, ainda intoxicam a menina. Disse a mesma coisa ao João Paulo para ele
cuidar da higiene da casa do sobrinho. A D. Irritação com o dedo no nariz olhava para um monte de roupa
que tinha para passar. Reparou que no meio daquilo tudo havia cuecas, meias e camisas que não eram
dele. Seriam provavelmente do Heitor. Viu também roupa interior e os jeanes da Sandrinha, tudo
misturado:

- Que grande par de armaduras! Cismou para consigo. Mas se eu os tenho, ele tem uns chavelhos que
chegam daqui à Barra. A vingança consolou-o, mas não lhe moderou o fardo. Meteu-se no carro e foi à
Delegação. Ao fim da avenida Ho Chi Minh, reparou mais uma vez no tamanhão da Baia:

- Que pena a cidade estar tão suja, lamentou.

Em Kabanda, a grande sapiência do governo, ou se quisermos um dos segredos para a manutenção da


guerra que a pequena classe dirigente sigilava, era a generalização da lástima. O desaparecimento da noite
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para o dia das classes médias criou a miséria entre as gentes. As poucas famílias que tinham tomado o
poder, tinham também aleitado a igualdade entre elas, não havendo lugar a rixas. O golpe de estado estava
fora de questão já que os generais se abastavam na mesma gamela. A guerrilha por seu lado não procurava
reflexões mas quinhões lautos.

De tão cedo que era na Delegação só estava a alemã sardenta e matulona. Cumprimentou-a com dois
beijos escrupulosos e foi para o gabinete ler o jornal do dia. Em grandes parangonas anunciava a
demissão do Ministro da Saúde e a sua substituição por um tal Camarada Afonso Mindinho, de quem
nunca tinha ouvido falar, mas que segundo o periódico tinha cursado em Lisboa. “Se calhar chama-se
Afonso Costa, e Mindinho ou é alcunha de infância ou nome de feitiço”. Pensou ele. Sentiu alguém bater
com a porta de entrada e dirigir-se à sala da cifra. O Delegado era o único que tinha a chave daquele lugar
sigiloso e naturalmente era ele. Passados uns tempos surgiu no seu gabinete com um monte de telegramas
amarelos e cor-de-rosa, sendo uns os correntes e os outros confidenciais. Estes eram cuidadosamente
arquivados num cofre:

- Good Morning! Disse ele com um sorriso de orelha a orelha. Que bom vê-lo por aqui! Já tinha tido
paludismo?

- Já! Em Moçambique.

- Quem nunca teve paludismo, não pode dizer que esteve em África. Com outro enorme sorriso
estendeu-lhe um telegrama cor-de-rosa que já tinha passado pelo descodificador. Antigamente usava-se
um dicionário dum humor bacoco e uma mensagem de meia dúzia de linhas demorava horas a
descodificar. Por vezes dava recados estúpidos como este: “Cachimbo cachimbo carimba-se leite
Ganges”. Queria dizer: “Atenção atenção prevê-se inundação no Ganges”. Depois com o advento da
informática estas pilhérias desapareceram.

A participação rezava assim:

TELEGRAMA

“URGENTE RESERVADO”

“Após estudo assunto ofício KAB/86/1304 mais apensa nota verbal proceda primeiro levantamento
recuperação Hospital Vladimir Illitch Lenine”.

O Renault já tinha chegado e leu a mensagem com tal-qualmente alegria.

- Mas o Ministro ainda nem formalizou o pedido! Disse o Xandinho.

- Pois não! Retorquiu o Delegado. Mas graças à Tia Albina, à D. Sandra e a vocês, quando formalizar
vou fazer um vistão. Telefono-lhe de imediato e digo-lhe: “Com o meio apoio, conte já com a aprovação
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de Bruxelas”. Claro que ele vai lembrar-se do cabrito e da noitada! Mas eu faço um brilharete. Vão lá
tratar da oficialização. Vão directos ao Ministro. Não passem pela D. Cesária.

- Calma! Disse o Renault. O levantamento passa por uma parte técnica. E nós na Delegação não temos
meios para isso.

- Pois não! Disse o Delegado. Porque é que julga que quero que fique cá? Não percebe nada de técnica
mas é desenrascado!

O Renaut estonteou com a revelação e assarapantou com o encómio:

- Pois… Talvez… Disse ele.

Levantaram-se os dois meditativos.

- E esta? Desabafou já no carro. Está bem que não perceba nada de técnica! Está bem que tenha ideias!
Mas isto não se diz assim! Eu até nem me importava de cá ficar! O que faço em Bruxelas e nada é a
mesma coisa! E casa?

- Eu gostava que cá ficasses. Disse o Xandinho. Oferecia-te um quarto! Mas quando vier a minha mulher
é uma chatice! Para o Ministério do Plano (disse ao condutor).

- Obrigado, mas nem eu aceitava! Ele que me arranje casa condigna. Depois falamos.

- Já sabes que com “digna” é difícil.

Riram-se os dois. A piada já tinha corrido meio mundo. Seguiram em silêncio para o Plano. Era a
primeira vez que o Alexandre entrava em tal sítio em sete meses de Kabanda:

Era um antigo casarão colonial que antes da independência tinha servido para albergar a “Associação de
Residentes Chineses”, função da qual ainda guardava alguns traços de decoração, nomeadamente uns
balões de papel vermelho desbotado.

Àquela hora os corredores larguíssimos e compridos estavam desertos. Os únicos sinais de vida eram
dados por alguns soldados que dormiam à porta de gabinetes misteriosos onde era suposto passar-se
qualquer coisa. Ao lado deles repousavam as tradicionais Kalashenikoves e o Alexandre pensou que esses
soldados deveriam ser tal como o guarda-costas do ministro primos recém-chegados da frente, a
usufruírem um merecido descanso do guerreiro. O silêncio, só quebrado pelo bater dos seus passos no
soalho antigo, impressionava-o.

Ao fundo do corredor, era o gabinete do Ministro, que se distinguia dos outros por em vez de uma
sentinela ter duas. Ao aproximarem-se delas, os soldados levantaram-se como uma mola e numa
reverenda posição de sentido indagaram ao que vinham. Anunciaram-se. Um deles galgou a porta e voltou
de seguida para os introduzir numa antecâmara: Duas secretárias tomavam chá com pão seco sentadas em
frente de dois computadores apagados. Uma delas apontou-lhes cadeiras encostadas à parede e continuou
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a beber o chá. Uma luz ténue descia pela bandeira da porta por onde tinham entrado. A electricidade tinha
falhado ou a obscuridade ainda era resultado das malfeitorias causadas pelos tumultos de há umas
semanas atrás. As secretárias afastavam os calores com uma folha de papel, quando outra porta se abriu
por onde assomou o Katatúlio:

- Entrem! Ordenou. O gabinete era enorme e guardava traços antigos da decoração chinesa mas ao
mesmo tempo não disfarçava a arquitectura colonial. Quatro varandas abriam-se para a rua ornadas de
pesados ferros forjados. “Bem-vindo oh! Alexandre”!

- Aqui tenho que tratá-lo por Sr. Ministro pelo menos.

- Aqui está bem! Mas em casa não! A Sandra como está?

- Não sei! Há dias que não a vejo. E a D. Albina?

- Não sabe? Partiu no Domingo para Portugal, disse o Katatúlio.

Os dois olharam-se boquiabertos.

- Graças a ti, Alexandre, apaziguamo-nos e vamos a assistirmo-nos juntos. Foi a Lisboa comprar umas
roupitas para ela e para a Sandra. Também umas coisas para a casa.

- Já tem casa? Perguntou o Renault.

- No bairro do Alexandre mas com vista para a Baía. É aquele casarão mesmo ao lado da Embaixada da
França! Era da ex-mulher do Presidente, mas ela foi-se embora de vez. O Camarada Presidente pô-la a
andar. Vêm três contentores de Lisboa só com trastes. A casa tem mobílias, mas eu não gosto. Parecem
móveis de Secretário de Estado. Quero daquelas com dourados e mesas de metal amarelo com vidro por
cima. Estofo, tudo em veludo azul claro como a Albina gosta.

- Mas oh Ministro! Dizia o Renault. Aqui tem mobílias muito bonitas em pau-preto trabalhado.

- Isso fica para a cozinha! Fez uma pausa para depois exclamar: Admira-me a Sandrinha!

- Se calhar foi guardar a casa da tia. O Xandinho ocultou-lhe o caso do Heitor.

- Pois se calhar! Mas eu não queria que ela vivesse ali. Nem sequer lá fui nem vou mas sei que tipo de
gente mora no Bairro dos Mãos Leves. Aquilo é um babilónio.
Sabes onde é que ela mora, Alexandre?

- Eu não sei lá ir mas o condutor do Renault sabe.

- Pois “hadem” mandar-lhe recado. Na minha posição prefiro alugar-lhe um quarto no Hotel do partido.
Até parece mal saberem que a minha sobrinha de sangue mora ali.

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- Até eu lhe arranjava um quarto até o Sr. Ministro ter a casa pronta. Disse o Alexandre só para parecer
simpático.

- Pois eu sei que sim. O meu irmão tem-lhe muito respeito. Mas não há-de ser preciso.

O Xandinho respirou de alívio.

- Mas oh Ministro! O Renault tratava-o assim. Ainda não oficializaram o pedido de reabilitação do
Vladimir!

Com o Vladimir, também era tu cá tu lá!

- O quê? A Cesária ainda não tratou disso? Disse o Katatúlio. E fala-se dela para Secretária de Estado!

- Pois se calhar é por isso! Disse o Renault a divagar. Depois acordou subitamente: Mas já agora ó
Ministro: Secretária de Estado de quê?

- Do Turismo. O Camarada Presidente diz que ela gosta muito de viajar.

Era o pontapé para cima. Turismo era qualquer coisa que não existia em Kabanda. Deve-lhe dar jeito
para comer com a família à borla no “Quatro Estações”, nos “Cai-Cai” ou no Seripipi.

- Pois tratem vocês de oficializar isso! Disse o Katatúlio. E não digam nada à Cesária. Eu depois conto-
lhe as favas. ” Carolina! Chamou uma secretária. Trás lá dez folhas com a cabeça do Ministério.

Quando a rapariga entrou o Renault deitou-lhe os faróis de alto abaixo:

- ” Ministro! É um pedaço de mulher.

- Só é pena não saber escrever à máquina. Lamentou-se ele.

O Xandinho olhou demoradamente à volta.

-Está a ver a decoração? Perguntou o Ministro. Era o salão de baile dos Chineses. Amanhã começo a
fazer obras e mudar isto tudo! Já tenho uma empresa estrangeira contratada.

Com os papéis do Ministério na mão foram-se embora. Mais hora menos hora, mais coisa menos coisa,
era tempo de almoçarem. Mas o Xandinho tinha que passar pela Delegação para ir buscar o carro.

- Olha a Tia Albina em Portugal a fazer compras! Disse o Renault.

O Alexandre não disse nada. Ficou a pensar na Sandra. Não lhe fazia mossa, mas causava-lhe
amolgadelas o que era a mesma coisa. Os paradoxos moíam-no. Sabia que com o Heitor ela estava a salvo
de valetas antigas, mas os dias em que ela desaparecia faziam-no padecer. Pelos montões de roupa por
passar devia chegar a casa, tomar banho e mudar de roupa. O Heitor vestia umas cuecas dele e ala para a
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Barra ou para um “Cai-Cai”. Se calhar era dor de corno que o apoquentava, desejo, ou mesmo saudades
das suas preces em fim de coisa. Mas podia ser mais costumeira e avezada nas suas aparições.

- Já somos secretários do ministro. Mais uns tempos vamos às reuniões do Comité Central. Disse o
Renault. O Xandinho acordou das suas cogitações.

- Continuas a pensar na Sandra! Disse ainda.

- Chegamo-nos muito! Desabafou.

No fundo, pensava o Alexandre: O grande problema dela era a solidão e o medo. Sabia que a cocaína, a
“malvada”, como ela lhe chamava lhe comeu os ossos e os desejos. A maneira de clamar vitória sobre o
passado era nas horas bem-aventuradas convocar os santos para manifestar insurreições pelos
padecimentos e adversidades se auto-infligiu. Pensava que ela sentia pavor de viver vidas já vividas.
Talvez sentisse um verdadeiro pânico das veredas em que morou no passado e bem dizia a vida que
habitava actualmente. Agora navegava num iate quase de luxo, singrando um mar de portos seguros. No
entanto, de momento o problema dela seria a debilidade sua formação náutica para lançar âncoras:

Pôs-se a fazer metáforas para distrair o tempo. Depois os seus pensamentos tornaram-se brejeiros.

- “Isto, sou eu a adelgaçar os cornos. Disse para com os seus botões. De resto o abrir das pernetas, o
carinho e o enternecimento da pachacha é que lhe aliviam as ansiedades e os pânicos”! Ficou mais calmo
com o grosseirismo.

Quando chegaram à Delegação o Senhor Paterson, deslumbrou nos papéis com cabeçalho do Ministério
do Plano:

- Vamos fazer já o ofício! Disse ele.

- Ainda não me sinto muito bem. Lamentou-se o Xandinho. Podemos fazer isso hoje, mas só vou lá levar
amanhã. Passava a mão pelo cabelo para disfarçar os chavelhos.

- E vai muito a tempo. Estou-lhe muito agradecido pelo que fez pela CEE. Mas Doutor Alexandre:
Quando é que a D. Sandra vai tomar o chá com a minha mulher?

- Quando estiver com ela falo-lhe disso.

Para falar verdade, chegou a casa ainda adoentado. Nada que um pouco de esforço não vencesse. Nem
cumprimentou o João Paulo. Sem comer, foi-se deitar. Adormeceu!

Por vezes o sono cura maleitas. Acordou com as mãos da Sandrinha a fazerem-lhe uma carícia e ouviu o
som lento do Heitor a mover-se no salão.

- Sôtor: Venha ver isto! Gritou o empregado.

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Deu dois beijinhos à Sandra, cumprimentou o Heitor e foi directo à cozinha onde em cima da mesa de
mármore jaziam alguns quilos de peixe. A Sandra, emproada seguiu-o:

- Vês o que fazemos na Barra? Perguntou ela.

O Xande voltou ao salão e disse:

- Tenho recados para vocês: O primeiro dirigiu-se aos dois: Isto aqui não é pensão! O segundo dirigiu-se
ao Heitor: A Betinha perguntou por ti. O terceiro dirigiu-se à Sandra: O Delegado quer saber quando vais
tomar chá com a mulher e o Ministro tem curiosidade em saber o que é que te aconteceu! O quarto
também é para ti: Não sei se sabes que a tua Tia Albina foi a Portugal! Tudo isto foi dito com uma voz
tesa e hipócrita.

- O quê? Perguntou a Sandrinha estranhada e ignorando a tonalidade do alarido.

- Pois é! Não se pode andar na Barra e saber da família ao mesmo tempo. A não ser que estejas no
andarilho outra vez. Aí, segundo dizem, é que as pessoas não querem saber de nada!

O Alexandre fez uma grande cara de zangado, mas eram as hastes que o aguilhoavam! Tinha a certeza
que lhe estava a tocar num ponto aflitivo. A Sandra num trejeito de lábios acusou o embate. O Heitor fez
cara de quem não gostou da conversa e ela adicionou respeitosamente:

- Diga outra vez Tio.

- Isso que ouviste: O Katatúlio perguntou por ti e a Senhora Paterson quer saber quando vais tomar chá
com ela.

- Mas quando é que a Tia foi a Portugal se ainda na quinta-feira lá estivemos?

- Foi no Domingo.

O Alexandre enfraqueceu. Apeteceu-lhe afagá-la mas voltou-se embezerrado para a parede. A Sandrinha
veio sentar-se ao pé dele com cara de quem faz dormir bestas.

- Tio! Não esteja zangado! Eu vou ter juízo. Pode dizer à senhora que amanhã vou ao chazinho.

Quando lhe estava a contar que o Katatúlio queria alugar para ela um quarto no Hotel do partido, o João
Paulo entrou para dizer que ia servir a refeição. O Heitor despeitado pediu licença para sair. Tudo estava a
entrar nos eixos ou a correr de maré para o Xandinho. Estas pequenas prepotências assentavam-lhe bem
na energia. Durante o jantar não falaram. Depois de comerem continuaram a não falar e ficaram os dois
sentados a ver televisão, como duas viúvas a recordarem os maridos. Reviram um filme policial
legendado em português que tinham comprado nos bons tempos da “Loja Franca”:

- Que tédio! Pensou o Alexandre.

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Sexo, Drogas e Diplomacia
ou
Katatúlio um Homem de Estado

Foi-se deitar. Ainda aqueceu esperanças que a Sandrinha durante a noite fosse aconchegar a macieza da
pele às suas carnes. Esperou mas nada aconteceu. Acabou por adormecer. No dia seguinte tornou a
acordar cedo. Quando chegou ao salão a Sandra estava ainda sentada no mesmo sítio, vestida com a
mesma roupa a remoer lentamente um pão com manteiga e a tomar um café negro, mas duas lágrimas
bogalhudas escorriam-lhe pela cara abaixo. Era claro que não se tinha deitado.

- Que tens? Perguntou ele.

- Nada. São coisas de mulher! Respondeu a Sandra. Só eu é que sei deitar a vida fora desta maneira.

O Xandinho estava de pé junto dela. A Sandra abraçou-se à perna dele e num choro trémulo a pediu-lhe:

- Tio! Não me enjeite agora!

O Alexandre não percebeu nada daquilo, mas subitamente teve a sensação que estava a ser déspota, coisa
que ele odiava nas outras pessoas. Afinal não havia nem podia haver nada entre eles, a não ser dias de
gozo que terminavam com preces a Nossa Senhora. Descartou-se fazendo-lhe uma carícia nos cabelos e
vituperou:

- Olha o que estás a fazer! Estás-me a sujar as calças todas com lágrimas e rímel. Eu que já estava pronto
para sair.

- Se quiser eu lavo! Disse humildosamente.

- Não é preciso. Está aí a D. Irritação. Larga-me! Tenho que ir mudar de roupa.

Estava vencida e achincalhada. O Xandinho achava-se tremendamente indevido. Ainda era cedo para ir
para a Delegação.

- E eu que estava quase a saber pescar! Disse ela. Era tão bom andar no barco à vela do Heitor!

- Pois podes continuar! Mas faz-me o favor de te recompores e ir tomar o chazinho com a Senhora
Paterson. Contemporizou. Antes, vê se falas com o teu tio verdadeiro. Disse com voz apaziguadora.

- Ainda não é tempo! Respondeu ela.

O Alexandre saiu sem perceber peva da conversa dela, mas pediu-lhe para enrolar duas ou três maconhas
para levar com ele. No carro, lembrou-se que não tinha tomado o pequeno-almoço e que ainda era cedo
para ir trabalhar. Decidiu ir até ao Hotel desabafar com o Renault.

Ao entrar no “Quatro Estações” pensou que ele já estivesse a matar o bicho e galgou os degraus de dois
em dois até ao refeitório no primeiro andar. Encontrou-o na mesa costumeira que por sinal era a mesma
onde se sentava quando estava no Hotel. Sentia-se sujo por dentro, injusto e desumano. Era obstinado
quando se julgava a si próprio. E implacável quando queria exercer ruindades sobre os outros. Abriu-se
com o amigo acabando por lhe dizer:
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ou
Katatúlio um Homem de Estado

- Não estou em condições de ir trabalhar. Arranja uma desculpa qualquer para o Delegado. Não te
esqueças de levar o ofício ao Ministro e diz-lhe que a Sandrinha provavelmente irá vê-lo hoje.

- Digo ao Irlandês que ontem à noite me telefonaste porque não te sentias bem. Fui-te levar mais
comprimidos. Está descansado por que vais ter paludismo mal curado!

- Diz-lhe também que a Sandra vai hoje às cinco tomar o chá com a mulher mas primeiro telefona para
ela a confirmar. Eu vou até à Ilha.

Precisava de parar um pouco para avaliar o seu próprio lance: Por um lado havia a situação da Sandra à
qual ele não podia, pela sua organização mental cristã ficar alheio. Era uma mulher lindíssima de anos
ternos, sozinha na cidade e sentia-se culpado pelos esgotos em que poderia estar a lança-la. Por
consideração a si próprio, aos pais, e pela auréola de bom samaritano que julgava ter em cima dos cornos
não podia pô-la fora de casa e manda-la para os subúrbios de Kabanda. Talvez isto fosse reencaminha-la
de novo para as sarjetas! Sentia nos lombos um enorme fardo de culpa. Por outro lado estranhava o
desapego da Tia Albina. Sentia-se ofendido por ela ter partido sem um bilhete, um beijo ou um gesto de
adeus. É certo que estava em amores de segundas núpcias e mal pararia tudo, para refazer a sua vida em
apoios sólidos. Mas assim? Sem um agradecimento? Sem um adeus? Sem um aviso? Talvez fosse
desconsciência.

Pediu ao Renault um fato de banho e uma toalha para não ir a casa. Tinha tomado a decisão
repentinamente e não tinha trazido os necessários. No meio desta condição toda, também não sabia qual o
papel do Katatúlio, do Victor, do Simiano ou o que quer que fosse o nome que o desalmado tinha.

A sua mulher fazia-lhe falta. Dava-lhe a lucidez advinda da estabilidade emocional e também por
dormirem abraçados com muito carinho.

- Que procurava o Ministro na Albina? Pensava ainda: Tencionaria só recordar prazos gastos?

O facto de a ter mandado comprar trastes e trapos a Portugal sossegavam-no.

Estava a divagar com os cannábis:

Quem era ele, Xandinho, para julgar as intenções do Mundo? Pensava quando interrompia as suas
magicações. Depois reconhecia que nestas conjunturas a sua alma não queria abdicar da oportunidade de
evidenciar a Deus que era um bom Cristão.

Seria que nas suas funções de Homem de Estado o Katatúlio procuraria só uma Ministra a seu lado, de
preferência madura, boa e trançada sem ligar às precisões dela como mulher, pessoa e amante?

A posição do Heitor, também não lhe agradava. Então o maganão tinha a mulher e dois filhos em casa e
andava a ensinar a pitinha a lançar o anzol e a velejar? Claro que tal coisa o ofendia. Mas não era só isso:
Se o pândego insistisse em ficar com a Sandra, culpas do divórcio ou mal avenças com a Bétinha
poderiam ser-lhe assacadas pela mulher, transformando assim os seus abonos de bom cristão em
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Katatúlio um Homem de Estado

fundamentos de desestruturação de lares. Em suma estavam todos feitos num oito. O Alexandre passou
pelo VII Congresso, comprou três cervejas a estalar.

Ainda não eram dez da manhã, já ele estava deitado na praia do lado da Baía a beber cerveja e a fumar
erva.

- Está visto, se ele insistir em ficar com as duas, a minha casa vai ser o palco eleito para as suas
aventuras adúlteras! Pensava o Xandinho para consigo, sem se enganar muito.

Os fumos puseram-lhe a cabeça à bolina. Passou algumas horas naquela bonança. Era uma espécie de
Outono em Kabanda. Um tipo de árvore casuarina que abundava na praia, deitou para o chão as suas
flores brancas e o areal pareceu-lhe coberto por um espesso manto de neve. Adormeceu como um anjo,
embalado pela cerveja, pela suruma e pela brisa tropical. Acordaram-no três miúdos à sua roda, nus e
gaiteiros, a tocarem batuque numa lata de óleo amolgada e rota. Longe, já o Sol descia. Estava mais
aliviado das maleitas mas sentia-se desmoronado. Tinha estado tempos infindos deitado na praia. Antes
que a noite chegasse completamente, meteu-se no Peugeot branco e foi embora.

Em casa todas as luzes, estavam acesas o que normalmente queria dizer que tinha visitas. Buzinou e o
Jorge veio abrir o portão. Não meteu o carro na garagem. Deixou-o ficar à entrada do jardim. Apetecia-
lhe tudo menos ter visitas naquele momento. Deu a volta à casa e foi sentar-se a recato num divã debaixo
da árvore grande. Tocou à campainha e o João Paulo apareceu.

- Quem é? Perguntou o Xandinho.


- Nunca o vi! Respondeu o empregado. Mas quer falar com o Sôtor.
- Diz-lhe que eu só chego daqui a meia hora e traz-me uma cerveja.

Tornou a pensar na cidade que começava a tornar-se íntima, mas que depois da noite o assustava. Ao
pôr-do-sol tudo parava para jantar. Depois a cidade tornava a erguer-se em ruídos de música e geradores a
funcionarem. As sombras das árvores e dos prédios apareciam no meio das ruas sem luzes e metiam
medo. A curiosidade encorajou-o. Levantou-se e decidiu encarar o visitante de frente: Era um homenzito
careca, de estatura mediana que pedia imensas desculpas pelo incómodo. Tinha ido à Delegação à sua
procura e lá indicaram-lhe onde morava. Tinham-lhe dito que estava doente:

- Até vim mais para ver se precisava de alguma coisa e se o seu estado de saúde permitisse falarmos de
alguns assuntos que me trouxeram até Kabanda!

- Isto é paludismo mal curado. Desculpou-se o Xandinho, aproveitando a dica do Renault.

- Estes climas tropicais são terríveis! Disse o homem para fazer conversa.

Era um antigo Secretário de Estado do tempo da ditadura que agora trabalhava na administração duma
grande empresa de construção civil que na sua política de crescimento buscava internacionalização.
Explicou-lhe que estava muito bem relacionado com o pessoal de Bruxelas e lá tinham-lhe falado da
possibilidade da Comunidade se envolver na recuperação do Hospital Vladimir Illitch, obra que
interessava muito à sua empresa.
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- O homem não perde tempo. Pensou o Dr. Alexandre.

- Em Bruxelas também me disseram que aqui na Delegação havia um português a trabalhar, pelos vistos
é o Senhor Doutor, que certamente não deixaria de puxar pelos interesses do seu país.

- Que raio de conversa esta. Agora apelam ao meu sentido de patriotismo. Pensava ele.

Atento e reverendo assegurou-lhe que estava ali para se assegurar do seu estado de saúde e se ele tivesse
disposição gostaria de lhe oferecer uma bebida ou mesmo jantar no Hotel “Quatro Estações”, amanhã ou
depois. Logo que se sentisse em forma.

O Xandinho já estava habituado a este tipo de aproximações que lhe cheiravam a comissões ou subornos
impossíveis. Falou-lhe demoradamente da sua empresa e da importância que ela tinha no panorama da
construção civil em Portugal.

- Isto é um pato-bravo da classe alta! Dizia o Alexandre aos seus botões e explicou-lhe que a sua viagem
a Kabanda era prematura. Que não havia decisões definitivas sobre o assunto.

- Eu também vim mais pelo passeio! Explicou o Ex. Secretário de Estado. Conheci bem isto antes da
Independência. Não imagina o que era! Vim cá com o Presidente do Conselho de Ministros e expliquei
aos colonos que o regime de então caminhava para a democracia. Até fiquei admirado por eles não
acreditarem. Estavam descorçoados de todo.

- Pois é! Disse o Xandinho. As ditaduras ficam sempre muito admiradas quando caem. Olhe no dia 16 de
Outubro de 1917 a coisa mais importante que o Imperador de todas as Rússias achou ser digna de entrar
no seu diário foi que tinha passeado de barco e que estava um dia lindíssimo. A História foi o que foi e um
mês depois a família Romanov era fuzilada.

- Já vi que é de esquerda! Disse ele. Mas voltando ao que interessa: Olhe que em Bruxelas, um alto
funcionário disse-me que a decisão sobre o Vladimir Illitch Lenine estava tomada.

- Pois eu não digo que não! Sabe que o corno é sempre o último a saber!

A Sandrinha que não lhe saía da cabeça…

- A confirmar-se (continuou), eu próprio ficaria muito contente. Mas a minha opinião é que isto antes de
se abrirem concursos para a obra ainda vai demorar dois ou três meses.

Decidiu mudar a conversa:

- Como está aquilo por lá?

O Homenzinho reparou que o Alexandre queria mudar a cavaqueira e atalhou:

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- Mas trouxe-lhe uma lembrancinha! O Doutor já leu o Eça? Pois aqui tem: Os Maias.

Mansamente repetiu a pergunta:

- Como está aquilo por lá? Desembrulhou a prenda e disse muito obrigado.

- Por lá está bem! Fez uma reflexão e sentenciou: Este governo como saberá está a cair e a alternativa
será um governo socialista. Socialista! Disse encolhendo os ombros para cima e para baixo. Aquilo
Senhor Doutor são piores que anarquistas. Isto sem ofensa claro! Que o Senhor Doutor deve ser fresco!
Deve! Deve!!!

O Xandinho emparveceu: Então e se o Licas, que era um amigo dele, a mulher ou a sogra estivessem ali
atrás duma porta a ouvirem esta conversa? Perguntava-se ofendido no fundo da alma: Iam dizer que
estava louco.

- O partido Socialista outra vez no governo não augura coisa boa nem será um factor de estabilidade.
Continuou o ex-Secretário de Estado duma coisa qualquer que já tinha sido. Sabe que aquele país
continua perfeitamente dividido entre os que foram apanhados desprevenidos pela queda do anterior
regime,

- Como os Romanov, atalhou o Xandinho provocador.

- Como os Romanov, se quiser, e os que ainda acreditam nas promessas revolucionárias. Mas isto não
vai demorar muito tempo: A economia está de rastos e as forças armadas começam a acreditar que foram
manejadas por comunistas infiltrados.

Uma ira contida pairava nos seus olhos, mas continuou o discurso:

- Não fossem os comandos e estaríamos agora num regime comunista. Sabe que eu fui comando?
Perguntou-lhe.

- Não! Não sabia! De qualquer maneira eu não fiz tropa! Enfatizou o Dr. Alexandre. Ou se quiser fiz e
fui obrigado a interrompê-la.

- Como?

Neste ponto a conversa começou a ser cortada por ruídos e gorjeios da Sandra, vindos do quarto de
hóspedes. A situação começava a ser embaraçosa. O homenzinho deitava olhos furtivos para dentro e
atirava ao Xandinho olhares marotos.

O Alexandre tinha sido apanhado de surpresa pela visita e não teve tempo de aquilatar a situação.
Chamou o João Paulo:

- Toma alguma coisa? Perguntou ao visitante.

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O João Paulo tinha chegado com o seu impecável safari branco ornado de botões amarelos. Estava
orgulhoso da sua fardeta que ostentava orgulhosamente em cima dos pés descalços. Nunca o tinha
convencido a calçar o que quer que fosse a não ser quando ia às compras.

- O que tem para tomar? Inquiriu o Pato-Bravo.

- Não lhe respondeu e continuou a falar com o empregado: Podes arranjar um petisco? Perguntou-lhe.

Procurava falar alto na tentativa de abafar os ruídos incessantes que vinham do quarto.

- Só se forem uns lombinhos de lagosta grelhados!

O Alexandre já não podia ouvir falar de lagosta.

- Então depois daquele discurso todo que fez ontem ao Heitor e à Sandrinha eles estavam ali naqueles
ruídos de achincalhar conversas? Pensava com os seus botões.

- Pode ser isso, mas tempéra com molho verde como o Senhor Brigadeiro fazia.

Falava cada vez mais alto mas não conseguia abafar os gemidos dolentes.

- Com molho verde nunca provei. Disse a visita aguçando as papilas. Mas lagostinha é sempre
lagostinha. Insistia em arrebitar as orelhas.

Do quarto os trinados subiam de tom. O homem e o Alexandre olhavam-se mutuamente a partilharem


perplexidades. A única saída que encontrava para a situação, seria descarregar a ira para cima do João
Paulo. Chamou-o num tom de voz que mais parecia um raspanço:

- O Senhor Heitor está cá em casa?

O empregado, ladino, quando chegou à sala avaliou a situação. Também ouvia os ais e os gritinhos:

- Chegou há umas horas da praia e está no quarto de hóspedes com a esposa.

- Inteligente. Pensou o Xandinho. Então vais lá ao quarto, bates à porta, não esperas por uma resposta,
entras e dizes que o patrão tem uma visita.

Era impossível disfarçar mais. Aquilo parecia a banda sonora dum filme pornográfico.

O João Paulo não gostou daquela incumbimento, torceu o nariz mas desempenhou a tarefa.

- É um irmão meu que veio cá passar umas férias com a mulher.

- Que estejam à vontade! A mim não me incomodam. Não estrague as férias ao casal! Até me recorda
tempos antigos.
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A careca dele brilhava com suores vindos de dentro da alma: Vinham mesmo lá do fundo onde habitam
desejos já proibidos.

A manobra do João Paulo tinha surtido efeito. Era o que ele tinha pensado antes: A sua casa iria servir
de local eleito para amores infiéis. Mas que mania ela tinha de gritar assim nos momentos terminantes!
Desabafava para consigo. Vindo do quarto, o João Paulo atravessou o salão e logo a seguir começaram a
ouvir-se portas a baterem e águas dos quartos de banho a esguicharem. O Xandinho decidiu ir lá dentro
pedir-lhes para não aparecerem na sala sem a visita sair. Certamente que o homenzinho acharia muito
estranho que o seu irmão, recém-chegado da Europa, fosse casado com uma mulatona quase negra.

Quando chegou ao salão retomou a conversa:

- Mesmo que Bruxelas já tenha decidido qualquer coisa sobre o Vladimir Illitch as coisas não se
passam bem assim: Irá haver um concurso público internacional que será publicado em todos os Países da
Comunidade.

- Sabemos disso. Mas ao menos pode-nos avisar da publicação. Ás vezes com os afazeres, essas coisas
escapam…

- Até aí não vejo porque não. Disse o Alexandre. Mas olhe que isso é mais trabalho da nossa
Embaixada.

Pouco depois, o João Paulo trouxe para a mesinha de centro o pitéu que tinha preparado servindo como
acompanhamento um vinho branco seco.

O Xandinho petiscou com relutância a repisada lagosta, mas o hóspede deleitou-se com a iguaria. Ele já
nem a cor do crustáceo podia cheirar e começava a ter saudades dos proletários tremoços, por mais voltas
e enfeites que o empregado porfiasse. A travessa veio decorada para a mesinha: Ao centro a carcaça do
bicho atestava a frescura da peça. À sua volta reinavam os lombinhos grelhados cortados às rodelas, com
as patas do crustáceo ladeadas de picles verdes, brancos e vermelhos. Numa taça ao lado vinha uma
espécie de molho verde feito das ovas e com as entranhas da cabeça. Tudo isto era acompanhado por um
pão caseiro torrado feito com farinhas de mandioca e de trigo.

- Cuidado que esse molho é picante! Avisou o Alexandre.

- Mas está óptimo! Um cozinheiro destes lá na Europa rendia milhões. Mas conte-me dizia o hóspede
com a boca lambuzada: Como é que foi impedido de servir nas linhas?

- Isso é uma longa história. Vou contar-lha um dia.

O indesejado tinha acabado de comer e pediu-lhe para lavar as mãos.

- Vou ver se os banhos já acabaram. Foi lá dentro enfiar a Sandra e o Heitor num quarto. Chamou o João
Paulo: Vê se os quartos de banho estão apresentáveis.
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Quando o hóspede voltou, agradeceu a atenção e despediu-se. O Xandinho foi acompanhá-lo à porta.

- Olhe que ainda posso ser de muita utilidadezinha para si! Era bom ser uns para os outros! Disse-lhe a
visita ao saír.

- E esta??? Pensava o Xandinho para consigo!

Sentou-se de novo no sofá a ver televisão. Passado pouco tempo a Sandra e o Heitor entraram no salão
ainda com os cabelos molhados e um ar prazenteiro.

- Vocês têm que ter mais cuidado com as situações que criam. Isto foi excessivamente incómodo. Era o
que me faltava com a idade que tenho obrigarem-me a ser polícia de costumes.

Foste ao tal chazinho? Perguntou à Sandra.

- Que sequeira! Exclamou ela! Então a mulher não se pôs a tocar harpa e a cantar?

Apesar de mal disposto o Alexandre esboçou um sorriso amarelo.

- Mas olha que o teu Delegado é arrimado! Será que ele pensa que todas as pretas são putas? Gostar de
malhar é uma coisa! Ser puta é outra! Não escangalhar as coisas. Dizia ela desencorajada.

- O diabo do velho! Pensava o Xandinho a adivinhar interesses. Mas o que é que ele te fez?

- Bom! Eu ia arrimada e atrevida. Tinha vestido aquela túnica indiana transparente e o Heitor levou-me a
casa da Tia Albina para pôr o colar de libras e os brincos. Achei que devia ir assim para não deixar o Tio
ficar mal. Mas eu própria sabia que era um arrojo. Então o velho esperava que a mulher cantasse a
modinha e desse à harpa para me tocar com o dedo mindinho na gambia.

- Mas ele também foi? Perguntou o Alexandre admirado!

- Apareceu mais tarde no meio do chá. Esperava que a cantadeira fosse à cozinha e perguntava-me
quando é que eu ia com ele à praia tomar um banho. Depois era mais chá e mais harpa e ele mostrava ares
de enfado. Desagrado era o que eu sentia pelo raio do velho. Quando o bule estava vazio e a madame com
o bandulho cheio de bolos, o homem insistiu com os céus para me vir trazer aqui. Entretanto o Heitor
tinha feito o frete de ficar à minha espera e eu fui obrigada a vir com o perverso. O Tio não quer saber que
vínhamos repimpados no banco de trás, com o condutor à frente, num Volvo que deve ser o único em
Kabanda e ele desata a apalpar-me a perna como se fosse o Heitor?

- Estes Irlandeses… Desculpava-se o Xandinho.

- Eu olhava para trás e via o carro do Heitor e ele continuava a machucar-me a tíbia que aquilo nem
carícias eram!

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O Heitor, com os olhos, tirava produto daquela situação e observava o Alexandre como quem diz: Vês?
Tu tens a mania que és o santo protector, se a mandasses ter comigo escusavas de ouvir dessas!

- E tu que fizeste? Perguntou o Alexandre à Sandra.

- Nada! Pensei que ele não me ia violar com o condutor à frente e estávamos a chegar a casa.

O Heitor passeava-se no salão com um ar triste. O telefone interrompeu o silêncio que se tinha feito com
um toque estridente. O dono da casa deixou-o tocar: “Que mais merda virá por aí”? Pensou.

Do outro lado atendeu-lhe uma voz aflita: Era a Betinha. Suspirou fundo e ficou pronto para tudo. Tapou
o bocal dizendo aos circunstantes:

- É a Betinha!

O Heitor precipitou-se para o Alexandre, lançando à Sandra um ar de enfado e implorou seriamente:

- Se és meu amigo diz-lhe que não estou. Nem fazes ideia pelo que estamos a passar…

O Xandinho ficou na dúvida se a Beta teria ouvido o marido ou não, de tão alto este tinha falado. Pôs
um ar de desagrado e numa voz delicodoce apalhaçada respondeu:

- Não está.

- Não me gozes! Foi a resposta. Ele sabe que tem aqui convidados para jantar.

- Diz-lhe que não estou, respondeu o Heitor quase fora de si!

Pelo tom de voz, o Xandinho ficou a perceber que alguma coisa grave estava a acontecer:

- Não está! Respondeu atarantado. O melhor que te poso fazer será eu informá-lo se ele vier aqui.
Pousou abruptamente o telefone. Não estava para aturar problemas de casais.

O Heitor enobreceu. A honra chegou-se-lhe ao pensamento. Baralhava palavras a caminhar dum lado
para o outro do salão:

- Isto resolve-se hoje! Repetiu esta frase vezes sem conta sempre a olhar para a Sandra com um ar
decidido. Voltou-se para o Xandinho numa urgência e ordenou-lhe:

- Vais sair comigo. Vou-te mostrar “Kabanda by night”.

O Alexandre apercebeu-se que o assunto era sério e ia a sair com ele quando a Sandrinha disse:

- Tio! Não me leve a mal!

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A única coisa que o Alexandre, assarapantado com a situação e a prosa, achou útil dizer ao Heitor foi:

- Não te esqueças que tens convidados para jantar!

Áspero, o Heitor respondeu:

- Eles podem esperar!

O Xandinho ainda arranjou tempo para beber calmamente uma cerveja até se decidir a partir mas
cometeu um enorme erro: Pensou que o Heitor queria que ele o acompanhasse a casa para que as
bordoadas da Betinha fossem mais brandas. Não era nada disso. O amigo saiu decidido. Confuso
perguntou à Sandrinha:

- Mas este rompante é a propósito de quê?

- Nem eu sei! Respondeu ela acabrunhada, mas deve ser a propósito da nossa vida.

Ficou no salão, solitária e cabisbaixa. O Alexandre seguiu o Heitor.

A cidade como sempre àquela hora estava escura. O Xandinho assestou os seus faróis aos reflectores do
carro do amigo e foi atrás dele. Mais à frente o carro dele parou e encostaram os dois à berma. O
“Xandinho pensou:

- Das três uma: Ou tem todo o tempo do mundo, está doido, ou alguma coisa se passa com o seu
calhambeque estafado.

O Heitor saiu do carro, encostou-se à parte da frente e acendeu um cigarro:

- Queria pedir-te desculpa (disse). Para ser franco, não gostaria que a mesma situação se passasse em
minha casa. Mas não te quero falar disso. A minha relação com a Sandra está muito complicada.

- Não vejo porquê? Tens uma mulheraça nos braços. Trabalhas de vez em quando e de quando em vez
vais para a Barra. Afazendaste-te com um quarto para devaneios. Não vais jantar quando tens visitas!
Queixas-te da vida porquê?

O Xandinho continuava zangado. Agora exibia um certo grau de responsabilidade. Era a filha dum
amigo que estava em causa.

“Falar para nós próprios, (pensou) é complicado! É fácil quando falamos para os outros. Mas se é para
nós mesmos ouvirmos escondemos tanta cobardia e dizemos tanta mentira… O grande problema é a
racha, é a boca e os seus dedos ágeis que me estão a fugir pela mão fora! Porque é que hei-de estar aqui
com mentiras”? Perguntava-se. Mesmo assim insistiu:

- Mas está complicada porquê?

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- Tudo isto foi um engano! Disse o Heitor.

Como de costume àquela hora a cidade estava deserta. Há algum tempo que a hora normal de jantar
tinha passado e o Heitor estava pouco preocupado com os seus convidados. O Xandinho também se
encostou à parte da frente do carro e preparou-se para ouvi-lo.

- Julguei que fosse mais uma mulata e depois agarrei-me. A culpa talvez seja da Betinha. O que ela quer
é um marido preso pela rédea. Mas o pior não é isso!

- Homem desabafa! Disse o Alexandre. Não me digas que engravidaste a miúda!

- O pior não é isso! Ficou calado.

- Mas há pior (perguntou o amigo)? Agora queres que eu seja padrinho? E logo neste país.

O Xandinho arfava:

- Vê a lata que eu preciso de ter para mandar a rapariga para casa dos pais resolver o problema.

- Isso é o menos! Respondeu o Heitor. O pior é que já nem me consigo deitar com a minha mulher. Olho
para as crianças e queria que fossem da outra. Entro em casa e queria que ela estivesse ali. Adormeço a
pensar nela. Já estive a dormir com a Betinha e sonhar que estou a fazer amor com a Sandra. A gravidez
resolve-se. Há aí umas ervas tradicionais que fazem abortar. A Beta já tomou o chá e resultou. O pior é
que estou gamado nela e não sei o que fazer.

- Tu estás louco. Respondeu o Alexandre, puxando de um cigarro.

- Já pensei em deixar a Betinha!

- Mas não eras tu que a admiravas muito? Já agora há quanto tempo és papá?

- Segundo as contas dela há uns tempos. Mas já fizemos testes! É verdade. Tu não a conheces, é um
diamante por lapidar.

- Não sei o que te diga. Rosnou o Alexandre.

Meteram-se nos carros em direcção à casa da Betinha.

- “O que me faltava era um bebé lá em casa”! Pensou. Começou a imaginar que estava a telefonar para a
mulher: “Olha querida, quando vieres trás talco, água-de-colónia e um enxoval de bebé. Diz ao Senhor
Justino e à mulher que já são avós! A criança provavelmente foi feita aqui em casa. Podem estar
descansados que é perfeitinha”!

Estacionaram os carros no largo em frente à casa e o Heitor entrou resoluto pelo jardim. E o Xandinho
seguia-o um passo atrás. Estava curioso por assistir aquele reencontro feliz e ver como o amigo encararia
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de frente a sua cara-metade. O desavergonhado deu grandes ares de espanto e voltado para os convidados
perguntou:

- Vocês aqui?

A seguir voltou-se para a Betinha e disse-lhe com intenções de reprimenda:

- Porque não me disseste que eles vinham jantar?

- Não tens vergonha nenhuma! Respondeu ela.

O Director do PAM (Programa de Alimentação Mundial) pôs água benta na fervura:

- Ás vezes também me acontece. Convidar as pessoas para jantar e depois esquecer-me completamente.

- De facto, eu sabia que a minha mulher ia dar um jantar para vocês! Mas não me disse o dia…

Encolheu os ombros para cima e para baixo.

- Não tens vergonha nenhuma, repetiu-lhe a Betinha.

- Mas já que estamos aqui, vamos conviver!

Já todos tinham jantado.

- Beta! Chamou o Heitor: Trás uma rodada de café e whisky velho!

Começou a falar das suas pescarias, do tempo que fazia na Barra, dos iscos, dos anzóis, do modo dos
lançamentos das linhas e de vez em quando suspirava como se estivesse a lembrar de alguma coisa
apetecida. Falou com tal sorriso largo e entusiasmo que os convidados se esqueceram da sua ausência
durante o jantar. Eles próprios queriam saber tudo sobre a pesca, se tinha barco, se era perigoso, por causa
da guerra sair a mais de vinte quilómetros de Kabanda, etc.

- Tenho um barquinho à vela de sete metros e é nele que fujo quando me canso do trabalho. É uma
aventura abalar aos ventos!

Ficou pensativo, talvez a lembrar-se dos olhos da Sandrinha a bugiar feita moma, quando o acariciava no
mar alto.

- E acreditem que não há perigo nenhum. Numa guerra o ameaço não está nas distâncias. Filosofou: Está
no teu amigo ou no vizinho do lado que desejam a tua mulher ou o teu carro. As pessoas invejam-nos por
não terem um bigode como o meu ou por eu não ter uma barbicha como a deles. A partir desta cobiça faz-
se um código revolucionário.

- A Betinha afastou o Alexandre da conversa. Por um braço puxou-o para um canto e perguntou-lhe:
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Katatúlio um Homem de Estado

- Sabes quem ela é?

- Ela quem? Perguntou o Xandinho com cara de quem não sabe onde se há-de meter.

- Não te faças parvo. Já toda a gente a viu com ele na Barra. Mas acredito que não saibas quem é. Isto
cheira-me a passarinha nova. Tenho medo é que seja uma daquelas infiltradas que a guerrilha está a meter
aqui em Kabanda e o gabiru cair que nem um tordo. Também espero que não seja aquela boneca que
estava contigo na “Loja Franca”!

- Coitada da moça! Já nem está cá!

O Alexandre estava a navegar em águas turvas e teve consciência que a mentira vem sempre à tona.
Percebeu que naquela conversa havia muito mais que um amontoar de palavras. Talvez houvesse o
enunciado de uma situação de ruptura que ela refez logo a seguir:

- Sabes? Humedeceu os lábios e disse-lhe com os olhos quase entumecidos: No fundo o que eu quero é
que não me falte azeite na candeia.

Ao canto do salão, junto à janela avolumava-se o escuro. Todo o corpito dela estava encostado ao dele
como se ali mesmo procurasse o adultério e a vingança. O Xandinho fez-se desentendido:

- Vou buscar um whisky!


- Traz outro para mim. Disse ela.

A lua já crescia por detrás das árvores existentes em frente à casa da Beta. Quando o Alexandre chegou
com os copos ela disse-lhe:

- Este homem foi a minha sorte: Comprou esta casa para mim e para a família! Deu-me dois filhos e três
ou quatro abortos! Vamos todos os anos de férias à Europa! Mas ele que não me falte com azeite na
candeia!

Punha com vagares tropicais, a sua na mão dele.

O Xandinho queria abalar dali! Foi-se afastando daquela situação mais que incómoda e aproximou-se do
Heitor que tinha a particularidade de mesmo na situação mais adversa, ser o centro das atenções. No meio
de tudo isto já passava das onze da noite. Despediu-se. A Beta ainda lhe reteve a mão. Mas ele partiu.

Enfiado no carro sentiu-se pequenino:

- Porra! Pensou. Começou a perceber o Heitor. Atirar-se assim? Ainda teria que levá-la todos os anos à
Europa, fazer-lhe dois filhos e três abortos e comprar-lhe uma casa em Kabanda. O luar tinha enaltecido a
noite. Vagueou um pouco pela cidade, mas lembrou-se das atribulações porque tinha passado quando
tinha sido chamado à Delegação. Decidiu ir para casa.

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Katatúlio um Homem de Estado

Não o admirava nem os desmandos da Beta nem os desejos de mudança do Heitor. As famílias pelas
dificuldades do dia a dia estavam desconchavadas. Todos os dias eram confrontadas com parentes que
chegavam doutras paragens ou com afins que desapareciam na frente. Moços só se topavam fardados, ou
no estrangeiro. Moças eram a granel nas praias ou nos “Cai-Cai”. Mancebos também se escondiam na
violência dos subúrbios onde a ordem não entrava. Eram exilados internos que assim escapavam à
mobilização para as frentes. Na Universidade a fêmea reinava. Machos quase só estropiados, deficientes
ou os que não satisfizeram critérios dúbios para vestirem fardas. Este panorama pensava o Xandinho,
explicaria muito a solidão da Sandrinha. A sua geração tinha-a desertado. Deve ser horrível para um
jovem não ter geração: Partira menina e regressara mulher só com serventia para voltear na praia e
passear abandonos.

- Tudo se resolve! Dizia para consigo mesmo. Mas ela escusava de engravidar! A sua barrigada tinha-o
definitivamente afastado do bem-bom e da beleza com quem de vez em quando dormia. O resto eram
figuras filosóficas para parecer bom cristão.

Quando chegou a casa, a Sandra dormia no sofá grande com cara apaziguada. Hesitou se devia ou não
acordá-la para lhe falar das revelações do Heitor. Mas uma mulher grávida impõe respeito para com o seu
descanso:

- Tenho tempo! Disse para consigo.

A meio da noite ouviu o telefone tocar mas decidiu não atender. Por volta das duas da manhã tornou a
tocar, mas ele estava persistente nas intenções. Por fim acordou estremunhado com a Sandrinha a abaná-
lo:

- É a tua mulher! Diz que é urgente.

Levantou-se rapidamente. Em cuecas foi atender o telefone.

- Já tenho a certidão. Pede a Bruxelas as minhas passagens.

- Foi a única boa notícia que tive este mês.

Não se alargou muito. Estava cheio de sono. Contou à Sandra o teor do telefonema e foi para a cama a
respirar felicidade.

Assobiava como um canário quando se levantou de manhã. No banho pensou se havia ou não de tocar
no assunto à Sandrinha, mas decidiu que agora a altura era de pensar nele. Aperaltou-se a assobiar e
assobiando despediu-se da Sandra. Foi para a Delegação onde chegou tarde. Juntou o Renault e o Irlandês
e contou-lhes a grande novidade.

- Não sei se será tão rápido quanto pensa. Respondeu o Delegado. Se calhar os Serviços de Pessoal vão
querer o papel com eles para justificarem o pedido de requisição das passagens. Tanto mais que ela tem
direito a cem quilos de bagagem suplementar. Mas podemos fazer um negócio: Você trata-me do ofício do
Ministro do Plano sobre o Vladimir Illitch e eu trato com Bruxelas a passagem da sua mulher.
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Katatúlio um Homem de Estado

- Mas o que é que se passa com esse maldito ofício? Perguntou o Xandinho.

O Renault explicou:

- Nós fizemos-lhe o ofício quando tu ficaste doente. Eu fui lá levá-lo mas o Katatúlio não estava. Deixei-
o com a secretária para ele assinar e até hoje ainda não apareceu aqui.

- Vou já para o Pagode Chinês. Era assim que entre eles chamavam ao Ministério do Plano. Queres vir
comigo? Perguntou ao Renault.

Voltaram a subir as escadarias e a atravessar os largos corredores do Ministério com os mesmos soldados
às portas dos gabinetes. Ao fundo, mesmo ao fundo as sentinelas habituais interpelaram-nos como da
última vez mas agora não se deram ao trabalho de indagarem às meninas do computador o que fazer.
Mandaram-nos entrar directamente.

Atravessaram a porta da antecâmara onde esperavam que a carta lhes fosse entregue devidamente
assinada. As secretárias continuavam a tomar o interminável chá e uma delas, que parecia a Chefe,
limpando a boca cheia com as costas da mão disse-lhes:

- O Camarada ministro quer falar convosco!

Ainda de boca cheia dirigiu-se para o Gabinete dele para os anunciar. Continuava a não haver luz. Os
computadores permaneciam apagados fazendo jus à sua inutilidade. Quando ela voltou pediu-lhes para
aguardarem indicando-lhes as cadeiras gingonas encostadas à parede.

- Será que vai demorar muito tempo a passagem da minha mulher? Perguntou o Xandinho ao Renault.
- Não faço a mais pequena ideia. São águas por onde nunca andei. Mas para o Delegado falar assim…De
burocracia sabe ele!

O Ministro não demorou muito tempo a assomar à porta para os mandar entrar.

Nos dias em que o Alexandre estivera ausente o Katatúlio tinha de facto dado uma volta ao gabinete. No
chão ainda havia marcas de tinta das obras. Uma empresa estrangeira sedeada em Kabanda tinha
subsidiado a sua decoração a troco da adjudicação de alguns trabalhos. Estava a aprender muito depressa.
Os resquícios do passado chinês, tinham desaparecido pelo menos naquele gabinete e a pequena mesa de
trabalho tinha-se transformado numa grande mesa com cadeiras de estilo. Do teto pendia um lustre antigo
e aguarelas com motivos da cidade e da vida colonial inundavam literalmente as paredes. A rapidez das
obras fez o Xandinho pensar que elas já tinham sido apalavradas por anteriores ministros e que o
Katatúlio teria apanhado o comboio em andamento. De qualquer modo este estava vaidoso com a obra
acabada:

- Não está ao meu gosto. Esclarecia-os. Mas está muito melhor.

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Durante as obras tinham sido arrancados uns bambus chineses que rodeavam o salão à altura do peito
dum homem e posto a nu azulejos azuis e brancos representando cenas do mar e do comércio de escravos
que confirmaram a ideia que o Alexandre fazia do edifício:

- Isto deve datar de fins do séc. XVII princípios do sec. XVIII. Pensava ele.

O Ministro abriu a conversa:

- Por razões do processo revolucionário tive que atrasar a elaboração deste ofício e quis assegurar a
colaboração da nossa faculdade de medicina bem como do Ministério da Saúde. Achei necessário definir
qual o papel que o Vladimir Illitch ia desempenhar na saúde do país. Isto também resultou duma conversa
telefónica que tive com o Camarada Presidente.

- Eu acho importante o envolvimento da Faculdade de Medicina. Bruxelas vai exigir um levantamento


da sua recuperação (disse o Renault).

- Levantamento? Perguntou o Simiano.

O Renault recuou a pensar que tinha posto o pé na argola e que estava a roubar o brilharete ao Delegado.

- Sim, se Bruxelas aprovar vai querer avaliar os custos. Emendou a asneira.

- Entretanto há uma alteração ao sistema. A D. Cesária, como vos disse particularmente, vai ser chamada
a outras funções pelo que os assuntos do Vladimir serão tratados directamente comigo. É melhor assim.
As relações de amizade que firmamos vão facilitar muito as coisas.

- ” Victor conte connosco. Disse o Renault.

O Ministro entregou-lhes o ofício assinado, assegurando-lhes que não tinha alterado uma vírgula ao que
estava escrito. A seguir passaram a falar doutros assuntos:

- Tem tido notícias da Tia Albina e da sua família em Portugal?


- A Albina tem telefonado. Está à espera das mobílias que encomendou, depois certificar-se que tudo
vem no contentor. Está demorada e ainda bem. Mas sobre esse assunto tenho um problema.
- O que é? Perguntou o Xandinho curioso.
- Estive a pensar… Disse o Katatúlio. Já tenho o Protocolo de Estado mobilizado para lhe reservar o
salão VIP e facilitar-lhe as coisas na alfândega. Mas ela deve vir arreada com ouros e vestidos à moda.
Também já tenho um carrão de funções mas não gostaria de ser eu a ir buscá-la ao aeroporto. Há sempre
invejas e bocas que falam.
- Eu posso ir buscá-la. Disse o Alexandre. Mas depois que lhe faço? Levo-a para o Hotel do partido? Vai
ser a mesma coisa.

O Ministro meditou:

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- Pois é. Sabe Alexandre? O que eu lhe queria pedir era isto: Com a minha estadia na Rússia perdi aqui
muitos contactos. Praticamente só tenho a amizade com o Camarada Presidente!

- E acha pouco?
- Não de modo nenhum! Mas não dá para lhe pedir uma coisa destas: ” Alexandre acha que posso pôr a
Albina uns dias lá em casa? Afinal já lá tem a Sandrinha e o meu irmão diz-me que você praticamente é
da família. Era só até eu ter a minha vivenda arranjada.
- Sabe que a minha mulher também está a chegar! Telefonou-me ontem.
- A Albina também já a conhece. Gosta imenso dela!

Era o que o Xandinho temia:

- Daqui a pouco aquilo é albergue. Pensou.

- Ela até pode ajudar nas lides caseiras. É mulher para isso.
- ” Victor! Disse o Alexandre. Então eu ia pôr a mulher do Ministro a mulher-a-dias?

O Renault não perdeu a oportunidade para irritar o amigo e lançou em provocação:

- ” Ministro! Então fica assim: Eu vou buscá-la ao Aeroporto e o Xandinho mete-a lá em casa.
- Eu agradecia muito.
- Conte connosco, Katatúlio! Disse ainda o Renault
- Só lhes pedia mais uma coisa: Não me tratem por Katatúlio! Não gosto nada desse nome! Passou-me
pela cabeça logo a seguir à Independência. Entre nós podem-me chamar Cunha. Victor Cunha.

Já no carro o Xandinho perguntou ao Renault:

- Tu sabes onde me estás a meter?

Ele soltou uma gargalhada:

- Querias dizer que não? Não tinhas alternativa! São ossos do ofício…
- Saberás tu que a Sandrinha está grávida? Perguntou o Alexandre.
- De quem?
- Do Heitor.

Não disseram mais nada durante a viagem.

De regresso à Delegação o Xandinho falou com o Delegado num tom abatido e entregou-lhe o ofício.

- Então com uma coisa destas na mão e você está aí com esse ar de quem não come há duas semanas?
Vou já fazer uma nota para acompanhá-lo e mando ainda esta manhã para Bruxelas.
- Faça isso! Disse o Alexandre. Mas parece que Bruxelas já decidiu apoiar o Vladimir.

O Delegado e o Renault olharam-no estupefactos.


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- Como sabe? Perguntou o Delegado.

O Alexandre contou-lhe a conversa que tinha tido com o ex-Secretário de Estado.

- Já estou a imaginar que no Bar Jean Monet em Bruxelas a conversa do dia é sobre o Vladimir Illitch. E
nós aqui somos os últimos a saber. Mas o homem será mesmo bem informado?
- Sabe que esta gente que andou pelos governos, nunca deixa as portas fechadas atrás delas. Disse o
Alexandre. Por falar disso. Já sabe da D. Cesária?
- Não! Respondeu o Delegado.
- É a futura Secretária de Estado do Turismo.
- Do Turismo? Mas isso não existe em Kabanda!
- Pois não! Mas ela gosta muito de viajar! Disse o Renault. E todos os assuntos do Vladimir Illitch são
tratados directamente com o Ministro. Alem disso o Katatúlio, para os amigos como nós, não se chama
Katatúlio, mas sim Cunha. A Sandrinha vai ser mãe. E a mulher do Ministro vai viver para casa do Dr.
Alexandre. Agora já sabe tudo!

Até o Xandinho se riu embora com pouca vontade. Eram quase horas de almoço e todos partiram, cada
um para seu lado.

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VII

Chegou a casa a pensar no telefonema da mulher. A perspectiva da sua vinda restaurava-lhe os espíritos
das confusões em que estava metido. Estranhou a Sandrinha não estar, mas não ligou importância. Talvez
tivesse ido para a Barra com o Heitor ou ambos foram tratar das vidas e nesse caso tinham bem que fazer.
Por outro lado pensava que já tinha dado muito de si ao seu Delegado. Oferecera-lhe um “Ordenador
Nacional” de mão beijada, mas estava a sair-lhe do pêlo. Agora tinha que aturar a mulher do Ministro, a
sobrinha, o Heitor, a Betinha e o parto ou o aborto da Sandra.

- Basta! Gritou no salão.

O João Paulo apareceu a perguntar o que se passava.

- Nada! Respondeu. Arranja-me a arca da praia com umas sandes e cerveja fresca. Vou passear.

Decidiu mesmo não dizer nada ao Renault, mas depois arrependeu-se. Pegou no telefone e falou-lhe para
o Hotel:

- Deves imaginar que não estou a viver os meus melhores dias: Primeiro foi estar nesse Hotel sete ou
oito meses. A seguir vim para aqui e tive que me reorganizar minimamente. Depois toda a história do
Ministro com a Tia Albina. A ausência da minha mulher. Agora o romance da Sandrinha. Para mim
chegou a altura de dizer basta!

- Mas estás zangado comigo, porquê? Perguntou ele.


- Porque tenho vontade de emigrar. Preciso de férias. Não fiques cá, vai para Bruxelas e diz-lhes que o
Assistente Técnico precisa de férias para não dar em maluco. Já agora diz-lhes que o Delegado está senil
e anda a apalpar a perna a sobrinhas de ministros.
- Acalma-te! Dizia o Renault.
- Calmo estou eu! Gritava o Xandinho. Depois de almoço diz ao Delegado para vir aqui a casa com a
mulher tocar harpa! Enquanto ele canta eu apalpo as mamas à Senhora Paterson!!! Estou a dar em
maluco!!! Vou para a praia que é a única coisa decente que tenho feito neste país!!!
- Eu vou lá ter contigo! Disse o Renault apreensivo.
- Não venhas que eu não vou para o mesmo sítio.

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Pousou o telefone com rudeza. Não sabia muito bem o que dizia. O próprio empregado estava assustado.
Nunca o tinha visto assim:

- Já parece o Brigadeiro quando a guerra colonial lhe corria mal. Pensou ele.

O Xandinho passeou-se pela casa a recordar as noites e os momentos que tinha passado com a Sandra e
ao mesmo tempo a estudar como é que a esposa cabia naquela moldura. Passeou pelo jardim e até
embirrou com a Riqueta. O Jorge veio perguntar-lhe o que se passava. Não respondeu. Apetecia-lhe ter
condutor como o Renault e dizer-lhe:

- Leva-me a passear.

A ira despejada ao telefone serenara-lhe os ânimos. Por estranho que possa parecer tinha a sensação de
odiar aquela casa que tanto desejara. Repentinamente ela tinha-se enchido de personagens de literatura de
cordel ou pior ainda: Tinha-se transformado no palco duma novela de segunda classe da qual não se
adivinhavam as cenas dos próximos capítulos. Eram figurantes que tinham perdido o controlo das suas
próprias vidas e estavam entregues nas mãos do destino. Apetecia-lhe comer, mas não queria um almoço
formal com mesa posta e empregado a servi-lo. Umas sandes numa praia deserta, uma boa cerveja fresca
e dois ou três mergulhos no mar, saciar-lhe-iam as entranhas ou domesticar-lhe-iam a alma. A seguir iria à
Delegação descansar o Renault e pedir-lhe desculpa pela sua má disposição ao telefone. Talvez passasse o
resto da tarde numa amena cavaqueira com ele e com o Delegado. Diga-se de passagem que não tinham
nada de importante a fazer. Agora estavam dependentes duma confirmação de Bruxelas sobre a
reabilitação do Vladimir Illitch.

Este interregno poderia ser preenchido com o tal jantar a servir aos Embaixadores de Portugal e de
França para lhe contarem as aventuras do Katatúlio ou Cunha ou lá como se chamava o homem. O João
Paulo tinha-lhe posto a arca no carro. O Xandinho partiu. Passou pela Baía, mas ela lembrou-lhe outros
tempos. Deambulou pela costa ao sabor do acelerador e até desejou ter um barco como o Heitor. Parou na
Praia dos Padres. Chamava-se assim porque há muito tempo tinha havido ali um seminário e os alunos
iam para lá vestidos de preto até ao pescoço fazerem preces aos deuses da infância e aprenderem a ouvir e
talvez praticarem pecados uns com os outros.

- Ainda bem que o meu pai era espírita. Nunca lhe passaria pela cabeça pôr-me num seminário! Pensou o
Alexandre.

Tirou da arca uma cerveja. Encostado a uma árvore vestiu as bermudas. Deitou-se na toalha a mastigar
as sandes. Atrás de si, erguia-se uma encosta de terra avermelhada com embondeiros plantados. As
casuarinas que abundavam na costa estavam mais pobres: Tinham deitado fora todas as suas flores. Na
borda de água apanhou conchas esquisitas que nunca tinha visto no seu país e pedaços de árvores em
pedra que na escola tinha aprendido a chamar fósseis.

As ondinhas do mar de tão lentas pareciam que tinham medo de ferir a areia. O seu marulhar manso,
recordava-lhe os búzios que em pequeno encostava aos ouvidos para entender a língua do mar.

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Quando a Susaninha, a sua mulher viesse, tudo seria diferente. Mergulhou no mar três ou quatro vezes.
Depois sentou-se na areia. À sua volta só macacos passeavam alheados. Pareciam que indagavam se ele
descendia da sua espécie. Estava a ver o filme ao contrário. Tinham descido das árvores. Agora faziam
poses para o Xandinho com ar de cientistas distraídos. Catavam-se uns aos outros e tornavam a subir às
árvores com aparências de tédio. O último a sair de ao pé dele fixou-o nos olhos longamente. Era o que
tinha o porte maior. Movimentou-se devagar apoiado nas quatro patas e começou a trepar a uma
casuarina. Parou a meio olhando-o de novo. Guinchou. Ao Alexandre pareceu-lhe que o macaco encolhia
os ombros e apontando para ele parecia dizer para o resto da tribo em língua de símio:

- “Coitado! Porque será que os homens são assim”???

Vestiu os trajes de trabalho. Meteu-se no carro e partiu para a cidade.

- “O pior nestas funções é o isolamento”. Pensava o Alexandre: “E pior ainda é que esta maneira de estar
cultiva-se entre esta espécie de tribo a que agora pertenço: Os diplomatas! Os nossos passos são escutados
até ao mais pequeno detalhe quer pelos autóctones quer pelos colegas. Todos nos invejam: Os nacionais,
por quem se é! Os colegas, por teres amigos locais e não fazeres parte do clã do isolamento.

Como de costume chegou tarde à Delegação. A D. Helena envergonhou-o, fazendo-lhe notar que estava
despenteadíssimo. Emprestou-lhe uma escova para ajeitar as melenas, após o que se dirigiu apressado ao
gabinete do Renault:

- Desculpa aquele telefonema! Adiantou-se a dizer. Contaste alguma coisa ao Delegado?


- Claro que não. Mas para te ser franco não esperava ver-te esta tarde. Estava mesmo aqui a pensar que
aldrabice iria agora contar ao homem.
- Isto está um enfado! Vim mais para lhe perguntar se tinha feito alguma diligência por causa da minha
mulher. Disse o Alexandre. Ao mesmo tempo queria falar contigo para saber se ainda convidamos os
nossos Embaixadores para jantar.
- Acho que devíamos fazer qualquer coisa. Mas jantar? É muito formal para o meu gosto. Um almocinho
no domingo era o ideal. Mas vamos telefonar-lhes!
- Não vou pedir o serviço nem o empregado ao Delegado. Safo-me com a prata da casa. Já os devia ter
convidado para jantar lá em casa. Mas com estas confusões todas nem sequer pensei nisso. Disse o
Xandinho. Com certeza que os dois Embaixadores já foram jantar e ouvir harpa a casa dele e conhecem a
baixela e os criados o que é chato.

Os dois telefonaram. Ficou marcado um almoço informal para o domingo seguinte. O Alexandre estava
excepcionalmente calmo, facto que o Renault notou. Era como se estivesse a sair duma grande ressaca.

- Afinal quero lá saber que a Sandrinha esteja grávida, se vai abortar ou ter gémeos? Pensou para
consigo. Afinal o que eu quero é que o meu pingue no bolso.

A chegada do Delegado ao gabinete do Renault interrompeu o resto dos arranjos:

- Mas que dueto! Disse ele dirigindo-se aos dois. Depois voltou-se para o Alexandre: Telefonei ao
Wagner que é o Director do Serviço de Pessoal por causa da sua mulher. Acha melhor mandar-lhe a
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certidão de casamento directamente e ele próprio se encarregará do assunto. Tenho ali o seu número
directo. Ficou assente que a sua esposa lhe telefonaria para combinarem melhor. Há novidades?
- Não! Disse o Renault. Estamos à espera de notícias de Bruxelas. Mas achava que o Sr. Delegado se
poderia antecipar e telefonar ao Ministro para que ele indicasse nomes disponíveis da parte Kabandina
para se proceder ao tal levantamento que Bruxelas quer.
- É uma boa ideia! É o que eu digo você tem ideias. Farei melhor. Digo à Helena para marcar uma
audiência com ele.
- Mas por favor não lhe fale da Tia Albina ou da Sandra!
- Nem pense! Foi directo ao seu gabinete.

Concluíram que estarem ali para cumprir horários era prolongar o enfado e decidiram ir embora. De
qualquer modo já eram 17 horas.

Na rua o condutor esperava o Renault.

- Não queres ir ao Hotel beber um copo? Perguntou ao Xandinho.


- Sigo-te no meu carro.

Aceitou o convite por pensar que a Sandrinha poderia estar em sua casa e não saber muito bem o que
dizer-lhe. De qualquer modo, mais cedo ou mais tarde teria que abordar o assunto com ela.
- Para já vai precisar de espaço! Pensava ele. Tem muitos enigmas a resolver sendo os mais importantes
neste momento o aborto, depois do aborto o quê, ou quais as saídas haverá para o assunto?
- “Deve ser muito mais fácil defender nas ruas o direito ao aborto do que uma mulher exercer esse
mesmo direito”. Cismava para com os seus botões: “Deve sempre deixar marcas e não sabia medir se
eram mais ou menos sérias do que as deixadas pela droga. Haveria sempre de recusar manifestar qualquer
opinião sobre o exercício desse direito em casos concretos. Na generalidade tinha uma opinião bem
formada sobre o assunto e dúbia como sempre: Que o faça quem quiser mas não lhe peçam juízo nem
discernimentos sobre a matéria. O assunto não deve ser mandar no corpo como elas dizem: Deve ser mais
dar ordens à cabeça e ao carácter”.

Não haveria de se demorar muito no Hotel. Queria chegar a casa ainda de dia para folgar um pouco no
jardim e talvez ouvir uma música descansado. Deixaria a conversa com a Sandrinha ao correr dos ventos
e marés. Tinha decidido que no assunto, o seu mester, seria o silêncio.

Quando chegou a casa, ainda a tarde se mantinha. A Sandra brincava no jardim com a Riqueta:

- Deve estar a imaginar brincadeiras futuras! Pensou ele. Pediu ao João Paula uma cerveja, a
aparelhagem de fora, deu dois beijos à Sandrinha e foi estender-se num dos divãs perto da árvore.

- O Tio já sabe, não sabe?

Dum dia para o outro tinha começado a tratá-lo por você, com se quisesse separar os prazeres passados
das suas agruras presentes.

- Já sei. Respondeu seco onde está o Heitor?


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- Foi a casa, mas não sei se volta.


- Precisava de falar com ele! Disse o Xandinho.
- Falar de quê?
- Nada de importância. No domingo vou dar aqui um almoço para os Embaixadores de França e
Portugal. Queria ver se ele te levava até à Barra porque vamos falar de assuntos de serviço.

Não se estava a ver pôr o assunto do Katatúlio na mesa, com a Sandrinha presente.

- Esteja descansado. No domingo é quando vamos acabar este trabalho. Apontou-lhe para a barriga. Mas
queria pedir-lhe uma coisa. O Alexandre afilou os ouvidos.
- Já começamos a tratar disto. Tornou a apontar para a barriga enquanto os olhos se humedeciam de
ternuras maternais que atirava à Riqueta.
- Deve ser uma violência enorme. Pensou o Xandinho.
- E então? Perguntou-lhe.
- Achei graça à cerimónia! O Tio é contra?

Ela tomou o silêncio do Xandinho como um sinal de aquiescência e continuou a história:

- Fomos à cubata duma “Mamana”, já com uma idade considerável…


- São sempre velhas que se predispõem a fazer estes serviços! Pensou ele.
- Tínhamos que levar duas garrafas de vinho e um galo preto. Enquanto abriu uma das garrafas, queimou
umas ervas variadas num monte de brasas. Acho que também queimou cannabis. Ficamos todos em
silêncio a beber o vinho e a respirar aqueles fumos.
- O Heitor estava contigo? Perguntou o Alexandre.

- Estava. Pusemos também o dinheiro que ela pediu em cima da esteira ao pé da imagem duma santinha
e dum objecto em pau-preto que não entendi o que era. Ela mandou-me segurar na estatueta e num
crucifixo enquanto arrancou uma mão cheia de penas ao galo vivo que nem sequer protestou muito com
aquela violência. Ela devia saber que naquele sítio era onde lhe doía menos.

O Xandinho pelava-se para ouvir estas histórias e por momentos esqueceu o drama que a Sandrinha
estaria ou não a viver. Ela continuou:

- Misturou as penas com uma dúzia de pedras, conchas do mar e búzios que atirou ao ar. “Voaram bem”!
Disse ela, querendo dizer que tudo ia correr de feição. Quando olhou para as conchas apontou para uma
que tinha caído para longe: Mas na noite em que tomar o chá vai precisar de repouso. Era isso que lhe
queria pedir Tio. No domingo à noite quando tomar o chá posso vir cá para casa?

Que poderia ele fazer senão aceder, mas pôs uma condição:

- Podes se o Heitor estiver cá também.

Por um lado ele achava que o pai da criança devia estar presente em actos destes. Eram assuntos muito
melindrosos e alguma coisa poderia correr mal. Nesse caso alguém se deveria responsabilizar por isso.
Ele não se estava a ver a prestar os primeiros socorros e não sabia exactamente o que eram aqueles chás.
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- Mas o Tio acha que faço mal?


- Nem mal, nem bem! Disse o Xandinho. Acho que é um problema que só a vocês diz respeito e de
modo algum me quero meter nisso. Mas já agora tu que pensas?
- Não vê como estou aqui agarrada à Riqueta? A questão não é saber o que desejo, mas o que devo fazer.
De resto Tio! Foi tudo tão rápido que não sei o que pensar. O Heitor foi muito justo comigo. Naquela
noite em que fiquei aqui na sala, naquela noite em que o tio teve e visita, foi quando tive a certeza. Nesse
mesmo dia tinha-me levado a uma médica amiga dele no Hospital Militar fazer testes. Naquela noite em
que ele saiu com o Tio foi quando tivemos a confirmação. As mulheres adivinham essas coisas…
Também sabia que o Tio ia compreender. Tudo podia ter acontecido consigo.

- Mas não aconteceu. É isso que agora me interessa. O problema Sandra é que para ele não era só uma,
mas várias situações intrincadas. Contaste ao Katatúlio o que se está a passar?
- Eu sei que não aconteceu consigo! Não falei com ninguém. Pode ser um segredo dos três, não pode?
Perguntou com mágoa.

A cerveja que o João Paulo lhe trouxe estava no fim. Tocou à campainha e pediu outra. Pôs um concerto
de Bhrams. Levantou-se para ir vestir umas bermudas. Quando passou por ela de novo não se conteve
sem lhe fazer uma carícia benévola. A mão do Xandinho demorou-se nos seus cabelos. Parou para
perguntar:

- Como é que acaba a história da “Mamana”?


- Foi buscar dois ovos. Mandou-me aquece-los no ventre e disse-me para hoje à noite, antes de me deitar
tomar banho e esfregar o corpo com eles. Mas primeiro tenho que os pôr ao luar e rezar pelos
antepassados. Diz que é para eu ter mais filhos em breve. Deu-me uma garrafa com o chá que também
tenho que por ao luar e este colar. Apontou-lhe um colar de pedrinhas manhosas que trazia ao pescoço.
Disse que é para me ajudar a pensar antes de tomar o remédio.

A conversa estava pesada. Foi ao quarto vestir as bermudas e pediu à Sandrinha para ir fazer dois ou três
cigarros. Aproveitou para tomar um banho que lhe refrescasse as ideias e o corpo.

- “Que posso fazer fazer”? Falava sozinho: “ O que está feito está feito. As soluções são com eles! Não
valia a pena fazer um dramalhão do problema”.

Quando voltou ao jardim o dia tinha varrido. Pela primeira vez acendera as luzes de fora e ficou a
contemplar as sombras que elas engendravam. A Sandrinha estendeu-lhe um charro que ambos fumaram
como se fosse um cachimbo de paz. Ela sentou-se na relva encostando o corpo às suas pernas. Deu-se
conta que pela primeira vez a acariciava sem qualquer outra intenção que não fosse o afago. Ficou sem
saber se era melancolia que sentia pela mãe que estava ali, se luto pelo bebé que não iria sobrevir.

- E depois? Perguntou ele.

- Depois o quê?

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Sexo, Drogas e Diplomacia
ou
Katatúlio um Homem de Estado

- Depois do que vais ou não fazer? Sabes que o teu Tio Victor já tem casa e que a Tia Albina foi a
Portugal comprar mobílias.
- Sei, mas não quero ser fardo.

O João Paulo veio perguntar se queriam comer peixe grelhado. Completamente alheado o Xandinho
respondeu que sim. Pensou que nesta altura a Susaninha seria duma grande ajuda. Com certeza que ela
iria perceber muito melhor do que ele o lance em que a Sandra estava metida e dar-lhe uma carícia muito
mais coerente do que a dele. A expressão “não quero ser fardo” ficara a remoer-lhe os escrúpulos. O
Alexandre deu-lhe a mão para a ajudar a levantar-se e foram os dois jantar. Lembrou-se que ainda não
tinha telefonado à sua mulher para lhe dar o número de telefone do Wagner para combinarem o assunto
das passagens e decidiu telefonar-lhe:

- Estás preparada para vir para o convento? Claro que é um convento! Disse-lhe ele. Talvez uma abadia
libertina seja a definição mais correcta.

A voz da Susaninha era como sempre apressada e denotava que ela não podia esperar mais tempo para ir
viver aquela aventura. Quando ela lhe perguntou o porquê de uma abadia libertina, expressou alguma
suspeita. O Xandinho quis explicar-se contando a história do Heitor, da Sandra, do Ministro, do
Delegado, da Tia Albina e dele próprio, mas a presença da Sandrinha recatou-o. Seria uma longa conversa
a terem sozinhos, logo que ela respirasse um pouco o ar de Kabanda. De qualquer modo estava à vontade.
Sabia que ao fim de uns anos de estarem juntos um homem ou uma mulher decifram sempre quando um
parceiro enchifra o outro. No entanto avisou-a que aquilo era uma terra sem sítio nenhum para onde ir.

- No teu caso podes estar feliz. Explicou-lhe o Xandinho: Tens vários. Tens o jardim da casa, o sofá do
salão, a mesa do salão de jantar e a cama do quarto.
- ” Graça Albergaria! Tens muita gracinha! Respondeu-lhe a mulher com trocadilhos.
- Mas tens também a praia e os “Cai-Cai”. Para tardes de enfado tens o Hotel Meridien, com direito a
conheceres o homem das calças pretas.
- Quem é? Perguntou a Susaninha.

- Ele não é nada discreto. De modo quando lá estiveres ele dá-se a conhecer.
- Tens mesmo gracinha! Respondeu-lhe outra vez a mulher, a pensar que talvez fosse algum galã de
Kabanda. Mas como passas o tempo?
- Isso de passar tempo é difícil. Ou vou a um teatro, ou a um bailado, ou a um cinema. Depende da
disposição.

Ela tinha nascido e vivido em Moçambique. Sentia-se Africana a tempo inteiro e sabia que ele estava a
divertir-se:

- Hoje estás mesmo com gracinha. Fala a sério! Pediu a Susaninha.


Vais ou dás umas festas, fumas umas passas! Mas por favor vem massacrar-te depressa. Com
imaginação e com vontade de fazeres pouco passas bem os dias.

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Sexo, Drogas e Diplomacia
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Katatúlio um Homem de Estado

Pelo telefonema, soube que a Tia Albina estava quase pronta para vir. A Susana tinha ido com ela às
compras e tentara influenciar-lhe os gostos. Mas a Senhora dizia sempre que estava ali para cumprir os
gostos do Ministro e não a satisfazer as vontades dela.

Durante a conversa ele contou-lhe a parte da história da Sandra, só para a preparar para a eventualidade
de ter que vir a coabitar com as duas e sofrer as visitas do Katatúlio de vez em quando. Despediu-se dela
com saudades que realmente sentia. Sentiu os olhos húmidos mas conteve-se para não brotar lágrimas.

Quando pousou o telefone a Sandrinha perguntou-lhe porque é que a Susaninha teria que coabitar com
as duas.

- Parece que chegaste agora de Marte onde viveste muito tempo e estás a pôr-te ao corrente da vida na
Terra. Respondeu-lhe o Xandinho.

Enquanto comiam o peixe grelhado que o João Paulo tinha preparado para o jantar, contou-lhe o pedido
do Ministro para irem buscar a Tia Albina ao aeroporto:

- Se pelo menos soubesse o que pensas fazer…


- O Tio não se preocupe comigo! Respondeu-lhe a Sandra.

Ao Xandinho parecia-lhe estranho aquele tratamento por você a que ele rapidamente se habituou. Tinha
pelo menos a vantagem de guardar alguma distância entre eles, mas era alguma coisa que desconcertava o
Alexandre. O pedido para não se preocupar estranhava-o:

- Mas não me preocupo porquê?

Sentiu despeito e desassossego ao fazer aquela pergunta. Era como se de repente a Sandrinha tivesse
passado uma esponja pela lembrança, ou fosse uma daquelas fêmeas que depois da cópula assassina o
macho. Por qualquer ímpeto um alarme tinha soado algures dentro dela e como por magia tinha fabricado
um Tio de verdade. O enternecimento da sua voz não se tinha desfeito. Eram os afectos que eram
diferentes.

- Mas não me preocupo porquê? Repetiu a pergunta.


- Hei-de encontrar uma saída. Se a Tia for viver com o Victor, posso até ir morar para casa dela no
Bairro dos Mãos Leves.

O Alexandre imaginou-lhe na voz um chamamento por vícios antigos e teve um estremecimento de


consciência. Uma injustificada sensação de culpa subiu-lhe à cabeça:

- Mas sabes que aqui tens sempre uma porta aberta. O Katatúlio diz que é uma vergonha saber-se que a
sobrinha mora nos “Mãos Leves” e ele ser Ministro. É capaz de ter razão. Podes ir viver com eles como
querias na noite do cabrito! Lembraste?

A Sandrinha acenou com a cabeça num gesto de assentimento. Ele continuou:

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ou
Katatúlio um Homem de Estado

- Estou a ouvir-te: O carro ia buscar-te com condutor e segurança. Tu ias estudar para um desses colégios
novos que há aí…
- Eu de facto estrago a vida à mais pequena distracção. Parece que tudo foi ontem e já se passou tanta
coisa…
- Não queres regressar a Portugal? O Xandinho estava tristonho. De repente imaginou-a grávida de nove
meses e ajudou-a a levantar-se da mesa.
- Não sei Tio! Ainda tenho que tomar o chá e usar o colar para pensar.

Como se estivesse a fazer uma oração, apalpou com os dedos as contas daquele rosário pagão:

- É estranho! Mas estas missangas ajudam mesmo a pensar.

O Alexandre olhou em volta e reparou que de repente a casa se tornara triste:

- Talvez o almoço com os Embaixadores modificasse as coisas tal como o jantar com o Katatúlio alterou
tudo. Pensou.

Saíram da mesa de jantar e foram para o salão. Lembrou-se que já era sexta-feira e que a festança seria
domingo. Sentou-se no sofá. A Sandra foi acender a televisão e imitou-o: Acostou-se e ajeitou-se contra o
Xandinho. Estava a nascer entre eles uma relação autêntica de tio/sobrinha.

O Alexandre pôs-lhe carinhosamente o braço em volta do pescoço experimentando qualquer coisa de


muito diferente do que tinha sentido quando fez a mesma coisa no bar do Hotel “Quatro Estações” e
ficaram a ver um filme na televisão Sul-Africana.

- Não te esqueças que amanhã tens que pôr o chá e os ovos ao luar. Disse o Xandinho mexendo-lhe no
colar.

Quando ele se foi deitar a Sandrinha ainda ficou no salão ver a televisão. Tinha começado a dormir
quando ouviu mãos aflitas a baterem à janela do seu quarto que dava para o jardim.

- Patrão! Patrão!

Era a voz do Jorge. Levantou-se como uma mola e o primeiro pensamento que lhe veio à cabeça foi que
se tratava de outro tumulto ou alguém que estaria a assaltar a casa. Em Kabanda, a criminalidade tinha
aumentado na proporção directa da fome e da violência que as populações sustentavam. Havia assaltos
todas as noites a residências e a imprensa mantinha sobre o assunto um silêncio sepulcral o que fazia
crescer ainda mais a ansiedade dos habitantes. Só a “Rádio Batuque” dava notícias destes incidentes mas
ninguém dava credibilidade aos seus relatos. O Alexandre sabia que tinha algures uma arma que uma vez
tinha comprado ao “Coronel Hofman” numa altura em que ele precisava de uns trocos. Nunca tinha dado
um tiro na sua vida mas procurou a arma em todas as gavetas. Lá fora os gritos continuavam:

- Patrão! Patrão!
- Já vou! Gritou.

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Katatúlio um Homem de Estado

- Para que quero a arma? Pensou. Talvez a Sandrinha a tivesse encontrado quando lhe arrumou as coisas
nas gavetas. Não encontrou a pistola. Mas se for um motim que me adianta a pistola? Disse para consigo.

Ainda estremunhado foi ao quarto da Sandra mas ela não estava lá, nem no salão. A porta da cozinha
estava escancarada.

- Que foi (gritou)?

No escuro da noite mal divisava vultos à distância. A uns passos de si surgiram-lhe as silhuetas do Jorge
e da Isaura.

- É a Riqueta! Salve-a! Chorava a Isaura que se tinha ajoelhado na sua frente.

O Alexandre duma forma egoísta respirou de alívio. Desde que tinha tido a experiência do tumulto
preferia tudo, menos ver exercícios de violência similares. Os assaltos em Kabanda, segundo os boatos
que corriam também não eram pacíficos passando muitas vezes pela violação ou pela morte. Correu para
a casinha ao fundo do jardim onde a Sandrinha já estava a fazer respiração boca-a-boca à miúda.

- Por momentos deixou de respirar. Disse ela como se tentasse justificar as suas acções. Continuava a
pressionar-lhe o peito de forma ritmada. Parece-me que recuperou a respiração.

- Trá-la para casa!

Ao sair, cego pelo contraste da luz de dentro com o escuro do jardim, tropeçou no Jorge. A Sandra
embrulhou a miúda nos braços e correu para casa. Deitou-a no sofá do salão.

- Está azul. Disse o Alexandre para consigo, olhando a Riqueta.


- Salvem-na! Gritava a Isaura.
- Mas o que se passou? Perguntou a Sandra.
- Ela estava a dar-lhe o biberão e a Riqueta começou a tossir até perder a respiração. Disse o Jorge
interrompendo os soluços.

O Alexandre tirou a roupa à miúda e pôs-lhe a mão no peito. O coração batia-lhe de forma
descompassada mas recuperava a sua cor normal.

- Agora que fazemos? Perguntou a Sandra.


- Não sei. Mas por favor pede ao Jorge e à Isaura que se calem. Leva-os lá para fora. Precisamos de
pensar.

Os pais da Riqueta naturalmente não queriam sair:

- Diz-lhes que o patrão vai fazer um bruxedo mas para isso precisa de silêncio. Vê se eles vão apanhar
um morcego ou uma estrela-do-mar disse o Xandinho meio a sério, meio a brincar.
- O Tio não sabe o que é ser mãe! Respondeu a Sandra saindo com os empregados.

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No salão fez-se silêncio. O Alexandre não tinha a mais pequena ideia do que fazer:

- Tanto pode ser um simples engasganço como qualquer coisa mais complicado. “Quantos médicos por
cabeça haveria naquele país”? Meditava. A Sandrinha voltou para dentro.

- Que vai fazer? Perguntou ela.


- Quantas cubatas estarão agora a viver um drama parecido?

A miúda tinha acalmado o choro e calou-se completamente quando o Alexandre lhe pôs na boca a
chucha molhada em açúcar.

- Vou telefonar à Beta. Disse ele. Discou o número. Do outro lado da linha demoraram a atender o
telefone.

A Beta estava habituada a receber telefonemas àquela hora a requisitar a sua experiência médica.

- Por acaso tenho aqui em casa uma botija de oxigénio de campanha. Vou acordar o Heitor e vou levá-la.
Normalizamos-lhe a respiração e pensamos o que vamos fazer a seguir. Vou medir-lhe a tensão e ver o
pulso. Depois logo se vê. Estamos aí dentro de dez minutos.

O Alexandre pousou o telefone. Era a primeira vez que a Beta vinha a casa dele. De repente lembrou-se
que lhe tinha dito que a Sandra já não estava em Kabanda e pensou como seria o encontro das duas. Alem
de ficar como mentiroso poderia ainda ser acusado de apadrinhar o desfasamento de lares respeitáveis.

- Que fizeste com os empregados? Perguntou à Sandrinha.


- Foram apanhar um morcego como o Tio mandou.
- Se calhar levaram o crucifixo!
- O quê? Perguntou ela.
- Nada! Respondeu o Xandinho. É uma piada! O Heitor e a Beta estão a chegar. Apaga a luz do teu
quarto, vai para a casa do jardim e não saias de lá sem eles irem embora. Não quero que ela te veja aqui.
A Riqueta estava muito mais calma e o Alexandre manifestava a sua impotência sentando-se pesadamente
ao lado dela.

Um carro apitou na rua. Enquanto o Xandinho foi abrir a porta do jardim a Sandrinha foi para a casa do
fundo. Encaminhou o Heitor e a Beta para o salão.

- Os pais onde estão? Perguntou a Beta.


- Saíram. Foram apanhar uma estrela-do-mar ou um morcego.
- O quê? Perguntou ela escandalizada.

O Alexandre contou-lhe a história, omitindo a presença da Sandra.

- Tens muita gracinha! Disse o Heitor fazendo-lhe trejeitos como se a perguntar se a Sandra estava.

A Betinha tinha-se debruçado sobre a miúda. Auscultou-a e tirou-lhe a febre.


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- Gostava de lhe medir a tensão, mas não tenho instrumentos. Despiu-a e tirou-lhe a fralda
suficientemente borrada.
- Heitor! Disse o Alexandre arregalando-lhe os olhos. Vai à casa do jardim e traz uma bacia azul que está
lá. Vê se encontras uma fralda limpa.
- Se encontrares algumas sujas traz também. Pediu a Beta.

O Xandinho admirou-se mas ela adiantou-se a esclarecer:

- Isto meu caro amigo é um princípio de cólera. O deixar de respirar e a cor azul que descreveste pode
ser um engasgo com o biberão. Mas esta diarreia da fralda não me engana. Os pais não estão. Gostava de
lhes perguntar se este tipo de fezes dura há muito tempo ou se é de agora. Por isso é que pedi as fraldas
sujas. De qualquer modo esta diarreia aquosa pode indicar cólera de instalação súbita. Será que eles não
fervem a água antes de dar à menina?
- Se não fervem, desobedecem aos meus conselhos. Disse o Alexandre.
- Acredito. Mas tens que andar em cima deles, se não queres ter um dia um funeral cá em casa. O Heitor
não vem com as fraldas?
- Deve estar à procura delas. Vou chamá-lo.
Sobre tudo queria evitar que a Beta desconfiasse que a Sandra estava lá em casa. Quando voltou ao salão
a Betinha foi peremptória:
- Isto é cólera! Só me falta saber se estava incubada e surge agora, ou se pelo contrário tem uma
instalação súbita, o que acontece poucas vezes mas é potencialmente fatal. Cólera é, e não admito que
nenhum médico a não ser que tenha estado na frente me desminta. Vi dezenas e dezenas de casos de
cólera. Quando aqui se fala dum surto de cinquenta pessoas podes crer que no país existem já duzentos ou
trezentos casos detectados.
- Isso é contagioso? Perguntou o Alexandre.
- Não de pessoa a pessoa. Mas só quando chega a altura do governo pedir ajuda internacional é que os
casos sobem para as centenas para apelarem às boas consciências.

O Heitor entrou com fraldas sujas e limpas que a Beta inspeccionou.

- Não adianta disse ela. Tinha mesmo que falar com a mãe. Está aqui uma com diarreia mas pode ser de
há uma hora ou de ontem. Telefona à Dra. Nanda do Hospital Militar e pergunta-lhe se ela tem soro e
agulhas em casa. Disse ao Heitor, falando com segurança de médica.
- Se tiver, podemos pô-la a soro aqui mesmo.
- Estás a estragar-me o programa! Disse ele enquanto telefonava.
- Porquê? Perguntou a Beta.
- Porque eu estava a pensar ir hoje de madrugada pescar para a Barra.
- Vai! Disse a Beta. Se a Dra. Nanda tiver o soro eu fico aqui a tratar da miúda.

O Xandinho percebeu a jogada. Se os pais chegassem, iriam dar com a Sandra na casa deles.
Normalmente ele saía para a pesca às cinco da manhã. Ir e não ir a casa da médica seria mais ou menos
essa hora e ele poderia sacar a Sandrinha através do jardim. O Heitor saiu como uma flecha. O Alexandre
ainda o viu pela porta da cozinha dirigir-se à casa do jardineiro e depois passar como um fugitivo com a
Sandra ao lado.
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- De qualquer modo convém dizer ao Hospital Central que há aqui um caso de cólera. Pelo menos serve
para as estatísticas que eles nunca divulgarão e conforme o número de casos que eles já teriam detectado
pode servir-lhes de aviso.
- Mas tens mesmo a certeza que é cólera?
- Para ter a certeza tinha que lhe fazer uma análise às fezes. Mas se fosse para o hospital também não lhe
faziam análise nenhuma. No melhor dos casos faziam-lhe o que lhe vou fazer. No pior dos casos faziam-
lhe hidratação oral. Mas eles têm uma excelente cobertura sanitária, pelo que diz o governo.
- Já tens aqui uma fralda limpa. Pudemos ir dar-lhe banho.

A Beta pegou na criança com a eficiência duma enfermeira e levou-a para o quarto de banho. Quando
voltou trazia-a embrulhada numa toalha. Vestiu-a e tapou-a. O Xandinho achou-lhe piada: Naquela
pequena mulher havia mais que uma mãe de dois filhos mas também o que lhe parecia ser uma
enfermeira competente. Nunca a tinha visto por aquele ângulo. Admirou ainda o facto dela se
disponibilizar para ficar lá em casa.

- E os teus filhos? Perguntou o Alexandre.

- Não tenhas problemas. Se for caso disso tomam o pequeno-almoço ou mesmo o almoço no andar de
cima com a avó.
- Posso entrar Patrão? Gritaram da porta da cozinha.

Era o João Paulo.

- Como soubeste? Perguntou o Alexandre.


- Estas coisas sabem-se.
- Disseram-me que Sôtor lhe ia fazer um feitiço, mas eu não acreditei.
- Agora não sou eu que lhe vai fazer o feitiço. É esta Senhora Bruxa. Disse o Xandinho.
- O João Paulo está velho para acreditar nessas coisas. Disse o empregado.
- Ainda bem que vieste. Podes ajudar a levar a cama do quarto do meio para o detrás. A D. Beta vai
dormir cá com a menina.
- Muito obrigado. Disse ele curvando-se várias vezes em ângulo recto.

Bateram de novo à porta. O João Paulo foi abrir e soltou uma enorme gargalhada.

- Sôtor veja isto! Estes pretos estão cada vez pior! Isto nem com mais cinco séculos de colonialismo!
Disse o homem parecido com um tocador de jazz de New Jersey, com a autoridade que lhe dava a
cabeleira branca. Vejam só isto! Repetia apontando para as mãos do Jorge e da Isaura.

Um, trazia um morcego e o crucifixo. O outro uma estrela-do-mar.

- Está bem. Ponham isso em cima da mesa da cozinha e vão ajudar o João Paulo a mudar a cama. Depois
podem ir para casa que a D. Beta fica cá a fazer o feitiço. Sabem quem é esta Senhora? É a esposa do Sr.
Heitor.

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Os três aprovaram com a cabeça, mas o João Paulo não se conteve. Voltou-se para eles e disse antes de ir
com o sobrinho executar o trabalho:

- Palermas!!! São mesmo muito palermas!!! Um morcego e uma estrela-do-mar!!! Com isso, nem o
melhor bruxo fazia um feitiço!!!

- Isaura! Fica aqui. A D. Beta quer saber se a Riqueta já tem diarreia há muito tempo.
- Não. Foi só esta noite.
- Ficamos na mesma. Disse a Beta. O período de incubação varia de horas até cinco dias. O melhor é
mesmo pô-la a soro e dar-lhe muita água durante a noite.
- Nunca mais quero água que não seja bem fervida lá casa. Despeço-vos, ameaçou o Alexandre.

Um carro parou na rua e apitou.

- É o Sr. Heitor. Vai ajudá-lo a trazer as coisas.

De casa da Dra. Nanda, veio tudo. Até um tripé para pendurar o soro.

- Mas ela tem tudo em casa. Disse o Alexandre.

Estava pronto o quarto com as duas camas feitas de novo. A Beta foi para dentro enquanto eles ficaram
no salão. O Xandinho pediu ao João Paulo duas cervejas a contar com o amigo.

- Onde está a Sandra? Perguntou o Xande por entre os dentes.


- Está escondida no jardim. Respondeu o Heitor do mesmo modo.

Ouviu-se um choro angustiado de bebé e a Isaura estremeceu. Depois ouviu-se um murmúrio ténue e
fez-se silêncio. Já tinham acabado as cervejas quando a Beta entrou no salão:

- Trouxe uma qualquer-coisinha para ela passar uma noite descansada enquanto está com o soro. A
Isaura pode ficar aqui no sofá? Perguntou ao Xandinho. Preciso duma pessoa que lhe dê água de hora em
hora.
- Claro que pode! Respondeu ele.
- Então pronto! Quem não está aqui a fazer nada pode ir embora. Ordenou a Beta às tropas em parada
com voz de comando.

Foi o que o Heitor quis ouvir. Despediu-se a dizer que ia ver como estavam os miúdos em casa e
avisando que de madrugada ia pescar.

- Talvez vá buscar a Sandrinha ao esconderijo. Pensou o Xandinho.

No dia seguinte, por volta das dez horas, foi o Renault que o despertou. Tinha tentado telefonar mas foi o
João Paulo que atendeu o telefone dando-lhe a entender que algo tinha acontecido na noite passada e que
não queria incomodar o patrão. Por isso tinha vindo a sua casa, tendo entrado por lá dentro com o
beneplácito do empregado. Não tendo visto ninguém no salão nem no jardim fora directo ao seu quarto
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onde brincou com ele fazendo-lhe cócegas na orelha com uma linha. O Alexandre acordou estremunhado
e ao vê-lo sentou-se na cama:

- Que noite! Que noite! Exclamou esfregando os olhos.

Contou-lhe detalhadamente o que se tinha passado. Contou-lhe a cena do chá e a aventura da Sandrinha
na “Mamana abortadeira”. Gabou a generosidade da Beta. Vestiu as bermudas do costume e de chinelos
foi ao quarto onde a Riqueta ficara a soro. Numa das camas a Beta dormia esbodegada. Durante a noite
ela teria ido ao quarto dele pois tinha o robe chinês vestido. Habitualmente ele costumava estar no seu
guarda-roupa. O Alexandre não tinha sentido nada. Talvez fosse mesmo o João Paulo que tinha dormido
na casa do fundo do jardim a ir buscá-lo. Não imaginava a Beta a entrar no seu quarto e vasculhar tudo
até encontrar uma peça de roupa que lhe permitisse estar mais à vontade.

- Devia ter sido o empregado ele que durante a noite se quis certificar do estado de saúde da miúda, e a
“Bruxa” pediu-lhe qualquer coisa para estar mais descontraída. Pensou o Alexandre.

Não a acordou. Reparou que a Riqueta já não estava a soro mas tudo levava a crer que a Betinha tivesse
passado uma noite de vela. No salão a Isaura já não jazia no sofá e no jardim também não havia sinais
dela. Pensou que ela talvez estivesse a dormir presumindo que as duas tinham estado em vigília
permanente.

Reparou que por todo o salão havia “rosas de porcelana”, uma flor tropical que por tradição se dá a
quem parte, a quem se estima ou a quem chega. Fosse qual fosse a intenção achou a ideia bonita e
agradeceu ao João Paulo.

- Nós é que estamos muito agradecidos, disse o empregado. Nem todos os patrões fariam o que o Sôtor
fez.

Pediu-lhe café para ele e para o Renault e não se cansava de repetir:

- Que noite! Que noite!

Quando o João Paulo trouxe os cafés perguntou-lhe:

- O que é que se passou depois de me ir deitar?


- Só fomos para a cama por volta das seis da manhã. Mas eu de dia não consigo dormir. A D. Beta só
descansou quando acabou a água que meteu dentro do corpo da Riqueta. Mas de manhã a menina já ria.
Enquanto a menina ria, a mãe e a D. Betinha choravam de alegria. Mas estamos muito agradecidos ao
Sôtor.
- Nunca tive um sentimento de impotência tão grande. Explicou ao Renault. De facto neste país até o
impossível se consegue. Eu não me estava a imaginar correr os hospitais com a Riqueta ao colo. Voltou-se
para o João Paulo:
- Se adivinho que dão água à menina ou se alguém nesta casa bebe água sem ser fervida, despeço-vos a
todos!

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O João Paulo ficou meditativo.

- Que fizeste ao morcego e à estrela-do-mar? Perguntou o Alexandre.


- Deitei fora. Respondeu.

O Xandinho contou ao Renault a história do bruxedo e ambos riram enquanto sorviam o café da manhã.

- Passou, passou… Disse o amigo. Vamos a outro assunto: Que vamos fazer para amanhã para suas
Excelências?
- Não pensei em nada. Disse o Alexandre. Para te ser franco estou sem ideias nenhumas. Chamou o João
Paulo:

- Podes vir trabalhar amanhã? Tenho visitas muito importantes. Dois Embaixadores e as esposas. Tens
alguma ideia para o almoço?
- Tenho Sôtor e já estive para lhe falar disto mas esqueceu. Tenho lá um vizinho que a porca pariu e quer
desfazer-se dos leitões. Não os pode criar todos!
- E tu sabes tratar disso?
- Sei Patrão. O Brigadeiro ensinou-me uma vez até levei porrada por ter estragado um. Mas tenho que ir
mais cedo para casa para tratar dele. Tem que se matar e pôr a temperar.
- Pois se quiseres tens aí o carro do Sr. Renault com o condutor e vais a casa matá-lo e trazes para cá
para temperar. Não queremos ficar aqui a ouvir o bicho ganir.

O Renault estava apatetado com a conversa porque não conseguia traduzir leitão.

- On parle de cochon de lait. Explicou-lhe o Xandinho.


- É um almoço de príncipes!!! Exclamou o amigo.
- Fazes com molho de pimenta?
- Até gosto mais com pimenta moída na altura. O Sôtor tem aí muita que eu comprei quando fomos a
primeira vez à “Loja Franca”.
- Então guarda-me o sangue e os miúdos para eu fazer um prato. E entrada também faço eu. Temos que
ir à Ilha ás compras. Vou fazer camarão com leite de coco. Disse ao Renault.

A Beta quando chegou ao salão tinha um ar cansado:

- Bom dia! Disse. Há muito que não passava uma noite assim. Agora não sei que fazer: Não sei se fique
aqui, se vá para casa.
- Faz o que achares melhor. Por mim ficas o tempo que quiseres!

O Xandinho experimentava uma grande alegria interior: Duvidava se tinha ou não contribuído para
salvar a vida da Riqueta, mas só este pensamento ampliava-lhe o ego:

Nestas alturas toda agente experimenta sentimentos de vaidade íntima e pensa que subiu mais um
degrau na escalada para o céu. Ao Alexandre, este tipo de pensamento assomava-lhe sempre que tinha um
comportamento mais bondoso. É certo que a seguir repudiava veementemente esta forma de estar, mas

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este estado de alma vinha-lhe desde que fizera a comunhão solene: Tanto o assustaram com o diabo e com
o inferno, que ele nunca perdia uma oportunidade de comprar a Deus mais um degrau para chegar ao céu.

A Beta pegou na chávena de café, chamou o Alexandre de parte e foi para o jardim. Já lá fora respirou
fundo como se quisesse sentir o ar da manhã ou a tentar recuperar o descanso perdido e encaminhou-se
para um dos divãs a tentar equilibrar o café dentro das chávenas. Quando chegou sentou-se e respirou de
alívio pelo esforço feito. O Jorge surgiu da casinha do fundo a perguntar pela Riqueta:

- Dorme! Respondeu a Beta. Daqui a pouco temos que recomeçar a dar-lhe água. Hoje não tem direito a
leite. Voltou-se para o Alexandre:
- Ainda não tinha vindo a tua casa. Gostava de te dizer que não vim tanto pela menina. Tinha a
impressão que aquela mulata que me apresentaste na “Loja Franca” estava cá e vim ver.
- Não está mas pode vir a estar disse o Alexandre, precavendo-se para a eventualidade da Beta detectar
qualquer indício da sua presença ali.

Ele sabia que é muito difícil esconder a presença duma mulher numa casa. A Beta fez uma cara de
admiração.

- Eu disse-te que ele é minha vizinha em Santo António e agora acrescento que é sobrinha do actual
Ministro do Plano.

A Beta fez uma cara de apreciada e o seu rosto iluminou-se:

- Gente importante!!!

Por momentos o Alexandre viu o sexto sentido da Beta a funcionar. Em Kabanda, como em qualquer
outro lugar, conhecer alguém relacionado com a classe dirigente era um passo para a tranquilidade. A
Betinha continuou:

- De qualquer modo ela não tem culpa do que se está a passar.


- Mas o que se está a passar? Perguntou o Xandinho.

- Não sei. Eu tinha-te dito que não me importava com nada desde que não me faltasse azeite na candeia.
A verdade é que me está a faltar. Seja quem for a sua nova fêmea a sua atitude em casa alterou-se
completamente. Isto é uma aventura séria. Tornou-se intolerante para mim e para os filhos. O sono
tornou-se agitado. Para te falar verdade estou com medo que a candeia se apague.

O Alexandre não podia ser indiferente aquele desabafo. Começou a sentir-se injustamente culpado da
situação, mas não se queria comprometer revelando-lhe o que sabia. Era a solidariedade inter-machos que
lhe ditava aquele comportamento. Lembrou-se que provavelmente ele iria dormir lá em casa nessa noite
para acompanhar a Sandra na toma do chá milagreiro e naquele momento temeu de pensar que os dois
juntos pudessem entrar pelas portas dentro.

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ou
Katatúlio um Homem de Estado

- “Com certeza o Heitor fará um exercício de reconhecimento da situação”. Disse o Xandinho aos seus
fantasmas. “Poderá mesmo passar por casa dele e certificar-se se a Beta lá está. Poderá deixar a Sandra
numa esquina ou num “Cai-Cai” enquanto lá vai”. Estes pensamentos descansaram-no.
- Mas sabes com quem ele anda? Perguntou-lhe.
- Não. Desta vez não faço a mais pequena ideia. Já pensei em todas as minhas amigas que costuma ser o
prado onde ele ataca o gado, mas não vejo ninguém disponível. Sei que é uma cafusa como a sobrinha do
Ministro porque têm visto os dois a andarem de barco na Barra. Mas seja quem for está a destruir-me a
casa pedra a pedra e está a destruí-lo também. Tem semanas que não vai a casa e que nem sequer põe os
pés no emprego. As canas de pesca desapareceram. Subitamente a conta bancária na Bélgica está a baixar.
Tens-lhe pago algum cheque?
- Não. Disse o Alexandre. Foi coisa que nunca me pediu. Mas mesmo que pedisse eu não poderia
satisfaze-lo. O dinheiro de que nós precisamos em Kabanda é descontado directamente na Delegação com
conhecimento prévio do Boss que como bom Irlandês quando estamos a gastar de mais chama-nos a
atenção. O que te posso fazer é um dia ir à Barra ver o que se passa. Tenho mesmo que lá ir porque me
comprometi a fazer o “alambamento” a um pescador.

A Beta estava realmente preocupada e o Alexandre admirava-se com a sua própria capacidade de mentir.
Neste momento não sabia muito bem o que sentia: se pena por ela estar a assistir ao desmoronamento de
uma relação de anos, se alegria por ele próprio não se ter enfiado de cabeça na tentação chamada
Sandrinha.

O almoço com os Embaixadores correu normalmente. O João Paulo tinha efectivamente aprendido
muito com o Brigadeiro. Em vez de deixar o leitão depois de assado numa corrente de ar para separar a
pele da gordura e depois levá-lo outra vez ao forno, pô-lo na arca frigorífica por uns minutos o que
substituiu com vantagem esta operação. A pele ficou realmente estaladiça. Todos se lambuzaram com o
pitéu mas o Xandinho estava macambúzio:

A Sandrinha não tinha vindo dormir a casa. Mas o que ele mais estranhava era que a garrafa com o chá
estava debaixo da árvore e continuava a apanhar o luar como a “Mamana” lhe tinha aconselhado. O
Heitor também não tinha aparecido e para complicar a situação no fim do almoço com os Embaixadores o
Xandinho tinha recebido um telefonema do Katatúlio a dizer que a Tia Albina chegaria na sexta-feira
seguinte.

É certo que o telefonema tinha servido para autenticar perante os Embaixadores a veracidade das
histórias que o Renault e o Xande lhes contavam. Talvez eles pensassem ser necessárias grandes doses de
inventiva para atingir tal amontoado de realidade. No entanto nada alterava o estado de modorra em que
se encontrava o Alexandre. A vinda da Tia Albina não deixava de ser mais uma mão cheia de areia na
engrenagem complicada em que se metera. Ele que sempre norteara a sua vida pelo desejo de
descomplicar tudo…

Durante o almoço ia pedindo a absolvição do seu ar bisonho justificando-o com a doença da Riqueta
que entretanto já estava na casita do fundo do jardim. Chegou mesmo a justificar a suas constantes saídas
da mesa com a necessidade de se ir certificar do seu estado de saúde. De facto ele não estava com
pachorra para aguentar aqueles almoços bem comportados e ia até ao jardim fumar umas ervitas.

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Sexo, Drogas e Diplomacia
ou
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O Renault desconfiava destas ausências e deitava-lhe olhares rabugentos quando ele chegava lampeiro
com notícias frescas da Riqueta.

A certa altura os Embaixadores estavam aquecidos pela excelência dos espíritos e bulhavam pela
presença em suas casas do Katatúlio. Os dois cobiçavam o privilégio do Alexandre sem medirem a
despesa que a mesma acarretava para a sua alma: Claro que eles nunca se disporiam a receber a Tia
Albina ou a Sandrinha em suas casas. Pensava o Xandinho. Mas é claro também que não usufruiriam das
preces da sobrinha do Ministro em fim de coisa

O teor destas cogitações constituía a sua vingançazinha. Mas havia mais: O Alexandre sentia-se
orgulhoso por puder desempenhar o papel de árbitro nas pretensões dos dois e com todo o direito: De
facto ele é que aguentava a visão dos sapatos de pele de cobra da Albina em sua casa bem como os seus
tornozelos ornados a pechisbeque de terceira classe.

Numa das idas ao jardim foi ao portão e viu na rua os carros do Renault e dos Embaixadores com os
respectivos condutores. Chamou o João Paulo e mandou-o servir na mesinha do jardim almoço para eles.
Tinha consciência que presença daquelas viaturas em frente à sua casa faziam crescer o seu estatuto social
pelo menos entre a vizinhança e esta fortificação do seu “ego” valia bem o almoço dos condutores.

Para colmatar as divergências entre os diplomatas o Xandinho sugeriu que o Ministro fosse convidado
em nome de ambos, mas que a recepção em sua honra teria lugar nos jardins de sua casa, disponibilizando
ele qualquer dos compartimentos de casa para conversas mais delicadas ou que envolvessem os
respectivos Estados.

- Assim, acrescentava o Dr. Alexandre, ainda poderão Vossas Excelências beneficiar da companhia da
Tia Albina e da Sandrinha e darem mesmo um pezinho de dança de marrabenta ou uma passada só-li-dó
que é a música tradicional de Kabanda.

O riso alarve dos Chefes de Missão admirou o Xandinho:

- Que se brinque com estas coisas está bem. Não percebermos que a pilhéria do assunto está no choque
de educações é outra (pensava o Dr. Alexandre Graça Albergaria lamentando o seu humor sarcástico).

Depois de todos irem embora, o resto do dia correu numa doce paz tropical só interrompida por
sucessivos telefonemas da Beta a inteirar-se do estado de saúde da Riqueta. Na realidade o que ela queria
saber era se o Heitor tinha aparecido lá por casa. A cada pergunta deste teor ele respondia invariavelmente
que não, o que fazia subir o estado de inquietação dela. De vez em quando ia mesmo debaixo da árvore
do jardim certificar-se se o chá ainda lá estava na esperança obtusa de que durante o período em que
fechava os olhos refastelado no sofá eles tivessem entrado de mansinho para colherem o curativo. Passou
o resto da tarde a alimentar estas falsas esperanças e a imaginar como seria aquela casa com a presença da
Tia Albina. Chegou mesmo a aventar a hipótese de voltar para o Hotel enquanto durasse aquele arrombo à
sua privacidade mas ao mesmo tempo pensava na vinda prometida da sua mulher. De certeza que ela não
desdenharia de passar uns dias no “Quatro Estações” mas tal como ele, acabaria por se enfadar.

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Já há noite pensou mesmo em telefonar à Betinha a dizer que a miúda tinha piorado e depois convidá-la
para irem a um “Cai-Cai” passar o tempo, mas teve vergonha de sair com aquele bom coração magrizela e
de cara borbulhenta. Decidiu ir até ao Hotel conversar com o Renault mas primeiro foi ver se a Riqueta
continuava bem e prometeu à mãe trazer-lhe sumos de frutos naturais do VII Congresso.

Quando o Xandinho chegou ao “Quatro Estações” foi directo ao bar onde o Renault estava rodeado de
uma tripulação da Air France que tinha ficado retida em Kabanda. Falava excitado da sua experiência de
vida em África. O Alexandre veio a aperceber-se mais tarde que desde que saíra de sua casa ainda não
tinha parado de beber. Aliás os seus comparsas também já estavam bem bebidos. Três da raparigas eram
louras o que prendia a atenção dos outros frequentadores do bar. As histórias que o Renault lhes contava
eram verdadeiramente mirabolantes e iam desde caçadas imaginárias até rainhas negras de impérios
perdidos com quem ele tinha privado pessoalmente.

- Ainda acabas por apanhar algum tigre no deserto do Sara. Disse o Alexandre ao seu amigo falando
português, língua que a companhia desconhecia.

Ele não se embaraçou e começou a contar como uma vez tinha sido atacado por uma manada de
elefantes.

- Conta-lhe a das cuecas borradas do Bokassa! Disse-lhe o Xandinho.


- Estás doido! Respondeu o Renault. Não vão acreditar. Essa é só para peritos. Histórias de África têm
que meter bichos.

A dizer isto, ia adoçando os cabelos a uma hospedeira louraça que já de olhos muito turvos pousava o
corpo nos braços dele. Estava há meses em Kabanda e era a primeira vez que o Alexandre lhe conhecia
um arrimo. Não insistiu na sua presença. Desculpou-se com a doença da Riqueta e partiu para um “Cai-
Cai”.
Na “Mamalhuda” era sempre bem recebido desde que o Coronel Hofman o tinha apresentado à
intelectualidade Kabandina, que era constituída sobretudo por jovens que ainda não tinham sido
chamados para a frente ou por quaisquer passes de mágica não tinham satisfeito os quesitos mínimos para
vestirem a farda.

Esta juventude alimentava-se essencialmente das televisões estrangeiras. Como dum modo geral toda a
sociedade de Kabanda ignorava a cultura oficial e tal ignorância era o modo de sobrevivência da sua
rebeldia. Viajar era o seu modo de fuga. As viagens a troco de algumas grades de cerveja davam-lhes uma
mobilidade invejável. Não existiam livrarias e os jornais desportivos europeus, mesmo que não se
entendesse a língua ou com meses de atraso eram cobiçados e trocados a preço de ouro por coisas bem
mais comezinhas como uma garrafa de óleo ou um quilo de arroz.

Quando chegou à “Mamalhuda”, foi recebido pela Patroa ao cimo das escadas. Como antigamente nos
bordéis a “Madame” recebia os clientes mais endinheirados. O tamanho avantajado dos seus seios faziam-
lhe jus ao cognome. Naquela noite o quase obsceno decote transformava-lhe o respeitabilíssimo par de
mamas num monumento à silicone. Tremelicantes como duas bolas de gordura edificavam um rego
profundo que acabava por desaparecer nas entranhas duma blusa vermelha desbotada.

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- Tenho um “Reservado” especial par o nosso Dr. Alexandre Albergaria! Disse ela.

Contrariamente ao costume onde com gestos desajeitados o fazia entrar para o salão principal, os seus
seios corpulentos barraram-lhe a entrada do salão e em golpes de oferecimento encaminharam-no para o
jardim da casa onde balões chineses novinhos em folha alimentavam com luzes trémulas de velas, as
sombras das arvores e arbustos que povoavam aquele espaço. Encostados a um cedro, um par de
namorados trocavam carícias e apalpões brejeiros no intervalo de dois goles de cerveja.

Ao fundo do jardim havia uma pequena casa tal como a do Jorge e da Isaura. A “Mamalhuda” foi à
frente para acender as luzes azuis metálicas que puseram a descoberto um interior sombrio decorado com
as tradicionais rosas de plástico. Em cima de uma cómoda, no meio de dois ou três sofás da década de
cinquenta havia uma pequena aparelhagem de som e algumas cassetes desordenadas. A um canto um
velho frigorífico com bebidas frescas completava o mobiliário.

- Aqui, é como no “Quatro Estações”. Eu sei o que está no frigorífico, o Sr. Doutor serve-se e para pagar
chama-me que eu faço-lhe a conta.

Sombras furtivas paravam à porta e espreitavam para dentro como se tentassem adivinhar quem era
aquele VIP com direito a atendimento tão personalizado. O Xandinho sentia-se envergonhado de toda
aquela situação. Inspeccionou as bebidas do frigorífico e descortinou uma garrafa de vinho tinto de uma
qualquer marca francesa que pediu à “Mamalhuda” para abrir.

- Vou mandar alguém para tratar de si. Abriu a garrafa e saiu.

O Alexandre começou a examinar os recantos escuros do “Reservado”.

- Parece o lugar ideal para esconder um cadáver. Pensou ele.

A um canto amontoavam-se ancinhos e ferramentas partidas ou ferrugentas que outrora teriam servido
para cuidar do jardim. Experimentou a incomodidade do sofá maior, tentando congeminar que ele era
confortável enquanto saboreava o copo de vinho. Fez um pequeno balanço do que já tinha emborcado
naquele dia e admirou-se da qualidade do seu fígado.

Mais uma vez a Sandra e o Heitor vinham-lhe à cabeça, onde os vapores dos álcoois se começaram a
misturar. Desejava que os dois estivessem em sua casa a usufruírem de momentos de isolamento e
intimidade.

- Bem precisam de calma. Pensou.

Pensava que neste momento a Sandra estaria algures no seu jardim a desfiar o rosário pagão que a
“Mamana” lhe dera para a ajudar a pensar e provavelmente sob o olhar do Heitor já teria tomado o chá.

A prometida companhia tinha chegado. Teve que virá-la para a luz para lhe julgar as feições.

- Como te chamas? Perguntou o Xandinho.


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- Luísa.

Desembaraçada, assenhoreou-se da situação servindo-se de vinho a que misturou Coca-Cola


acrescentando-lhe uma rodela de laranja que tinha encontrado no frigorífico. Sentou-se na borda do sofá
onde o Xandinho estava quase deitado esmagando a laranja contra as paredes do copo. Vinha vestida mais
para uma tarde de praia do que para uma noite de estroina. Pôs uma música delico-doce e com ar de quem
conhece a coisa humana puxou-o para dançar. O Alexandre pela primeira vez olhou para ela com um ar
cobiçoso: Estava longe de ter crescido completamente mas tinha jeitos de mulher. Dançou-lhe duas ou
três músicas escolhidas metodicamente e quando ele se sentou continuou a menear as ancas com gestos
serenos e estudados em muita noite de estúrdia. Serviu-lhe mais um copo de vinho, mas desta vez
misturou-lhe dois cubos de gelo.

- Ela só quer que os clientes bebam sem se preocupar com a qualidade! Lamentou-se estendendo o copo
ao Alexandre. Como te chamas? Perguntou.
- Alexandre!
- Aconselho-te a beber a garrafa toda porque desde que esteja aberta ela cobra-te o preço como se a
tivesses bebido. Depois leva os restos para cima para misturar tudo numa garrafa que vende ao copo. O
que posso fazer é ir ao caixote do lixo procurar uma vazia e quando fores para casa levas o resto. Odeio
esta mulher!!! Exclamou.

A mão do Xandinho já viajava pelas pernas da Luísa e não sem esforço para apartar as coxas, entalou a
direita nas suas virilhas. Parecia que era o sinal que ela esperava para se lançar sobre ele. Levantou-se
para fechar a porta e voltou para junto dele beijando-o cirurgicamente. Abriu-lhe a camisa a percorrer-lhe
o peito com os dedos mas o Xande não se sentia à vontade naquele lugar sombrio.
- Não queres vir até minha casa? Perguntou-lhe no fogo das carícias.
- Se quiseres! Respondeu a Luísa. Pagas isto e vamos. O vinho e a Coca-Cola são doze dólares. Eu vou
levar à “Madame”.
- Eu espero por ti no carro branco.
- Sei bem qual é o teu carro disse ela quase ofendida.

Na cidade não se podia esconder nada. Todos os passos, hábitos e posses eram conhecidos fosse porque
a denúncia fizesse parte das usanças das gentes, fosse porque a míngua de luxos despertasse a cobiça dos
Kabandinos. Quando lhe fez o convite não pôs a hipótese da Sandrinha estar lá em casa e achou este
pensamento estranho: Porque haveria de retrair-se na frente dela? Era a sua casa e fazia o que muito bem
entendesse. Nada o prendia à Sandra! Os chavelhos já estavam serrados há muito tempo e a vida
continuava.

Arranjou uma desculpa para estes sentimentos piegas: O momento porque a Sandra estava a passar não
era dos melhores e estaria a fazer um qualquer luto por ela: Imaginava a sua casa com sofrimento num
quarto e patuscada no outro:

- Será que esta também chama pelos santos e se encomenda aos céus nos grandes momentos ou isto é
moda privativa da Sandra?

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Estes pensamentos foram interrompidos pela chegada da Luísa. Já no carro, pensou que talvez fosse
melhor dar algum tempo de intimidade à Sandrinha e ao Heitor.

- Conheces mais algum sítio para ir em Kabanda? Perguntou à Luísa.


- Se tens livre-trânsito podemos ir até ao fim da ilha. De resto só se fizermos a ronda dos “Cai-Cai”.

Foram até ao fim da ilha com o Alexandre a lamentar nos seus pensamentos não ter trazido as bermudas
para tomar um banho àquela hora da noite nas águas amornadas da Baía. Quando saíram do carro o
Xande descalçou-se e foram até à beira-mar molhar os pés e ver do outro lado das águas o morro
iluminado por onde se erguia a cidade. De corpos encostados brincavam com as ondinhas que vinham
adormecer na terra sem pretenderem o “glamour” das vagas Europeias a rebentarem na praia.

Voltaram para casa. Ao chegar ao portão o Xande apitou e o Jorge veio abri-lo com estrondo. As luzes do
jardim estavam acesas e a Luísa quando olhou para habitação soltou também um enorme “huáu”!

- Já vi este filme noutro cinema qualquer! Pensou para consigo o Xandinho, encaminhando-se
directamente para a árvore à procura da garrafa e dos ovos, como se aquele fosse o único objectivo que o
tinha levado a casa.

Tudo continuava no mesmo sítio a tomar banhos de lua. O Xande estremeceu. Tanto podia ser um mau
presságio como o adiar duma decisão que ele imaginava não ser fácil. A Luísa tinha-o acompanhado até à
árvore e anotara a sua inspecção à garrafa.

- Que é isso? Perguntou.


- Nada! Respondeu o Xande. É um chá para o meu fígado que ainda está a amadurar.

A Luísa com gestos de domínio ia-se apoderando dele. Empurrou-o para um dos divãs onde o deitou
quase à força mas o Xandinho estava distante.

- Talvez eles estejam em casa! Disse aos seus botões.

Levantou-se e foi para dentro sempre com a sombra da Luísa a persegui-lo. Em casa percorreu todos os
quartos com cuidados de não acordar mosquitos.

- Procuras alguém? Perguntou ela.


- Não! Respondeu o Xande já arrependido de a ter trazido.

Sentou-se no sofá grande do salão. Estava apreensivo e tinha dificuldades em entender a situação.
Vinham-lhe à cabeça as palavras da Beta e temia que o Heitor desse algum passo do qual se viesse a
arrepender. A Luísa pediu para ir ao quarto de banho e reparou no baton que lá estava.

- Tens uma mulher cá em casa! Acusou ela.

Tinha sido denunciado pelo descuido da Sandra. Foi buscar uma garrafa de vinho que a Luísa se
prontificou a abrir.
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- O teu ar não engana ninguém. Disse-lhe sem desarmar.

As suas mãos continuavam a percorrer-lhe o corpo passando pelos sítios mais esconsos. Decidiu ir
vestir as bermudas e pôr-se à vontade para experimentar os seus gestos duma forma mais desperta, mas a
ansiedade atormentava-lhe os sentidos. Já passava das duas da manhã quando o telefone tocou. Era a Beta
que desta vez não procurou pretextos da Riqueta e foi directa ao assunto:

- O Heitor?

Respondeu-lhe que não sabia mas sentiu-se apreensivo com a sua voz inquieta. Tentou sossegá-la.

- Conheço-o há catorze anos! Disse a Betinha. Isto nunca aconteceu! É grave.


- O que te posso fazer é ir amanhã procurá-lo. Passo primeiro pela Delegação e depois posso ir à Barra
ver se ele lá está. Logo que souber alguma coisa telefono-te. Agora descansa. Se tivesse acontecido
alguma coisa já sabíamos.

Aquilo que mais preocupava o Xandinho era o chá e os ovos. Para ele este era de facto o sinal de que
algo se estava a passar. Quanto mais não fosse a barriga da Sandra crescia. As insinuações da Luísa, os
truques que aprendera em encontros persistentes iam-se tornando inúteis. Nem as bermudas ajudavam.

- Que tens? Perguntou ela demonstrando frustração.


- Nada! Nada!!! Repetiu.
- Se as putas escrevessem todos os segredos que lhes contam na alcova as suas obras completas eram
mais vastas que as do Alexandre Dumas. Pensava o Xandinho visivelmente irritado.

O calor do vinho encorajou-o. Talvez um conselho feminino o ajudasse a desenredar as ideias. Apostou
muita sensação nesta ideia. Decidiu desapertar o nó que tinha na garganta e desabafou com ela. Aos
poucos foi-lhe contando o triângulo amoroso Sandra/Heitor/Beta ocultando-lhe naturalmente o seu
próprio envolvimento inicial e a história do Katatúlio, o facto de ser casado e ansiar desesperadamente o
regresso da Susaninha. Ficou mais aliviado do fardo que ocultava mas não conseguia ignorar a trama em
que estava envolvido.

- Vocês brancos complicam tudo! Disse a Luísa. Porque é que o teu amigo não deixa a namorada ter o
filho e fica com as duas?

De repente para o Xandinho o Universo tornara-se luminoso e as leis pelas quais se rege ficaram ao seu
alcance. Debruçou-se sobre ela a lamentar o tempo perdido.

- Mas eu percebo muito bem o que sentes. Garanto-te que te posso ajudar!

Para o Xande a frase não era nova. Mas tal como da primeira vez não via como.

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Acordou tarde. Ainda antes do banho foi a casa do fundo do jardim ver a Riqueta. Estava com muito
melhor aspecto mas lembrou-se que hoje tinha que lhe trazer os sumos naturais. Eram importantes para a
hidratação.

Já vestido, pediu ao João Paulo o café da manhã e duas chávenas. Esperou que a Luísa se aprontasse e
ficou a tomar o pequeno-almoço com os olhos postos em coisa nenhuma.

A caminho da Delegação deixou a Luísa no centro da cidade e ficou a pensar na sua ajuda:

- Será que ela também era prima ou sobrinha de algum Homem de Estado? Pensou para consigo.

Kabanda tinha destas surpresas. De pequena que era tornara-se uma família onde todos se conheciam e
aparentavam. Se não eram famílias de sangue, estavam pelo menos ligadas por cumplicidades ou
pequenos negócios que surgiam das guerras pela sobrevivência.

Quando chegou à Delegação o Renault e o Irlandês discutiam um telegrama cor-de-rosa que tinha
chegado de Bruxelas insistindo no levantamento das necessidades para a reconstrução do Vladimir Illitch.

Tudo se passava como se de repente a Sede tivesse acordado para os problemas de Kabanda e quisesse
substituir obras pelo silêncio que mantinha sobre uma guerra que o país vivia e se mantinha há mais duma
década. Alternativamente outras forças se tinham movimentado nos bastidores: O Presidente da República
tinha feito recentemente uma Visita de Estado a França e seria natural que entre um almoço e um jantar os
dois Presidentes tivessem discutido o estado das relações dos países ACP/CEE. Estas coisas também se
passavam assim. Bruxelas bombardeava as Delegações com directivas e instruções insistindo na
necessidade de serem compridas à risca. Depois, após uma conversa a alto nível as regras eram
completamente alteradas. Partia-se a louça com mensagens “Urgentes e Confidenciais” deixando aos
homens no terreno o trabalho indispensável de apanhar os cacos.

- Se estão assim tão apressados mandem meia dúzia de burocratas e técnicos de saúde para procederem
ao tal levantamento! Disse o Renault. Neste capítulo como eles bem sabem estamos completamente
dependentes do governo.

O Xandinho estava completamente ausente desta conversa. Pensava na Beta, no Heitor e na Sandra:

- Porque hei-de meter-me nestas confusões? Perguntava-se a si próprio. Afinal podia muito bem manter-
se à distância destes imbróglios. A amizade que os unia não era assim tão sólida que justificasse um
envolvimento tão intenso.

Repetia estes argumentos para se convencer a si mesmo da pouca importância do assunto e continuava a
falar consigo mesmo:

-Perante o Katatúlio e a Albina não poderei ser responsabilizado pelas cabeçadas da sobrinha, nem a
Beta me pode assacar culpas pelos devaneios do Heitor…

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Por momentos bem-disse a relação descomprometida que tinha mantido com a Luísa e jurou que dali
para a frente iria continuar a agir da mesma forma desprendida. Pensou na oferta de ajuda e cresceram-lhe
receios:

- Estas bondades são carícias de puta para manter entre nós uma chama acesa que permita reatar
encontros.

Falava sozinho perto da janela do gabinete do Renault e na ausência do Delegado abriu-se com ele.

- Também não os podes deixar cair assim dum momento para o outro! Disse-lhe o amigo.

- Contaste ao Delegado como correu o almoço com os Embaixadores? Perguntou o Xande.


- Tive que contar. Mais tarde ou mais cedo, numa ou noutra recepção ele viria a saber! Disse o Renault.

O Xandinho estava mesmo disposto a ir à Barra mas continuava a arranjar justificações para si próprio:

- Nunca mais disse uma palavra ao Arriscado sobre o “alambamento” e ele merece-me uma atenção.

Era a sua necessidade interior de coscuvilhar ainda mais a fundo os segredos daquelas duas almas
atormentadas. Provavelmente se o Heitor tivesse ido à pesca ainda afiambrava por lá um peixinho
acabado de sair do mar. Pensou em ir a casa buscar um pouco de azeite e cerveja, produtos que rareavam
por lá, mas lembrou-se que provavelmente o amigo se tinha abastecido daqueles artigos. Estava curioso
por saber como é que os dois viviam e o que faziam o dia inteiro na praia.

Na estrada para a Barra pensou nos termos em que o Delegado tinha respondido ao telegrama de
Bruxelas. A bola estava agora do outro lado do campo e mesmo que a prosa não desse resultados práticos
era uma maneira de entreterem o tempo. A saída da cidade era assinalada pela presença dos embondeiros
que habitavam as colinas. Alguns exibiam expressões dramáticas abrindo para o céu braços descarnados.
Nas bermas do alcatrão ou em clareiras da picada pequenas mercancias de frutas, vegetais, vinho de
palma ou aves mortas faziam alarde dos seus produtos. O vinho de palma era exibido em velhos garrafões
perfilados em pequenas bancas. Parou num destes pontos de venda à sombra dum embondeiro. Os copos
enojavam-no, mas as conversas com as “mamanas” e os velhos vendedores ressarciam-no da falta de
limpeza. Um ou outro Kabandino vindo de longe pela beira da estrada aproximavam-se dolentemente
bamboleando uma catana ou carregando às costas fardos de canas e palmas verdes provavelmente para
reparar a cubata ferida por intempéries mais agrestes.

Na Barra encontrou o Arriscado a quem perguntou pelo Heitor. Notou que alguma coisa estava mudada
mas não sabia bem dizer o quê.

- Levantaram-se muito cedo! Disse o pescador apontando para o mar.

Ao largo, parado no tempo um barco de vela arreada marcava a sua presença nas águas calmas. Dentro
duas silhuetas que o sol escurecia dedicavam-se à faina. O Arriscado por mímicas de homem do mar
gesticulou anunciando-lhes a presença do Xande.

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- Onde é que eles ficam? Perguntou o Xandinho.

O pescador apontou-lhe a cubata maior e ele começou a notar as diferenças desde a última vez que lá
tinha estado.

- Isto está muito diferente! Exclamou o Alexandre olhando à volta.


- E vai mudar ainda mais! Disse o Arriscado seguro de si.

Encaminharam-se para a cubata e ao chegarem o Xandinho pasmou: Estava em construção um prodígio


de arquitectura tradicional: Tratava-se duma cubata de luxo com rés-do-chão e primeiro andar erguida no
meio da praia. Em baixo, no que se via já ser uma cozinha e uma ampla sala de estar feita de caniço e
folhas de palmeira, amontoavam-se a um canto algumas sacas de cimento, restos de madeira que tinham
sobrado da construção das escadas que iam para o primeiro andar, pregos, réguas de madeira, serrotes e
martelos vários. Reparou que parte do compartimento já estava cimentada pelo que o Arriscado lhe pedia
para não pisar por ainda estar fresco. A um canto estava uma velha geladeira a petróleo que ele assegurava
ao Xande ser transitória, já que estava previsto a casa ter electricidade. O Dr. Alexandre Graça Albergaria
veio cá fora ver como é que tal prodígio poderia acontecer mas não encontrou resposta para as suas
dúvidas.

- Em Kabanda tudo é possível! Disse para consigo.

Reparou que o Heitor e a Sandrinha tentavam ancorar o barco e esperou por eles. Vinham felizes e
abraçados:

- Mim Tarzan! Disse ele soltando urros e batendo no peito. Ela Jane!
- Falta o macaco! Disse o Xandinho.
- Vem a caminho! Soletrou-lhe o Heitor a olhar embevecido para o ventre da Sandra.

Os dois respiravam felicidade enquanto o Xande estava aturdido. Nunca tinha visto nada parecido e
duvidava que no céu ou no inferno existisse alguma coisa semelhante. Voltou para a “vivenda” a
esconder-se do sol e experimentou a sua frescura.

- Perceber isto tudo vai ser uma tarefa demorada. Pensou para consigo. Pediu ao Heitor um fato de
banho.

- Então que novidades há pela cidade? Perguntou o Heitor.


- Nada! Absolutamente nada!
- Então é porque alguma coisa se está a passar. Disse sabiamente. Já foste lá cima? Perguntou-lhe o
“construtor civil” encaminhando-se para as escadas. Podes subir! Isto aguenta bem com dois ao mesmo
tempo.

Subiram os sete ou oito degraus que separavam o rés-do-chão do primeiro andar com o Heitor sempre a
gabar-se da excelência da construção. Lá em cima era o quarto onde arrulhavam os pombos. Deitadas no
chão e arrumadas contra a parede estavam as canas de pesca que a Beta tinha falado. Um colchão e um
guarda-fatos de campismo completavam o mobiliário. Á cabeceira, uma grande concha do mar onde
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ou
Katatúlio um Homem de Estado

jaziam inúmeras beatas de charro denotavam noites bem-humoradas. O Xandinho estava abismado sem
conseguir articular uma palavra. Aos pés da cama uma janela rasgada por entre as folhas de palma fazia
de moldura a um mar calmo que se estendia ao fundo. Por momentos, também lhe apeteceu ficar ali. Mas
vozes grossas no andar de baixo chamaram-no à realidade. Era meia dúzia de pescadores que retomava a
tarefa da construção da casa. Desceram com o Heitor a explicar-lhe a excelência da construção. O
esqueleto era feito com vigas de lenho que assentavam em troncos de árvore de grossura média
totalmente descascados. Tudo tinha sido pintado com óleo queimado para evitar a entrada de bicho no
madeirame.

- A seu tempo iremos ter aqui electricidade em todas as casas. Disse o Heitor.
- Como? Perguntou o Xande.
- Vez estes fios? O Heitor apontou-lhe rolos e rolos de fio de electricidade que estavam amontoados a
um canto e puxando-o para fora da “vivenda” mostrou-lhe um poste de electricidade que ficaria a um
quilómetro de distância dali. “Basta fazer uma baixada daquele poste lá diante e na próxima vez que cá
vieres já terás electricidade nas cubatas todas”.

O Heitor contou-lhe mais tarde que tinha mobilizado os pescadores da praia para a construção daquelas
comodidades. Convenceu o PAM (Programa de Alimentação Mundial) a ceder-lhe alguns materiais de
construção e planeava concluir a obra. Estava verdadeiramente orgulhoso do trabalho. O Xandinho
balbuciava desconveniências.

Havia muito mais para ver: Através duma empresa de construção civil estrangeira tinha arranjado 700
ou 800 metros de cano plástico e ia buscar água doce a um poço desactivado que se situava a pouca
distância da beira da estrada. Uma velha bomba soviética puxava para dois bidons empoleirados numa
árvore o precioso líquido que depois era distribuído por duas latrinas e por um duche que ficavam um
pouco distantes das casas. Tudo estava previsto.

À medida que iam passando por outras cubatas, os pescadores cumprimentavam o Heitor
respeitosamente. Atrás deles, enquanto se realizava a visita tinha-se formado um cortejo de velhos que
ouviam com atenção as palavras do “Mestre Heitor” como carinhosamente lhe chamavam.

- Esta água que vês aqui é tratada. Não tem bom sabor, mas podes bebê-la à vontade.

De volta à sua “vivenda” mostrou-lhe kites da Cruz Vermelha Internacional que iam desde primeiros
socorros a comprimidos contra o paludismo passando por pastilhas para o tratamento de água.

- Como é que o partido vê tudo isto? Perguntou-lhe o Xandinho. Vais criar inimigos!

O Heitor encolheu os ombros demonstrando um desinteresse total.

- De alguma coisa há-de servir ter um tio Ministro! Disse a Sandrinha.

O Sol do meio-dia caía a pique e os três sentaram-se debaixo duma casuineira. Assistiram ao desfazer da
procissão que os velhos pescadores, as crianças e as “mamanas” tinham formado atrás deles e ficaram
pensativos sem pronunciarem uma palavra.
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Katatúlio um Homem de Estado

- Que irão pensar os teus Tios? Perguntou o Xandinho à Sandra.


- Já pensei nisso! Disse ela. A minha Tia vai ficar contente por se ver livre de mim e o meu Tio vai ficar
orgulhoso. Pense bem Tio: A sobrinha do Katatúlio regressa a Kabanda e apesar de todas as mordomias
de que poderia usufruir por viver em casa dum Ministro, decide misturar-se com o povo contribuindo para
o seu bem-estar.
- É uma maneira de ver as coisas. Disse o Xande. E a Beta? Perguntou ao Heitor, contando-lhe as
conversas que tinha tido com ela ultimamente e a forma como ela agiu com a Riqueta.
- Nisso ela é impecável! Disse o Heitor. Mas vai ser um grande estrilho. Com todas estas obras, admira-
me ainda não saber nada. Mas podes ter a certeza que pelo menos desconfia. Acredita-me que quando esta
bomba rebentar vai fazer um grande estrondo. Sabes que a casa da família da Beta foi o local onde em
1975 foram tomadas muitas e graves decisões políticas do país. Foi lá onde o primeiro-ministro e o
ministro das finanças decidiram criar a moeda nacional, o “Songue” e acabar com a moeda colonial. Foi
assim que acabaram uma série de jogadas sujas que todos estávamos a fazer. Dum dia para o outro passou
a circular a moeda Kabandina altamente valorizada. A moeda colonial simplesmente desapareceu. Só por
isto a casa fica na história de Kabanda. Depois o meu cunhado foi nomeado Ministro do Comércio. As
festas as farras que já lá se fizeram em momentos críticos da política Kabandina muitas vezes
influenciaram o curso das coisas para bem ou para mal! As pessoas que já por lá passaram encontraram
sempre um ambiente ou para apoiar o governo ou criticá-lo. Mas mesmo que nada disto fosse verdade
bastava o facto de desde 1975 terem por lá passado centenas de Kabandinos, dezenas de Ministros e não
sei quantos Secretários de Estado para imaginares o tamanho do estrondo que vai ser a minha separação
da Beta.

O Xandinho. Não tinha nada para dizer. Tudo estava previsto e calculado. Pensava nele próprio e no
modo como encarar a Beta na certeza de que iria ser apanhado numa mentira. Tinha-lhe dito que ela tinha
ido para Portugal e agora iria aparecer ao lado do Heitor.

- E os teus filhos? Perguntou.


- Esses não me incomodam. Vou deixar passar uns tempos e depois vou buscá-los para passarem uns
dias connosco. Vão acabar por gostar da Casa na Praia e de brincar com estas crianças que andam aqui à
volta. O perigo é o mar e a forma como a Beta encarar a situação.
- E o emprego?
- Meti um mês de férias. Posso muito bem ir trabalhar e viver aqui. Já imaginei levantar-me de manhã
cedo ir à pesca, trabalhar e voltar para a pesca. Entretanto a Sandra pode ensinar estas crianças a ler e está
entretida todo o dia.

A conversa tinha-se tornado morna e triste. O Heitor falava com entusiasmo mas o ambiente geral era o
de um velório. Estas decisões doem sempre. O Xandinho sentia-se culpado de toda a situação:

- Podíamos almoçar disse ele numa tentativa de quebrar todo aquele enguiço.

Levantaram-se e dirigiram-se vagarosamente para a cabana do Heitor. É fácil encontrar soluções. O


difícil é encará-las. Pensava a Sandra.

- Não vai chover aqui dentro? Perguntou o Xande.


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- O teto ainda é provisório. Mas quando lhe puser duas ou três camadas de capim, podes ter a certeza que
nem uma gota de chuva aqui entra. O colmo tem a vantagem de conservar o fresco.

O Heitor foi ao frigorífico buscar uma bacia de peixe que tinham pescado nessa manhã e pediu a um
pescador para o arranjar. Durante a refeição saborearam a frescura do produto mas ninguém falava,
absortos que estavam a dar voltas às suas vidas. Comeram na mesa da cooperativa dos pescadores. No fim
da refeição a Sandra foi buscar uma bacia com água para o Xandinho lavar as mãos. Ele vestiu de novo o
safari de trabalho e dirigiu-se para o carro que tinha ficado na picada. Os recém-casados pela lei das
coisas vinham atrás arrulhando como pombos.

- Tio! Não nos leve a mal! Disse-lhe a Sandra quando ele já estava no carro. Venha ver-nos mais vezes.
- Isso! Disse o Heitor. Anda ver-nos mais vezes.

De regresso à Delegação pensava na coragem que precisaria de ter para encarar de novo a Betinha.

O Xandinho viajou com a cabeça vazia para o centro de Kabanda. Não lhe restava mais nada senão
encarar a Beta de frente. Pensou mesmo ir a casa dela e contar-lhe a sua ida à Barra descrevendo-lhe a
felicidade do casal mas faltou-lhe a coragem. Alem do mais estava sob uma ameaça e um desejo: A
ameaça era o anúncio do Katatúlio sobre a vinda antecipada da Tia Albina e a promessa era o telefonema
da Susaninha dizendo-lhe que estaria para chegar. Pensou enquanto se desviava dos buracos do caminho
que o melhor era concentrar-se nestas duas certezas em vez de se preocupar com aqueles dois hippies
acampados na Barra.

O alcatrão da estrada para a Capital, de vez em quando desaparecia por completo e o trajecto para
Kabanda nos seus escassos trinta quilómetros tornava-se num exercício de condução todo o terreno longo
e complexo. O Xande não sabia muito bem como é que o Heitor iria fazer aquele trajecto todos os dias
sem amolgar o corpo. Nalguns locais o capim tinha invadido a estrada pontuada aqui e ali por veículos
abandonados ou sucata diversa. De vez em quando as cores berrantes das buganvílias marcavam a sua
presença como se quisessem lembrar que a natureza estava viva em contraste com o desmazelo geral a
que a paisagem estava votada. Pelo caminho hesitou em contar ao Delegado o desenrolar dos últimos
acontecimentos. Necessitava da sua opinião sobre se haveria de contar ou não ao Ministro o sarilho em
que a sobrinha se tinha metido. Muita coisa estava em jogo, incluindo a relação de cumplicidade que ele
tinha estabelecido com um membro do governo e isto era qualquer coisa que poderia influir não só na sua
carreira, como nas relações de Kabanda com a Comunidade. Se o Katatúlio soubesse do passado da
Sandra poderia muito bem pensar que o Dr. Alexandre Albergaria se tinha aproveitado da sua situação de
debilidade para insinuar inconfessáveis propósitos junto da ordem estabelecida. Daí a ser considerado
“persona non grata” seria um curto passo para o qual a imprensa local não deixaria de confeccionar
parangonas. Por outro lado o Xandinho pensava que a situação se poderia agravar se o Ministro viesse a
saber por portas travessas que toda a desgraça tinha começado em sua casa e que ele não o tinha posto ao
corrente dos acontecimentos.

O Delegado e o Renault eram de opinião que o Katatúlio deveria ser posto ao corrente deste estado de
coisas.

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- Aquela miúda devia ser proibida de andar na rua! Dizia o irlandês provavelmente recordando-se das
tentações para onde o Diabo o tinha arrastado no dia do chá em sua casa.
- Pois é… Dizia o Xandinho. Mas o que está feito está feito e não vejo modo de fazer o burro puxar a mó
ao contrário.

Lembrou-se do Heitor lhe ter dito que a notícia da sua separação em Kabanda iria estourar como uma
bomba. Ao dar as novidades ao Ministro, poderia estar a acender o primeiro rastilho. Encheu-se de
coragem e pediu à secretária do Delegado para lhe fazer uma chamada para o Katatúlio.

- Queres que eu vá lá contigo? Perguntou o Renault compreendendo o seu embaraço.


- Não (respondeu o Xandinho). Isto também envolve família dele e penso que apreciará uma certa
descrição. Posso aproveitar também para lhe perguntar da disponibilidade da Faculdade de Medicina para
colaborar no levantamento das necessidades para a recuperação do Vladimir Illitch. Aliás será mesmo por
aí que vou começar, disse com ar decidido.

O telefone do Renault tocou e o Xandinho atendeu. A D. Helena anunciou-lhe que o Ministro do Plano
estava ao telefone:

- Como está Senhor Ministro? Estou aqui reunido com o Sr. Delegado e o Sr. Renault. Falou-lhe assim
para justificar a pouca familiaridade e cortar a conversa curta. Tenho necessidade de lhe expor três
assuntos: Um de natureza profissional e os outros dois do foro pessoal. Por isso convidava-o para uma
bebida em minha casa.
- Eu também preciso de falar consigo! Disse o Katatúlio. Ainda tem daquele vinho que eu gosto?
- Especialmente guardado para si! Respondeu o Xandinho.
- Deixe ver a minha agenda. Ás 22 horas convém-lhe? Antes não posso porque tenho a reunião semanal
com o Camarada Presidente.
- Até logo então!
- Já não pode voltar atrás. Disse o Delegado. Se quer que lhe diga acho melhor pô-lo ao corrente do que
se está a passar.

As emoções e o ar da praia tinham amolecido o Dr. Graça Albergaria ou pelo menos foi assim que ele se
desculpou por sair muito antes da hora. De qualquer modo tinha que ir ver se faltava alguma coisa em
casa e pedir ao João Paulo para dormir na casa do jardim e ajudá-lo na visita do Katatúlio.

Contrariamente ao que estava à espera, o Ministro recebeu bem-humorado a notícia da Sandrinha:

- Sabe… Disse ele. Nós habituamo-nos a vê-las sempre pequenas, mas quando damos por ela são
mulheres. É nestas alturas que precisam de família. Continuou com um ar vivo: Se o que me diz sobre o
trabalho que estão a fazer na Barra é verdade, pode mesmo interessar ao partido.

Talvez o Katatúlio falasse assim, porque naquele momento o que mais o preocupava era casa ou estaria a
sacudir a água do capote. Pensava o Xandinho. O Ministro desejava ardentemente que a Tia Albina
chegasse com os contentores debaixo do braço de preferência.

- Já tem data? Perguntou-lhe o Xandinho.


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- Em princípio tudo está marcado para quinta-feira à noite.


- Sabe que vem cá para casa?
- Sabe. E está muito contente com a solução. Ela gosta muito de si e toda a família em Santo António o
aprecia. Disse o Ministro.
- Resta saber como encarará a cabeçada da Sandrinha.
- Aí meu caro Dr. Alexandre tem-me do seu lado. Bem vi a forma como nos tratou e o à vontade que ela
tinha cá em casa. O estar grávida é a vida. Se fosse você a engravidá-la ainda se justificavam os seus
receios! Mas assim…

O Xandinho pensou naquela tarde em que ela o acordara na Ilha, nos momentos de desbunda que tinham
vivido no Quatro Estações ou naquele mesmo sofá onde o Victor estava sentado. Desviou a conversa:

- As coisas bem combinadas a Tia Albina e a minha mulher ainda vêem no mesmo avião.
- Parece que não. Disse o Katatúlio. A D. Susaninha parece que está muito atrasada. Ela e a Tia Albina
têm falado muito.

Era bom que se demorasse. Pensou o Xande. Pelo menos quando viesse haveria a hipótese da casa estar
desimpedida. O telefone tocou. Ele estendeu o braço e atendeu. Era a Beta a perguntar pelo Heitor:

- Não fui à barra desculpou-se o Alexandre. Tive um dia muito ocupado e estou com visitas em casa.

A Beta já sabia que a tal cafuza era a sobrinha do Ministro. As notícias em Kabanda corriam rápidas e a
construção da “vivenda” na Barra não era coisa que pudesse passar despercebida.

- Em breve fará parte da coluna social da “Rádio Batuque”. Pensou o Xandinho, continuando a conversa
com a Beta. Não sei o que te diga sobre isso. Sei que ela dormiu aqui em casa uma ou duas noites e
depois despediu-se dizendo que ia para Lisboa. Perdi o contacto com ela. Se voltou para cá não te posso
informar. Nunca mais me contactou.

Enquanto falava, fazia sinais ao João Paulo a indicar que os copos estavam vazios. O Ministro tinha
percebido que ele falava da sobrinha e acenava com a cabeça em gestos de aprovação. Quando pousou o
telefone pensou que aquela tinha sido a melhor maneira que tinha encontrado para desfazer o imbróglio
em que se tinha metido embora soubesse que a Beta iria continuar a telefonar-lhe ou mesmo a aparecer lá
em casa. Afinal ele era o único elo de ligação entre o Heitor e a família. Certamente ela iria esgotar aquele
elo na esperança de tentar recuperar o marido.

Ele e o Ministro falaram pouco sobre o Vladimir Illitch, mas o suficiente para o Xandinho se aperceber
que o Presidente estava verdadeiramente interessado no projecto. Segundo o Katatúlio teria mesmo
reunido com o novo Ministro da Saúde e dado instruções para avançarem o mais rapidamente possível.
Na semana que decorria iria mesmo ter uma reunião com todas as partes interessadas, já com alguns
técnicos do Ministério da Saúde para se proceder ao tal levantamento.

Esta era a boa notícia que o Dr. Alexandre Albergaria levaria no dia seguinte para a Delegação.

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VIII

Tinham-se passado uns tempos sem que a Beta desse sinal de vida e o Xandinho também não tinha ido à
Barra. Decidira simplesmente afastar-se do assunto e concentrar-se no trabalho como modo de passar o
tempo. De vez em quando ia até ao Hotel, passava umas tardes na Ilha ou o Renault vinha a sua casa e
assim matavam o tédio.

Em Kabanda vivia-se uma paz podre denunciada unicamente pela frequência crescente com que a Rádio
Batuque lançava os seus comunicados. Boatos de ataques e contra-ataques das partes em conflito
sobejavam sem que houvesse possibilidade de confirmá-los ou desmenti-los. No entanto os rumores iam
buscar a sua legitimidade às caras tensas que as pessoas ostentavam nas ruas ou à forma como
voluntariamente as pessoas anteciparam a hora do recolher obrigatório.

Os “Cai-Cai” iam ficando vazios cada vez mais cedo como se os seus clientes, mesmo os mais ousados
temessem encarar as ruas depois da meia-noite. As notícias da violência das noites eram os primeiros
motivos de conversa à chegada aos empregos. A vida social tendia cada vez mais a ser feita dentro das
casas convidando amigos e amigas para jantares dançantes que acabavam invariavelmente com corpos,
copos, garrafas e restos de comida desarrumados pelo chão fora.

Todas as noites, tiros dispersos vindos dos subúrbios rompiam o silêncio dando a sua contribuição para
aumentar os temores.

- Hoje o Patrão não deve sair!

Avisava de vez em quando o João Paulo que vivia no local ideal para ser um cidadão bem informado: Os
desertores de ambos os lados procuravam refúgio nos bairros dos subúrbios onde a polícia ou mesmo o
exército entravam a custo. De algum modo, fosse através das famílias ou ex-companheiros de armas
mantinham-se avisados sobre a evolução da guerra na frente. Por outro lado, partilhavam segredos com as
redes de marginais de quem necessitavam para conhecerem as movimentações das escassas forças da
ordem.

O Xandinho porem, continuava a frequentar os “Cai-Cai”. Tinha eleito a “Mamalhuda” como o seu
predilecto e a Luísa como sua protegida. De vez em quando ia com ela ao VII Congresso comprar-lhe
umas sandálias ou uma blusa para lhe alindar o corpo e só isso fazia-a feliz. O seu reservado ao fundo do
jardim, quase que se tornara privativo. Se estava ocupado quando ele chegava, a “Mamalhuda” chamava
um guarda-costas para proceder à sua evacuação. O Xandinho protestava contra este comportamento mas
era em vão:

- É do Sr. Doutor e está dito! Já toda a gente sabe porque é que insistem?

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Não lhe restava senão aceitar a atenção. Mantinha também alguns contactos com os homens do jornal e
da rádio que de vez em quando lhe confirmavam um ou outro boato que circulava pela cidade. A Luísa
servia-lhe de companhia e um dia trouxera-lhe mesmo um estojo velho para lhe arranjar as unhas, tarefa
que alternava com meiguices nas mãos e carícias pelo corpo.

Nessa noite levou-a para casa, convite que ela aguardava sempre com ansiedade. Mal chegavam,
enfiava-se no quarto de banho onde passava tempos infindos. Presumia que ela não tivesse água em casa.
No fundo estas convocações eram a continuação das noites nos “Cai-Cai” mas o aperto do protocolo
desaparecia.

Tinham começado a beber uma cerveja quando a luz se apagou. Em Kabanda era normal isto acontecer e
normalmente ou queria dizer sabotagem ou simplesmente uma avaria no sistema de distribuição e
transporte de energia que estava mais do que sobrecarregado. As pessoas que fugiam da guerra e
procuravam refúgio em massa na Capital levaram a um enorme aumento populacional da cidade sem que
as infra-estruturas respondessem a tal incremento. A conjugação deste facto aliada à falta de técnicos
especializados e à desorganização reinante faziam com que por noite pudessem existir três ou quatro
apagões. Normalmente, casas como as do Dr. Alexandre Graça Albergaria tinham o seu próprio gerador.
Mas desta vez ele também se tinha cansado e avariou.

O Xande e a Luísa abriram as portas que davam para o jardim. Estenderam-se nos divãs à luz do luar.
Para o Xandinho era um estudo que restava por fazer: O aumento da natalidade infantil em função do
numero de apagões.

A história da Luísa era comum à de muitas raparigas da sua idade: Durante os primeiros anos de guerra
os pais desapareceram vítimas de fogo inimigo ou simplesmente refugiaram-se noutros países. Poderiam
mesmo estar vivos numa qualquer província e pensarem que ela teria sido morta numa ou noutra chacina.
O Xandinho nunca tentou aprofundar como ela chegara à “Mamalhuda”. Normalmente enternecia-se com
as situações apesar de todas as histórias serem idênticas e acabava por se envolver tentando salvar o
Mundo e o próximo.

Esperaram inutilmente pela luz. Furando a escuridão com velas foram à cozinha ver se nos frascos das
mesinhas restavam algumas “especiarias”. Como sempre ele detestava enrolar os charros e deixava essa
tarefa para a pessoa mais próxima. Ao luar, no meio das sombras do jardim, tudo tinha outro sabor.
Depois de algumas cervejas, enlevados mais pelo fumo e pelo álcool do que por quaisquer outros desejos
mais comezinhos, foram-se deitar.

A meio da noite o Xande foi acordado por uma forte cotovelada da Luísa. Acordou estremunhado e
custou-lhe ajustar-se à realidade. Olhou para as horas. Eram quatro da manhã. O telefone tocava. A
primeira ideia que lhe veio à cabeça foi que a alguma coisa acontecera à sua mulher mas o corpo pesava-
lhe. Arrastou-se até ao salão. Quando estava a chegar aquele som estridente que lhe rebentava os miolos
parou. Sentou-se num dos sofás a descansar do esforço e a mal dizer da vida. Ainda esperou por um novo
toque que não veio. Com o mesmo ânimo foi até ao quarto de banho e olhou primeiro a cara ao espelho.
Depois fixou-se na nudez do corpo que o desconfortou de todo. Enfiou a cabeça debaixo de água na
esperança vã de encontrar algum alento.

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- As ressacas são uma doença que só a sossega cura! Pensou o Xandinho a caminho da cama onde
adormeceu profundamente abraçado à Luísa.

De manhã cedo sentiu o João Paulo entrar mas procurou mais algum sossego no meio das almofadas. O
telefone tornou a tocar. Ouviu vagamente o empregado a atender mas não conseguiu entender a conversa.
Percebeu tratar-se da Betinha. Arrebitou as orelhas. Quando sentiu o auscultador a pousar, levantou-se
mais afoito e foi ao salão:

O João Paulo tremia. Lívido, segurava um pano de cozinha nas mãos e os seus lábios murmuravam
coisas sem sentido.

- Que aconteceu? Gritou-lhe o Xandinho.


Sem cerimónia o empregado atirou-se para cima dum sofá e conseguiu finalmente pronunciar estas
palavras com a voz embargada:

- O Sr. Heitor e a menina morreram!

A Luísa, talvez avisada por um sexto sentido qualquer tinha chegado ao salão.

- Como? Perguntou o Xande. Que disse a D. Betinha?


- Afogados!
- Quem era o Heitor? Quis saber a Luísa.

O Xandinho olhou-a de alto abaixo. Trazia vestidas umas cuecas e uma blusa fininha toda aberta.

- Vai-te vestir! Ordenou-lhe o Alexandre, pondo carinhosamente a mão no ombro do João Paulo. O
próprio Xande estava em cuecas.

Foi para o quarto de banho e meteu-se debaixo do chuveiro onde a Luísa também se banhava.

- Por mais ateu que se seja, morte assusta sempre, pensava o Xandinho. Será que o Ministro já sabe?
Como é que os pais irão receber a notícia? Secava-se e vestia-se enquanto fazia estas perguntas para as
quais não tinha resposta. Lembrava-se da cara de felicidade dos falecidos quando os tinha visto da última
vez e dos planos para o futuro que ambos tinham feito. E a casa? Da casa da praia (pensava o Xande),
resta a fantasia.

Voltou para o salão de jantar e sentou-se à mesa. Lembrou-se de telefonar à mulher e pedir-lhe para dar a
notícia aos pais da Sandra, mas veio-lhe de novo à ideia o Ministro: Afinal ele era o único familiar
presente em Kabanda e não via nenhuma razão para ser ele a arcar com o peso dum corpo ou com as
cerimónias de um funeral. Não eram certamente quatro ou cinco noites de harmonia e de paixão que
justificariam tal dever. Cada vez mais o ombro doce da Susaninha lhe fazia falta. Tentou telefonar ao
Katatúlio, mas era muito cedo; ainda não tinha chegado ao Ministério.

O João Paulo serviu-lhe o pequeno-almoço no mais completo silêncio, tendo o cuidado de trazer duas
chávenas.
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- A morte não demanda ser vivida! Disse ele numa espécie de Kabandês poético.

À mesa praticamente só se ouvia o Xandinho a mastigar as torradas. Os seus olhos estavam pousados no
vazio como se estivessem a observar a fotografia duma escultura surrealista da “Perplexidade”. Decidiu
telefonar ao Renault. Era provavelmente a única pessoa que não se importaria de acordar, fosse que horas
fossem. Se já não estivesse na suite com certeza que poriam um empregado à sua procura com uma
ardósia indicando o numero do quarto. Pensou também em ir à Barra para saber exactamente o que se
passou. Pensou em tudo, mas nada lhe fazia sentido.

Estupidamente a Luísa veio por trás do Xande e alisou-lhe o cabelo como se isso fosse para ele algum
consolo. Quis chorar mas faltava-lhe um motivo racional para isso:

- Chorar por quê ou por quem? Talvez por aquele projecto de vida que ela e o Heitor tinham alimentado.
Pensava que era muito mais duro para o íntimo ver ruir um projecto do que um edifício acabado.
- Quantas pessoas saberiam da gravidez da Sandrinha? Perguntava-se.

Jurou que pela sua parte a Betinha iria ignorá-lo sempre. Foi passear até ao jardim num passo dolente
como se tivesse medo de acordar os espíritos. Lembrou-se que o chá ainda deveria estar debaixo da
árvore a apanhar banhos de luar. Caminhou até lá, pegou na garrafa e com fúria estilhaçou-a contra a
parede.

Ouviu um carro parar em frente ao portão que buzinou com insistência. O Jorge foi abrir.

- A esta hora quem será? Perguntou o Xandinho. Não estava com paciência para aturar visitas. Lembrou-
se outra vez dos funerais:
- Alguma coisa vai sobrar para mim… A morte de alguém recorda-nos sempre a infância. Com o fim dos
outros voltamos sempre ao princípio. Disse aos seus botões, como se estivesse a filosofar.

Ficou a pensar nos seus tempos de menino: Uma vez, ele e um colega de escola apanharam um pássaro
numa ratoeira que eles próprios armaram. Compadeceram-se do sofrimento do bicho e lamentaram a sua
morte. Procuraram em arcas fechadas as roupas da comunhão solene dos irmãos mais velhos, que eram os
trajes mais parecidos que puderam imaginar com os dum padre e fizeram à ave um enterro religioso,
digno de quem andou nesta vida muito pelo ar. Um deles fez de coveiro e abriu para o passarito uma
campa onde puseram este epitáfio em tamanho maior que o corpo da vítima: AQUI JAZ O SR. PARDAL.
Desejou tamanha dignidade para os cadáveres dos dois falecidos.

Ia sentar-se ao fundo do jardim num dos divãs quando os seus olhos marejados (tinha vertido uma
lágrima saudosa pela infância perdida) descortinaram uma figura pequena e magra, vestida de preto
arrastando pela mão duas crianças que sem vontade seguiam os seus passos: Era a Betinha e os filhos.

Quando o seu rosto sofrido se aproximou, não pode deixar de pensar que de uma vez por todas se lhe
tinha acabado o azeite na candeia. Atrás dela caminhava uma figura seca e fria. Era o cunhado que tinha
sido Ministro do Comércio. Quando se aproximaram, ela abraçou o Xande com força, chorando
convulsivamente.
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As crianças longe da morte, não percebiam nada do que se estava a passar e começaram a correr atrás
das rolas que pousavam na relva do jardim.

Por contacto directo com a dor da Beta, pela primeira vez o Xandinho vertia lágrimas pela tragédia.

- Como foi que aconteceu? Perguntou ao ex-Ministro.


- Segundo dizem o barco voltou-se e a corrente do rio puxou os dois para o mar. Os corpos ainda não
apareceram mas os amigos viram-nos a lutar contra as correntes. Deve ter sido uma morte horrível.

A Beta tinha desenlaçado o Xande, mas continuava a chorar em convulsão, sentada no divã enquanto
este lhe afagava a cabeça.

- Quando foi isso?


- Ontem ao fim da tarde!
- Eu tive um pressentimento: A essa hora, não sei porquê acendi uma vela por baixo duma fotografia do
pai do Heitor. Dizia a Beta entre soluços.

O ex-Ministro continuou:

- Coisas de mulher! Os corpos ainda não apareceram. Os pescadores da Barra andam em pirogas à
procura deles.
- Ás tantas também morre algum pescador. Disse o Xandinho, propondo-lhes que fossem até à sala de
jantar tomar um café.

A Luísa tinha ido esconder-se no quarto. Sentaram-se à mesa. O Xande pediu ao João Paulo para trazer
bolachas de gengibre para os miúdos e café para todos, oferta que a Beta recusou entre ais e suspiros. O
ex-Ministro observou atentamente a mesa exclamando admirado:

- Mas tem aqui duas chávenas.


- Você é tão atento que devia ir para Chefe de mesa. Disse-lhe o Alexandre recriminando a indiscrição.
Pois tenho! Continuou: De manhã eu e o empregado tomamos juntos o pequeno-almoço para fazermos a
planificação das compras.
- Estou a mentir, mas toma lá que é democrático! Pensou o Xandinho.

Os miúdos não paravam quietos. Ora atiravam pedaços de biscoitos um ao outro, ora se pontapeavam
por baixo da mesa sem se darem conta da gravidade do momento.

- Vão brincar lá para fora, disse a mãe irritada.

Com a paz e o silêncio restabelecidos o ex-Ministro iniciou um discurso que o Xandinho não tardou a
qualificar de demência insalubre.

- Trata-se, dizia o homem, da sobrinha de um Membro do governo. Espero que isto não venha a trazer
problemas à minha família.
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Sexo, Drogas e Diplomacia
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Katatúlio um Homem de Estado

- Que problemas? Perguntou o Xande.

Em Kabanda como em qualquer parte do mundo, o medo alimenta a insegurança e faz germinar a
subserviência.

- Temos que ter cuidado, continuava. Eu e a minha família já pensamos ir ao Ministério do Plano
apresentar os nossos pêsames ou pesamar como se diz em Kabandês.

O Xandinho percebia que aquela preocupação era ditada pelo medo. Em criança inventava e temia
papões. Mas ter medo do Katatúlio era coisa que não lhe passava pela cabeça.

- Tenho que lhe telefonar ou mesmo ir falar com ele para lhe dar a notícia a não ser que já esteja
informado pela Rádio Batuque. Disse o Xande.
- Para ser franco a minha ideia, disse o ex-Ministro era pedir a sua ajuda para convencer o Senhor
Ministro a fazer um funeral conjunto. Nós sabemos que vocês têm uma boa relação por causa do Vladimir
Illitch e para a minha família seria óptimo um funeral conjunto.

A Beta acenava com a cabeça em sinal de assentimento. Para o Xandinho era a reedição do Romeu e
Julieta, mas desta vez a preto e branco.

- Funeral? Admirou-se o Xande. Mas os corpos ainda nem sequer apareceram…


Se calhar vão querer fazer uma fotografia de família com os cadáveres e o Katatúlio ajoelhado em frente
aos caixões (tratava-se literalmente de enterrar os mortos e cuidar dos vivos). Pensava o Alexandre,
mostrando uma cara quase de gozo.

- Olhe que isto pode ser muito sério. Eu sei que o Camarada Presidente está sempre presente nos
“kuntas” (1) de familiares do seu governo. Talvez fosse altura de eu reatar a minha amizade com ele.

O Xandinho estava nauseado com toda aquela conversa e quase que já falava Kabandês.

- Desculpem-me, disse ele, mas tenho outras coisas em que pensar. Estou por exemplo muito mais
preocupado em como dar a notícia aos pais da Sandra ou mesmo ao Sr. Katatúlio do que com as pazes que
queiram fazer ou não com o Camarada Presidente.

Para grande embaraço do Alexandre, a Luísa entrou no salão e o ex-Ministro talvez por temer que
alguém estivesse atrás da porta a ouvir a conversa perguntou:

- Quem é?
- É uma amiga minha respondeu ele visivelmente irritado.

O João Paulo no mais profundo silêncio veio servir outro café:

- Nunca mais me torna a dar daquele peixinho da Barra! Duas lágrimas escorriam-lhe pela cara abaixo.
Até ali, talvez fossem as únicas vertidas com sinceridade naquela casa.

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Sexo, Drogas e Diplomacia
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Katatúlio um Homem de Estado

IX

As visitas matinais perceberam que o Xandinho não tinha disponibilidade para as tradicionais jogadas da
baixa política Kabandina. Estaria disposto a chorar os mortos mesmo a ajudar nas cerimónias fúnebres
que ele detestava, mas não contassem com ele para exercícios de promoção social a expensas de dois
corpos perdidos no mar.

Saíram desapontados de sua casa! As crianças ainda não tinham idade para perceberem que a morte é
irreversível ou por outras palavras que tinham perdido definitivamente o pai. Provavelmente a família em
vez de lhes explicarem isso claramente, confrontando-as com o corpo quando ele aparecesse, fazendo-os
olhar de frente para essa realidade iriam esconder-lhes o cadáver ou contar-lhes a história da cegonha ao
contrário:

- Meninos! O Papá viajou com a ave pernalta e agora está no céu…

Claro que mais tarde por si próprios, no escuro das noites, sem uma mão tutelar por perto, iriam
descobrir a morte! Encará-la como uma figura medonha e desmerecida: A mulher maltrapilha e chupada
da foice ao ombro iria aparecer-lhes em sonhos… Com essa configuração oculta iriam ter que se amanhar
sozinhos…

Telefonou ao Renault que se prontificou a vir ter com ele a sua casa. Pediu ao João Paulo uma bebida
bem quente feita com café e whisky e foi para o divã do jardim tentando esquecer aquela conversa
madrugadora que lhe molestara o entendimento. A Luísa foi ter com ele. Pelo menos aquela presença
tinha a vantagem de não ter nem sonhos nem ambições e para ela um afago era sempre bem-vindo. A
manhã estava soalheira. O dia adivinhava-se quente.

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Katatúlio um Homem de Estado

O café que tinha tomado, uma espécie de “Irish Cofee” sem natas enalteceu-lhe a alma. Quando o
Renault chegou, o Xande pediu-lhe para o condutor ir levar a Luísa a casa. Dissertaram longamente
acerca da morte e discutiram sobre a nova situação criada pelo desaparecimento do Heitor e da Sandrinha.

Decidiram ir agenciar sobre o paradeiro do Katatúlio ao Hotel do partido ou ao Ministério, e depois irem
à Barra saber o que realmente o que se tinha passado. Tratava-se realmente de indagar sobre o estado de
alma do Ministro.

Já dentro do carro o Xandinho teve uma ideia:

- E se tudo isto não passasse dum engano ou de um boato?

Fosse por osmose ou pelo melindre da situação o Renault também estava acabrunhado e não acreditou
nessa suposição:

- Não sei porquê, disse ele. Mas este dia cheira-me a morte.

O lixo amontoado na cidade sob o sol quente fazia o ar feder ainda mais e talvez fosse esse catingar a
que o Renault se referia. Não falaram mais até chegarem ao Ministério do Plano.

No hall de entrada e nos longos corredores para alem dos contínuos e seguranças ensonados, não se via
mais ninguém. A poeira no chão e um constante martelar vindo de qualquer parte do edifício eram sinais
de obras em curso. De facto, olhando bem notava-se que o velho casarão estava a ser reconquistado e a
adquirir a traça original. O corredor que levava ao gabinete do Ministro brilhava de cera nova ou talvez
mesmo verniz que deixava transparecer os veios da madeira. As paredes impecavelmente brancas eram
interrompidas por inúmeras portas altas encimadas por bandeiras já com os vidros repostos. Quem
conhecera aquele edifício um mês antes, não diria ser o mesmo: De forma espaçada, encostada contra a
parede uma boa dúzia de vasos com arbustos em ambos os lados do corredor quebrava a monotonia do
branco.

- Só falta uma passadeira vermelha! Comentou o Renault.


- Isto vê-se que anda aqui mão de empresa estrangeira, disse o Xandinho.

Quando chegaram à porta do gabinete do Katatúlio, as sentinelas mandaram-nos entrar sem mais
delongas. As secretárias ainda não tinham começado a tomar o chá.

A que não sabia escrever à máquina e que parecia ser a Chefe, foi peremptória em afirmar:

- O Senhor Ministro, hoje não tem a incumbência de cá estar! Falou ela numa língua que lhe pareceu
nativa.
- Precisávamos muito de falar com ele! Disse o Xande.
- Mas não está. Morreu-lhe uma sobrinha!

Os dois olharam um para o outro e sentaram-se nas cadeiras novas, estofadas e áureas que tinham
substituído as outras de pau tosco que costumavam lá estar.
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- Era exactamente sobre a morta que queríamos falar com ele. Disse o Renault. Sabe que aqui o Dr.
Graça é amigo da família e conheceu muito bem a D. Sandra. Aliás de vez em quando ela ficava em sua
casa. Se o conseguir encontrar diga-lhe por favor que o Dr. Alexandre precisava muito de falar com ele.

Durante esta conversa a secretária foi mexendo meditativamente o chá:

- Se sabe o nome da senhora é porque é aparentado. Disse ela num Kabandês fluente.

Pegou no telefone e discou um número. Pousou o auscultador e tornou a discar. Repetiu o exercício
vezes sem conta e acabou por dizer:

- Estes telefones são muito individualistas. Só dão para falar do lado de cá.
- Mas insista! Disse o Xandinho quase a imitar um soluço de comoção.
- Não fique assim! Apiedou-se a secretária. Olhe! Ele está “introspectivo” no Hotel do partido, acabou
por dizer.
- Compreendo a mágoa do Senhor Ministro! Disse-lhe o Renault dando uma palmadinha nas costas do
Xande a fingir que lhe estava a adocicar as mágoas.
- Vamos até lá Alexandre. Continuou.

- Pois vamos! Se o Senhor Ministro está a “introspectar” talvez possamos ser de “coadjuvação”, disse o
Xandinho a tentar falar um Kabandês letrado.

- Não percebo um seixo desta interlocução! Disse a secretária à colega. Os brancos têm mesmo a mania
que falam “dispendioso”.

O Renault não percebeu a graça que o Xandinho tinha achado aquela conversa. Escapavam-lhe as
subtilezas do linguarejar e o Xande também se achava incapaz de traduzir aquela prosa para francês.
Decidiram ir ao Hotel do partido, mas primeiro iriam passar pela Delegação para contarem ao irlandês o
que se estava a passar.

Quer ele quer o Renault era a primeira vez que entravam naquele ambiente (no mínimo era sisudo), mais
com cara de presbitério do que de hall de Hotel. Todos os empregados estavam engomados até ao pescoço
e os safaris que vestiam não admitiam nem ruga nem mácula. O Hall de entrada ostentava um retrato a
óleo do Presidente da República com cerca de dois metros de altura, com o braço direito estendido e de
dedo especado apontando o caminho para parte nenhuma. Os olhos amêndoados do representado
indicavam que a obra de arte tinha sido feita por um qualquer artista chinês. Sobressaía pela
monumentalidade e por estar no continente errado.

- Isto não pertence a este filme? Perguntou o Xandinho ao Renault admirando a pintura.
- Pertence! Pertence! Tu é que ainda não viste a película até ao fim!

No meio da tragédia salvava-os das lágrimas o sentido de humor. Anunciaram-se na recepção dizendo
que queriam falar com Sua Excelência o Ministro do Plano. O recepcionista fez um pequeno gesto com a
cabeça na direcção de três Kabandinos que pareciam passear inadvertidamente pelo hall e estes
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rapidamente os rodearam a solicitarem de forma polida as suas identificações que foram verificadas a
pente fino.

Feitas estas exéquias o recepcionista pegou nas suas cartas diplomáticas de identificação e pelo telefone
anunciou-as ao Katatúlio.

- O Camarada Ministro já desce! Disse respeitosamente apontando-lhes uma saleta de espera para onde
se dirigiram.

Sentados em dois enormes cadeirões de estofos vermelhos, olharam à sua volta: A um canto um vaso
grego de gesso servia como depósito a ramagens desordenadas, de verdes fingidos. Na mesinha de centro,
estavam espalhados vários exemplares (antigos e gastos) da revista “Vida Soviética”. O Xandinho
experimentou com os dedos o sabor daqueles arremedos de plantas e disse para consigo: Tenho saudades
do frio e da primavera!

Quando o Ministro assomou, o Renault solícito dirigiu-se a ele apresentando-lhe as condolências. Vinha
com um ar supostamente abatido e os olhos cansados. Não ligou aos pêsames que lhe eram endereçados e
interpelou directamente o Xandinho:

- Sabe pormenores?
- Nenhuns! Estava para ir à Barra mas achei melhor falar consigo primeiro.
- Fez bem! Retorquiu. Eu também quero muito falar consigo, mas aqui não é o sítio indicado. Telefonei-
lhe logo que me disseram mas foi o seu empregado que atendeu.
- É natural! Respondeu o Xande. Fomos ao seu Ministério. Mas se acha que este não é o sítio indicado
podemos ir para minha casa. Que me diz a almoçarmos juntos?
- Que seja! Respondeu o Katatúlio. Que pode aprontar?

- O que o Senhor Ministro quiser.


- Chame-me Victor, voltou a pedir-lhe! Não lhe peço cabrito, porque não está cá a Albina. Mas caril de
frango era óptimo!
- Nesse caso tenho de ir a casa avisar o empregado. A família em Lisboa já sabe? Perguntou o Xandinho.
- Ainda não! Queria falar consigo primeiro e acertar agulhas!

Falava baixo como se estivesse num velório ou a revelar um segredo de Estado:

- Isto é um transe muito difícil. O Camarada Presidente já está avisado. Não me absolveria se não lhe
contasse. Era impossível esconder-lhe uma calamidade destas. Mais tarde ou mais cedo viria a saber…

- O Camarada Presidente sabe todos os pormenores? Quis saber o Xande.


- Ele sabe que a minha sobrinha morreu no mar com um amigo. Mas é claro que lhe ocultei a gravidez.

Nesta altura olhou com um ar comprometido para o Renault e levou a mão à boca como se estivesse
pesaroso de proferir aquelas palavras.

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- Com ele pode estar à vontade, falou o Xandinho. É o único amigo que tenho em Kabanda e desabafo
com ele…

O Katatúlio interrompeu-o:

- Não me diga que não me considera seu amigo. Você é o único que sabe de todas as reservas da minha
família! É por isso que quero falar consigo a sós!

A caminho da casa do Xandinho pareceu-lhes que o vai e vem da cidade tinha adormecido: mamanas
que costumavam equilibrar na cabeça um Universo de coisas, naquela manhã parecia-lhes que no máximo
carregariam um ou dois planetas cheios dos mais diversos produtos. O pintado vivo das suas vestimentas
tinha desbotado.

O Xande tentava transpor para o resto das pessoas as suas fraquezas. Por isso diminuía tudo o que
houvesse nos outros, desde o peso das trouxas até à cor das vestias. No entanto não dispensava acamar os
seus olhares nas moçoilas. Essas despertavam-lhe cobiça e faziam-no pensar na morte como se ela não
existisse. No fundo procurava naquelas polpas jovens uma fuga, já que não desejava lembrar-se do enfado
que iria ser o almoço com o Katatúlio.

- Será que de algum modo ele me irá responsabilizar pela morte da Sandrinha? Será que ele adivinha as
minhas “caminhadas” com ela? Perguntava-se o Xande.

Tornou a lembrar-se da Susaninha e a desejar que ela estivesse com ele.

- Se ela estivesse comigo (pensava), de certeza que naquela tarde não tinha ido para a Ilha, naquela
noite não teria ido com ela par a cama, a minha intimidade com a Sandra não teria chegado ao ponto que
chegou. O Heitor não me tinha posto os cornos nem sequer tinha engravidado a miúda.

Pôs os olhos noutra moçoila e à medida que o carro avançava continuou a pensar:

- Por esta ordem de ideias, a minha relação com o Ministro não seria o que é, a recuperação do Vladimir
Illitch não estaria onde está e o presente não seria o que é.

Mais uma vez procurava assacar culpas aos outros e fazer o que toda a gente faz: Exibir flores sem
indagar do seu jardim particular.

O Xandinho Tinha uma muito má relação com a morte.

- Detesto cadáveres, dizia ao Renault já no carro. Imagino como é que estes vão aparecer ao fim destes
dias no mar. Só de pensar que os peixinhos da Barra os vão comer, já nem fresco me apetece peixe.

Quando ele era pequeno, tanto lhe falaram do céu e da ressuscitação de Cristo que ficou com o vício da
ressurreição: Pensava que à hora da morte Deus lhe haveria de mandar uma Santa Maria Madalena
(prendada com dádivas e ternuras) para o levar ao céu, dando assim continuação à sua vida de putanheiro
bem vestido disfarçado por um casamento bem sucedido.
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Quando chegaram a casa do Xandinho os dois amigos despediram-se. Ele foi tratar do almoço com o
João Paulo.

Foi ao seu íntimo e observou, mais uma vez disfarçando a morte:

- Ora! Ora! Quero é o meu! Dizia ele enquanto sorvia uma cerveja que o João Paulo lhe tinha servido.
Quero lá saber que a Sandra e o Heitor tenham morrido!!!

E assim enjeitava os seus padecimento de pessoa de esquerda, do mesmo modo que os realmente pobres
desaceitam o infortúnio.

Combinou com o João Paulo que o almoço seria caril de galinha com óleo de palma. A ideia não lhe
agradou porque nunca tinha ouvido falar de tal coisa e pensava que as duas não ligavam mas o empregado
esclareceu-o:

- O prato não leva pó de caril. Isto é uma maneira de nós falarmos.


- Acompanha com que coisa? Perguntou o Xandinho irritado.
- Com farinha de mandioca ou farinha de milho. Disse o João Paulo.

O Xande deu-lhe dinheiro para comprar dois frangos. Depois ficou a pensar sobre o que o Ministro
queria falar com ele em conversa privada.

Estava só naquela encruzilhada. O que ele queria de facto é que o presente não tivesse acontecido.
Pensava nas orações da Sandrinha: Ai minha nossa Senhora! Ai!!! Ai!!! Meu Santo Antoninho!!! Ai Meu
Bom Jesus!!!

No salão começava a sentir-se o cheiro do estrugido que o João Paulo fazia. O Xandinho começou a
divagar e a enrolar-se na compreensão: “O aroma adocicado a óleo de palma, não se coadjuvava muito
bem com o paladar do carapau de gato por onde a sua gula se tinha disciplinada nos prazeres da boca”.

- Porque será que nenhum investidor pensou em fazer uma fábrica de armas em África? Dizia para
consigo a pensar na guerra…

Ouviu três motas de grande potência e foi espreitar ao portão. O Katatúlio tinha chegado com três
batedores:

- Ou já está organizado ou vem em missão de Estado! Achincalhou o Xandinho com seus botões.
- Cheira bem! Disse Katatúlio ao entrar no salão.
- Sente-se Victor. Disse o Xande.

Pela primeira vez reparou que o Ministro cultivava um bigode muito fininho que descrevia uma linha
estreita logo por cima do lábio superior. O Ministro começou a passear dum lado para o outro do salão e
ia coçando o nariz com gestos nervosos:

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- A situação é complicada, disse ele já mais calmo. Claro que você não tem nada a ver com esta alhada
mas vou precisar da sua ajuda.
- Se for para acelerar o processo do Vladimir Illitch, conte comigo disse-lhe o Xandinho como se
quisesse avisá-lo que as ajudas têm um preço.
- Não “desloque” a conversa disse-lhe o Victor. Claro que vou fazer tudo para apressar o processamento.
Mas dependendo do que se vai passar com os corpos ainda teremos uma reunião esta semana
“programática mas paulatina”.

O Xandinho percebeu que o Ministro falava uma linguagem a que se chamava na gíria “Kabandês
Sociológico” e pediu-lhe para continuar:

- A situação é complicada porque tenho que fazer um “kunta” (1) e não tenho condições objectivas nem
subjectivas para o fazer.

O Xande percebia cada vez menos daquela conversa e presumiu tratar-se de “Kabandês Ideológico”. O
Ministro entendeu as suas dúvidas e começou a falar mais terra a terra:

- O meu problema é o “kunta” (1). Com certeza que o meu irmão não quer que o cadáver dela vá para lá
o que tornaria as coisas muito mais difíceis. A Sandra tinha nacionalidade portuguesa, seria preciso
envolver nisto tudo a Embaixada o que só iria enredar as coisas. Sendo assim tenho que fazer o “kunta” e
para isso preciso da sua “coadjuvação”.

- Mas o que é isso de “kunta”? Perguntou o Xandinho a fazer-se de parvo.


- São as nossas tradições e a nossa cultivação! Respondeu o Katatúlio. É para ajudar os espíritos a
levarem o corpo para os céus. Em princípio, quando as pessoas morriam em casa o “kunta” começava a
fazer-se no dia da morte. Embora nós tenhamos a certeza que ela morreu, legalmente está viva porque o
corpo ainda não apareceu. Quero dizer: Sem corpo não há morte oficial. Há só falecimento em espírito.
Podíamos começar a fazer o “kunta” já. Mas na minha condição de Ministro de Estado tenho que cumprir
a lei e as tradições. O Camarada Presidente, nunca mais me iria absolver.

- Continuo sem saber o que é o “kunta”.


- Então é assim, explicava ele: Antigamente compravam-se carpideiras por que o defunto estava
presente. Quando alguém entrava em casa elas começavam a sussurrar para ajudarem as outras pessoas a
chorar a dor. Depois calavam-se até entrarem pessoas diferentes. Claro que o dono do falecido tinha que
agradecer as lágrimas e dava a todos vinho de palma. Hoje o corpo está na morgue e já não se usam muito
carpideiras. Há só sentimentos e pêsames, mas o parente do corpo tem que agradecer na mesma aos
pesarosos e abona-lhes cerveja, whisky ou vinho. Isto dura desde a morte até ao enterro. Neste caso vai
haver muitos “pesamerosos” como se diz em Kabandês. Vai vir no jornal e na televisão. Tanto quanto
conheço o Camarada Presidente vai vir aqui a casa!

- Olá! (Pensou o Xandinho). Já estou a alombar!

Mas esta do Camarada Presidente vir a sua a casa começava a interessar-lhe: Seria um ponto alto na sua
carreira, mas ao mesmo tempo motivo de inveja dos autóctones, o que também não lhe agradava muito.

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As grandes causas, tinham desaparecido das suas insónias e quando assim acontece a esperteza dá lugar à
brejeirice.

- Ora, ora! Disse para consigo. O que eu quero é o meu! Por alguma razão a Comunidade me paga a
renda de casa! Afinal ela não é minha, é das funções. Sendo assim o “kunta” passa a fazer parte das
funções (decidiu logo ali): Voltou-se para o Ministro achincalhando expressões e fazendo-se
desentendido:

- Isso no Hotel do partido vai ser uma festa de arromba!

- Não percebeu (disse o Ministro). Não posso “executar” a tradição num Hotel. Que pensariam os
Camaradas Estrangeiros que lá estão? Nem o Camarada Presidente ia lá por razões de segurança. Em
nome da família por quem eu sei que afeições lhe têm e da minha posição de Ministro de Estado peço-lhe
“rigidamente” a casa emprestada para a cerimónia.

O Katatúlio encravou o Xandinho contra a parede.

- Ora, ora! (Por razões de decoro não completou a frase). Sabe que a casa não é minha é de funções. Para
isso tenho que falar com o Delegado. Não quero que ele pense que dou à casa usos indevidos. No fundo
ela pertence ao Estado Kabandino, Kabandês ou Kabandano, como queira… mas é a Comunidade que
paga a renda. Claro que como amigo da família não me oponho e até terei muito prazer em ser de
serventia ao Homem de Estado… Mas o que me está a pedir e se bem entendo é para fazer uma grande
farra em minha casa com dois cadáveres na soleira da porta.

O Xandinho estava a vender-se caro:

- Mas se quiser eu falo ao Delegado… Disse o Katatúlio.

Era exactamente o que o Xande queria ouvir, mas decidiu fazer render ainda mais a peixeirada:

- Meu caro Ministro: Não desça tão baixo. Fale com o Renault tu cá tu lá e incumba-o de falar com o
Delegado. Ele é da Sede e tem influências.

Tinha consciência que estava a fazê-lo descer ainda mais baixo.

Quando o João Paulo anunciou que o almoço estava pronto, passaram à sala de jantar. O empregado
sabia que o Xandinho não gostava de farinha de mandioca e preparou uma entrada forte de camarão com
molho de coco acompanhado com muito pão torrado e manteiga.

- Então eu falo com o Renault tu cá tu lá. Atalhou o Katatúlio, servindo-se do vinho: Este é Periquito.
Disse estalando a língua com ar de conhecedor.

- É meu caro Victor! E para o “kunta”, aconselho-o a comprar Periquita. Aconselhou o Xande a pensar
na sua garganta delicada. Apesar que se o Senhor Presidente vier, tenho para ele o garrafão especial que
ele gosta.
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O Telefone tocou e o Dr. Alexandre Graça Albergaria mandou o João Paulo atender.

- Pode ser para mim disse o Ministro. Dei este número no Hotel no caso de alguém telefonar.

O Xandinho já pensava na balbúrdia que ia ser aquela casa e resfolgava de alegria contida: O Presidente
da República em sua casa era coisa que nem os Embaixadores de todas as Rússias nem dos Estados
Unidos poderiam sonhar. A sua fama e o seu prestígio de certo iria passar alem fronteiras.

- Arra co o Presidente da república? Para quando é isso? Perguntou ao Katatúlio.


- Só quando os cadáveres virem a luz.
- Ora, ora! Disse o Xande. O Ministro disponha. Lembre-se que não tenho copos nem baixela para tanta
gente que lhe virá dar os pêsames.
- Que me virá pesamar, dizemos nós em Kabandês. Tem que começar a aprender a nossa língua, disse o
Victor.
- É a esposa do Sôtor! Veio anunciar o João Paulo.

O Xandinho levantou-se num pulo e foi atender.

- Bom dia estrela dos meus planetas! Disse ele bem disposto!
- Talvez chegue dia vinte e dois, que calhará a uma quarta-feira! Quase que gritou a Susaninha do outro
lado.

- Então e a Tia Albina?


- Não vai já! Está atrasada!

O Xande contou-lhe o que se estava a passar, pedindo-lhe para não dizer nada aos pais da Sandra.
Achava que tal incumbência cabia ao Ministro. Quando chegou à mesa, pôs o Katatúlio ao corrente do
telefonema, mas ele não ligou de obcecado que estava com as exéquias:

- Isto do funeral vai ser uma chatice! Disse o Katatúlio.


- Porquê? Perguntou o Xandinho.
- Sabe que a seguir à Independência uma das primeiras medidas que se tomaram, foi nacionalizar os
cangalheiros. Não fazia sentido num regime socialista haver enterros de primeira de segunda ou de
terceira. Instituiu-se um caixão igual para todos. Mas depois veio a guerra e as serrações estão todas fora
da Capital. De modo que não chega cá madeira para fazer os caixões. A minha esperança é que com a
ajuda do Camarada Presidente se possam importar um ou dois.

O Xandinho nunca imaginou que a guerra tivesse tão nefastas consequências. À medida que o almoço se
ia aproximando do fim, pensava como se iria libertar daquela conversa tétrica.

- Amigo Victor! Disse ele entre dois goles de “Piriquita”: Estava aqui a pensar e sou capaz de ir até à
Barra saber em primeira-mão o que realmente se passou.

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- Já tinha premeditado nisso! Esclareceu-o o Katatúlio inchando o peito. Mas bem vê que na minha
posição ir ao mar saber como morreu uma sobrinha que ainda por cima vivia amancebada com um
estrangeiro que cometia adultério é rebaixar muito a minha condição de Tio e Homem de Estado.
- Compreendo, disse o Xande quase com comiseração. Mas na minha qualidade de amigo da família,
posso muito bem ir fazer o favor ao Ministro.
- E ele recompensa! Assegurou-lhe o Katatúlio.

Quando acabaram de tomar o café o Xandinho entrou em divagações sobre a organização do “kunta”:

- Podemos montar no jardim duas ou três mesas: Duas com bebidas e outra com comidas. As pessoas
que vierem pesamar, como se diz em Kabandês…

O ar de felicidade do Ministro ao ver que o amigo tinha aprendido o vocábulo interrompeu o raciocínio
do Xande, que teve alguma dificuldade em reatar o fio à meada.

- … Mas para isso eram precisos mais dois ou três empregados: Um para cada mesa de serviço e o outro
para andar com uma bandeja a recolher os copos. (continuou o Xande a conversa).
- Esses, eu trago do Hotel.

Durante a conversa, o Xandinho lembrou-se que os batedores e o condutor estavam lá fora sem comer
nada, debaixo dum sol tórrido.

A sua casa começava a ser notada e invejada na vizinhança pelos carros que paravam à sua porta. A
princípio eram só viaturas diplomáticas com o seu brilho e pinturas impecáveis. Agora eram também
automóveis do governo com os respectivos batedores. Particularmente o João Paulo adorava esta
promoção que se notava pelo ar de galo emproado com que atravessava os portões mostrando aos
empregados vizinhos que prestava serviços em casa importante. Já a despedirem-se o Ministro agradeceu
a intenção que o Xande tinha manifestado em ir à Barra. Para ele, contudo, era uma maneira de pôr um
ponto final naqueles arranjos para o “kunta” e uma forma expedita de não ser obrigado a ir entediar-se
para a Delegação.

Como ponto final da conversa ficou combinado entre eles que o Xandinho organizaria o velório se Sua
Excelência o Ministro providenciasse os comes e bebes, os empregados e as baixelas.

A caminho da Barra pensou no estado em que os corpos já se encontrariam ao fim de estarem quase
quarenta e oito horas a vaguearem ao sabor de ondas e marés. Sabia que os peixes a primeira coisa que
atacavam num náufrago eram os olhos. Lamentou um fim tão inglório para os olhares claros e verdes da
Sandra. De forma dissoluta pensou que as suas carnes firmes já teriam sido pelo menos beliscadas por
esses bichos sem outro objectivo que não a necessidade comezinha de se alimentarem. Por outro lado
imaginava o festim dos cardumes a tentarem reduzir a ossos o pitéu. Uma forte bátega de água começou a
cair no pára-brisas do carro enevoando-lhe a condução. A chuva não parava. Embora já perto do destino,
encostou à berma junto dum ponto de venda de óleo de palma. Saiu e abrigou-se debaixo dum
embondeiro, bem dizendo aquele aguaceiro tépido que lhe inundava os cabelos e lhe escorria pelos
braços. O vendedor de vinho de palma aproximou-se dele de copo em riste como se quisesse minimizar-
lhe os incómodos causados pela a água. Ficaram os dois a olhar o movimento desusado da estrada:
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O Xandinho tinha notado que ao longo dos mais de vinte quilómetros que separavam a Capital da Barra,
mais três ou quatro postos de controlo de viaturas e passageiros tinham sido acrescentados aos usuais,
mas atribuiu isso à deterioração das condições segurança no país:

- Muito carro passa hoje! Disse o Xande ao vendedor de vinho!


- É! Sublinhou o velho cofiando a barbicha branca. Dizem que na Barra morreram abraçados um branco
e uma negra.

O Xandinho estranhou que a notícia já tivesse chegado ali. Não quis denunciar que conhecia as vítimas
mas gostou da efabulação que o velho fazia. Imaginou que no seu país, há umas décadas atrás, a história
seria motivo para algum fado vadio ou mesmo para uma brochura de literatura de cordel. Quis desviar a
conversa:

- Este movimento é bom para o negócio!


- Isto não dá para nada! Disse o velho.

A chuva tinha parado e agora um sol brilhante rompia por entre as nuvens. O Xande lembrou-se dos
cheiros que sentiu quando pela primeira vez aterrou em Kabanda. O odor a terra húmida, misturado com o
aroma adocicado do vinho de palma penetrou-lhe nos sentidos e ele respirou fundo como se quisesse
prolongar aquela sensação.

- Isto dá uma trabalheira e não paga o serviço! Contava-lhe o velho: Levanto-me e ainda de noite trepo
às palmeiras. Lá em cima espero a manhã que é quando se devem abrir os lanhos para tirar o sangue da
árvore. O primeiro sumo que sai volta para terra para os nossos mortos terem o seu quinhão e abençoarem
o resto da colheita.

O homem voltou à conversa inicial:

- Sabe que até dizem que ela é sobrinha do Presidente?

O Xandinho pensou que ele tinha ouvido uma qualquer emissão da Rádio Batuque mas não quis adiantar
mais pormenores. Deu-lhe um maço de tabaco para pagar a despesa e como demasia recebeu um copo
daquele vinho leitoso. Meteu-se no carro rumo à Barra. Ao início da descida da picada que ia dar ao mar
passou pelo último posto de controlo. Ainda do cimo, viu que pela praia normalmente quase deserta, se
estendia um magote com talvez mais de cem pessoas. Quando estacionou o carro viu o Arriscado correr
na sua direcção.

- Que coisa horrível! Disse-lhe quando se aproximou.

Contou-lhe os detalhes: “Mestre Heitor tinha acabado de içar a vela e lançar as canas. Já tinha aprendido
a pescar à redinha (2) mas naquele dia havia cardume de peixe-serra e ele preferiu ir ao anzol. Foi o
vento! Uma rajada de vento pôs o barco a perder de barriga para o ar. Ainda houve quem os visse lá perto
da foz a esbracejar! Ainda houve quem lançasse lanchinhas ao mar mas já não havia nada a fazer. A Foz
tinha-os levado”.
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Os olhos do pescador marejaram. Ao largo uma dezena de pirogas perscrutava o mar. O Xandinho olhou
à volta. A grande palhota do centro da praia que praticamente vira nascer, já tinha cobertura de colmo.
Admirou a arquitectura e lamentou que agora não fosse mais que uma sepultura de sonhos.

- Estávamos à tua espera para entrar lá dentro! Afirmou o Arriscado. Sabíamos que virias.
- Vamos entrar! Disse o Xande. Mas vamos só os dois, pediu-lhe. Como deves imaginar não estou para
ver muita gente!
- As pessoas hão-de crer pesamar-te (3). Lembrou-lhe o pescador.

Aquela palavra trouxe-lhe à ideia a conversa do Ministro e o Xandinho pensou que se tal acontecesse
seria um bom capítulo de introdução às etiquetas do “kunta”. Os dois entraram na Casa Dos Sonhos. O
chão da parte de baixo já estava completamente cimentado e uma mesa comprida com o tampo assente
em dois bonitos troncos de árvore formava o mobiliário, conjuntamente com dois bancos corridos de cada
um dos lados. Sentaram-se em silêncio na frente um do outro como se temessem destruir quimeras. O
Xande, vagarosamente levantou-se e começou a rebuscar num armário alguma bebida. De garrafa na mão
foi até à porta. Junto com o marulhar das ondas ouvia-se um bruaá emitido por aquela gente que olhava o
mar. Serviu para ele e para o Arriscado dois copos de whisky que começaram a beber no mais respeitoso
silêncio.

- Que morte estúpida! Farrista como era tenho a certeza que se dessem a escolher ao Heitor entre a
Barra e a minha casa par local do seu próprio “kunta” ele escolheria a Barra. Pensou o Xandinho.

Olhou por uma das janelas abertas nas paredes de caniço e folhas de palmeira e a alguns metros de
distância viu uma escultura em madeira com coroas de flores aos pés. Pareceu-lhe representar uma
mulher negra.

- Que é aquilo? Perguntou ao Arriscado.


- É a Nossa Senhora dos Mares. Ela era muito religiosa e ontem um pescador esculpiu-a de Santa.

O Xande comoveu-se com a generosidade, mas a religiosidade da Sandra foi coisa de que nunca se tinha
apercebido. Saiu à praia em direcção à estatueta. Os outros pescadores olharam-no como se quisessem
aproximar-se dele mas o Xandinho fez-lhes menção para aguardarem. Aproximou-se da Nossa Senhora
dos Mares. Não era nada parecida, mas naquele meio metro de madeira cuidadosamente trabalhada ele via
a Sandrinha com os pés assentes nas nuvens ou em ondas revoltas. Tinha um rosto seráfico que lhe
atestava a santidade. Aproximou-se mais para apreciar o lavrado e reparou que o artista tinha vestido a
imagem de biquini. Era de facto a Sandra. Em sinal de estima pela obra, pelo gesto e pelos pescadores
que entretanto se tinham aproximado inclinou a cabeça deixando cair uma “lágrima furtiva”. Voltou para
a casa a pensar que em breve a Nossa Senhora dos Mares iria fazer muitos milagres. Sem querer estava a
ser testemunha e cúmplice do que talvez viesse a ser um mito.

- Religiosa, Arriscado? Perguntou.


- Sim! À noite, muito à noite toda a gente a ouvia chamar pela Nossa Senhora, por Jesus, pelo Santo
António e pelos Santos todos. Para nós era uma Santa.
- Para mim também foi! Disse o Xandinho em voz baixa.
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Voltou para a praia, com a cabeça mais confusa do que uma carrada de tojo, disposto a ir falar com os
outros pescadores. Mulheres, crianças e homens de barba rija rodearam-no. Uma velha negra de farripas
brancas aproximou-se dele e abraçou-o. Todos os outros ficaram quedos guardando uma distância de
apreço por aquele sentir.

- Nós não merecíamos isto! Dizia a velha.

Era um desabafo cavado que lhe tinha vindo do fundo da alma. Deitou um olhar frio e distante às outras
mulheres que de imediato soltaram um carpir lânguido e prolongado que se espalhou pela praia fora. As
pessoas que olhavam o mar na esperança de divisarem os corpos voltaram as cabeças e foram-se
aproximando dos pescadores. Muitos brancos que o Xandinho conhecera dos “Cai-Cai” e de casa do
Heitor juntaram-se aos negros. A lamúria agora, apenas sussurrada continuava. Ninguém ousava
pronunciar uma palavra. As lágrimas eram autênticas. Sentia-se que pessoas atafegavam. O Arriscado
pegou no braço do Xandinho que não conseguia disfarçar a comoção e levou-o de novo para a casa de
Mestre Heitor. A garrafa de whisky continuava em cima da mesa.

- Costuma morrer muita gente aqui no mar? Perguntou o Xande.


- Alguns! O problema é que demoram tempo a chegar a terra e quando chegam vêem desfeitos.
- Quanto tempo? Perguntou ele.
- Pode demorar três dias, uma semana ou duas.
- A espera pode ser longa, pensava o Xande.

Hesitou em falar-lhe dos arranjos do “Kunta”, mas acabou por contar-lhe os detalhes incluindo o
pormenor da possível presença do Presidente da República.

- Nós devíamos mandar uma Delegacia!


- Queres dizer Delegação. Corrigiu o Xandinho pensativo.

Não podia imaginar como é que tão ilustres visitantes como Ministro e muito possivelmente o Presidente
da República iriam encarar aquele bando de aborígenes descalços e mal vestidos, mas pagava para ver o
confronto entre a dor sentida daquela gente e o cumprir de lágrimas, elogios fúnebres e bem-dizências
costumeiras em tais ocasiões. Preferiu não proferir palavras, mas mediu o Arriscado de alto a baixo, o que
ele entendeu como uma reprimenda.

- Não iríamos vestidos assim… Prontificou-se a esclarecer.


- Pois assim é que deviam ir! Gostava de ver a cara deles. Disse o Xande.
- Era ofender os falecidos! Vamos com as nossas capulanas e panos de cerimónia.
- Então terão que ir a dois “Kuntas”: Um em casa da primeira esposa. Outra em Casa do Tio da segunda
que é em minha casa.
- “Daqui a mais tarde, é noite”… Disse o Arriscado olhando o mar. “Se os corpos vierem do fundo cá
cima durante o escuro, as pirogas não os vêm. Depois os ventos podem mergulha-los outra vez”.

Pela janela o Xandinho viu os pescadores e as mulheres da praia sentarem-se na areia. Todos se
preparavam para uma longa espera. O Dr. Graça Albergaria procurou na Casa da Praia qualquer espécie
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de bebida que lá houvesse. Com certeza que o Heitor tinha algumas reservas quanto mais não fosse para
trocar por outros produtos. Conseguiu encontrar duas garrafas de whisky, uma garrafa de rhum e três
grades de cerveja. Com a ajuda do Arriscado trouxe tudo para perto dos pescadores deixando uma garrafa
quase cheia em cima da mesa: O “Kunta” ia começar ali mesmo.

O Xande sentou-se na praia com eles, distribuiu as bebidas e ficou também a olhar o mar. A espera
talvez fosse longa.

As bebidas acabaram e o sol começou a pôr-se. De repente das pirogas vieram gritos e todas começaram
a remar na mesma direcção. Os pescadores agitados levantaram-se. De algum modo parecia que
entendiam a língua do mar. Houve uma esperança em breve desvanecida. As pequenas embarcações
tinham reduzido o vigor da remada e sob um céu rubro de fim de tarde, começaram a chegar a terra. Tinha
avistado algo que lhes pareceu um corpo mas quando se aproximaram viram um enorme peixe morto já
meio comido pelos seus pares.

- No mar tanto habita o belo como o horrível! Pensou o Xandinho!


- Agora só quando vier Lua Grande é que os corpos vão aparecer. Dizia um dos homens das pirogas.

A Lua Grande era daí a dois ou três dias. O Xande levantou-se e distribuiu pelos barqueiros a última
garrafa de whisky, mas eles tinham sobretudo fome. Ainda não tinham comido nada naquele dia na
tentativa de devolverem os cadáveres à terra. De todas as cubatas começaram a surgir panelas encardidas.
O Xandinho reparou então que a água doce que o Heitor tinha conseguido trazer do poço à beira da
estrada para os depósitos encavalitados nas árvores tinham melhorado substancialmente as condições de
vida daquela gente: Os homens que vieram do mar bichavam (4) para se meterem debaixo do chuveiro.
As mamanas e os velhos começaram a acender fogueiras enquanto as mulheres enfileiravam junto da
torneira de água para lavar os tachos.

Há hora da refeição o Xande ainda saboreou algum peixe fresco. Mas quis regressar a casa antes que a
noite caísse completamente.

O caminho para a Capital iria trazer algumas de surpresas. A morte do Heitor, ou melhor dizendo a
versão que corria sobre a sua morte, tinha incendiado as imaginações: Um branco abraçado a uma negra!
Este parecia ser o boato que corria do qual a Rádio Batuque dava notícia. De certo modo isto
correspondia a um anseio geral, não pelo que poderia parecer de conciliação racial mas por um
apaziguamento geral que há muito as populações almejavam. As pessoas desejavam efectivamente que os
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corpos aparecessem abraçados. Não só teriam a liberdade de romancear a história, como a afiguração do
abraço que consegue subsistir à própria morte correspondia à ânsia das gentes por uma paz perene.

Dava a impressão que à hora a que o Xandinho saiu da Barra, todo aquele magote que se juntara junto ao
mar na esperança da realização da fábula, tinha também decido abandonar a praia.

- Esta fila deve ir até ao primeiro posto de controlo. Pensava o Xande. O pior é que depois do primeiro,
ela irá de novo formar-se até ao segundo, e assim sucessivamente até se passarem os oito ou nove que
tinha contado à vinda para para a Barra.

Segundo as suas contas isto daria um posto de controlo a cada três quilómetros, e neste momento a sua
grande incógnita era o porquê daquele súbito aumento de policiamento. É certo que depois da chacina
junto do aeroporto, o ambiente tinha-se degradado imenso. Mas essa era a causa mais próxima que lhe
ocorria para justificar o incremento da vigilância. Ao mesmo tempo pensava que em Kabanda as coisas
mudam muito rapidamente e algo se poderia ter passado que escapava ao seu entendimento. No para-
arranca a que vinha a ser sujeita a sua condução descortinou que uma garça pousou no embondeiro do
velho que vendia vinho de palma e decidiu encostar o carro. Não tinha sido só ele a ter esta ideia: Meia
dúzia de carros estavam igualmente estacionados e os viajantes repousavam os nervos a golpes de seiva
de palmeira. A noite principiava a desenhar-se e as raras viaturas que estavam equipadas com luzes,
começavam a acender os faróis. Sentia-se no ar um certo peso de fatalidade a que o Xande não queria
atribuir só à tragédia com que o mar ferira os amores adúlteros do Heitor e da Sandrinha.

Tinham-se formado dois grupos: Um discutia a possível ligação familiar entre a Sandra e o Presidente da
Republica e já havia mesmo quem conhecesse os pais dela que ainda viriam a ser aparentados em linha
directa com o Chefe Supremo da Nação. A fábula ia mesmo mais longe: A mãe dela teria sido sua
enfermeira quando ele se feriu numa emboscada durante a Guerra pela Libertação Nacional.

O outro grupo era mais terra a terra e falava de coisas mais comezinhas como o desusado movimento de
trânsito entre a Barra e a Capital. As opiniões entre estes também eram as mais desiguais: Uns atribuíam-
no à popularidade do Heitor. Outros aos acontecimentos da noite passada na Capital que o Xandinho
ignorava completamente. Segundo eles, corria o boato de que na noite anterior a casa dum industrial
Kabandino afecto à guerrilha teria sido denunciada às forças governamentais e tinham sido descobertos
planos precisos para um assalto ao Palácio Presidencial. Havia mesmo entre eles quem tivesse
presenciado a invasão da casa do homem por parte das forças do governo.

Para o Xande era difícil aquilatar da veracidade destes rumores que pela sua inconsistência mais lhe
pareciam notícias emanadas pela Rádio Batuque do que outra coisa mais credível. Certo, certo é que a fila
de carros se mantinha e não dava sinais de abrandar. Por entre dois goles de sura a boatagem não parava:
Agora afirmava-se que em Vila Estanislau (último e primeiro reduto dos rebeldes), se concentravam
tropas para atacarem a Capital e que nos seus arredores dois generais da guerrilha tinham sido
assassinados o que teria exaltado os ânimos daquele movimento.

Face à quantidade e variedade de atoardas tudo levava a crer que nas últimas doze ou vinte e quatro
horas a situação em todo o território de Kabanda se teria alterado substancialmente.

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O Xandinho porem, não se poderia ter apercebido disso, ocupado que estivera com o problema
Heitor/Sandrinha. Toda a manhã tinha sido absorvida pelo Katatúlio com quem almoçara e a seguir tinha
vindo directamente para a Barra. Admitia a possibilidade de o Ministro saber algo do que se estava a
passar, se é que alguma coisa se estava a passar, mas ter-lhe-ia ocultado o sucedido. Nas últimas quarenta
e oito horas os acontecimentos tinham cortado o Dr. Alexandre Albergaria do resto do Mundo. De
qualquer modo o fio dos seus pensamentos era muitas vezes interrompido pela perspectiva da chegada da
Susaninha.

Um outro carro de matrícula diplomática tinha encostado à berma junto ao ponto de venda do vinho de
palma. Era o Presidente da Cruz Vermelha Internacional que tinha estado a jantar na casa do Heitor na
noite em que este se esquecera completamente das suas obrigações familiares.

- Estava na Barra? Perguntou o Xandinho.


- Estive. Vim tentar perceber o que realmente se tinha passado.
- Que coisa terrível, disse-lhe o Xande…

A Cruz Vermelha tinha delegações em quase todas as cidades e vilas de Kabanda e mesmo naquelas que
estavam em poder dos rebeldes tentava ter algum foco de notícia. Normalmente todos os dias, estes
postos comunicavam via rádio. Alem disso a natureza do seu trabalho implicava relações estreitas com as
mais diversas igrejas e convicções religiosas representadas no país, o que fazia da organização uma fonte
de informação importante.

O Presidente da Cruz Vermelha confirmou ao Xandinho a morte dos dois generais rebeldes mas afirmou-
lhe que também teria havido mortes do lado governamental.

- Pior do que isso! Dizia ele. Agora ambos os lados reclamam a devolução dos cadáveres.

O Xande estava baralhado. A sua má relação com a morte, neste ponto era saudável:

- Cadáveres são cadáveres… Porque é que não os devolvem à origem?

O Presidente riu de tanta ingenuidade:

- Porque ambos os lados temem que os rituais fúnebres se transformem em movimentos populares ou
instrumentos de propaganda política.

O Xandinho nunca tinha pensado em tal coisa e ficou mudo a magicar aquele imbróglio todo.

- Mas a Capital está calma?


- Esse é outro problema. Como deverá saber tem havido muitos assaltos estes últimos dias.

Em resumo o Presidente da Cruz Vermelha explicava os distúrbios com este longo discurso:

“Na sequência dos acordos de Al Batresse algures no Norte de África, ambos os lados se
comprometeram a desmobilizar parte das tropas. Tratava-se de gente que há mais de uma década tinha
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sido arrancada às suas famílias e aldeias e que durante esse tempo não tinham feito mais nada senão dar
ao gatilho. Para mim nesta guerra, foi uma geração pelo menos que se perdeu! Sobe este aspecto as
consequências duma futura desmobilização geral estão ainda por avaliar. A Paz irá ser um longo exercício
da proverbial paciência deste continente se não for só um intermezo efémero entre dois ódios como é o
costume. Aqui a guerra e a paz têm sido fenómenos cíclicos como as monções. Impedidos de regressarem
às suas aldeias, quer por que estas terem sido riscadas do mapa conjuntamente com as famílias, ou porque
os dez milhões de bombas anti-pessoais determinam esta impossibilidade, aos desmobilizados resta o ócio
dos acantonamentos onde reina uma organização social que tem mais a ver com a guerra, do que com
qualquer outro modelo qualquer. Nestas condições os desmobilizados de ambos os lados recolheram-se
aos subúrbios onde a chicha e os comeres escasseavam. Nos subúrbios juntaram-se aos desertores e
refractários e praticamente formaram um terceiro partido de obediência à máxima: Nem Deus! Nem
Chefe”

Ao Xandinho faltava-lhe paciência para continuar a ouvir aquele longo discurso académico. Enquanto o
Presidente da Cruz Vermelha divagava pelas lucubrações sinuosas do seu pensamento político, uma
criança rota e cara agradavelmente suja aproximou-se do Xande com uma enorme gaiola artesanal que
encarcerava um papagaio cinzento de cauda vermelha. Pôs-se de cócoras para examinar o bicho com o
miúdo a assegurar-lhe que a ave era fluente em Quipango. Propôs-lhe a troca do pássaro e respectiva
habitação por três grades de cerveja. Depois de alguma negociata carinhosa e da intervenção pachorrenta
do tasqueiro a seu favor, conseguiu encerrar o negócio pagando ao kidengue (5) dez dólares pelo
papagaio e pela gaiola.

O Xandinho detestava ver aves enjauladas. Mas um pássaro palrante era qualquer coisa que não ofendia
a sua moral.

- Se ele diz algumas palavras em quipango de certeza que lhe vou ensinar alguma coisa em português.
Pelo menos “Ora! Ora”! Iria ser capaz de dizer. Pensava o Xande. Com um bocado de paciência poderia
mesmo dizer a frase completa: “Ora! Ora! O que eu quero é o meu!!!.

O Alexandre detestava esta expressão, até à raiz dos cabelos mas ao mesmo tempo gozava com o
arrazoado. No fundo ela representava o choque da devastação de quaisquer resquícios de humanidade a
que assistia em Kabanda, com a sua cultura judaico-cristã. Para ser verdadeiro para consigo mesmo a
expressão cheirava-lhe a populacho barato e era mais fruto da forma como os seus princípios foram
desbaratados quando confrontados com a realidade que estava a viver, do que a qualquer outra convicção
ou princípio por que se regesse. No fundo a frase para ele não era mais do que uma concha onde se
abrigava das agressões a que a miséria e o sofrimento generalizado dos que o rodeavam o submetiam no
dia a dia: Ora! Ora! etc.…Era para ele a tradução mais baixa a que o individualismo pode chegar.

“Desertores, refractários e desmobilizados armados, continuava o Presidente da Cruz vermelha, à noite


descem sobre a cidade encorajados pelo escuro, pela sura ou pela marijuana, confraternizam com os
camaradas de armas que ficaram nas linhas e de madrugada partilham com eles o produto dos saques”.

A fila dos carros não havia maneira de amainar, o que possivelmente quereria dizer que o controlo de
passageiros e bagagens estaria a ser feito à minúcia, coisa a que em princípio ele não teria que se
submeter sem a presença dum funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros, mas só de pensar que
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algum soldado mais tacanho o poderia à força bruta obrigar a esta violação dos seus direitos descorçoava-
o.
A noite africana tinha descido completamente o que tornava o percurso perigoso sobretudo pelo estado
em que se encontrava a estrada.

Já não ouviu o resto do discurso que o Presidente da Cruz Vermelha se preparava para lhe fazer e deixou
que as pérolas enfatuadas que já tinha preparadas para lhe saírem da boca morressem ali mesmo. Para
espanto do homem, o Xandinho decidiu arrepiar caminho e ir dormir à “Casa da Praia”. Antes porem
pediu-lhe para informar o Renault do seu paradeiro e que no dia seguinte estaria logo de manhã na
Delegação.

No carro o papagaio começou a emitir alguns sons completamente ininteligíveis. Chegou a duvidar se
eram vocábulos pronunciados numa língua estranha, ou se o bicho imitava quaisquer ruídos ouvidos nas
matas. Fosse o que fosse, desejou que aquele palrar não tivesse nenhuma conotação política que lhe
pudesse trazer dissabores se ouvido por escutadoiros entendidos na matéria. Aproveitando o facto de o
bicho estar em maré palrante começou ainda no caminho de regresso à Barra a tentar ensinar-lhe a
cantilena do “Ora! Ora!”, mas sem quaisquer resultados práticos.

Quando chegou ao cimo da picada que levava à praia, parou a contemplar a imensidão do mar. A Lua
quase completa reflectia-se nas águas bem perto da linha do horizonte. A sua luz enchia o mar por inteiro
e transbordava até a um pouco dentro do areal. Depois a escuridão fechava o resto da praia que só se abria
à força dos lumes de quatro ou cinco fogueiras teimosamente acesas que pontuavam o areal.

Abriu os vidros do carro para sentir o fresco da brisa e o cheiro da maresia.

- Ora! Ora! Ia dizendo com cara de inútil ao louro que estava dentro da gaiola a palrar coisas obscuras.

Pensou carinhosamente no Heitor e na Sandrinha: Também ele quereria ter vivido ali alguns ensejos de
aninho e quietação. Imaginou como seriam diferentes as ternuras da Sandra misturadas com o débil
marulhar ritmado das ondas que ouvia à distância. Deixou o carro escorregar desligado pela ladeira
abaixo como se tivesse medo de penetrar naquele quase silêncio que o ruído das águas impunha. Papagaio
voltou a soltar um grito agudo que quase o aturdiu!!!

- Ora!!!! Ora!!! Respondeu-lhe o Xandinho na esperança de um dia lhe ensinar a cantilena completa.

Á medida que se aproximava do mar via distintamente a silhueta do Arriscado que tinha surgido ao
fundo da picada. Estacionou o carro e saiu com a gaiola na mão. A sua figura devia parecer ridícula.
Talvez por causa do almoço com o Ministro decidira vestir terno completo e pôr gravata o que raramente
acontecia e ali estava ele, noite cerrada, a chegar a uma praia africana, arreado com fato e gonilha a
acartar um pássaro enjaulado. Quando se aproximou o Arriscado pediu-lhe um cigarro.

- O trânsito está impossível! Disse o Xande enquanto procurava o tabaco no bolso sem saber o que fazer
com a gaiola. Decidi voltar para trás e ficar aqui convosco.
- Já estamos quase todos deitados! Disse o Arriscado.

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O Xandinho olhou à volta e viu a Nossa Senhora dos Mares iluminada por algumas velas devotas
pousadas aos pés. O Jorge seguiu-o com os olhos:

- É isto a vida! Disse referindo-se à estátua ou como se a morte fosse alguma coisa do outro mundo. Vais
dormir na casa do Mestre? Perguntou.

Caminharam vagarosamente até à vivenda da praia. Dentro, conhecedor dos segredos da casa procurou
uma lanterna e com ela fendeu o escuro. Em cima da mesa no andar debaixo, ainda estava a garrafa quase
cheia de whisky.

- Vamos continuar o “Kunta”! Disse o Xandinho.

Ficaram os dois em silêncio a acabar a garrafa. Por fim o Arriscado falou:

- Sabes o que dizem para aqueles lados? Apontou na direcção da floresta que as sombras sugeriam para
lá da estrada. Que vão atacar a Capital!

A adivinhação da tragédia e o peso do álcool obrigaram-no a pousar a cabeça no tampo da mesa:

- Que sede!!! Exclamou tornando a servir-se de whisky.


Aquela figura esguia, esfarrapada com a cara alindada por um empolado bigode donde começavam a
surgir alguns fios brancos, sofria com tudo: Atormentavam-no a vida parca que lhe concederam para
viver, a morte dos protegedores esclarecidos e a visão da desgraça que as vozes das matas diziam
aproximar-se.

- De que lado estás tu? Perguntou o Xande.

Era a primeira vez que punha o caso directamente a um “Kabandino”. Achava que era uma questão do
foro íntimo de cada um e que não tinha o direito de violar essa intimidade. Por outro lado, as causas em
contenda eram nebulosas na sua essência e na falta de princípios, poderiam ser simplesmente atribuídas a
questões tribais ou a ódios antigos. O Arriscado levantou a cabeça do tampo da mesa e disse coçando a
garganta:

- Que sede!!! Estou do lado do peixe e do lado do mar.

Era óbvio que não queria falar do assunto.

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XI

No dia seguinte os olhos do Xandinho foram batidos pelos primeiros raios da manhã que perpassavam
através das folhas de banda (6) que formavam as paredes da “Casa da Praia”. Acordou vestido, estendido
na cama do Heitor e da Sandra a olhar pela janela que emoldurava o mar. As primeiras luzes do dia eram
quentes mas um nevoeiro fechado aprofundava o silêncio daquela hora morta. Da janela viam-se corpos
musculados que começavam a preparar a faina. As mulheres com bandos de quidengues(5) atrás pareciam
vaguear na areia ao sabor da bolina cálida, transportando nas mãos as mais diversas vasilhas para a
recolha da água essencial para os primeiros afazeres da manhã. Algumas, já regressavam dos pontos de
água que o Heitor tinha montado, equilibrando prodigiosamente à cabeça os mais variados púcaros com o
precioso líquido.

O Xandinho cheirou a sovaqueira e os olfactos puseram-lhe uma cara enjoada. Tirou a camisa e a
gravata com que se tinha deitado e desceu ao rés-do-chão à procura de alguma coisa que o ajudasse a
debelar a ressaca. Tinha misturado o vinho de palma já bem fermentado, com o whisky e isso tinha-lhe
sido fatal para os espíritos. O Arriscado tinha-lhe mandado a mesma miúda que trabalhava para o Heitor e
para a Sandra no caso de ele necessitar alguma coisa de alguma coisa durante a noite. Tudo indicava que
ela tinha dormido embrulhada numas mantas no andar debaixo e agora estava sentada silenciosamente
num banco com a cabeça debruçada sobre a mesa. Era como se sentisse também a morte, habituada que
estava aos naufrágios de pescadores aparentados.

- Sabes se há café? Perguntou o Xande. Ela arrastou-se com vagares tropicais, acendeu um fogão de
campismo e começou a confeccionar um pequeno-almoço simples.

O Xandinho demorou os olhos nuns desenhos pousados sobre a mesa. Eram apenas rascunhos dos
sonhos do Heitor e da Sandra. Fosse porque sentisse movimentos na casa ou por qualquer outra razão, o
Arriscado assomou à porta e pediu licença para entrar:
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- Bom dia!
- Bom dia! Disse o Xande. Queres café?

Estavam os dois sentados frente a frente. A miúda serviu duas canecas de café bem quente que ambos
começaram a engolir com os olhos pregados no mar como se tentassem rever a tragédia.

- Será que eles hoje aparecem? Perguntou o Xandinho.

O pescador torceu o nariz fazendo negaças seguidas:

- Para mim só daqui a uns dias quando aparecer a Lua Grande. Tem sido sempre assim com os afogados.
- Sabes que o tio da Sandrinha, o tal que é Ministro disse-me que era um problema arranjar caixões.
Parece que não há madeira para os fazer e provavelmente terão que ser importados. Disse o Xande com os
olhos postos no vazio enquanto sorvia a taça de café quente.
- Já nem a morte conhece o futuro! Desabafou o Arriscado. Aqui também temos esse problema mas
ninguém se importa. A princípio enterrávamos os nossos mortos embrulhados num cobertor ou num
lençol… Mais valia deixá-los no mar… Nessa terra molhada que lhes comeu as vidas. Mas agora
arranjamos sempre madeira como vês aqui em casa. Apontou para o madeirame da Casa da Praia e para o
sobrado do andar superior.

- Como conseguem isso se a vinte quilómetros daqui não há madeira para caixões?

O Arriscado olhou em volta com um ar conspirativo e mandou a miúda sair. Era óbvio que alem do mais
sabido era o Chefe incontestado daquela pequena tribo e nessa qualidade toda a gente lhe obedecia.
Quando ela desapareceu na ombreira da porta inclinou-se até à orelha do Xande e com ar sigiloso
bichanou-lhe:

- Trocamos tábuas por peixe!


- Quem tem tábuas no areal?

O Arriscado apontou para a floresta do outro lado da estrada, que começava a esverdear por trás do
alvorecer e respondeu-lhe com dolência:

- Os da guerra! Esses têm tudo.

Retirou-se de perto do ouvido do Xandinho e voltou a chamar a rapariga sempre a acenar com a cabeça
em gestos afirmativos como se continuasse a conversa.

O Xande sentiu desassossego:

- Não me digas que tens a guerrilha ali detrás?

Por nenhuma razão especial, ou pelas notícias que a Rádio Nacional ou a Rádio Batuque difundiam,
considerava os guerrilheiros uma súcia. Sabia lidar com os soldados regulares a quem comprava o
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descanso com uma cerveja ou um maço de tabaco, mas nunca tinha contactado a horda em sublevação
que diziam ser obstinada.

- Se não são a súcia como lhes chamas, são os outros… Eles e os outros, ou os outros e eles têm tudo!!!
São os donos da nossa míngua. Pior que isso, sabem que estamos aqui!!! Sabem que temos mortos e
precisam de peixe de preferência seco.

Tornou a inclinar-se para o Xandinho com o mesmo ar sigiloso:

- Estão a ouvir-nos… Saberão quando os corpos irão aparecer e dos dois lados vão mandar delegacias
disfarçadas de pesamerosos!!! Atalaiam-nos como o grifo espia os apagados.

Pelo tom de voz o Xande estremeceu com aquela conversa medonha.

- Sabem tudo! Sabem que estás aqui! É com peixe que compramos arroz e óleo. Por isso é que eu estou
do lado do mar. Se precisares de madeira diz…
- Tenho medo!!! Balbuciou o Xandinho.

Na praia ouviu-se um alarido e os três correram para a porta. O mar estava a trazer o barco do Heitor
para a praia.

- O que é que a primeira esposa quer fazer com o barco, as roupas, as canas de pesca e as coisas dele?
- Não sei! Respondeu o Xande. Se fosse comigo não queria nada. Trocava tudo pelas tábuas dos caixões!

Pela primeira vez desde que o Heitor abalara o Xandinho viu um sorriso ainda que amarelo na cara do
Arriscado. O cacimbo da manhã tinha amarfanhado as flores que estavam aos pés da Nossa Senhora dos
Mares e uma brisa apenas mais forte abatera as velas que os devotos tinham acendido na noite anterior.

Era muito cedo mas meteu-se à estrada para Kabanda. A conversa com o Arriscado tinha-o feito sentir
intranquilo e desejava chegar a casa para encontrar o que pensava ser porto seguro.

- Tenho que tomar banho e mudar de roupa antes de ir para a Delegação! Dizia a si próprio para disfarçar
o cagaço.

Nos postes de controlo os guardas dormiam com as armas encostadas aos bancos improvisados onde
estavam estendidos.

Ao princípio da Avenida Ho-Chi-Min havia um movimento desusado: Pequenos grupos de mulheres


anafadas ou vistosas exibiam roupas coloridas e com gestos e alaridos apontavam todas na mesma
direcção: A casa do Xandinho.

Até ali, a avenida era dos poucos bairros da cidade que mantinha um aspecto lavado. Da noite para o dia,
grupos de comerciantes Kabandinas tinham estabelecido pequenas bancas que vendiam arroz em dozes
medidas por latas, montinhos de tomates, refrigerantes, ginguba etc. Uma Senhora mais aperaltada de
cócoras e volumosa touca de cores garridas, tinha aberto uma “Casa de Câmbio” e sobre um pano de
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ou
Katatúlio um Homem de Estado

padrões vivos expunha dólares e moedas estrangeiras variadas. A caminho de casa o Xandinho abrandou a
marcha para medir bem a razão daquela nova “zona comercial” e por momentos pensou que o VII
Congresso tinha aberto uma sucursal na sua rua.

Eram sete da manhã quando chegou a casa e para grande pasmo seu, em frente ao portão estava
estacionado o carro do Ministro conjuntamente com três enormes motas BMW, impecavelmente brancas
pertencentes aos batedores. Estes, com tiras de luto ostensivas no braço esquerdo, e de caras amuadas
passeavam dum lado para o outro da avenida. Quando o carro se aproximou de casa, obedecendo a uma
voz de comando que o Xandinho ouviu distintamente dentro do carro apesar do barulho do ar
condicionado, os três soldados correram para o portão e saudaram-no militarmente com uma continência
descomposta.

- Que é isto? Perguntou ao papagaio.


- Ora! Ora! Respondeu ele para admiração do Xandinho perante a capacidade de aprendizagem e
fluência do bicho.

Ainda sem saber o que o destino lhe tinha marcado o Dr. Alexandre Graça Albergaria abotoou no rosto
uma cara vaidosa mas reservada. Apitou três vezes e o Jorge escancarou-lhe os portões do jardim. Ao
entrar em casa estranhou ver tão cedo o João Paulo que se apressou a vir ajudá-lo com a gaiola. Curvava-
se várias vezes em ângulo recto e murmurava de forma atabalhoada:

- Patrão desculpe! Patrão Desculpe!

O Xandinho estava longe de saber o que se estava a passar, mas ao entrar no salão não pôde deixar de se
apavorar com a desordem reinante: Copos sujos e meio cheios pontuavam as mesas; pontas de cigarros
enchiam os cinzeiros e pratos com restos de comida duvidosa estavam dispersos por todo o lado. No sofá
comprido, completamente escangalhado dormia o Katatúlio.

O João Paulo pôs o louro em cima da mesa e enquanto lhe servia uma ração de fruta local ia repetindo:

- O Patrão desculpe! O Patrão desculpe!


- Ora! Ora! Disse o papagaio!
- Cala-te! Gritou-lhe o Xandinho!
- Cala-te! Ripostou o engaiolado numa clara manifestação de aprendizagem precoce.

O Ministro não acordou. O Xandinho foi para a cozinha com o João Paulo. Instintivamente falava baixo
para não acordar o hóspede.

- Ele apareceu aqui por volta das seis da tarde a dizer-me que já tinha falado com o Sôtor, mas eu vi logo
que era “mentireza”. Deu-me dinheiro e mandou-me fazer comida para dez pessoas. Depois chegou isto
tudo num carro da Presidência (mostrou-lhe dúzias de pratos e copos de baixelas de luxo)... Devem ser
preparativos para o “Kunta”! Que havia de fazer?

O Xande olhou desolado para a desordem e não pode deixar de pensar na Susaninha.

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Katatúlio um Homem de Estado

- Trouxeram também vinho (mostrou-lhe caixas de Pririquita)! Que havia de fazer? Continuava a
perguntar.

Voltaram para o salão. O Xande estava desolado com a esterqueira.

- Fizeste bem! Disse ele desculpando o empregado.


- Cala-te! Repetiu o papagaio. Mas o Ministro não acordou com o berro estridente do louro.

- O quarto de banho está limpo? Perguntou ao João Paulo.

Foi para dentro. Sentado na cama meditava nas suas funções de diplomata. Pensou no Heitor e na
Sandrinha e deu-lhe vontade de chorar. Vestido, de banho tomado, passou de novo pelo salão sem ligar ao
sono profundo do Ministro. Aproximou-se da gaiola do louro e com o dedo indicador fez-lhe uma festinha
na cabeça:

- Que vida! Disse-lhe.


- Cala-te! Palrou-lhe o papagaio.

Encaminhou-se para o carro. Não lhe restava mais nada senão deitar-se na cama que tinha aprontado. O
que a princípio lhe parecia ser só uma incursão inofensiva por outras culturas estava a tornar-se num
pesadelo desmesurado. O circo estava montado e ao Xandinho cabia-lhe o papel de arlequim. Os
acontecimentos tinham-no ultrapassado e ele perdera a intendência da situação. Maldisse a sua vida e
lamentou inutilmente o caso de ter dormido na Barra.

A caminho da Delegação pensava que se não tivesse passado a noite na “Casa da Praia” provavelmente
aquela razia da sua intimidade não se teria verificado. Mordia-lhe a curiosidade para saber quem teriam
sido os eminentes visitantes que tinham feito todos aqueles desperdícios na sua casa e sentia-se queixoso
por o Katatúlio ter disposto, naquele estilo ostensivo, do seu acolhimento leal. Pensava no discurso do
Presidente da Cruz Vermelha e estava curioso para saber qual teria sido a evolução da situação política.
Em Kabanda tudo se movia rapidamente, mas tudo acontecia de noite. Logo pela manhã as coisas
estavam calmas, mas as gentes sabiam que a organização era só aparente.

A avenida Ho-Chi-Min até há dois dias um paraíso dentro da bulha da cidade, era agora uma autêntica
feira onde não faltava quem vendesse animais bravios como macacos, camaleões e iguanas. O Xandinho
desejava ardentemente que a Lua Grande trouxesse os corpos pondo assim um ponto final naquela
palhaçada. No entanto estava inquietado.

Era cedo para ir para a Delegação e decidiu ir a casa da Betinha. Talvez a apanhasse antes de ela ir para
o emprego. Talvez também estivesse em casa a viver lutos ou à espera de notícias da Barra sem saber que
tinha de aguardar pela Lua Grande.

O enigma dos caixões preocupava o Xande. Queria saber se a família do Heitor tinha soluções para ele.
Mas havia ainda outro problema a ser resolvido: Era a abertura das covas! A guerra absorvia a força de
trabalho dos homens e não havia coveiros disponíveis. Os que exerceram a profissão de enterrar os
mortos tinham desertado por os salários serem ridículos e incompatíveis com as bocas que em casa
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reclamavam por mais pão. Agora dedicavam-se ao comércio ou à candonga que em truques vivaces lhes
perfaziam um mês de trabalho.

- Morrer em Kabanda é uma chatice! Dizia o Xandinho aos seus botões.

Lembrava-se que toda a mixórdia onde estava metido começara numa tarde quente quase no desfecho do
Sol, com o dedo do pé da Sandrinha a coçar-lhe o nariz. Depois fora o deleite que o acometera. Agora,
sentia-se atado de pés e mãos e a normalização da sua vida estava dependente de dois enterros. O
problema era que para realiza-los só existiam dois mortos! Não havia nem coveiros, nem caixões, nem
cadáveres. De resto (pensava o Xandinho), mais “kunta” menos “kunta”, mais farra menos farra os
problemas resolviam-se. O Ministro estava absorvido com o “Kunta” mas despreocupado com os
assuntos dos caixões e das covas.

O Xande já não chorava a morte do amigo nem tinha saudades dos momentos de afecto da Sandrinha,
que a Luísa preenchia perfeitamente sem as encrencas das drogas, do adultério ou envolvimentos políticos
complicados que mexessem com a sua vida pessoal.

- Ora! Ora!!! Disfarçava estas agonias imitando o papagaio.

A Betinha recebeu-o com os olhos vermelhos e bogalhudos. A mãe, uma velha senhora, passeava no
quintal a dignidade dos seus cabelos brancos e de vez em quando com a certeza que já tinha visto de tudo
na vida aproximava-se da Beta para a acarinhar na cabeça.

- Ainda por cima deixou-nos sem podermos movimentar um tostão da conta no estrangeiro! Dizia a
Beta.
- Porquê? Perguntou o Xande.
- Por descuido! A conta estava só em nome dele. Não temos um chavo em casa.

Definitivamente, tinha-se acabado o azeite na candeia.

- Estamos a viver de esmolas. Continuou a Beta. Isso que vês aí (apontou para uma dúzia de grades de
cerveja) é ofertas de amigos para o “kunta”. Para mexermos na conta bancária tem que haver uma
habilitação de herdeiros. Mas para isso tem que haver um morto. Para já há só um desaparecido. Alguém
que saiu de casa e nunca mais voltou.

Era cedo mas começaram a chegar visitas. Vinham “pesamar” (3), logo ao aquecer da manhã. A Betinha
distribuía a todos, cerveja a granel. Depois de beberem, os pesarosos compunham uma cara triste mas
logo a seguir falavam de negócios, de ajustes e tratos.

O Xandinho concluiu que a Beta não tinha soluções nem para os caixões nem para as covas.

Quando chegou à Delegação ia desvairado e pronto a desabafar com o primeiro que lhe aparecesse. Não
se conformava que a sua casa tivesse sido tomada de assalto daquela forma. Amaldiçoou o Vladimir
Illitch em nome de quem tinha embarcado naquela aventura e maldizia-se a si próprio por não ter feito
negaças aos olhos verdes da Sandrinha. Dentro da Delegação o ambiente estava tenso e ninguém se
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encontrava disponível para ouvir os seus dislates. A D. Helena, que normalmente se abria em sorrisos
tinha uma cara fechada como se tivesse acabado o mundo.

- Estão todos em reunião. Disse ela apontando para umo salão donde vinham vozes.

O Xandinho entrou e acto contínuo o Delegado levantou-se com uma cara consternada e foi direito a ele:

- Os meus mais sentidos pêsames! Disse o Senhor Paterson.

O Xande estava distraído a olhar para a solenidade da reunião e sem saber porquê agradeceu vestindo o
rosto de dor. “Pêsames porquê”? Perguntava-se ele. “Não estou de luto por ninguém”… Em quase um ano
era a primeira vez que via o pessoal superior da Delegação em sessão magna. Encaminhou-se para a
cadeira vazia ao lado do Renault e reparou que à sua volta todos tinham afivelado um ar grave.

- Já sabe? Perguntou-lhe o irlandês.


- Não sei de nada! Respondeu o Xandinho.
- Então vou começar do princípio porque a situação é grave. Ouça! Dr. Alexandre: “Toda a situação
política em Kabanda está muito degradada. Neste preciso momento a residência do Embaixador Britânico
está cercada com todo o seu pessoal no interior. Há mortos no Hotel Flor da Esperança e estabeleceu-se
uma ponte aérea com a Europa. O paradeiro do Chefe da guerrilha é absolutamente desconhecido e uma
enxurrada de acontecimentos violentos varreram todo o país.

Pela primeira vez o Xande notou que no centro da cidade o guinchar das sirenes dos carros militares e da
polícia especial, era constante. Ouviu-se um grande estrondo na rua e todos correram para a varanda do
salão principal da Delegação. As ruas tinham ficado subitamente desertas e a vida da Capital parecia
obedecer a uma calma movediça.

- “Durante a noite de ontem (continuou o Delegado), muitos civis colocaram-se sobre protecção da ONU
e a palavra de ordem de Nova Iorque é a de se proceder o mais rapidamente possível à evacuação dessas
pessoas. Sabe-se também que os guerrilheiros mantêm reféns 50 russos e 30 brasileiros. Todos estes
dados vieram à tona hoje à seis da manhã numa reunião de emergência entre Embaixadores e Chefes de
Missão acreditados no país”.

- Porquê tudo isto tão de repente? Perguntou o Renault.


- Nada acontece de repente! Pontificou o Delegado: As causas próximas são conhecidas. São estas que
nos dizem particularmente respeito: Para se chegar a Vila Estanislau, tem que se subir um pequeno monte
por uma picada cheia de curvas e contracurvas. Foi num desses cotovelos que morreram dois generais
rebeldes e dois brigadeiros governamentais. As informações que temos, é que ninguém sabe o que faziam
ali os generais Talimba e Valnoi, mas presumimos que vinham da mata para uma reunião máxima em Vila
Estanislau, onde estava o Comandante em Chefe da guerrilha. Sabemos que vinham com um grupo de
guarda armada. Também ninguém sabe o que faziam nas redondezas os dois brigadeiros das tropas
regulares, Brasa e Valentim. Presume o Embaixador Russo que tenham ido fazer um reconhecimento da
Zona do Planalto para a preparação duma ofensiva generalizada a Vila Estanislau. O que se sabe ao certo
é que as duas forças se encontraram e estourou a guerra. Mais tarde outras forças juntaram-se a estes

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grupos e o conflito generalizou-se a todo o Planalto. Foi tudo muito simples mas morreram os dois
generais e os dois Brigadeiros”.

O Xandinho com a experiência que tinha vivido na altura do assalto à “Loja Franca” imaginou a
violência do embate.

- E civis? Perguntou ele.


- “Não sabemos! Continuou o Delegado. Mas aquela zona do interior é das mais densamente povoadas
de Kabanda, onde se juntam os povos N’Alinta e Palunda e presume-se que tenha sido um massacre.
Ambos os partidos tinham semeado minas anti pessoais nos arredores e durante a fuga dos civis aos
militares, calculam os Embaixadores Russo e Americano que tenha havido mais de dois mil mortos num
só dia.

- O Russo e o Americano confirmam esse número? Perguntou o Xande.


- “São sobretudo números do Russo e do Americano”!!! Frisou bem o Senhor Paterson.
- Já ninguém obedece a ninguém! Exclamou Fraulein Waltraude e toda a gente se espantou de ouvir a
sua voz a massacrar os erres dum inglês deficiente.

O Xandinho comunicou que tinha deixado o Ministro do Plano em sua casa e propôs ir embora para ver
se junto dele conseguia mais informações. O Delegado interrompeu a reunião dizendo que queria
continuar da parte da tarde.

- Quero-os todos aqui às quinze horas. O mais importante está para vir! Mas Já agora Dr. Alexandre: O
que faz o Ministro do Plano em sua casa?

Já estavam todos de pé. O Xandinho meteu o braço nos braços do Renault e do Delegado e levando-os
até à varanda bichanou-lhes a história do “kunta”.

- Se não fosse trágico tinha graça! Disse o Renault.

Quando entrou de novo na Avenida Ho-Chi-Min, pôde ver que o circo comercial que fora montado de
manhã tinha desaparecido. A cidade tinha medo: Perdera as cores das indúvias das mulheres e o vaivém
das pessoas com guarda-sóis hasteados praticamente tinha desaparecido. Quando chegou a casa respirou
de alívio: O João Paulo tinha posto ordem na balbúrdia, e o Ministro estava sentado à mesa do salão de
costas para a porta, abarcado em papéis conjuntamente com a sua secretária. Os dois vociferavam e
discutiam aos berros pontos dos escritos. Ninguém deu pela entrada do Xandinho de envolvidos que
estavam na natureza da papelada. O Xande desde miúdo que detestava gritos.

- O homem tomou a palavra hospitalidade à letra. Disse para consigo, dirigindo-se ao louro: “Quero o
meu”! Gritou-lhe.
- Cala-te! Respondeu-lhe o papagaio.

Os berros do Xande e do animal puseram fim aquela discussão. O Katatúlio, finalmente deu-se conta da
presença do dono da casa:

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- Bom dia Alexandre!


- Bom dia Victor. Respondeu ele meio amuado.
- Tive de a chamar aqui a casa (apontou para a secretária) com a papelada urgente do Ministério. A vida
não pode parar mas não sei como a minha cabeça aguenta. Ontem tive quatro Ministros aqui em casa com
as respectivas famílias. Queriam ser os primeiros a dar-me os pêsames. Se o Camarada Presidente cá
estivesse eu diria que era uma reunião do Conselho de Ministros.
- Bem comida e bem regada! Ironizou o Xandinho.
- Claro! Temos que respeitar as nossas tradições! Esclareceu o Katatúlio. Os “kunta” são assim.

O Xande sentou-se no sofá ainda quente do corpo desleixado do Ministro, e foi directo ao assunto.

- Diga-me uma coisa Victor: Que pensa do momento político que se vive em Kabanda?

O Ministro mediu a secretária de alto a baixo. Era óbvio que não queria falar na frente dela. Deu duas
voltas à mesa coçando o queixo como se duvidasse se devia conversar com o Xande sobre o assunto:

- “Viu os copos e as baixelas que trouxe”? Desviou ele a conversa: “Foi o Camarada Presidente que fez
o favor de os emprestar. Como sabe que a minha casa ainda não está disponível para estas coisas, resolveu
dar uma ajuda e mandou cá um carro com tudo isto. É muito chegado aos amigos”…

Com estas deixas amansava o pêlo do Alexandre.

- Mas não me respondeu à pergunta! Insistiu o Xande.

O Ministro continuou às voltas à mesa. Deu uma palmada no rabo da secretária e ordenou-lhe:

- Vai tratar desses assuntos!

O Xandinho estava a ficar irritado e para se acalmar destinou ir para o quarto e deixá-los sós.

“É impressionante como a morte nas redondezas altera completamente o comportamento das pessoas”…
Pensava enquanto se olhava de alto a baixo ao espelho do guarda-vestidos.

Olhou para o safari que trazia vestido e achou-se ridículo. Na Europa não lhe passaria pela cabeça ir
assim vestido para trabalhar. Não por uma questão de clima ou de comodidade mas porque seria
considerado ridículo pelos colegas. Ali, como todos, tinha aderido aos usos. Decidiu mudar de visual.
Vestiu uma camisa como se estivesse irritado com a adopção de novos costumes e por uma qualquer razão
que o Freud teria dificuldade em explicar, pôs uma gravata preta completando a toillete com um casaco de
trespasse azul-escuro e botões doirados. Quando chegou à sala o Ministro olhou-o apreciando:

- Admiro o seu gesto! Disse o Katatúlio.


- Qual gesto?
- Julga que não reparo? Pôs luto para o “kunta”.

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O Xandinho estava farto de ouvir falar em “kuntas”. E morto por ultrapassar aquele lanço que estava a
viver:

- Mas responda-me à pergunta que lhe fiz há pouco.


- “Meu caro Xande! Disse ele com ar solene: “Cada macaco no seu galho! Isso não tem nada a ver com
o Ministro do Plano nem com o Ordenador Nacional! É um problema das nossas Forças Armadas”!
- Seco, claro e preciso! Pensou o Xandinho.
- “Ora! Ora”!!! Dizia o papagaio!

Alexandre tentou ensinar novo vocabulário ao bicho:

- Toma lá que é democrático!

O louro não lhe ligou. Estava demasiado ocupado com as suas pevides de girassol para dar importância a
minudências.

- Estou a falar-lhe pela boca do Camarada Presidente! Continuou o Katatúlio. Que isto da paz é mais
com ele do que connosco.

Tinha dormido mal na Casa da Praia e acordara cedíssimo. A conversa estava a levar a parte nenhuma:

- Fala-se de dois mil mortos na tarde de ontem no Planalto. Disse o Xande.

De repente o Katatúlio agitou-se:

- Lamento as mortes! Eram bons quadros militares. O que levou a esses acontecimentos funestos foi a
desmobilização. A Nação, mas principalmente a guerrilha, não sabe o que há-de fazer com os
desmobilizados.

Era óbvio que falava pela boca do Presidente. Afivelou uma postura de Homem de Estado e continuou:
“A Paz é um fausto a que só os ricos se podem dar ao luxo”! Tamborilava com os dedos numa lata de
cerveja. “O governo descobriu em documentos apreendidos depois da morte dos generais, que havia um
plano da guerrilha para conquistar a Capital. Várias cidades do país já estão em poder deles e o plano é
subjugar o maior número de municípios possível. No fundo trata-se de tomar o poder a qualquer custo e
acorrentar os povos N’Alinta. É o cerco ao Camarada Presidente. Depois é só assaltar o Palácio. A nossa
defesa só pode ser uma: Preparar a Capital com armas pesadas. Aproveitar os fugidos dos campos de
acantonamento que estão nos subúrbios e dar-lhes de novo organização, divisas e patentes. Depois é só
mandá-los para as províncias”!

- Pode ser uma tragédia… Tenho medo!!! Disse o Xandinho!

O telefone tocou. O Xande mandou o João Paulo atender. Era da Presidência da República. Foi o
Ministro que falou.

Quando pousou o telefone foram os dois até ao jardim:


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- O Presidente manda-lhe muitos cumprimentos e agradece-lhe o que está a fazer para me ajudar nesta
provação.

Nem tudo era mau. O Xandinho estava a subir na hierarquia dos seus contactos e a ser verdade aquele
recado do Presidente seria uma mensagem que muitos diplomatas ou simples kabandinos dariam a vida
para receberem. Sem pensar, estava a entrar nos círculos restritos dos conhecimentos do Presidente e a
penetrar nos Édenes dos seus pares. Não o conhecia pessoalmente, mas pouco faltaria… Olhou para o seu
casaco de trespasse e para a gravata preta. Achou-se distinto. Reconheceu que aquela nova farda estava à
altura dos acontecimentos.

- O Camarada Presidente está preocupado com os funerais… Disse o Ministro.

- Também eu! Disse o Xande.

Longe, no salão de jantar o papagaio ia repetindo esganiçadamente:

- “Toma lá que é democrático! Toma lá que é democrático!

Também o bicho ia aprofundando a sua capacidade de análise da situação política. Como bom
português, o Xandinho tinha dúvidas quanto ao futuro e porque não o tinha aprendido na escola, ignorava
o passado. Percebia aqui e ali uma ou outra passagem dos tempos de antanho mas não entendia o enredo.

- “Os que sabiam disso foram todos para o céu aturarem virgens e anjinhos”! Segredou aos seus botões!
“Isso é para os sistemáticos da erudição”! O seu Kabandês, tal como a capacidade de análise política do
papagaio, estava a aprofundar-se!

Enquanto se olhava ao espelho decidiu deixar crescer um acessório capilar felpudo: O bigode. Assentou
também recomeçar a falar de futebol em Kabanda e discuti-lo com conhecimento de causa de preferência
vituperando adversários e declamando vozeiradas.

- Vai ser um teatro novo! Ninguém me vai conhecer: Casaco de trespasse com botões doirados, bigode,
camisa de riscas azuis como o Rei de Espanha, gravata preta e a apostrofar sobre futebol vai ser qualquer
coisa”… Dizia para consigo.

O almoço passou-se em silêncio. O Xandinho tinha interiorizado que sem enterros não teria paz e sentia-
se obrigado a cumprir aqueles rituais pagãos. O Ministro pouco ou nada lhe tinha avançado sobre a
tragédia que Kabanda estava a viver. A rádio como de costume estava silenciosa sobre o assunto. O João
Paulo é que de vez em quando o avisava:

- O Patrão hoje não saia! Hoje não saia!

De resto em sua casa vivia-se a paz possível e a abundância mirrada dos oásis no meio dos desertos. A
“Loja Franca” tinha reaberto ao público e o VII Congresso tinha esgotado quase totalmente os seus

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stocks. O Xandinho fazia todos os possíveis para que os seus empregados vivessem a vida sem mínguas
de maior.

Durante a pouca cavaqueira que houve ao almoço, o Xande contou ao Ministro as conversas que tinha
tido com os pescadores sobre os caixões mas ele não ligou a estes pormenores que o afligiam. Era como
se já tivesse resolvido o problema. Tudo levava a crer que o Katatúlio iria ficar em sua casa até ao fim do
“Kunta” e como viria a descobrir mais tarde, isto obedecia a uma estratégia de governo. Parecia-lhe
mesmo que o “Kunta” estava a engordar o ego do Ministro: Já quatro colegas lhe tinham vindo dar os
pêsames e muitos mais os iriam seguir. Era também a oportunidade que ele tinha de ver amigos de guerras
antigas e mostrar-lhes como tinha tido sucesso na vida. O Xandinho também depositava alguma
expectativa quanto à vinda a sua casa do próprio Presidente e tudo levava a crer que tal iria acontecer,
como o deixava antever a cedência dos vinhos, dos copos e das baixelas com o monograma da
Presidência da República. O circo estava montado e o Xande tinha sido apanhado no ardil. Estava
paralisado pelos acontecimentos e pela “vã glória” de receber o Chefe Supremo da Nação em sua casa.
Todos consideravam o facto como uma “subida honra”, à qual a fina-flor da sociedade Kabandina não iria
ficar alheia. Se houvesse segurança, o Xandinho poderia mesmo pavonear os penachos do privilégio pelas
ruas da Capital. A notícia da presença de quatro Ministros e famílias com a farândola dos respectivos
batedores (doze ao todo) à porta de sua casa, já teria chegado à “Mamalhuda” e de certeza que os
próximos favores da Luísa iriam ser mais respeitosos e pausados.

Pensava nisto enquanto fazia o percurso para a Delegação. Com os vidros do carro abertos, sem o
barulho do ar condicionado, continuava a ouvir rajadas espaçadas vindas dos subúrbios. Escutava a
desolação da cidade deserta, tentando decifrar os seus silêncios e os seus lutos. Na Delegação, enquanto
se aguardava o Sir Paterson, comentava-se a reunião da manhã mas todos os colegas do Xandinho tinham
um ar circunspecto.

A cara do Delegado quando chegou ainda agravou mais o tom solene da reunião. Vinha cabisbaixo e
sisudo. Todos o seguiram e entraram para o salão de reuniões:

- A situação que vos relatei esta manhã acaba de me ser confirmada por outros Embaixadores. Continuou
ele. A não ser que o Dr. Alexandre tenha mais alguma coisa a dizer depois da conversa que teve com o
Ministro do Plano, tudo continua na mesma.
- Não tenho mais nada a acrescentar, disse o Xandinho. Tudo me leva a crer que ele sabe pouca coisa e o
que sabe não quer dizer. Penso que está recolhido em minha casa, não por causa do “kunta” da sobrinha,
mas por ter medo de alguma coisa. Sente-se inseguro.
- Não estranhe o seu comportamento! Disse o Delegado. Face à gravidade da situação os Ministros
receberam ordens do exército para não estarem nos seus gabinetes e se passearem a grande velocidade
com o maior número de batedores possível pelas ruas da Capital. Assim mostrariam acção! Também não
devem ficar em suas casas onde poderiam ser alvos fáceis. Estas são as últimas notícias do Embaixador
Americano.
- Americano? Perguntou a Fraulein Waltraude tirando notas.
- Americano! Respondeu o Delegado meio aborrecido. Mas agora tomem muita atenção pois temos que
tomar uma decisão importante!

A Fraulein continuava a tirar notas desenfreadamente.


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- Alguns de nós vão ter que se deslocar a Vila Estanislau!

Todos sabiam que Vila Estanislau era o Quartel-General da guerrilha e estava envolvida numa áurea de
mistério onde a ficção e a realidade se misturavam numa concupiscência que desafiava a imaginação. O
salão parecia que tinha tremido e todos se miraram uns aos outros com ar amedrontado. Até ali a guerra
tinha-lhes passado de roço. Agora encaravam-na de frente: Do ziguezague das palavras estavam a passar
ao risco dos actos.

- Meçam bem a situação! Pediu-lhes Sir Paterson inclinando-se sobre a mesa. A guerrilha pede o
impossível à comunidade internacional e nós temos que lhe mostrar que o impossível dela é o nosso
possível.
- Mas é possível ou impossível? Perguntou a alemã com o seu espírito de feiura quadrada e superior.

O Delegado não ligou:

- Todos sabem, e o Chefe Máximo da guerrilha também, que a Comunidade que nós representamos não
fala a uma só voz neste conflito. Os interesses nacionais barram e impedem um consenso entre os Estados
sobre o conflito. O Chefe da guerrilha sabe disso e pede o que ele julga ser impossível. Depois de várias
negociações com o governo de Kabanda, decidiu que só entregaria os corpos dos brigadeiros e aceitaria a
devolução dos cadáveres dos generais se o mediador e o veículo desta troca fosse a Comunidade
Europeia.

A morte estava a povoar a existência do Xandinho e a vida de Kabanda.

- Ele sabe que nós não temos aqui meios aéreos. Ele sabe que não temos forças militares conjuntas que
protejam os nossos mediadores e espera a nossa declaração de incapacidade. Estive toda a noite em
contacto telefónico com Bruxelas e com vários Chefes de Estado Europeus. Concluímos que o desejo de
paz em Kabanda nos une a todos. Agora é a guerra que colide com os interesses individuais dos países
membros. Eu pessoalmente estou disposto a aceitar o desafio, embora pelo cargo que ocupo não deva ir a
Vila Estanislau. A minha pergunta é: Tenho voluntários entre o meu pessoal para mediar esta troca?

Fez-se um longo e profundo silêncio.

- Vai sobrar para nós! Disse o Xandinho ao Renault.


- Para mim não que sou da Sede! Respondeu ele.

O Xandinho olhou-o desiludido.

- Os nossos seguros não prevêem a morte em conflito… Disse o Nuli, um dos italianos que faziam parte
da Delegação.
- Família! Família!!! Disse o irlandês imitando um sotaque italiano. Vou mandar servir café. Pensem
nisso! Se não houver voluntários (continuou o Delegado), lançarei um apelo às Delegações de países
vizinhos e alguém há-de querer assumir este papel.

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Sexo, Drogas e Diplomacia
ou
Katatúlio um Homem de Estado

A D. Helena serviu os cafés e durante longos minutos, só se ouviu o tilintar das colheres a baterem nas
chávenas.

O Xandinho aproveitou a pausa do café para meditar na sua situação:

“Tinha muito pouco jeito para ser herói. Como qualidades possuía uma razoável formação académica
mas não praticava as disciplinas onde tinha queimado as pestanas. Exercia muito mais uma retórica de
cultura geral que tinha aprendido de ouvido em tertúlias várias: Gostava de ler uns romancezitos que
comprava num qualquer supermercado mas de preferência que tivessem um final feliz. As livrarias
assustavam-no e punham-no confuso. Lembrava-se de ter entrado numa biblioteca pública mas tinha sido
no liceu e o silêncio que os seus ouvidos experimentaram tinham-no arrepiado: Jurara para nunca mais e
até hoje cumprira a promessa. Em Portugal bebia umas cervejita largas ao fim do dia, mas nada de
bebedeira! Agora em Kabanda é que se dava a excessos de álcool porque pouco mais havia para fazer e o
consumo excessivo de bebidas dava-lhe ares de um certo poder de compra, que fazia inveja aos nativos.
Em Santo António, todos os Domingos comprava jornais desportivos e enfiava-se no canto dum qualquer
café a meditar de forma profunda nas tácticas dos próximos jogos de futebol. Saboreava a biquinha da
qual era implacável no julgamento”.

- A “bica”, não é só o sabor! Dizia ele aos amigos. É sobretudo o ambiente que a rodeia.

“ Fazia do – cimbalino – uma religião e sobretudo adorava passar a língua pelos labros de forma
ostensiva, quando nestes o café já estava seco. Repetia o gesto vezes sem conta até que nas pupilas
gustativas lhe ficasse só o molhado da saliva. De vez em quando estalava a língua em sinal de aprovação,
mas isso era uma ocasião raríssima que reservava para quando o produto tinha uma excelência singular”.

Agora ali estava o Xandinho em pleno conflito URSS/USA, com a sua casa ocupada por um Ministro,
na perspectiva de receber na sua residência o Presidente da República de um País importante no concerto
das Nações, situação que se agravava pela presença de dois cadáveres na soleira da porta:

- É de mais! Magicava ele. É de mais! Repetia.

A sua posição naquela guerra, com a qual era forçado a viver no dia a dia, segundo ele, era clara:

Pensava que sobretudo o que era preciso era ponderação. Tomava naturalmente o partido da paz mas não
ia muito mais além. Incomodavam-no as mortes bem como a miséria, porque na sua infância tinha tido
uma educação beata e esta ciência não o deixava dormir. Em Santo António o único gozo que exibia a
toda a gente era por mulheres com quem se gabava de ter feito mil e uma coisa. Além destes predicados
era um excelente jogador de damas e tinha um jeito natural para as línguas o que lhe dava uma certa áurea
de homem culto e inteligente.

- “Isto pode vir a matar”! Pensava ele sobre a situação: “Se é a guerrilha que pede a minha presença para
a troca de generais por brigadeiros, daí não vai devir grande perigo”! E qual é a posição do governo de
Kabanda sobre o assunto? Lembrou-se de perguntar ao Delegado.
- Em princípio está de acordo, porque confia na nossa incapacidade de tomarmos decisões a uma só voz!

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ou
Katatúlio um Homem de Estado

- “Sendo assim, por aí também não virá grande dúvida”! Pensou o Xandinho.

Com os políticos na sua terra aprendera a palavra ponderação. Tudo no seu país precisava de grande
ponderação e era nesta palavra que a inovação encalhava. Agora também era com sensatez que era
necessário meditar. O Dr. Alexandre Graça Albergaria (sobrenome que lhe vinha dos Vice-Reis da Índia)
estava hesitante:

- Isto pode vir a calhar. Com um bocado de sorte, enquanto vou e venho livro-me dos “kuntas” e do
Ministro. Disse ao Renault.
- “Em conversa com o Representante do Secretário-geral das Nações Unidas”, continuou o Delegado,
“parece existir a possibilidade da Organização nos ceder um Lockheed que esteja para aí aterrado num
país qualquer”.
- É extraordinário! Disse o Renault. Estamos a contar milhares de mortos por dia e o Mundo discute
sobre um aviãosito.

O Xandinho pensava que no caso de se voluntariar deixaria a casa entregue ao Ministro para todas as
tradições que ele quisesse praticar e que o seu íntimo ficaria poupado a tais heresias:

- “A operação vai implicar várias abaladas a Vila Estanislau e provavelmente pernoitar na cidade”.
Pensava para consigo. “Se durante ausências a mulher chegasse, o Delegado encarregar-se-ia de ir buscá-
la ao Aeroporto e albergá-la em sua casa, poupando-a às tradições de Kabanda.

Lembrou-se dos apalpões do Irlandês à Sandrinha e sentiu uma ponta de ciúmes:

- Se ele se atreve, vou-lhe aos focinhos! Murmurou.

Com certeza ela iria gramar algumas sessões de harpa e canto da Senhora Paterson, mas a isso ela teria
que se habituar se quisesse ser a esposa de um medianeiro de paz de tão importante conflito.

Pensou bem no termo medianeiro e achou que ficava bem no seu curriculum vitae. Certamente que o seu
governo não deixaria de agradecer-lhe com honras e benesses.

- Eu voluntarío-me! Gritou o Xande heroicamente.


- Eu também! Disse Fraulein Waltraude, pondo a esferográfica no ar.

O Xandinho tinha pensado em tudo, menos em tal coisa. Tinha medido todas as situações excepto a de
um dia se ver no meio do mato de Kabanda com aquela figura gorilenta. O Chefe da guerrilha tinha a
fama e o proveito de fazer esperar as suas visitas, fossem elas quais fossem (tardes e noites inteiras antes
de serem recebidas… O Xandinho agora imaginava-se debaixo da lua brilhante de Kabanda mão na mão
com a Fraulein fazendo menção de amparar o seu corpanzil após algum tropeção numa pedra da picada de
Vila Estanislau. Não afigurava como fosse a cidade (certamente magoada por constantes
bombardeamentos), mas antevia os seus escombros. Sabia que não havia estradas, electricidade ou água
corrente e muito menos hotéis. De restaurantes nunca tinha ouvido falar! Os aviões não podiam levantar à
noite. Em suma, era uma cidade fantasma que a guerra tinha inventado embora outrora tivesse sido um
sítio pródigo para os seus filhos. O único eido onde poderia pernoitar seria o próprio avião. De qualquer
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Sexo, Drogas e Diplomacia
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modo conviria mostrar ao Chefe Rebelde, que a aventar-se a hipótese da sua deslocação, a Comunidade
dispunha de meios próprios de sobrevivência. Imaginava agora a Fraulein a passear o seu corpo alentado
e sardento, numa camisa cor de rosa por entre as cadeiras do Cessena ou do Lockheed, conforme as
disponibilidades das Nações Unidas.

- Pela paz em Kabanda farei tudo! Disse Waltraude com o nariz empertigado.
- Eu farei quase tudo! Disse o Xandinho a olhá-la com ar finório, antevendo noites prováveis em Vila
Estanislau. O pior ainda vai ser a minha flatulência… Pensava ele…
- Parabéns! Sabia que podia contar convosco! Nomeio o Dr. Alexandre Graça Albergaria chefe desta
importante tarefa e não me esquecerei de nomear para Bruxelas a sua abnegação! Disse o Delegado.
Tenho a certeza que o governo de Kabanda não se oporá ao seu nome e que Fraulein Waltraude estará à
altura da Missão. Vou já comunicar à Sede o resultado desta reunião. Os dois estão dispensados de vir
trabalhar até novas ordens. Mantenham-se sob contacto.

O Xandinho inchou. Fraulein olhou-o com um sorriso de ronha.

- Pela minha parte (continuou o Delegado), tenho que ir falar com o Representante do Secretário-geral
das Nações Unidas para discutirmos as condições da logística inexistente e os meios técnicos para a
operação como por exemplo o transporte. Caso este falhe nomeio o Sr. Renault para entabular
negociações com o indivíduo que nos alugou os aviões que nos levaram à Sitila e ao Calibe para reservar
os Cessenas.

Falava com voz calma e bondosa como um cura a dar ordens às catequistas.

A caminho de casa, o Xandinho, abriu os vidros do carro e parou o ar condicionado para auscultar
melhor a falsa bonança da cidade que continuava deserta. Bandos isolados de civis armados continuavam
a patrulhar as ruas. As cores garridas das mulheres tinham sumido e só um ou outro bando de miúdos a
fingirem de soldados corriam pelos passeios a imitar disparos de metralhadoras. Na sua candura
inventavam jogos de guerra.

Quando entrou na avenida Ho-Chi-Min o Xandinho admirou a devastação da cidade e sentiu pena:

-Dentro desta cidade a minha alma é um cidadão sem abrigo… Pensou o ele.

Olhou à volta e viu que durante a reunião que tinha tido viu alguma coisa tinha mudado no seu bairro.
Dava-lhe a impressão que todo o movimento da cidade se tinha passado para a sua rua. Não que houvesse
muita gente a passear ou que tivessem regressado as bancas de pequeno comércio. Mas todos os vizinhos
estavam às portas dos jardins e alguns apontavam na direcção de sua casa. Ao aproximar-se tudo se
tornou claro: Quatro ou cinco carros governamentais, cada um com os seus batedores montavam feira nas
proximidades. Não sabia se as pequenas bancas de comércio tinham desaparecido por questões de
segurança dos homens de Estado, se pela situação de instabilidade que se vivia no país. A guerra tinha
criado em Kabanda uma situação paranóica de segurança. Nenhum Ministro ou Secretário de Estado se
deslocava fosse para onde fosse sem levar à frente e atrás batedores de serviço especialmente treinados
em países estrangeiros. Recordou-se das palavras do Delegado quando afirmou que os membros do
governo, tinham recebido instruções para se passearem pela cidade a alta velocidade para dar a ilusão que
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o Estado estava activo e com certeza eles decidiram ir todos ao mesmo tempo apresentar as condolências
ao colega. Os batedores vagueavam pela rua, todos de fumo no braço arvorando um certo ar de tristeza.

Quando meteu o carro no jardim o Jorge solícito veio abrir-lhe a porta e o Katatúlio apressou-se a vir
cumprimentá-lo. Comunicou-lhe que tinha trazido vários empregados do Hotel do partido para ajudarem
o João Paulo a servir os visitantes. Dentro, homens e mulheres que iam desde Ministros a altos
funcionários dos ministérios discutiam sobre os mais diversos assuntos e o Simiano Katatúlio foi-os
apresentando um a um ao Xandinho. Homens à civil com óculos e fatos escuros passeavam entre os
convivas prestando atenção ao mais pequeno movimento. Agora o Xandinho compreendia as razões de
tanta segurança e quase a abençoava: A sua casa devia ser naquele momento o sítio de Kabanda com mais
ministros por quilómetro quadrado. Pensou que se alguém fosse incumbido de lá pôr uma bomba pelo
menos metade do governo ia pelos ares. Poucos ou nenhuns dos presentes teriam conhecido a Sandrinha.
No entanto alguns falaram-lhe elogiosamente do Heitor. O João Paulo passeava-se de bandeja no ar
equilibrando copos cheios de vinho e licores que ia servindo aos ilustres visitantes ostentando um sorriso
presunçoso. Pela primeira vez o Xande viu-o de sapatos calçados, facto que não deixou de elogiar
pedindo-lhe para estar atento ao telefone. A qualquer momento o Delegado ou a sua mulher poder-lhe-ia
telefonar.

As esposas e filhas dos homens ilustres tinham posto os seus melhores arreios e no ar pairava um misto
de perfumes baratos com cheiros intensos a suor.

O Ministro da Finanças que acumulava igualmente a pasta dos petróleos era de longe o mais
frequentado, mas mesmo ele veio apresentar ao Xande as suas mais respeitosas condolências, o que lhe
pareceu totalmente descabido, uma vez que não lhe tinha morrido ninguém. Aproveitou para fazer
conversa sobre o Vladimir Illitch e o Xandinho apercebeu-se que o assunto era recorrente por entre os
membros do Gabinete. Pior que isso: Atribuíam a recuperação do hospital à eficácia do actual Ordenador
Nacional e à sua amizade com alguns membros da Delegação da Comunidade Europeia. Como sempre o
tema da guerra era matéria tabu.

Durante algum tempo o Xande foi obrigado a fazer salão, mas sentia-se tremendamente só no meio de
toda aquela gente que não lhe dizia nada. Sem ser o Vladimir Illitch falava-se do Heitor e das últimas
compras que as madames tinham feito em Lisboa ou em Paris. Alguns também se admiravam da amizade
que o unia ao Katatúlio mas mais uma vez era coisa sobre a qual não se podia estender. Lembrou-se de
fumar um charro ou telefonar ao Renault para lhe pedir ajuda naquele transe mas foi até ao jardim com o
Victor, sempre seguido por um homem de óculos escuros. O jardim também estava cheio de pessoas e o
Ministro ia-o apresentando aos amigos e conhecidos que passavam por eles.

- A maior parte desta gente não interessa a ninguém! Vêm só pelo meu cargo ou pelos copos. Você não
imagina o favor que me está a fazer, dizia-lhe o Katatúlio. Por esta situação o Camarada Presidente está a
acelerar todo o processo de restauro da minha casa de serviço, mas a ex-mulher dele não está a colaborar:
Ainda tem lá muitos trastes. Conforme está a vivenda não dava para uma cerimónia destas! Se fosse só
entre nós, membros do governo, servia. Mas se vêem estrangeiros e Embaixadores? Que iriam dizer de
um Ministro de Estado que nem uma cadeira decente tem para os mandar sentar? Parece que a Albina está
mais atrasada que a sua mulher! Ainda lhe faltam alguns móveis que encomendou nas fábricas…

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- A Susaninha parece que vem primeiro! Disse o Xandinho. A propósito disso, preciso de falar consigo.
Vamos ali para aquele canto.

Encaminharam-se para o canto da árvore e um dos empregados veio servir-lhes uma bebida.

- Meu amigo! Começou o Xande. Entrego-lhe a casa! Peço-lhe absoluto silêncio sobre isto: Mais horas
menos horas, parto em missão para Vila Estanislau!
- É você o eleito? Perguntou alegremente o Katatúlio.
- Sou eu o voluntário! Respondeu serenamente. Mas não lhe desculpo saber que estas negociações
estavam em curso e não me ter prevenido.
- O Camarada Presidente pediu-nos sigilo absoluto sobre isto. Como saberá não é ideia dele. É do
outro… do bandido… Mas o Camarada Presidente vai ficar contente por saber que é você que vai. Ele
está-lhe muito agradecido pelo que está a fazer por mim.

Encaminharam-se os dois para o salão. Ao Xandinho tudo aquilo lhe parecia estranho. Acabou por se
fechar no quarto para fugir do bruaá das mais de vinte pessoas que cavaqueavam no salão.

XII

No dia da partida para Vila Estanislau os sete dos oito Embaixadores da Comunidade Europeia com
assento em Kabanda, reuniram-se com mais aquelas duas vítimas da guerra-fria que iriam partir para a
cidade rebelde. O oitavo, o Britânico, que na reunião se fez representar pelo próprio Delegado, continuava
sitiado na sua residência perto do VII Congresso. Na verdade, não se sabia muito bem quem o sitiava: Se
simpatizantes da guerrilha, se bandos civis armados pelo governo, se tropas governamentais mal vestidas.
Quaisquer destas hipóteses era verosímil. Na própria cidade o poder instituído vacilava. A táctica dos
Rebeldes de tomarem o máximo de sedes de Municípios do território tinha transportado para a Capital o
clima de insegurança que se vivia no país. Excepto o “Hotel Quatro Estações” e o “Hotel do Partido”, os
restantes dois ou três existentes também estavam sitiados. Mas aqui havia a certeza que eram tropas do
governo que haviam estabelecido o cerco. Com o argumento de protegerem os estrangeiros, as tropas
regulares tinham cercado estes estabelecimentos Hoteleiros onde, segundo a Rádio Batuque, já teria
havido mortos e feridos.

Durante a reunião, os Embaixadores, sobretudo o francês, comportavam-se perante o Xandinho e a


Fraulein como Generais Civis em traje de gala a comandarem os seus cabos e sargentos de guerra.
Exibiam penachos intelectuais como quem ostenta estrelas militares e as suas longas tiradas verborreicas
assemelhavam-se a ordens para cumprimento de objectivos estratégicos em cenários de guerra.

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- Falo pelo colega Britânico (dizia o Delegado). A única política em que o Reino Unido está interessado
é a paz em Kabanda! Falo por mim próprio (continuava ele), depois de ininterruptos contactos telefónicos
com vários Chefes de Estado das Comunidades, posso afirmar que o desejo de paz neste país é
consensual!

Os lugares comuns sucediam-se enquanto o Xandinho antevia o desconhecido e se preparava


mentalmente para a viagem de avião com o corpanzil da Fraulein. Para trás iria ficar o desassossego da
sua casa, os corpos da Sandrinha e do Heitor a vaguearem algures nas suas recordações e nos mares da
Barra.

Tinha telefonado à sua mulher a dizer que iria estar fora para que ela não estranhasse os seus silêncios e
nesse momento fazia todos os possíveis para se auto-convencer da importância da missão que iria
desempenhar.

Durante a reunião que tinham tido com os Embaixadores, todos foram unânimes em elogiar a coragem
daqueles dois voluntários, mas esperava-se tudo menos que Kabanda fosse premiada com a Paz. Tudo o
que estes pediam a estes dois negociadores improvisados era um cessar-fogo local e parar a chacina a que
estavam a ser sujeitos os arredores da Vila Estanislau. A paz autêntica estaria talvez naquele momento a
ser discutida algures no Mundo num qualquer jogo de xadrez que ultrapassava a compreensão do
Xandinho e de Fraulein Waltraude.

O Dr. Alexandre Graça Albergaria vestia um casaco azul-escuro de trespasse e uma camisa quadriculada
que ele pensava condizer com a sua gravata às riscas. Waltraude tinha-se preparado para a guerra. Vestia
umas calças jeans elásticas que lhe avolumavam as nádegas e uma camisinha de seda púrpura que lhe
fazia sobressair os seios silicónicos. No fim da reunião foram os dois muito cumprimentados e o Xande
relutantemente abraçou a Fraulein.

Em baixo na rua as câmaras de televisão, jornalistas um pouco de todo o mundo e máquinas fotográficas
objectivaram-nos. O Xandinho e Waltraude não resistiram à vaidade e numa pose cândida especialmente
desenhada para as câmaras, deram as mãos trocando um beijinho cândido e conivente. Atrás deles
erguiam-se sete Embaixadores da Europa que posavam igualmente para o resto do Mundo. Era como se a
paz em Kabanda estivesse nas mãos deles…

Como no resto da vidinha do Xandinho após a sua voluntariação para esta tarefa, tudo se tinha passado
muito rapidamente: Depois de muita porfia, de reuniões e contra reuniões, de telefonemas para Nova
York, Paris e Londres, o representante do Secretário Geral das Nações Unidas em Kabanda, tinha
finalmente desencantado um “Lockheed” num pequeno país vizinho que estava disponível para o que era
de facto uma operação cirúrgica: A troca de dois cadáveres com a patente de brigadeiros por dois generais
falecidos no ardor da peleja. De todos os lados surgiram briefings feitos pelas mais diversas entidades aos
dois voluntários e as suas pequenas malas de cabina encheram-se dos mais variados “recuerdos” para
serem oferecidos ao Líder Rebelde que iam desde miniaturas em prata da Torre Eiffel até uma pequena
obre de ourivesaria da Torre de Belém.

No meio de tudo isto, o silêncio do governo e dos ”rgãos de Comunicação atormentavam o Xandinho.
Nem o Katatúlio, com quem mantinha as melhores relações se dignava tocar-lhe no assunto ainda que
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fosse de raspão. No fundo, era como se tudo fosse deixado aos critérios da Rádio Batuque, da boataria e
das balelas. No entanto, a imprensa em quase todo o Mundo enchia-se de títulos sobre a paz em Kabanda.
Ali, reinava a conjuração do silêncio, que as fantasias mais diversas tornavam ensurdecedor.

- Esta viagem será apenas exploratória! Dizia para consigo o Dr. Alexandre Graça Albergaria para
atenuar um certo cagaço e arrependimento de se ter voluntariado para a missão. Vai servir só para
aquilatar da boa vontade do Guerrilheiro.

O Lockheed, tinha a vantagem de poder manter um contacto quase permanente via rádio com a Capital,
mas toda a operação estava envolta num grande mistério, sublinhado por um quase desconhecimento total
do que era Vila Estanislau e seus arredores: Uns gabavam-lhe a organização. Outros consideravam-na um
monumento à devastação: Uma espécie de Guernica ao vivo! Diziam os mais ilustrados…

Segundo o Delegado, no Lockheed tudo estava previsto. Abastecimento com comida quente para três ou
quatro dias, caso fosse necessário, água potável, medicamentos vários etc. Mas sobretudo a ordem de fuga
ao mais pequeno sinal de perigo.
- Nem vítimas, nem heróis era a voz unânime de todos os Embaixadores.

Todos eram igualmente unânimes em considerar que a hora da partida da Capital ou da chegada a Vila
Estanislau, era irrelevante. O primeiro dia, a primeira tarde ou a primeira noite de estadia na cidade
mistério, seria gasto na longa espera protocolar que o Líder Rebelde impunha sistematicamente aos seus
visitantes: Se chegassem à tarde, seriam recebidos noite fora. Se chegassem à noite seriam recebidos na
madrugada seguinte. O avião proporcionar-lhes-ia o local de pernoita e de qualquer modo estavam
formalmente interditos de aceitar qualquer tipo de alimentação ou guarida que lhe fosse fornecida pela
guerrilha. Estas, veio mais tarde o Xandinho a saber, tinham sido condições longamente negociadas entre
a Presidência da República, os rebeldes e o Delegado.

Da sede da Delegação, os “negociadores de impossíveis” e a restante comitiva que iria acompanhá-los


ao aeroporto, composta pelos sete Embaixadores partiram para a base militar onde estava estacionado o
avião. Um número abastado de batedores, que o Xandinho não conseguia determinar rasgava a alta
velocidade as avenidas de Kabanda.

À chegada ao aeroporto esperava-os igualmente o circo da imprensa internacional. Um dos jornalistas


estendeu um microfone ao Dr. Alexandre Graça, querendo indagar sobre o seu estado de espírito para
aquela missão.

Delicadamente o Xandinho afastou o instrumento que quase lhe entrara pela boca dentro e indicou
Fraulein Waltraude como a pessoa indicada para responder às suas perguntas:

- Pela Paz em Kabanda farei todos os sacrifícios. É um povo martirizado que merece tudo! Respondeu a
Fraulein num inglês carregado nos erres.

Quando chegaram perto do avião, o Xande admirou a sua brancura e as enormes letras UN pintadas no
seu exterior. Sentiu-se vaidoso. Nesse dia de manhã tinha recebido uma mensagem do seu governo

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desejando-lhe as maiores felicidades para a missão de que estava incumbido e ao lê-la não pode deixar de
pensar no palrar estridente do papagaio:

-“Ora! Ora”!!!

Despediram-se da comitiva com efusivos abraços e os dois subiram solenemente as escadas para a
aeronave. Quando chegaram ao cimo voltaram-se para terra e de mão dada desenharam no ar um sereno
adeus à Capital.

Dentro do avião vivia-se uma enorme solidão. O Comandante, que os cumprimentou à entrada bem
como o resto da tripulação desejou-lhe igualmente as maiores felicidades para as suas tarefas e afiançou-
lhe não ver perigos de maior na expedição. A viagem seria de cerca de duas horas e meias até ao destino.

O Xandinho tentou saber junto deles que tipo de situação os esperava mas a diligência foi inútil.
Nenhum dos tripulantes conhecia a situação actual. Antes da Independência, um deles conhecera bem a
cidade. Existiam vários hotéis, restaurantes e piscinas. Agora, tudo o que sabiam, é que faltava água, luz e
o saneamento básico não passava dum qualquer arremedo. Estas notícias tinham-lhes chegado através de
alguns refugiados que tinham conseguido sobreviver aos sucessivos anéis de bombas anti pessoais que
circundavam a cidade. Os antigos hotéis tinham sido adaptados a residências dos quadros superiores do
exército rebelde e da administração, mas devido à falta de água (segundo as mesmas fontes), o antigo
fausto destes locais tinha-se transformado em lugares nauseabundos onde os cheiros de urina se
misturavam com odores de comida e óleo de palma.

De acordo com o Segundo Comandante do avião, a tão propalada organização da cidade não passava
duma encenação pindérica que não conseguia disfarçar nem de longe nem de perto as enormes feridas
causadas pela guerra à cidade. A tripulação empenhou-se em mostrar aos seus dois únicos passageiros
detalhes das facilidade existentes no aparelho lamentando a ausência de uma hospedeira que os servisse,
mas por muito que tivessem procurado, não tinham tido oportunidade de em tão curto espaço de tempo
encontrar uma voluntária para o efeito. Teriam que ser eles próprios a servirem-se de bebidas e sandes tal
como eles fariam.

- Já tinhas viajado num avião em regime de self-service? Perguntou o Xandinho à Fraulein.

- Niet! Respondeu ela demonstrando as suas tendências para as línguas. Quando Waltraude avançou no
corredor do avião as suas garupas tiveram que fazer exercício para caber entre os bancos.

Enquanto falavas com o Comandante, o Segundo-comandante aconselhou-me a daqui mais ou menos a


meia hora admirarmos a grandeza da floresta! Disse-lhe a Fraulein: Propositadamente neste voo eles vão
voar o mais baixo possível para que sejam bem visíveis as iniciais UN. Depois subirão ao máximo porque
não confiam nas informações que teriam ou não passado para as antiaéreas da guerrilha.

A Fraulein sentou-se ao lado dele apertando-lhe a mão: Os dois estavam com medo!

- Não queres ir à copa buscar uma bebida? Perguntou o Xande a Waltraude.


- Ya! Trouxe também cartas! Disse ela levantando-se. Podemos jogar um “crapot”!
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- Não sei jogar isso! Conheço a “Sueca” e a “Bisca Lambida”!

Ela deitou-lhe um olhar matreiro pelas implicações que a “lambidela” tinha acordado na sua imaginação
carente e o Xandinho teve que lhe explicar exactamente porque é que o jogo se chamava assim.

No seu trajecto para Vila Estanislau, o avião sobrevoou distintamente as praias da Barra.

- Como vês é fácil a guerrilha estar a vinte ou trinta quilómetros da Capital. Como é possível a um
exército entrar ali dentro? Perguntou o Xande à Fraulein apontando-lhe o manto verde fechado que se
estendia debaixo deles.

Quando passou pela Barra lembrou-se dos corpos do Heitor e da Sandrinha meditando em toda aquela
situação. A necessidade de importar caixões por falta de madeira com uma floresta daquela dimensão a
dois passos era uma situação tão contraditória que roçava as raias do ridículo.

Antes de partir para Vila Estanislau tinha telefonado à sua mulher para lhe dar os números de telefone do
Renault e do Delegado, pessoas que ela deveria contactar no caso da sua vinda se antecipar se ele por
necessidades de funções estivesse ausente. Durante a reunião com os Embaixadores tinha também ficado
decidido que todos os dias entrariam em contacto via rádio às vinte horas em ponto e em caso de
emergência o contacto a fazer seria através do comprimento de onda da Cruz Vermelha Internacional que
mantinha um ponto de escuta vinte e quatro sobre vinte e quatro horas. Em alternativa poderiam ainda
tentar o comprimento de onda das NU mas esta alternativa era menos segura dada a incompatibilidade
dos sistemas de ondas hartezianas. Pelo menos, foi isto que foi explicado ao Xandinho e à Fraulein que
por muitas voltas que dessem à sua imaginação não entendiam nada de sistemas de rádio. Tinham-lhes
também recomendado um certo decoro na linguagem a utilizar nas emissões diárias sobre as negociações
em curso sendo certo que quer a guerrilha quer o Exército Regular iriam interceptar tais emissões. Todas
estas instruções ir-se-iam tornar inúteis.

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XIII

Levavam à vontade uma hora de voo quando o Comandante assomou à porta do cockpit e com um gesto
chamou o Xandinho. O que ele detestava nos aviões nem sequer era o medo daquela coisa cair ou que
sofresse de claustrofobia: Era o cheiro a detergente barato que os aviões atiram aos passageiros... Pior do
que isso só mesmo os WC’s das aeronaves onde normalmente só cabe um peido! Quem o der já fica a
mais.

Sabia que em Vila Estanislau a electricidade tinha sido destruída e a antevisão do escuro assustava-o.
Certamente só poderiam aterrar com a luz do dia mas interrogava-se como poderiam passar a noite num
aeroporto adaptado às circunstâncias de uma guerra não convencional. Sabia também que o aeroporto não
tinha praticamente nenhum movimento e antevia filmes de tropas apeadas a movimentarem-se no escuro
da noite africana possivelmente só interrompido por algum pedaço de lua que Deus tivesse deixado
esquecida no céu. No seu imaginário desenhava para lá da pista matagais escuros, com dezenas e dezenas
de olhos atentos aos seus gestos, escondidos nas trevas a vigiarem os seus passos, tendo à mão pedras,
zagaias e Kalashenikoves. À noite (fantasiava ele), durante a longa espera a que iriam ser sujeitos pelo
protocolo sem nexo do Comandante em Chefe da guerrilha, certamente ele e Waltraude desceriam as
escadas e passeariam os dois pela pista deserta. Nessa altura o Xandinho sentiria mais medo. Mas o
escuro iria certamente aproxima-los e mesmo que fosse só uma noite de penoso retiro, teriam tempo mais
que suficiente para esgravatarem as suas selvas particulares. De dentro das tais florestas imaginadas ouvia
já a linguagem de grilos, gritos de mochos distantes e barulhos de outros bichos, que outrora tinham
povoado a sua infância pelas mãos dos livros do Sandokan. Sentia-se ansioso pelo inesperado que essa ou
essas noites lhe poderiam reservar mas esperava que a sinfonia dos bichos misturada com os odores da
selva vindas do matagal, lhe estimulasse a calma e lhe desse animo para afrontar de caras a tarefa de que
estava incumbido. Mentalmente ia-se preparando para viver um pouco de tudo o que poderia incluir
estrondos de minas a rebentarem aos pés de populações distraídas com fugas precipitadas ou estilhaços de
soldados incautos a voarem durante o render das guardas.

Quando obedeceu às ordens do Comandante e entrou no cockpit admirou todo aquele conjunto de
instrumentos de navegação e ficou impressionado por ter o infinito à sua frente.

227
Sexo, Drogas e Diplomacia
ou
Katatúlio um Homem de Estado

- Nunca estive tão perto do Sol! Disse para consigo arrotando uma imaginação serôdia.

- O que tenho para lhe comunicar é muito importante (disse o Comandante)! Você tem de tomar uma
decisão. Estamos mais ou menos a hora e meia de chegarmos a Vila Estanislau e acabo de receber uma
mensagem de terra praticamente a ordenar-nos o regresso à Capital ou para avaliarmos as possibilidades
de aterrarmos de forma segura em Zalina e esperar novas ordens.

- Não me está a dizer isso para esconder “problemas técnicos” (perguntou o Xandinho?

Fraulein Waltraude, movida pela curiosidade tinha também entrado no cockpit.

- Não! Estou-lhe a dizer isto porque tenho a certeza que em muitos lugares do Mundo estão com
os olhos postos em nós.

O Xandinho inchou! Nunca tinha pensado naqueles termos e de repente revelou-se no seu
cérebro um Mundo novo.

-Mas quem lhe deu essas ordens?


- Primeiro o seu Delegado. Depois o próprio Representante do Secretário-geral das Nações
Unidas. Estão ambos na Torre de Controlo da Capital à espera da vossa decisão. É melhor falar
com eles! Ponha esse capacete que está atrás de si.

O Xandinho presumiu que o capacete tinha auscultadores e microfone incorporados e com a


ajuda do Comandante afivelou-o ao pescoço.

- Alô Dublin! Alô Dublin! Tenho Lisboa comigo para falar com a Torre!

Eram os nomes de rádio que tinham adoptado entre eles, não por questões de segurança mas por
razões práticas e de tradição de comunicações via rádio. Naquela situação não adiantaria estar
com grandes preocupações de cifra na questão de pseudónimos a atribuir já que rapidamente
seriam identificados no caso mais que provável de intercepção das emissões.

- Fale! Ordenou-lhe o Comandante.


- Alô Dublin!

Do outro lado fez-se um grande silêncio.

- Dublin deve estar a dormir! Disse o Xande ao Comandante que lhe mexeu num qualquer
botão do capacete.
- Alô Lisboa (O Xandinho reconheceu distintamente a voz do Delegado)! A situação na
Capital agravou-se! Eu e Nova York (era o Representante do Secretário Geral) decidimos
que ou aterram em Zalina ou regressam à Capital.
- Mas o que é que se agravou (perguntou Lisboa)?

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Sexo, Drogas e Diplomacia
ou
Katatúlio um Homem de Estado

- Tudo (respondeu Dublin)! O Chefe do Estado-maior da Forças Armadas assegurou-nos que


Zalina é seguro! Se quiserem aterrar aterrem e aguardem ordens! Se não quiserem voltem
para trás. Fica ao vosso critério.

As descrições que o Xandinho tinha de Zalina diziam-lhe que noutros tempos teria sido a quarta
ou quinta cidade do país. Agora seria um bastião desolado das tropas governamentais. Mirou a
Fraulein de alto a baixo como se procurasse ajuda numa decisão mas ela foi peremptória:

- A decisão é tua! Eu acompanho-te!

Ele olhou para o Comandante que só lhe assegurou que em Zalina não haveria problemas de
segurança. O Xande sentia-se completamente só e sem pensar comunicou com a torre da Capital:

- Alô Dublin! O que é que se agravou na Capital?


- Nada e tudo! A questão é política! Por razões políticas a missão tem que abortar! Não devem
prosseguir para Estanislau!
- Alô Dublin! Peço cinco minutos para tomar uma decisão!

Tirou o capacete e voltou para a cabina com Waltraude.

- A aventura atrai-me! Sinto-me um Vasco da Gama a caminho da Índia! Disse ele a


Waltraude.

Na realidade o Xandinho não pensava em aventuras mas no seu regresso a Kabanda e nas
cerimónias dos mortos dentro de casa. No fundo ele era também um cidadão em fuga pela sua
incapacidade de lidar com as pressões a que estava a ser sujeito.

- Vamos para Zalina? Perguntou a Waltraude.


- Vamos para a frente!

Voltou para o cockpit.

- Entregamo-nos nas suas mãos (disse o Xande ao Comandante)! Se vê que há condições para
aterrarmos em Zalina é para lá que vamos.
- Ponha o capacete e ouça a conversa. Alô Dublin! Alô Nova York! Lisboa e Bona decidiram
continuar a viagem para Zalina!

O Xandinho ouviu distintamente um suspiro de alívio vindo da torre e continuou a conversa:

- Alô Nova York e Dublin! Vamos para Zalina mas precisava de mais dados sobre a situação.
- Parabéns (disse Nova York)! Era a decisão que esperávamos. Recebemos comunicação de
Vila Estanislau dizendo que o Líder da guerrilha tinha sido obrigado a partir para uma das
frentes. Temos poucos dados! Mas segundo a nossa análise não esperava que e Comunidade
Europeia recolhesse meios para a empresa em tão curto espaço de tempo. É esta a nossa
leitura!
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Sexo, Drogas e Diplomacia
ou
Katatúlio um Homem de Estado

- Over (disse o Xandinho)! Entraremos em contacto de Zalina!

O Mundo pesava-lhe nos ombros. Voltou para a cabina e sentou-se lado a lado com Waltraude. A
fraulein teve um gesto cheio de intenções maternais e encostou-lhe a cabeça ao ombro como se
tivesse pressentido a dor que ia na alma do Xande. Por instantes ele sentiu-se nos braços da
Vénus de Milo e para conceder disfarce aos seus desassossegos começou a achar a alemã bonita.
Aconchegou a cabeça àquele ombro amigo que se lhe ia oferecendo. Precisava urgentemente de
descansar. Pela primeira vez se apercebera do tamanho da incumbência em que se envolvera e
pela primeira vez também tinha que tomar decisões sem obedecer a ordens.

- Como irá ser a noite em Zalina (perguntou à Fraulein)?


- A aguardar instruções (disse Waltraude falando em nome do pragmatismo germânico). Só
nos resta fazer dessa noite os melhores momentos dos nossos desejos!

O Xandinho assustou com tanto arrojo mas acabou por aconchegar-se mais ao seu ombro. O
certo é que aquela situação era desgastante e aos poucos ele ia sentindo os seus nervos mais
tensos. Em África as noites parecem mais curtas. Pela janela viu um sol quente e brilhante a
esconder-se atrás das nuvens que lhe pareciam estar muito abaixo da aeronave. Repousou-se
mais no ombro da Fraulein e começou a divagar:

- O Adão no paraíso também não escolheu a Eva. Teve que contentar-se com o que Deus lhe
arranjou... Há que continuar o Mundo. De preferência com ternura nem que esta seja fingida
(dizia para consigo)!

Quando a Fraulein lhe pegou na mão, instintivamente recusou-a. Abriu um olho de esguelha e
reparou a fundo na cara sardenta de Waltraude. Começou a achar as manchas da sua pele naturais
mas continuou a fingir que estava a dormir.

Waltraude também se sentia imensamente solitária. Era a primeira vez desde bebé que não se
impunha nem tarefas nem a maçada de horários a cumprir religiosamente. Talvez se sentisse
livre e em férias embora arcasse com o peso da missão. Adoçou a cabeça do Xandinho e
reclinou-se mais sobre ele. O avião tinha começado a descer. Esperou que ele passasse abaixo
das nuvens e olhou para a terra ainda distante: Enxergou uma pequena torre de controlo e como
esperava viu uma pista de terra batida.

- Porque é que o avião anda às voltas no ar (perguntou Waltraude)?


- Imagino que esteja a mostrar às antiaéreas que se trata de um avião da Nações Unidas.

À medida que se aproximavam de terra pode observar como único movimento dois jipes que
circulavam na pista e alguns pontos negros que lhe pareceram soldados apeados. O resto eram
pistas desertas e esburacadas que não tinham nada a ver com os aeroportos que tinha conhecido
nem no trânsito nem no glamour. Para lá da aerogare erguia-se uma floresta compacta e era agora
distinto que a estrada que chegava ao aeroporto estava cortado a meio pela vegetação. Depois do
avião imobilizado a tripulação abriu a porta da frente e ele e Waltraude correram para lá e
ficaram assombrados com a desolação da pista:
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Sexo, Drogas e Diplomacia
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Katatúlio um Homem de Estado

- Desde a Indochina que não via nada assim (disse o Comandante)! Que pensa da situação?
- Nem sei o que hei-de pensar! Isto parece mais uma aventura de loucos. O Senhor sabe qual
é o objectivo da missão. O resto ouviu pela rádio. Tem tantos dados como eu. Penso que isto
são técnicas de guerrilha. Tenho a certeza que o seu Chefe está em Vila Estanislau e das três
uma: Ou testa a nossa paciência ou espera que a gente desista ou vai justificar o
incumprimento da sua palavra com quaisquer ataques das tropas governamentais.
- Brinca com toda a gente (disse o Comandante)!

Na pista começaram as manobras para colar umas escadas ferrugentas ao avião. O Xandinho saiu
de perto da porta e remirou Waltraude. O distanciamento que havia entre eles fosse dos medos
que estavam a viver, ia-se desvanecendo. Eram ambos náufragos numa ilha deserta. Assim era a
pista: Em vez de água tinha a rodeá-la um matagal espesso que se adivinhava imenso. No entanto
(pensava o Xande) é uma ilha com cadeiras estofadas e cerveja gelada.

Waltraude encolhia e distendia as pernas para fazer exercício. Ia começar a grande tarefa de fazer
passar o tempo.

- Vou buscar cerveja! Disse Waltraude avançando pelo corredor até à copa.

O Xandinho tornou a tirar-lhe as medidas e a verdade é que o seu corpo já não lhe parecia tão
gorilento.

- Foi a Eva que Deus me destinou!!! Não tenho outro remédio se não perdoar à mãe natureza.
É possível captar a Rádio Nacional de Kabanda (perguntou o Xandinho ao Comandante)?
- Vou tentar. Se conseguir ponho o som na aparelhagem do avião.

Demorou ainda algum tempo até se ouvir no meio de muitos ruídos a voz do locutor da rádio
mas como de costume ela não adiantava coisa nenhuma. Falava do “kunta” e da dor do Ministro
do Plano. Destacava o compromisso que a sobrinha do Katatúlio tinha assumido junto dos
pescadores da Barra para combater a iletracía e descrevia o Heitor como um estrangeiro
perfeitamente integrado na causa da revolução. Para grande espanto do Xandinho anunciava que
o Camarada Ministro do Plano cumpriria com as tradições e cultura Kabandesa afirmando que o
“Kunta” se iria realizar na residência provisória do Camarada Simeano Katatúlio que ficava na
Av. Ho-Chi-Min.

O Xandinho rebentou numa cólera que não pode conter:

- É demais! Gritou para os acompanhantes.


- O quê? Perguntou o Comandante.
- Nada! Conteve-se o Xande.
- De uma cajadada matam dois coelhos. Formalizam a ocupação da minha casa e convidam a
população para comes e bebes na Av. Ho-Chi-Min. Acabam por transformar as mortes
trágicas do Heitor e da Sandra numa grandiosa manifestação popular (pensava o Xandinho).

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Waltraude sabia que ele morava na Av. Ho-Chi-Min e atribui a sua ira ao facto das exéquias se
realizarem perto da casa dele. Ignorava por completo as intimidades do Xande com o Ministro
que era um segredo bem guardado entre ele o Delegado e o Renault. Para o Xandinho no entanto
tudo aquilo era a devassa da sua intimidade. Imaginava a feira que seria naquele momento a sua
casa que tanto desejara e esperava que a Susaninha não chegasse naquela altura com ele ausente
para lhe explicar a situação. Depositou todas as esperanças no Renault para a ir buscar ao
Aeroporto, levá-la a casa do Delegado e entregá-la aos cuidados da harpista o que para ela
também seria uma seca.

- Do mal, o menos (pensava)!

O ciclo de notícias que de meia em meia hora ia para o ar terminava invariavelmente com o
anúncio da dor do Presidente da República que era descrito como um gesto de solidariedade pelo
luto de um membro do seu governo. Da guerra nem uma só notícia. Tudo se passava como se o
País vivesse uma tranquilidade serena. O Xandinho já se tinha habituado a esta lenga-lenga e
pensava que se insistissem muito naquela toada, acabaria por verter uma lágrima por tamanha
magnanimidade. Lembrou-se do papagaio com a esperança que o João Paulo o alimentasse mas
tinha saudades do seu “Ora! Ora!” estridente que por vezes estimulava conversas com algumas
visitas enfadonhas. Contudo, tudo isto fazia a sua ansiedade subir de tom e agora começava a ter
dificuldades em dominá-la.

- Não dizem nada! Exclamou o Comandante! Vou procurar sintonizar a rádio da Oposição.

A “Voz da Liberdade” era um pouco mais precisa: Anunciava que os combates se tinham
reacendido de uma forma feroz na zona do Vila Estanislau e mandava a todos os cidadãos um
cheirinho a paz, noticiando que ao princípio da tarde um avião das Nações Unidas tinha deixado
a Capital em direcção a Vila Estanislau com dois membros da Comunidade Europeia a bordo que
se avistariam com o Líder da guerrilha ao princípio da noite. Dentro do avião todos sabiam que
tal encontro era impossível, mas também estes de uma cajadada matavam dois coelhos. No fundo
a leitura destas notícias era fácil de fazer: Reafirmavam o empenho do Líder da Oposição como
um homem que buscava a paz e promoviam-no a interlocutor válido da Comunidade
Internacional.

A tarde começava a cair e dentro em pouco ninguém arriscaria a levantar voo e muito menos
aterrar em Estanislau.

- Se um dia contarmos esta história ninguém vai acreditar! Disse Waltraude.

Nas caras destes viajantes esboçava-se um indisfarçável sorriso amarelo e aos poucos ia-se
criando a consciência frustrante de que todo aquele esforço era de uma enorme inutilidade. De
vez em quando tripulação e viajantes levantavam-se das cadeira e iam até à porta do avião em
busca dum Mundo exterior mas os seus olhares quedavam-se numa pista vazia e desolada. Longe
viam-se escombros de edifícios queixosos das artilharias de ambos os lados e militares distraídos
a passearem-se de um lado para o outro vigiando não se sabia bem o quê. O Xandinho bem-dizia
a presença deles. Tinha na mente o episódio da tentativa de invasão por populares no avião que
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viajou para a Sitila e pensou que de certo modo eles seriam forças dissuasoras para que o mesmo
não viesse a acontecer ali. Temia que aquela situação se alongasse muito, embora não se
pusessem problemas de subsistência. O Comandante assegurava-lhe que tinham bebidas água e
alimentação que daria à vontade para uma semana. O problema punha-se em termos de gerir os
nervos.

- Nesse ponto tenho que confiar em si! Dizia-lhe o Comandante. Uma ordem sua e
regressaremos à Capital.

Era exactamente o que o Xandinho temia: Tomar decisões sem dados, completamente só, ou sob
a influência da Fraulein Waltraude. Sentia a falta do Renault que em alturas críticas tinha sempre
uma opinião baseada na experiência e no bom senso.

- Que situação estranha! Dizia-lhe o Comandante. Normalmente sou eu quem decide da sorte
dos passageiros. Agora é você que decide do destino da minha tripulação...

Ao lado da cadeira da Fraulein começava a instalar-se o caos: Várias latas de cerveja jaziam
sobre os estofos e as pontas dos cigarros acumulavam-se nos cinzeiros.

- É o princípio da fadiga (pensava o Xandinho)!


- Onde estarão os corpos do brigadeiros e dos generais (perguntou o Comandante)?
- Não se preocupe com isso. Na pior da hipótese estarão dentro de alguma arca frigorífica
alimentada a geradores. Na melhor ninguém sabe onde estão e isto é só uma forma de matar
o tempo. Amanhã arranjarão outra saga qualquer.
- Então que fazemos aqui (perguntou o Comandante)?
- Somos testemunhas da história (disse o Xandinho emproado. Justificamos a nossa existência
e testamos os nossos nervos.

- O que as pessoas fazem por dinheiro (exclamou o Comandante arvorando um largo sorriso).

Da porta do avião o Xandinho olhou para a Fraulein que estava em conversa animada com o
resto da tripulação mas via-se que não era a mesma pessoa calculista que durante as reuniões
tirava notas desenfreadamente.

- Não se pode pôr música no aparelho (perguntou o Xande)?

As notícias da rádio não o tinham animado em nada. Kabanda tinha-se tornado cativa da sua
própria riqueza. Todos acreditavam que a paz viria mais cedo ou mais tarde e para usufruí-la a
primeira condição era estar vivo. A natureza tinha sido pródiga... O ouro abundava no sítio mais
recôndito do país...

- Nenhum governo, nem os colonos, o conseguiram comer todo... Disse-lhe uma vez o João
Paulo numa das suas tiradas filosóficas... As guerras passam e o ouro fica... Quando voltar a
paz é só reparti-lo...

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Nesta conversa a carnificina continuava e as pessoas tinham-se estranhamente habituado a


conviver com a morte. Na pista de Zalina a aeronave continuava parada e o Xandinho fumava
cigarro atrás de cigarro. Fraulein Waltraude esbodegava-se nos bancos centrais do avião como se
o desleixo ajudasse a matar o tempo. O Comandante tinha baixado as luzes do avião e fechou
com estrondo as portas da aeronave. O contacto das vinte horas com Dublin e Nova York tinha
feito encalhar ainda mais os ânimos. Já ninguém dentro daquela aeronave dava importância a si
próprio e a missão tinha perdido completamente o sentido. Toda a gente se preparava para
adormecer como a forma mais expedita de fazer passar o tempo.

Pela BBC tinham ficado a saber que havia mais quatro mortos encarcerados no Hotel Flor da
Esperança e as tropas que o cercavam não permitiam a remoção dos cadáveres sem que a troca
dos corpos dos brigadeiros pelos dos generais se realizasse. O círculo vicioso tinha-se fechado,
ou estava aberto o caminho para a escalada.

O Xandinho preparou-se para adormecer a ansiedade. Pela janela do Lockheed viu uma enorme
lua branca pendurada no céu negro e não pode deixar de se lembrar das palavras do Arriscado:
“Quando vier a Lua Grande os mortos aparecem”! Ainda viu o Comandante inspeccionar
algumas parte do avião mas acabou por adormecer de cansaço.

Quando se voluntariou para a operação o Xandinho obviamente procurava protagonismos. Caso


fosse bem sucedido na troca dos cadáveres certamente que seria um passo em frente no processo
de paz em Kabanda e possivelmente um argumento de peso para num futuro próximo sentar
debaixo dum embondeiro o Presidente da República e o Líder da guerrilha. Certamente o seu
nome iria ficar ligado aquele momento histórico o que lhe engordava o ego. Foi a voluntariação
de Fraulein Waltraude que ao despertar-lhe a brejeirice o despertou para esta realidade. Logo no
início da viagem quando a Fraulein se levantou para ir buscar uma bebida e o Xandinho lhe
alvejou os músculos nadegueiros avultados com olhares libidinosos pensou:

- Estas nalgas nunca poderão ficar na história.

A própria história estava agora a encarregar-se de confirmar os seus vaticínios. Agora, cada vez
mais tinha a certeza que algures em Nova York ou Londres, naquele preciso momento se discutia
de forma séria a partilha do ouro de Kabanda. Até que esta questão estivesse resolvida as forças
mandantes mais não fariam do que procurar peões de brega para touradas sem director artístico
onde o brilho ostensivo dos trajes faria esquecer a morte das bestas.

Para alturas de espera prolongadas o Xandinho tinha sempre de reserva um ou dois comprimidos
de serenal que lhe alongavam o sono e atenuavam a gesticulação nervosa. Ele e o Comandante
escolheram as cadeiras mais próximas do cockpit para descansarem as pálpebras. A rádio estava
sintonizada com a torre militar do aeroporto e ambos mal disfarçavam a expectativa de no meio
de qualquer sono leve ouvirem uma voz a chamar:

- Alô Lisboa! Alô Lisboa!

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XIV

Já ninguém se lembrava quantas horas tinham passado quando um Sol vivo bateu nas janelas da
aeronave. Todos estavam estremunhados pelo insólito daquela noite vivida entre ânsias e
cansaços e agora acordavam para mais um dia que ninguém sabia como iria acabar nem para que
iria servir. Vagarosamente todos se dirigiram para a copa do avião em busca dum café quente
cujo aroma depressa se misturou com o cheiro a suor dos corpos. Os olhos remelosos, tristes e
mal dormidos diziam bem da inutilidade das intenções ingénuas que os tinha levado aquela pista
esburacada. Entre um e outro café os cinco viajantes do Lockheed disfarçavam anseios com idas
e vindas regulares aos quartos de banho. Das maletas de bordo começaram a saír panóplias de
artigos de higiene. Eram só cinco! Mas as diversidades de desodorizantes e perfumes punham no
ar uma vaga impressão de limpeza que se tornava enjoativa. Excepto Waltraude todos exibiam
troncos nus com toalhas enroladas à volta do pescoço e pigarreavam anos a fio de cigarros
fumados atrás de cigarros.

- Comandante (disse o Xandinho)! Vamos ver se a Capital responde.


- Alô Dublin! Alô Nova York!

Repetira estas palavras vezes sem conta e invariavelmente a resposta foi um silêncio total.

- Tente a Cruz Vermelha ou as Nações Unidas (disse-lhe o Xande)!


- Alô Red Cross! Alô Red Cross!

O silêncio continuou!

- Espere disse o Comandante estou a tentar captar outra vez a BBC.

Ouviram-se os ruídos característicos das mudanças de frequência de rádio. Na cabina as toiletes


tinham terminado. Waltraude tinha composto a figura com um baton roxo cinza que lhe fazia
sobressair as sardas na cara bolachuda. Estavam entregues a si próprios. O Xande foi à porta do
avião. O ar quente da manhã, o verde da floresta desconhecida que circundava a pista e os
soldados apeados perto da torre, despertaram-lhe de novo os medos. A sensação de estar cercado
atarantava-lhe o raciocínio. Aventurou-se a sair dois passos da aeronave e sentou-se no primeiro
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degrau das escadas do avião. As ruínas dos edifícios que via ao longe não ajudavam em nada o
seu estado de espírito. A visão da destruição definhou-lhe o ânimo. O Comandante não
conseguiu captar a BBC, mas uma voz feminina clara, saiu através da Rádio do cockpit: Era a
Voz da América que emitia a partir duma ilha qualquer num país vizinho:

“Esta madrugada (dizia a Voz da América) um avião da Nações Unidas levando a bordo dois
membros da Comunidade Europeia aterrou em Vila Estanislau onde aqueles se irão avistar com o
Líder da Oposição Armada ao regime de Kabanda”. Segundo a mesma fonte o Delegado tinha
dado uma entrevista na Capital onde afirmava que a Comunidade Internacional tinha cumprido
com todas as exigências das partes em conflito para se chegar a um acordo sobre a troca dos
corpos dos brigadeiros e generais dos dois exércitos esperando que as vidas dos seus
funcionários não fossem de qualquer modo postas em perigo. O próprio Comandante, com
certeza habituado a situações de aperto na sua carreira, afivelou um ar carrancudo ao ouvir estas
palavras.

No avião afligia-os o isolamento só interrompido pelo trá-tá-trá de rajadas esporádicas de


metralhadoras que vinham lá de fora. Enfadava-os não terem à mão uma qualquer bóia de
salvação. A solidão em que estavam metidos assustava-os e nenhum artifício lhes disfarçava os
medos. Para eles o Mundo estava reduzido a eles próprios e a uma aeronave imobilizada algures
num qualquer ponto do globo. As suas vidas estavam reduzidas a pouco mais que figuras de
estilo bem pagas para fazerem parte dum enorme circo de luxo. Para o Xandinho durante alguns
momentos de rara lucidez eles eram pouco mais que trapezistas sem rede a darem espectáculo
para uma assistência autista.

A rádio a meio das notícias fez um intervalo para emitir música “country” mas de seguida
confirmou a aterragem do aparelho em Vila Estanislau: Era a teoria da conspiração nos seus
melhores momentos. Na realidade estavam há mais de doze horas imobilizados na pista de
Zalina e nem Dublin nem Nova York davam sinais de vida. Teriam com certeza que esperar pelas
20 horas para serem de novo conectados com o Mundo real. De momento eram só um barco à
deriva no mar atribulado de Kabanda.

Passaram umas horas quando a rádio os acordou daquele torpor a que se tinham deixado chegar.
A pronúncia cerrada do Irlandês marcou o reinício das suas vidas:

- Alô Lisboa! Alô Bona!

No avião ouviram-se suspiros de alívio. Waltraude abraçou-se ao Xande e osculou-o com os


lábios viscosos. Todos correram para o cockpit.

- Bom-dia Dublin! Bom-dia Nova York! Julgava que estávamos perdidos no mar (disse o
Xandinho).
- Não brinque Lisboa (disse o Delegado)! Sabemos muito bem o que estão a viver! Entenda
isto como quiser: Estamos a caminhar em cima do arame. A população da Capital só será
fiel ao governo até ao momento em que este demonstrar ser capaz de controlar a situação!

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O Xandinho não percebia patavina daquela prosa. Não sabia o que se estava a passar na Capital
mas a voz grave do Delegado não o deixava adivinhar coisa boa. O seu sexto sentido fê-lo
encarar esta mensagem como uma chamada de atenção ao próprio governo. Todos tinham a
certeza que a emissão estava a ser interceptada e ouvida por ambas as partes do conflito e por
essa razão admitia toda a espécie de especulações. Talvez aquelas palavras fossem um aviso para
o próprio Presidente da República para lhe dizer que a sua credibilidade dependeria em muito da
maleabilidade que este demonstrasse. No terreno a situação militar era confusa. A guerrilha ia
ocupando cidade sobre cidade falhando a todos os acordos de paz. Se a guerra se alargasse à
capital de uma forma intensa a catástrofe humanitária estaria à vista. Nesta situação, bom senso,
era tudo o que se pedia ao regime de Kabanda. Todos sabiam que era impossível a qualquer das
partes uma vitória militar e que a guerra só veria o seu fim com a morte de um dos Lideres. Para
o Xandinho tratava-se tão só de manter a desordem reinante e alimentar impasses sem estragos
de maior que pusessem em causa o “status quo” internacional.

- No fundo é isto que se passa com o fim de qualquer guerra (pensava o Xandinho)!
- Alô Lisboa! Alô Lisboa! Alô Bona! Disse Nova York. Não há condições para prosseguirem
para Estanislau! Regressem à Capital! É uma ordem! Correm mesmo boatos dizendo que o
Chefe da guerrilha foi morto numa emboscada conjuntamente com dois familiares mas nada
se confirma! Regressem! (Repetiu).
- E a Capital (perguntou o Xandinho ansioso)?
- A Capital está calma, tanto que se possa considerar calma uma cidade onde a ordem é
imposta por militares desactivados e à civil. Abortem a operação (disse Dublin)!

No cockpit reinou um silêncio ensurdecedor.

- Abortem (repetiu Nova York)!


- Alô Lisboa! Alô Lisboa! Você faz-nos falta na Capital (disse Dublin)!

Todos olharam espantados para o Xandinho.

- Porquê (perguntou Lisboa)?


- Por muitas razões (respondeu Dblin)! Duas delas de carácter pessoal!
- Fale, replicou o Xandinho!
- A primeira é porque a sua mulher chega hoje ao fim da tarde! A segunda é que os corpos dos
seus amigos deram à costa esta madrugada. As cerimónias fúnebres vão estar hoje em
grande e é anunciada a presença do Presidente da República em sua casa (respondeu-lhe o
Delegado). Regresse (insistiu Nova York)!

No cockpit Waltraude olhava o Xandinho com reverência. Começava a perceber que naquela
empreitada havia muitas coisas que ela desconhecia e a entender uma certa áurea que adornava a
vida profissional do Xandinho nos últimos tempos.

- Parabéns pela chegada da tua mulher! Disse-lhe a Fraulein.

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Lá fora, no fundo da aerogare os barulhos de rajadas das metralhadoras tinham aumentado de


intensidade. Era um barulho a que o Xandinho se tinha habituado desde que chegara a Kabanda e
que normalmente, vindo da parte de militares correspondia a manifestações de regozijo. O
Comandante foi até a porta do avião e viu dois ou três soldados armados aproximarem-se do
avião. Foi buscar os binóculos de bordo e chamou o Xande.

- Que pensa disto?

O Xandinho assestou os binóculos aos militares: Era evidente que ostentavam nas mãos um pano
branco mas o seu ar desbragado fê-lo duvidar das suas intenções. Fez a melhor cara de herói que
pode arranjar e também com um lenço branco começou a descer as escadas do avião seguido
pelo Comandante. Enquanto descia as escadas pensou:

- Finalmente alguma acção!


- Queremos conversar! Disse um dos militares.
- Estamos desarmados e em missão de paz! Somos funcionários internacionais (gritou o
Comandante a fazer um esforço para se fazer ouvir)!

O militar que tinha iniciado a conversa pousou no chão a sua arma e avançou sozinho:

- Só queremos conversar. Sou o Comandante da força acantonada!

Quando se aproximou via-se-lhe no rosto um ar radioso.

- Como devem saber (disse-lhes o militar), o Chefe da Guerrilha está cercado! A guerra está a
chegar ao fim.

O Xande estava agora em posse de informações contraditórias. Na Capital boatava-se a morte do


Líder, ali asseguravam-lhe o seu cerco. De qualquer modo sentia que algo se estava a passar em
Kabanda e no Mundo. O Comandante encolheu os ombros em sinal de incredulidade.

- Não entendo nada disto (disse ele).


- Não sabemos o que se passa, respondeu o Xande. Mas esta informação é importante.
Veremos como ela joga com as novidades que vamos ter na Capital. De qualquer modo têm
de ser confrontada com a Rádio Batuque!
- O cerco está confirmado (disse o militar), a morte do homem é uma questão de tempo.

Pior que uma guerra perdida é uma guerrilha sem líder (pensava o Xandinho)!

Longe, perto dos edifícios semi-destruídos, as rajadas de metralhadoras continuavam a fazer-se


ouvir e o militar dizia ufano:

- Os meus homens festejam! Precisamos de cerveja para comemorar...

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ou
Katatúlio um Homem de Estado

O Xandinho hesitou. Estava entre o perigo que seria oferecer bebida a homens armados e o medo
das retaliações a que poderia conduzir uma recusa:

- Diga a um dos seus homens para trazer duas grades de cerveja e peça a Fraulein Waltraude
para descer (disse ele ao Comandante).

O militar pôs um ar de vitória enquanto contrafeito o Comandante se afastou. Era evidente que o
soldado acreditava na paz e nas tréguas mas o Xande tinha algumas dúvidas quanto ao caos que
estas poderiam trazer. Pensativos, ele e o militar sentaram-se no último degrau das escadas do
avião. Waltraude desceu as escadas com três cervejas na mão e sentou-se com eles.

- À paz (brindou ela empunhando as latas de cerveja)!

Os dois acompanharam-na mas o militar ficou pensativo:

- Tenho medo da paz (disse o soldado)!


- Que estranho... na minha terra temos medo da guerra!

O Xandinho tinha sentado a seu lado nas escadas do avião um mulato claro com cara de
deserdado de todas as pátrias cheio de dúvidas entre o passado e o futuro.

- Não sei se tenho força para ver este país com milhares e milhares de desmobilizados
(continuou o militar que obviamente procurava orelhas para ser ouvido)! Há doze anos que
faço guerra. Na paz serei um Coronel sem tropas! Que faz um Coronel sem tropas numa
cidade com fome (perguntou a Waltraude virando-se para trás)?

O Xande estava visivelmente incomodado com aquela conversa:

- Não temos muito tempo para estar aqui! Temos que regressar (disse o Xande)!

Subiram vagarosamente as escadas como se levassem às costas o peso daquela paz que o soldado
antevia. Sem querer o Xandinho soltou um flato sibilino. Foi nesta ambiência que se prepararam
psicologicamente para o regresso a Kabanda. O Comandante dirigiu-se à copa e com duas grades
de cerveja nos braços acenou da porta do avião ao militar que o esperava em baixo. Depois
fechou-a com estrondo como se quisesse pôr um ponto final ao último capítulo dum livro mal
escrito desde a primeira linha.

- Deve ser triste a vida destes homens (disse ele ao Xandinho dirigindo-se com a tripulação
para o cockpit.

Agora o Xande não pensava em mais nada a não ser no regresso à Capital. Talvez fossem as
saudades da mulher que o aferrassem. Anotou a informação do cerco do Chefe da Guerrilha
disposto a confronta-la com os dados que o Delegado e o Representante do Secretário-geral das
N.U. tinham recolhido na sua ausência. Sobretudo haveria que confrontar tudo com as notícias
da Rádio Batuque. Esta combinação de fontes de notícias normalmente conduzia a um
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Sexo, Drogas e Diplomacia
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Katatúlio um Homem de Estado

conhecimento real da situação. Por agora estava incapaz de raciocinar: O regresso a Kabanda, as
cerimónias do Kunta e a vinda da mulher ocupavam-lhe a cabeça. O estado em que estaria a sua
casa atormentava-lhe o espírito.

O avião já tinha levantado voo. Ele e Waltraude aproximaram-se das janelas para verem Zalina
do ar. Seriam as últimas imagens que lhe ficariam gravadas daquela empresa inútil.

Em princípio (pensava ele) com a Susaninha tudo seria mais calmo. As idas ao “Cai-Cai” teriam
só o cariz de fazer passar o tempo e deixaria de ter que partilhar as suas intimidades com as
galdérias que por lá passavam. Esperava também que o problema dos caixões ficasse resolvido e
que não fossem necessários os seus serviços para junto dos pescadores da Barra encontrar uma
solução para ele. Certamente a Presidência da República já teria encontrado um fim para este
imbróglio.

- Nunca conheci um país onde fosse necessário importar caixões (dizia para consigo)!

Imaginava o que seria a sua casa com a presença da mulher, sem exéquias fúnebres e com tudo
a entrar na sua rotina normal. A verdade é que a saudade dos seus olhos lhe começava a apertar
o coração. Toda a sua vida em Kabanda, a sua rotina teria que ser alterada, mas restavam-lhe
dúvidas quanto à adaptação da Susana a um país com uma guerra a pouco mais de vinte
quilómetros de casa e com a Capital do país mais ou menos em estado de sítio. Naquele
momento todos os seus sentimentos giravam à volta da vinda da mulher e ao anseio duma
verdadeira lua-de-mel que efectivamente nunca tinham tido. Desejava partilhar com ela o
sossego da vivenda, inventar champanhes e caviares a serem partilhados entre carícias numa
cama ampla e acolhedora.

Waltraude era uma fábrica inesgotável de cerveja. Cada vez que olhava para ela tinha sempre
uma lata em cada mão que não se cansava de lhe oferecer. Quando se veio sentar perto dele era
patente a sua tristeza: Tinha perdido um momento único de ficar com o seu nome gravado numa
história que ainda iria fazer correr muita tinta e alguns rios de sangue. Agora ali estava ele num
avião frívolo, cheio de todo o silêncio que habita uma aeronave vazia e a pensar nas inutilidades
que tinha vivido nas últimas quase quarenta e oito horas que tinham passado. Restava-lhe
desejar vinganças pequenas e amainar ódios que as situações lhe tinham imposto. Depois,
quando chegasse à Capital sentir o bafo quente da primeira vez que lá tinha aterrado e sobretudo
que o deixassem em paz... Que o levassem para um Hotel para adormecer a pensar na
Susaninha... Era tudo a que a sua vaidade estava reduzida...

Quando o avião aterrou na Capital de Kabanda, o Xandinho e Waltraude tinham passado mais
de uma hora no mais completo silêncio.

- Que vais fazer agora?

- Provavelmente dormir (disse-lhe Waltraude).

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Katatúlio um Homem de Estado

Quando chegaram ao pátio das escadas do avião o Xandinho olhou demoradamente à volta do
aeroporto. Tornou a sentir o ar quente e húmido a percorrer-lhe o rosto e o mesmo perfume da
primeira vez que era um misto de cheiros a gente e a terra.

Ao fundo das escadas aguardava-os a tripulação que lhe apresentou os cumprimentos de


despedida. O Delegado e o Representante do Secretário-geral das Nações Unidas manifestaram-
lhes as boas-vindas.

- Que esforço inútil! Disse o Xandinho ao Delegado enquanto este o abraçava. Que dinheiro
tão mal gasto!!!
- Não pense nisso agora (disse-lhe o Irlandês). Para já vai ter que enfrentar os jornalistas!

Efectivamente à entrada do salão VIP ele e Waltraude foram literalmente assaltados por um
bando de homens de imprensa de todos os quadrantes, nacional e internacional. O Delegado
meteu-lhe o braço e apertando-o significativamente ordenou-lhe:

- Seja modesto!

O Xandinho por momentos pensou na glória que poderia ter sido aquele instante se
efectivamente tivesse sido possível ter chegado à fala com o Líder da guerrilha, mas em vez de
momentos de celebridade sentiu uma frustração imensa. Meteu ele também o braço em
Waltraude para partilhar com ela a desilusão daqueles instantes de desvanecimento e avançou
destemido para as feras da informação a que não estava habituado.

- Boas tardes meus senhores (disse o Xandinho aos jornalistas). Como devem compreender o
momento é demasiado importante para a população de Kabanda para eu me alongar em
grandes discursos! Estamos exactamente no meio das circunstâncias e em plena
tempestade...

Num gesto automático deu a mão a Waltraude e esta apertou-a fortemente como se o encorajasse
a prosseguir.

- Mais uma vez tive oportunidade de apreciar a grandeza e beleza deste país e tenho a dizer-
vos que passamos horas de profunda inquietação e meditação sobre os caminhos ínvios da
paz que todos estamos empenhados em trilhar.

A imprensa começou a impacientar-se com a largueza de lugares comuns e o Delegado apressou-


se em seu auxílio:

- Como muito bem disse o Dr. Alexandre o momento não é de palavras mas sim de nos
unirmos na acção.

Enquanto o Delegado falava o Xandinho respirou fundo várias vezes e a custo ia pondo os seus
pensamentos em ordem. Depois apanhou no ar uma pergunta qualquer de um jornalista e cortou
literalmente a palavra ao Delegado:
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- Esta viagem em que todos depositávamos tantas esperanças serviu sobretudo para
demonstrar a toda a gente o empenho da Comunidade Internacional para encontrar os
caminhos da paz que o martirizado povo Kabandês tanto anseia e merece.

O Representante do Secretário-geral das Nações Unidas apressou-se a pegar no braço livre de


Waltraude e quase que os empurrou para dentro do salão VIP. Para trás do Xande ficou o bruaá
de jornalistas descontentes com o enunciado de tantos lugares comuns mas toda a comitiva
respirou de alívio quando se viram livres daquela balbúrdia de jovens profissionais que
buscavam informação.

- Mais uma vez o Mundo ficará a saber coisa nenhuma do que se estava a passar com a guerra
e com a paz em Kabanda (pensou o Xandinho, que por momentos congeminou um plano
para voltar atrás e contar à imprensa o que realmente se tinha passado incluindo a conversa
com o Coronel em Zalina sobre o cerco e morte eminente do Líder da Guerrilha). Não
adianta (balbuciou para consigo)!!! As redacções centrais irão adulterar todas as minhas
intenções...

O Delegado parece ter adivinhado a vontade do Xande e encaminhou-os para os sofás coçados
do salão dizendo-lhe ao ouvido rispidamente:

- A sua mulher chega hoje!

O Xandinho amoleceu os ímpetos e de repente começou a olhar o futuro à sua frente tal como as
crianças despertam após um açoite tempestivo:

- A que horas? Perguntou apressado.


- Em princípio às dezoito! Por isso queremos falar consigo!

Toda aquela conversa lhe pareceu uma ameaça. Por essa razão dispôs-se a ouvi-la. Estava
demasiado cansado para resistir.

- Você tem as cerimónias fúnebres em sua casa e pensamos que talvez seja a única pessoa em
todo o país que neste momento pode entrar em contacto directo com o Presidente da
República e saber da sua boca o que ele pensa da actual situação (disse o Delegado).

Naquele momento o Xandinho hesitou entre exibir modéstia ou manifestar-se importante.


Balbuciou alguma incongruências que mais tarde registou no seu diário.

- Agora para mim o grande problema é de como conciliar esta situação com a chegada da
minha mulher.
- Eu e o Representante do Secretário-geral já pensamos nisso. Reservamos uma suite no Hotel
Quatro Estações, o único que não está cercado pela forças de segurança para onde você irá
descansar. Ao fim da tarde eu próprio irei com a minha mulher buscar a sua esposa ao
aeroporto. Levo-a ao Hotel onde descansará da viagem e ao princípio da noite eu e o
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Representante da ONU viremos buscá-los para irmos a sua casa apresentar os pêsames a Sua
Excelência o Senhor Ministro do Plano. Que pensa do programa?

O Xandinho não sabia o que responder. De facto a viagem e as emoções tinham-no cansado e a
única imagem que lhe passava pela cabeça era a figura daquele Coronel a mendigar cerveja,
isolado de tudo e de todos na desolação do aeroporto de Zalina.

- O Presidente da República, ao que sabemos estará em sua casa e não deixará de falar
consigo (continuou o Delegado). Queremos que faça todos os possíveis para saber o que é
que ele pensa sobre a situação que se vive no país.

Em voz firme ordenou-lhe:

- Explique à sua mulher a situação e sugira-lhe que se insinue junto da esposa do Presidente
para obter também algumas informações.

Um silêncio significativo foi a forma de protesto que o Xandinho encontrou para a maneira
como o Delegado punha e dispunha da sua pessoa e por arrasto a da Susaninha. Não a imaginava
no papel de aspirante a espia mas por outro lado achava útil que ela se insinuasse nos círculos
mais íntimos do Presidente da República, quiçá tornar-se amiga da actual mulher ou mesmo
confidente. Pelo Delegado ficou a saber que o enterro dos dois náufragos da Barra teria lugar no
dia seguinte. A memória do amigo e as carícias da Sandra fizeram-no afundar-se em alguma
melancolia depressa finada pela esperança que após o “kunta” e os funerais a sua vidinha
voltasse ao normal: Restar-lhe-ia usufruir da estabilidade que a Susana lhe iria oferecer.
Desejava mergulhar com ela nas águas da Baía e ir mostrar-lhe os macacos que na Praia dos
Padres interrogavam os seus humores como se fossem gente. Mas de repente o Xandinho
sobressaltou-se e saltou do sofá como se tivesse apanhado um grande medo.

- Que tem? Perguntou-lhe o Delegado?

- Nada... Nada...

A lembrança de que mais tarde ou mais cedo a Tia Albina iria regressar e seria mais uma intrusa
no seu dia a dia assaltou-lhe a alma. Acalmou-se achando que essa situação seria muito mais
controlável do que aquela que vivia actualmente com toda a multidão a entrar e saír do “kunta”,
com a morte com quem ele nunca tinha tido uma boa relação, omnipresente em todas as
minudências da sua intimidade.

Efectivamente todos os indícios o levaram a pensar que a sua casa se tinha transformado no salão
VIP de um aeroporto em hora de ponta com ministros, corpo diplomático e altos funcionários
nacionais e internacionais a fazerem fila à porta para apresentarem condolências artificiais ao
Simeano Katatúlio. Essa noite seria com certeza o ponto alto das visitas ao Ministro do Plano e
provavelmente o único dia em que o Presidente da República em todos os anos que estava no
poder teria deixado a concha de Homem de Estado em que se tinha encerrado para descer ao
trivial quotidiano da turba.
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- Talvez (murmurava o Xandinho), a morte da Sandra servisse de argumento ao Presidente


para o romper do casulo de crisálida em que se tinha enfiado...

Do alto desse casulo, o Homem de Estado tecera toda uma cadeia de benesses que destribuira à
esquerda e à direita e que pouco a pouco consolidaram a sua plutocracia. Tinha sido um trabalho
meticuloso e cuidado que certamente iria sofrer um revés se a guerra tivesse efectivamente os
seus dias contados.

- E se a guerra estiver a chegar ao fim? Perguntou o Xandinho ao Representante do


Secretário-geral.
- Nem quero pensar nisso! Respondeu ele. Ninguém pode adivinhar como será a Paz!

Efectivamente haveria que repensar o lugar que ocupariam os numerosos generais e brigadeiros
desmobilizados naquela sociedade, possivelmente atribuir-lhes uma missão de controlo dos
soldados, cabos e sargentos quando estes passassem à condição de civis. Todas as cabeças bem
pensantes temiam a guetização dos bairros de lata nos arredores das cidades, já que a economia
exausta impediria a sua assimilação como cidadãos a tempo inteiro. Mal desarmados pela
indisciplina reinante, nas linhas existia o perigo real que aquela enorme massa se transformasse
num lumpen agressivo sem deuses nem leis.

O Representante do Secretário-geral demorou-se longamente a expor teses idênticas a esta que


ao Xandinho, curioso da elaboração de cenários, pareceu constituir a base das decisões e
indecisões do próprio Conselho de Segurança.

- Uma coisa é certa (dizia o Representante do Secretário Geral), a ser verdade o apertar do
cerco ao Líder e a sua hipotética eliminação física, a clique dirigente terá os olhos postos no
Presidente da República e irão esperar dele a monitorização das novas condições de modo a
que não haja alterações graves ao seu estatuto social. Desta vez não basta eliminar a classe
média (dizia o Delegado). Trata-se sobretudo de partilhar o poder com uma outra que já
existe: Os senhores da guerra! Kabanda estará sujeita a uma nova classe mandante que não
está treinada para obedecer a hierarquias mas para dar ordens! Vai ser horrível...

O Representante do Secretário-geral amodorrou perante esta visão catastrófica do futuro. Temia


que os anos mais próximos do país dependessem de generais, de brigadeiros e de coronéis.

Quando terminou este raciocínio elaborado, o Representante do Secretário-geral sentiu-se


contente consigo mesmo e refastelou-se mais no sofá tentando dar vida ao cachimbo apagado. O
ambiente era tenso e de enormes dúvidas. Por momentos o Xandinho regressou das nuvens em
que estava envolvido a pensar nos seios da Susaninha e a desejar-se longe de Kabanda, ficou
outra vez a pensar que tudo o que estava a viver se devia unicamente ao encontro com a
Sandrinha nas praias da Ilha. Por essa via tinha surgido a reabilitação do Hospital Vladimir
Illitch e o restabelecimento da paz entre Kabanda e a Comunidade Europeia. Tudo agora lhe
parecia obra dum acaso.

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- Em condições de paz surgirá outra sociedade! Com certeza que o papel do Vladimir Illitch
terá que ser repensado (disse o Xande ao Delegado).
- Tem razão. Tudo terá que ser repensado (disse o Delegado já com o cachimbo a fumegar).

Os carros tinham deixado o aeroporto e desciam para a cidade. Era óbvio o reforço da presença
militar nas avenidas. Era óbvio também que o lixo das ruas se tinha ampliado e que o número de
bancas e banquinhas de pequeno comércio a venderem latas de leite condensado e montinhos de
tomates ou amendoim tinham triplicado ao longo dos passeios.

Encolhidos no banco de trás do carro do Delegado o Xandinho e Waltraude olhavam a cidade


pasmados como se estivessem a redescobri-la. Sentiu-se diminuto face à grandeza da situação e

sobretudo temia a forma como a Susaninha, muito mais terra a terra do que ele iria encarar a sua
função de chiba ou agente infiltrada que agora lhe era proposto. Em suma, doía-lhe a alma!
Naquele momento a grande preocupação do Xandinho era o medo da reacção da mulher. É certo
que ambos estavam unidos por misérias partilhadas, mas isso não lhe dava seguranças quanto à
forma como ela se comportaria perante o seu novo estatuto. Descansava-o o impacto que lhe iria
provocar a sua estadia num Hotel de cinco estrelas. Noutras circunstâncias o Hotel seria uma
pausa nas carências que tinham vivido... Mas assim era uma ameaça à paz de espírito que sempre
tinham desejado. Tudo era uma contradição. Primeiro tinha dito à mulher maravilhas da sua casa,
mas esta de momento tinha o grande senão de estar ocupada pelo “kunta”, pelo Ministro, e a
mulher teria que encarar face a face um Presidente da República, tudo isto enquanto o Katatúlio
usufruía das benesses da vivenda que por direito lhes pertencia. Pior é que para ela todo o
paraíso que o Xandinho lhe tinha descrito ao telefone era um contraste total com a realidade que
se estava a viver em Kabanda e ela seria forçada a dormir num Hotel tendo como carícia de boas
vindas dois enterros.

Quando chegaram ao Hotel ele despediu-se com um beijo de Waltraude e entrou para o hall com
o Delegado e o representante do Secretário-geral que se apressou a entregar-lhe as chaves da
suite. O ambiente era taciturno. A luz tinha falhado e entre subir onze andares a pé e esperar que
o gerador entrasse em funcionamento decidiu ir com eles para o bar e aguardar melhores
momentos que não espicaçassem mais o cansaço que sentia. Quando finalmente a luz chegou
subiu para a suite. Correu os cortinados pesados e atirou-se para cima da cama.

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XV

O telefone ainda tocou longamente até ele despertar do cansaço e acordar para a realidade. Na
penumbra do quarto procurou o telefone mas pareceu-lhe que o corpo se recusava a obedecer aos
seus intentos.

- Estou!

Ouviu claramente a voz do Delegado responder do outro lado da linha:

- Estamos aqui em baixo com a sua mulher.

O Xandinho sobressaltou-se:

- Há electricidade (perguntou)?
- Há, respondeu o Delegado.
- Então eu desço!

Ajeitou-se à pressa e à pressa correu para o elevador. Pelo caminho pensou que o reencontro que
iria ter com a sua companheira com quem durante alguns anos partilhava prazeres e agruras era o
primeiro na nova qualidade de esposos recém casados. Agora ansiava e temia aquele momento:

- Será que o casamento irá alterar a nossa relação (perguntava a si próprio enquanto entrava
no elevador)?

Quando chegou à recepção olhou ansiosamente para o hall e descobriu-a rodeada por uma série
de malas e maletas acompanhada pelo Delegado, a esposa e o Representante do Secretário-geral
das Nações Unidas. Correu para ela. Uniu-os um abraço profundo e algumas lágrimas de alegria
escorreram-lhes pelas faces misturadas com ternuras leves e sentidas. Naquele momento de
carinho desfizeram-se todas as dúvidas do Xandinho.

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- Porque não me foste esperar? Perguntava ela com alguma tristeza.


- Não pôde apressou-se o Representante do Secretário-geral a explicar. Por favor não insista...
Ele acaba também de chegar duma viagem atribulada e está muito cansado!
- Os jornais de ontem em Portugal falavam de ti! Disse ela olhando-o vaidosa. É verdade que
te encontraste com o Chefe da guerrilha?
- Não! Mas foi por causa dele que não te fui esperar!

A esposa do Delegado que também tinha ido ao aeroporto atarefava-se para encontrar alguém
que se encarregasse das bagagens da Sandra para as levar para a suite. A Susana habituada a ser
ela própria a carregar as suas malas admirava-se de tanta gentileza e era claro para o Xandinho
que a mulher estava feliz com os salamaleques protocolares. A vaidade estava-lhe estampada no
rosto e agora para ele era seguro que as dúvidas quanto ao comportamento da Susaninha pelo
inusitado da situação se tinham dissipado. Ele próprio respirava de alívio por não ter que
suportar os seus reconhecidos maus humores.

- Então e a casa? Perguntou-lhe ela.


- É uma longa história! Replicou o Xandinho afagando-lhe discretamente o rosto.
- Vocês têm muito que conversar e pouco tempo para fazê-lo! Subam para a suite. Nós
estaremos aqui dentro de algumas horas para irmos a sua casa. Prepare-se para conhecer o
Presidente da República e visitar a sua casa disse à Sandra o Delegado num tom bem-
humorado de apaziguamento.

Era claro que a Susaninha não percebia patavina do que se estava a passar. O condutor do
Delegado levou as malas para o elevador e o casal agora reunificado despediu-se
circunstancialmente do comité de recepção desfazendo-se em mesuras e agradecimentos pelas
boas vindas que repetidamente adressaram à Susaninha que começava a perceber que algo de
muito extraordinário estava a acontecer. Perante os olhares embevecidos dos anfitriões dirigiram-
se abraçados para o elevador.

- A sua mulher é muito bonita! Disse o Delegado ao Xandinho que ainda se voltou para trás
para agradecer o panegírico.

Finalmente o casal Xandinho ia estar só. O chauffeur do Delegado subiu com eles para ajudá-los
a acartar as bagagens para a suite. Quando chegaram o Xande apressou-se a correr os cortinados
e a acender um lustre descabido que pontuava na sala de estar da suite.

- Não sei o que se passa com a tal casa. Mas é bom estar num hotel destes! Tens alguma coisa
que se beba?

Noutras circunstâncias, ou se pelo menos tivesse tido tempo, teria preparado uma recepção à
esposa. Mas a força das circunstâncias obrigavam-no à improvisação. Pelo telefone encomendou
bebidas e algumas sandes ao “room service” e sentou-se ao lado dela que começava a gozar
aqueles luxos inusitados. Admirou-se pela forma desportiva como ela estava a encarar toda a
situação e pela primeira vez desde a sua chegada pousou demoradamente os olhos nos olhos
dela.
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- Estás linda! Disse-lhe embevecido.


- Foi a Tia Albina que me deu estas roupas (disse ela)...
- Quando vem?
- Deixa-te disso! Fala-me de ti...
- De nós! Replicou o Xandinho.

O empregado do “room service” entrou com as bebidas e enquanto as dispunha sobre a mesa de
centro a Susana aproveitou para fazer o reconhecimento do resto da suite.

- Não tens muito tempo! Disse-lhe o Xande! Daqui a pouco estão aí aqueles chatos que te
foram buscar ao aeroporto e ainda hoje tens que ir conhecer o Presidente da República de
Kabanda!

A Susaninha espantou-se, como a querer saber mais alguma coisa do que se iria passar.

- Tanto?

O Xandinho temeu que ela estivesse assustada com os imprevistos e aproveitou para a pôr ao
corrente da situação delicada que estava a viver. Precisava também dum ombro cúmplice para o
encorajar e o dela era o ideal já que por arrasto iria viver também situações no mínimo
invulgares. Durante a descrições que lhe fez dos seus últimos dias e de tudo o que lhe tinha
acontecido desde a sua chegada a Kabanda, ela olhava-o embevecida:

- Nunca esperei que fosse assim (disse-lhe ela)...


- Mas não é fácil! Vais conhecer a casa e tens que te aperaltar para as circunstâncias! Disse
lhe o Xande enquanto trocavam abraços e carícias. Tens que começar a escolher as
vestimentas para levares ao “kunta” e te apresentares ao Presidente.
- Precisava de um ferro de passar!
- Em casa tens tudo... Mas aqui...
- Que cena! Disse-lhe ela. Um Ministro ocupar-te a casa...

Depois de ligar para o room service a pedir um ferro de passar foi contando à Susaninha os
detalhes do seu encontro com o Katatúlio omitindo naturalmente as suas intimidades e arrufos
com a Sandra mas alargando-se no picaresco dos jantares com o Ministro, a Tia Albina e o
Renault. Por momentos ela lamentou a morte da Sandrinha que chegara a conhecer
razoavelmente bem em Santo António e deteve-se a contar-lhe pormenores da dor sentida pelos
pais. A Susana aproveitou a espera pelo ferro de passar para se despir no salão de estar da suite e
preparar-se para um banho reparador da chatice da viagem. O Xandinho olhou-lhe sequioso o
corpo mas afastou os pensamentos de desejo com medo que o tempo fosse curto e a qualquer
instante o Delegado poder chegar para os levarem ao “kunta”.

Quando ela voltou do banho o room service já tinha trazido o ferro. O seu corpo franzino
inclinou-se sobre a cama onde improvisou um espaço para alinhar a roupa. O Xandinho sentiu
um intenso rubor na face e de espíritos afogueados não resistiu a proceder a demoradas carícias.
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Afinal não tinham horas marcadas. E mesmo que o Delegado ou o Representante do Secretário-
geral chegassem poderiam esperar alguns minutos para darem tempo a que as saudades se
afogassem em prazeres mesmo que precoces ou apressados. Tudo estava a ser muito diferente do
que idealizara para a chegada da Sandrinha.

Quando o telefone tocou a anunciar a presença do Delegado na recepção já estavam os dois


vestidos e sentados no salão de estar da suite trocando carícias reprimidas pelo medo de
amarrotarem as fardas que tinham aperaltado para a cerimónia do “kunta”. Desceram no
elevador muito chegados um ao outro e a Susana desejou que a viagem não tivesse fim.

Chegaram ao hall do Hotel. Esperava-os o Delegado com a esposa, o Representante do


Secretário-geral, o Renault e os Embaixadores de Portugal e França. Os dois últimos, que já
tinham estado em casa do Xandinho decidiram aproveitar a boleia e ir com ele à cerimónia dos
pêsames pensando que assim teriam um trato diferenciado no meio do espalhafato que
normalmente acompanhava as deslocações do Presidente da República. O Xande procedeu às
apresentações da esposa, assustadiça perante o inesperado de toda aquela situação. Ostentava uns
brincos de ouro lindíssimos que o Xandinho lhe tinha oferecido num qualquer aniversário que
lhe emolduravam um rosto lampeiro e tímido. Quando ela cumprimentou o Renault sentiu-se que
entre eles houve uma empatia imediata que descansou os temores injustificados do Xande. O
Delegado pegou-lhe no braço e chamou-o de lado:

- Dada a importância do momento trouxe-lhe o carro e um condutor da Delegação. Dá-lhe


outro estatuto. Percebe (perguntou-lhe ele)? Vão cinco carros: O seu, o meu, o do
Representante do Secretário-geral, e o dos Embaixadores de Portugal e França. Manda o
protocolo que o seu vá à frente. Os outros seguirão as leis da precedências. O Renault será o
último. Só o meu, o da ONU e o dos Embaixadores levarão as respectivas bandeiras. O meu
condutor vai encarregar-se de formar o cortejo.

Quando a conversa com o Delegado terminou a Susaninha já estava em amena cavaqueira com
aquela comitiva de gente grande.

- Vamos (disse o Delegado)?

O “Xandinho pegou no braço da Susana e encaminhou-se para a saída onde o porteiro sempre
parecido com um militar em farda de gala escancarou reverenciosamente as portas.

- Parece um casamento (disse a Susaninha)!

Os carros embandeirados alinhavam-se à frente do Hotel com os condutores perfilados e


especados ao lado das portas de trás das viaturas já abertas. A Susaninha fez um trejeito de
espanto mas aguentou-se na situação.

Já tinha caído a noite quando o cortejo avançou pela ruas desertas da cidade.

- Parece um sítio fantasma (disse-lhe a Susaninha já dentro do carro)!


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- Parece (respondeu o Xande)! Estás num país em guerra.

Quando o carro do Xandinho chegou ao princípio da Avenida Ho-Chi-Min seis motas enormes
bloqueavam a entrada. A sua viatura parou bem como todas as outras que o seguiam e um militar
patenteado pôs-se em posição de sentido junto ao condutor:

- Sua Excelência o Dr. Alexandre Albergaria e a esposa (disse o condutor)! Atrás vem a
comitiva.

O militar deu dois passos atrás e bradou:

- Apresentar armas!

No escuro da noite uma patrulha saltou para a berma da estrada. Ouviu-se o bater seco de botas
militares e mãos calçadas com luvas brancas a baterem nas armas. A Susaninha assustou-se e
apertou com força a perna do Xande. Na longa avenida era patente um sem número de carros de
alta cilindrada, motas de escolta e um ou outro morador amedrontado que à porta de casa
admirava todo aquele aparato. O carro aproximou-se da casa do Xandinho que ordenou ao
condutor:

- Vamos entrar! Apesar de tudo ainda é a minha casa.

O Jorge abriu com força os portões. Dentro do jardim iluminado era óbvio um forte dispositivo
de segurança.

- É aqui (perguntou a Susaninha)?


- É! Respondeu o Xande.
- Huáu!!! Gritou a Susana.
- De certeza que o Presidente já cá está.

Quando carro parou o João Paulo apressou-se a abrir as portas.

- Apresento-te a patroa. Disse-lhe o Xandinho!

O empregado curvou-se várias vezes em ângulo recto e juntando as mão em gesto de prece
repetia:

- Obrigado! Obrigado! Obrigado!


- Obrigado porquê? Perguntou ao Xande a Susaninha!
- Não ligues! Está a falar Kabandês.

Não se rompia à entrada do salão que estava repleto. Dentro de casa adensava-se o fumo e ouvia-
se um longo bruaá que se adivinhava até ao fundo do jardim. À porta aguardava-os um mestre-
de-cerimónias que gritou:

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- Suas Excelências o Doutor Alexandre Albergaria e a Esposa!

- Sua Excelência o Embaixador de Portugal!


- Sua Excelência o Senhor Representantante do Secretário-geral das Nações Unidas.
- Suas Excelências o Delegado da Comunidade Económica Europeia e Esposa.

O Renault não teve direito a anunciação mas a Susaninha temendo qualquer indelicadeza,
sentindo-se como peixe na água ou como se tivesse feito um curso de formação acelerado de
boas maneiras e exéquias, apressou-se a voltar atrás. Fez-se um significativo silêncio e todos
olharam os recém chegados excepto naturalmente a figura esguia do Presidente da República que
do alto do seu metro e noventa se impunha mantendo conversas de circunstância com alguns dos
pesamerosos.

O Xandinho aproximou-se do Ministro do Plano e apresentou-o à esposa.

- Desculpe esta invasão e todo o desarranjo! Disse-lhe o Katatúlio.


- Esteja à sua vontade! Até é bom para eu conhecer os usos do país! Os meus muito sentidos
pêsames (disse ela curvando-se)! Trago-lhe muitos beijos da Tia Albina!
- Obrigado! Venham, vou apresentar-vos ao Camarada Presidente!

Aos poucos as conversas retomaram o seu ritmo e tom inicial. Pelo salão circulavam vários
empregados vestidos a rigor equilibrando bandejas com bebidas diversas servidas em copos
monogramados com as insígnias da Presidência da República.

Apresentações feitas, o Presidente pegou paternalmente no braço do Xandinho e encaminhou-o


para o jardim:

- Agradeço-lhe o que está a fazer pelo meu Ministro.


- Se não fossem as circunstância em que lhe estou a ser útil, diria que era um prazer.

O Presidente, uns bons vinte centímetros mais alto que o Xande pôs-lhe uma mão de amizade à
volta do ombro:

- Pela sua mulher, vejo que tem raízes africanas.


- Eu não!
- Mas pelo menos bebeu destas águas.
- Olá!!! Disse o papagaio quando passaram por ele!

O Xande pediu desculpa ao Presidente e foi dizer ao João Paulo para pôr o bicho no seu quarto.
Tinha medo que os fumos dos cachimbos e charutos desafinassem a garganta ao animal!

- Senhor Presidente (disse-lhe quando voltou) começo a ter medo de estar neste país!
- Não tenha! Sei que a ida a Vila Estanislau lhe correu mal! Mas vocês não estão a perceber
bem a situação. O que lhe quero dizer antes de mais é que a minha Presidência ficou
contente quando soube que era você que ia a Vila Estanislau. Duvidávamos do êxito da
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missão mas não podíamos fazer nada para evitá-la. Para lhe ser muito franco nós também
sabemos pouco do que de facto se está a passar. Temos uma grande dificuldade de
comunicações com as frentes. Sabemos com rigor o que se passa nas capitais de distrito mas
das frentes propriamente ditas ignoramos quase tudo!
- Talvez os militares estejam em autogestão (disse o Xandinho com ar de gozo)!
- Não direi tanto. Mas esta guerra tem características muito especiais. Normalmente são as
populações em fuga ou os desertores que nos dão notícias do mato. Lembra-me os tempos
em que eu próprio estava na guerra de Libertação Nacional. Partíamos para a acção e depois
por lá ficávamos sem contacto com o Estado-Maior!
- Não é possível (disse o Xandinho). Em Zalina um Coronel afirmou-me que o Líder da
Guerrilha estava cercado e que a sua eliminação física era uma questão de horas ou dias!

- É possível! Também já nos chegou isso aos ouvidos (disse o Presidente). Não lhe posso
confirmar nem desmentir. Tudo o que sabemos, é que na Sitila, lá onde menos se esperava
há mortos nas ruas mas não sabemos de que lados são. Nas cidades a nossa ofensiva é
planificada. No mato a iniciativa pertence aos militares. É muito possível que o Líder da
guerrilha esteja cercado…

O Xandinho não queria acreditar no que estava a ouvir. Encaminhou-se para o fundo do jardim
sempre com o braço do Presidente por cima do seu ombro e sentaram-se num dos divãs por
baixo da árvore grande. Três empregados de bandejas estendidas vieram oferecer-lhes bebidas.
Não havia dúvidas que o Xandinho era a estrela da noite. Os presentes olhavam-no com
suspeição, espanto e alguma reverência a sua intimidade com o Presidente. Os próprios membros
do governo passavam disfarçadamente por eles na expectativa de serem notados ou mesmo para
se aperceberem do teor da conversa. O João Paulo também se aproximou do Presidente com o
argumento de dizer ao Xandinho que o papagaio já estava no quarto. No bairro onde vivia seria a
grande novidade quando soubessem que ele tinha servido o Presidente. As pessoas iam-se
aproximando e discretamente e tentavam meter conversa a propósito de tudo e de nada o que o
enfastiava por lhe interromperem o raciocínio.

- A sua casa tem mais pulgas que um cão! Desabafou o Presidente quedando-se pensativo
sobre o momento trágico que Kabanda estava a viver.

Ficaram os dois em silêncio a observarem toda aquela fauna que se passeava pelo jardim de copo
na mão exercitando estilos para se fazerem notar pelo Chefe Supremo da Nação. Por fim
levantaram-se e encaminharam-se para o salão. À porta estavam os Embaixadores de Portugal e
França que inspeccionavam o mais pequeno gesto do Xande. Ele e o Presidente pararam junto
deles e o Xandinho tentou fazer com os três uma conversa de circunstância mas acabou por se
desculpar perante o Presidente: Foi procurar a mulher completamente desamparada no meio
daquela multidão desconhecida.

- Que pensas da casa? Perguntou-lhe.

- É excelente! Mas quando é que tudo isto acaba?


- Muito provavelmente amanhã há hora dos funerais. Mas vamos ver a casa.
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Pôs-lhe carinhosamente a mão no seu ombro e começou a encaminhá-la primeiro para a cozinha
e depois para os quartos.

- Conseguiste saber alguma coisa do Presidente (perguntou ela)?


- Nada! Não sei se ele está a mentir ou a falar verdade. Qualquer das situações é possível.

O telefone tocou.

- Não atendes (perguntou a Susaninha)?

O “Xandinho fez um gesto com a mão e o João Paulo precipitou-se para o aparelho!

- É para o Sôtor! Disse estendendo-lhe o telefone é um tal Eng. Paulo Serôdio!

O “Xandinho lembrou-se do governante do anterior regime que estivera em sua casa por causa
das obras do Hospital Vladimir Illitch e atendeu:

- Boa noite Sr. Engenheiro!


- Viva! Você está a ser muito falado em Portugal (disse-lhe o Serôdio). Os jornais falam da
sua coragem em ir falar com o Líder da Guerrilha. Foi mesmo notícia de abertura do
Telejornal!
- Desculpe mas estou no meio duma recepção.
- Sim! Disse ele. Desculpe incomodá-lo mas o que tenho para lhe dizer pode interessá-lo.
Como lhe disse quando nos encontramos, temos de nos ajudar uns aos outros…

O Xandinho pensou que ele lhe ia falar do hospital e desenhou para a mulher uma cara de
enfado.

- Como deve saber e como à muito se esperava o governo caiu ontem.


- Não sabia! Não estiva cá e ainda não tive tempo de falar com ninguém.
- Vamos para eleições! O meu partido está com uma certa dificuldade em constituir listas em
todos os círculos.

À medida que a conversa decorria o Xandinho ia ficando branco e segurava-se à mulher:

- Espere um pouco! Aqui faz muito barulho! Vou atendê-lo na extensão do quarto! Quando eu
atender (disse à mulher) desliga ao telefone e vem ter comigo ao quarto.

Ela ficou especada com o telefone na mão. O Xandinho passou primeiro pelo quarto de banho
para ver se ainda havia algum resto de ganza no armário. Mais do que nunca precisava agora de
droga. Encontrou um charro já feito que provavelmente a Sandrinha lá tinha deixado e entrou no
quarto não resistindo em atirar uma fumaça ao papagaio que estrebuchou.

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- Podes desligar e corre para aqui (disse o Xandinho à mulher)! Estou Senhor Engenheiro!
Estava a falar das listas!

A mulher entrou e fez uma pequena carícia na cabeça do papagaio:

- Que quarto bonito (disse ela).


- Pois! Estamos em dificuldades em constituir listas! Tudo foi muito de repente! Lembrei-me
de si!

O Xandinho falou com ele longamente. A Susaninha estava a apanhar no ar o sentido da


conversa e acabou por se sentar ao lado dele!

- É o Paulo Serôdio do partido Regenerador (perguntou-lhe baixinho)?

O “Xande acenou-lhe com a cabeça num gesto afirmativo.

- Vou pensar nisso (disse o Xandinho)! Tenho que falar com a minha mulher que chegou hoje
mesmo a Kabanda.

Quando pousou o telefone todo ele tremia.

- Que foi (perguntou-lhe a Susaninha)?


- Estamos na Hora di Bai!
- O que é isso?
- Estamos na hora do adeus como dizem os Cabo Verdianos!
- Ora! Ora, disse o papagaio!
- O Eng. Serôdio acaba de me convidar para me candidatar às eleições legislativas em lugar
elegível como independente pelo seu partido!
- Mas ele é da direita! Disse a Susaninha espantada.
- Ora! Ora! Disse o papagaio. O que eu quero...
- Cala-te! Disse o Xandinho!
- Cala-te! Palrou-lhe o papagaio!

A Susaninha sentada nas bordas da cama com os olhos no vago olhava para o requinte de todo o
quarto e com o ar perdido estendia a mão pela cama a experimentar a sua comodidade.
Ternamente, o Xandinho pousou-lhe um beijo nos lábios.

- Para já temos que pensar nos funerais! Depois com tempo falaremos do resto! Mas para te ser
franco estou farto deste circo. Já no corredor que dava para o salão ouviram por entre bruaás o
Katatúlio que lhes comunicou:

- O Camarada Presidente deseja dirigir-vos algumas palavras!

Pararam. Olharam um para o outro olhos nos olhos com um sorriso calmo. Disseram boa-noite
ao Katatúlio.
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- De facto no nosso país a ditadura foi um genocídio mental que como a canela atravessou mares
nunca dantes navegados (disse o “Xandinho entre os dentes)!
- Que disseste (perguntou a Susaninha)?
- Nada (disse ele arrastando-a para o corredor)!

Voltaram as costas ao Simeano Katatúlio e trancaram-se no quarto. Pela primeira vez deitaram-
se na cama que iria ser a sua primeira cama, pelos tempos mais próximos e começaram, sorrindo,
a construir as estrelas do seu Universo.

Santo António dos Cavaleiros, 4 de Fevereiro 2007

(1) Kunta= Cerimónia fúnebre que se realiza em Kabanda quando morre alguém.
(2) Redinha= Arte de pesca.
(3) Pesamar= Dar os pêsames.
(4) Bichar= Fazer bicha ou fila.
(5) Kidengue= Criança em Kabandês.
(6) Banda= Arvore cuja folha serve para fazer palhotas.

FIM

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