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Revista

Brasileira fa s e i x
• J A N EI R O - FE V E R EI R O - M A R Ç O 2 0 1 9 •

a no i I • n . ° 9 8
A c a d e m i a B ra s i l e i ra R e v i s ta B ra s i l e i ra
d e L e t ra s 2 0 1 9
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Padilha, Zuenir Ventura. ISSN 0103707-2

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Os artigos refletem exclusivamente a opinião dos autores, sendo eles também responsáveis
pelas exatidão das citações e referências bibliográficas de seus textos.
Transcrições feitas pela Secretaria Geral da ABL.

Esta Revista está disponível, em formato digital, no site www.academia.org.br/revistabrasileira.


Sumário
A pr esentaç ão
Cicero Sandroni 7

CI CLO C ULTURA EM PRO CESSO


Zuenir Ventura Cultura e adversidade 9
Muniz Sodré Inteligência artificial e cultura 15
Domício Proença Filho Língua, cultura e identidade nacional 23

H OMENAGEM A DANTE MIL ANO


Ivan Junqueira Dante Milano: o pensamento emocionado 31

ENSAIO
Arno Wehling Ramón Menéndez Pidal 49
Antônio Torres Memória reverenciada – Afonso Arinos 55
Arnaldo Niskier O orgulho de ser professor 61
Ronaldo Cagiano Autor captura a realidade do migrante num país em transe 71
Felipe Pereira Rissato Euclides vive: Dedicatórias 75
Gilberto Araújo O romance em Maura Lopes Cançado 113

POESIA
Dante Milano 125

CONTO
Renard Perez Gente boa 143
Esta a glória que fica, eleva, honra e consola.
Machado de Assis
Apresentação

Cicero Sandroni
Ocupante da Cadeira 6 na Academia Brasileira de Letras

A
presentamos um número novo nes- Outros artigos como o de Arno Wehling,
se ano de 2019, bastante diversifica- Antônio Torres, Arnaldo Niskier, Ronaldo
do, iniciando-se com colaborações Cagiano, Felipe Pereira Rissato e Gilberto
expressivas de dois acadêmicos da Casa, Zue- Araújo enriquecem este número, e para
nir Ventura e Domício Proença Filho, além do eles estamos certos de que se voltarão às
professor Muniz Sodré. Os temas das pales- atenções dos leitores. E o conto do escritor
tras giraram em torno do “Ciclo cultura em Renard Perez, nome importante, mas pouco
processo”, apresentado na ABL, notáveis pelo lembrado, da Literatura Brasileira.
seu conteúdo e pelo despertar de interesse Faço minhas as palavras do nosso sau-
para os estudiosos da cultura moderna. doso e também editor da RB, João de Scan-
Destacamos uma homenagem dupla, ao timburgo, “Temos certeza de que estamos
Acadêmico Ivan Junqueira e ao poeta Dante cumprindo o nosso dever, ao publicar, tri-
Milano. Ivan nos apresenta com texto puro e mestralmente, com o refinado bom gosto
sincero sobre o amigo Dante, quando ressalta de que a Revista Brasileira é exemplo, uma
que ele era um poeta que preferia adotar as publicação do mais alto nível literário, digno
formas fixas, em especial o soneto, e recupe- das tradições da Academia. Estamos satis-
rar temas universais tais como o amor, a mor- feitos que assim venha ocorrendo, segundo
te e o sonho – o tripé temático de sua obra. testemunhos variadíssimos.”
C I C L O C U L T U R A E M PRO C ESSO

Cultura e adversidade

Zuenir Ventura
Ocupante da Cadeira 32 na Academia Brasileira de Letras

E
m dezembro de 1964, uma moça da voraz lá do sertão, o carcará, que não mor-
Zona Sul do Rio, um negro carioca e re de fome porque, com seu bico volteado
outro nordestino subiam ao tablado que nem gavião, “pega, mata e come”. A
do inacabado Teatro de Arena, em Copa- mensagem estava nas entrelinhas, nas me-
cabana, para um show surpreendente, a táforas e segundas intenções.
começar pelo título, Opinião, algo que já Opinião foi assim a primeira aula dada
então experimentava a intensa procura dos ao público sobre como reaprender a ler cer-
tempos de escassez. Para o público, tan- tas obras de arte – uma lição indispensável
to quanto para os intérpretes e os autores para os anos que se seguiram. O clima na
(Oduvaldo Vianna Filho, Armando Costa e plateia compacta, ensopada de suor, era de
Paulo Pontes), tratava-se de uma resposta, catarse e sublimação. Vivia-se a sensação de
com nove meses de atraso, ao golpe militar. uma vitória que tinha sido impossível lá fora.
A cantora Nara Leão, musa da Bos- No período pré-64, o cinema e a canção
sa Nova, o sambista Zé Kéti e o cantador ocupavam um plano destacado no movimen-
João do Vale, ambos desconhecidos, pro- to cultural. Em 1962, Cinco vezes favela,
punham-se aparentemente a apenas contar filme de episódios, apresentava os favelados
suas vidas. Duas músicas em especial em- como protagonistas de dramas amargos. Em
polgavam a plateia que superlotava o teatro 1963, Vidas Secas, de Nelson Pereira dos
todas as noites. Na primeira, que dava título Santos, baseado no romance de Graciliano
ao show, Opinião. Zé Kéti, a pretexto de Ramos, evidenciava a clara escolha dos cami-
exaltar sua fidelidade à favela, da qual não nhos sociais para o cinema. Ganga Zumba,
queria sair, cantava: “Podem me prender/ de Cacá Diegues, Garrincha, alegria do
Podem me bater. Que eu não mudo de opi- povo, de Joaquim Pedro de Andrade, Maio-
nião/Daqui do morro eu não saio não.” ria absoluta, de Leon Hirszman, e o filme-
Na segunda canção, pela voz de Nara e -marco Deus e o diabo na terra do sol, de
depois de Maria Bethânia, João do Vale nar- Glauber Rocha, confirmavam a presença não
rava a aventura de um pássaro malvado e de alguns novos cineastas, mas de toda uma
Conferência pronunciada na Academia Brasileira de Letras em 7 de junho de 2018.
10  •  Zuenir Ventura

geração disposta a enfrentar os desafios e a histórico. Na noite de 21 de outubro, cinco


adversidade dos novos temas da realidade jovens compositores aguardavam nervosos
nacional. o anúncio de quem seria o vencedor. Seus
Fenômeno semelhante estava ocorren- nomes: Roberto Carlos, Caetano Veloso,
do na área da música. A Bossa Nova nasce- Chico Buarque, Gilberto Gil e Edu Lobo,
ra no período otimista do governo JK como quase todos com chance de saírem vitorio-
uma espécie de modernização da música sos de uma disputa da qual o público parti-
popular brasileira. Com seu refinamento cipava com vaias ensurdecedoras.
melódico e suas letras líricas, era uma ex- Era uma festa protagonizada por garo-
pressão da classe média despreocupada. tos de pouco mais de 20 anos. Era também
Ocupava o espaço vago dos boleros e dos uma batalha que se desenrolava simulta-
blues, bem distante dos sambas de morro e neamente no palco e nos bastidores. No
da toada nordestina. palco, a disputa era entre Alegria, Alegria;
A partir de 1962, o aparecimento de Roda Viva; Domingo no Parque; Ponteio e a
compositores como Geraldo Vadré, Carlos obscura Maria, Carnaval e Cinzas, a única a
Lyra, Baden Powell, Sérgio Ricardo, Edu não entrar para a história da MPB. Mas era
Lobo, Vinicius de Moraes, entre outros, mu- também entre o violão e a guitarra elétrica,
daria o cenário. A temática social iria subs- entre a MPB “tradicional” e a novidade da
tituir o lirismo sem compromisso; quanto à nascente Tropicália.
forma, haveria a recuperação da tradição Nos bastidores, a batalha era para que
afro e das cantigas do Nordeste. tudo desse certo. “Tudo”, no caso, era levar
Assim como o show Opinião tinha po- a bom termo um grande evento transmitido
larizado as tentativas anteriores de uma arte ao vivo pela televisão, o que era um imenso
de protesto, foi também no palco que surgi- desafio naquele longínquo final dos anos
ram os sinais mais concretos de uma arte de 1960. E também incluía administrar crises
agressão que, em 1967 e 68, iria espalhar de pânico, buscar artista que estava beben-
em todos os campos culturais novas cores, do no botequim em cima da hora de sua
novas formas, novos sons e novas imagens: apresentação, garantir que nenhum artista
urubus passeando em festa, pintores trans- se apresentasse vestido de forma inconve-
portando diretamente para a tela o que de- niente. “Eu estava lá morrendo de medo
veriam pintar, bananas, abacaxis, Carmen que acontecesse alguma coisa”, diz Solano
Miranda, paroxismo, antropofagia, o caos. Ribeiro, organizador do festival.
Era o Tropicalismo, explosão de um pro- Ainda haveria muito o que falar sobre os
cesso que lançou estilhaços por todos os 50, os anos dourados, e sobre os 60, os anos
campos: os Parangolés, de Hélio Oiticia, na rebeldes, mas o período que nos interessa
pintura, Terra em transe, de Glauber Ro- mais, por atender ao tema da palestra, é o
cha, no cinema. Tropicália, de Caetano Ve- dos 70, os anos de chumbo, que transcorre-
loso, na música, O Rei da Vela e Roda Viva ram entre dezembro de 1968 e dezembro de
na visão de José Celso Martinez. 1978, na vigência do AI-5, o Ato Institucional
Em 1967, o 3.o Festival de Música Popu- que concedeu ao governo militar o poder ab-
lar Brasileira da TV Record foi considerado soluto de fechar o Congresso Nacional e as
C u lt u r a e a dv e r si da d e   •  11

Assembleias Legislativas, de suspender o ha- hegemonia de uma cultura de massa bus-


beas corpus e de controlar, para reprimir, to- cando apenas o consumo fácil.
das as formas de expressão do pensamento. Essas manifestações inauguraram uma
É o período também chamado de “va- discussão sobre as limitações e (im)possibi-
zio cultural”, porque cerca de 500 filmes, lidades de ação do artista diante do cercea-
450 peças de teatro, 200 livros, incontáveis mento da expressão. A adversidade impede
programas de rádio e notícias de jornais e ou, ao contrário, estimula, como reação, o
revistas, mais de 500 letras de músicas e ato de criar? Pode até não impedir a cria-
uma dúzia de capítulos e sinopses de tele- ção quando se trata de um ato isolado, mas
novelas foram censurados. Só Plínio Marcos com certeza dificulta sua divulgação.
teve 18 peças vetadas. O índex reunia um O AI-5 provou, por exemplo, o quanto a
elenco variado, que ia de Chico Buarque, censura seria capaz de atingir mais radical e
um dos mais perseguidos da época, a Dercy implacavelmente a criação artística através
Gonçalves; de Miguelangelo a Clóvis Bor- de dois instrumentos: por meio da censura
nay; de Rubem Fonseca a Cassandra Rios, prévia agindo no interior do campo cultural
que, em 1976, teve proibidos 33 de seus 36 – cortando, expurgando ou simplesmente
títulos lançados até então – todos acusados vetando – e com o auxílio de outros pode-
de atentado ao pudor e aos bons costumes. res – cassando, expulsando, aposentando,
Como se isso não bastasse, houve ain- prendendo, instaurando assim um inapelá-
da a punição de 1.607 cidadãos, dos quais vel mecanismo de punição.
321 cassados: seis senadores, 110 deputa- Uma das consequências perversas e ime-
dos federais e 161 estaduais, 22 prefeitos, diatas do expurgo foi a fuga dos cérebros
22 vereadores. Entre os funcionários pú- para o estrangeiro. A Fundação Nacional de
blicos afastados estavam três ministros do Ciências dos EUA revelou que em 1970 o
Supremo Tribunal Federal – Hermes Lima, Brasil foi o segundo exportador latino-ame-
Evandro Lins e Silva e Vitor Nunes Leal – e ricano de cientistas (63) para instituições
professores universitários como Caio Prado americanas, só perdendo para a Colômbia.
Júnior (condenado a quatro anos e meio Na época, o professor Antonio Candido
de prisão por uma entrevista a um jornal de Mello e Souza, da USP, apontou como
estudantil), Florestan Fernandes, Fernando causas da decadência do ensino, além da pu-
Henrique Cardoso, Mário Schemberg, Vila nição aos professores, a diminuição de alunos
Nova Artigas, Hélio Lourenço de Oliveira e bem-dotados, que foram embora ou desisti-
uma dezena de pesquisadores do Instituto ram de estudar.
Oswaldo Cruz, entre muitos outros. Em outros setores, as queixas eram
A perspectiva que a década apresentava idênticas. Na opinião de Glauber Rocha, o
era sombria: o desaparecimento da temá- “AI-5 paralisou tudo: Cinema Novo, teatro,
tica polêmica e da controvérsia na arte, o música, tropicalismo”. Para o crítico de ar-
êxodo de artistas, o expurgo nas universi- tes plásticas Frederico de Moraes, a simples
dades, a queda de venda de jornais, revis- existência do AI-5 já criava o vazio cultural.
tas e livros, a mediocrização da televisão, No jornalismo, o então editor-chefe do
a emergência de falsos valores estéticos, a Jornal do Brasil, Alberto Dines, que faleceu
12  •  Zuenir Ventura

recentemente, lamentava que justamente contra a censura à imprensa, considerando-


quando a imprensa vinha atravessando um -a como o “grande fato político e social da
processo ascendente de qualidade e ama- década. A partir dela”, afirmava, “tudo o
durecimento, essa explosão era abafada mais é possível em termos de coerção e cer-
pela implantação do arbítrio em toda a área ceamento”.
da informação. Por sua vez, o romancista Érico Veríssimo
“Hoje”, ele dizia, “não há mais fonte não era menos pessimista ao prever: “Se con-
de notícias, só notas oficiais. Não há mais tinuarem as limitações impostas pela censura
reportagem no sentido clássico do termo à imprensa, ao livro, às peças de teatro, aos
(como procura, descoberta, investigação); filmes e às canções, dia virá em que, no do-
não há mais aquela indispensável esponta- mínio da arte, da literatura e das ideias, a voz
neidade no processo de busca e divulgação dos brasileiros começará a ter um tom eunu-
da informação porque há um fantasma ba- coide. Nosso povo em breve nada mais terá
lançando em cima de todos chamado AI- pra ler nos jornais do que a notícia de que
5”. Ele perguntava: “Qual o repórter ou o prefeito de Jacareacanga inaugurou uma
fotógrafo que, depois de receber alguns ponte, de que o governador do Piauí viajou
pescoções de um policial só porque é re- para o Recife”. Na sua opinião, a pior censura
pórter, se aventurará a sair para cobrir com era a que se instalava dentro de nós sem que
desembaraço algum acontecimento?”. percebêssemos. “Se a censura prévia é já um
De fato, o aparelho de repressão foi se vexame”, dizia, “a outra, a autocensura, cria
aprimorando a ponto de tapar todas as bre- nas revistas e jornais uma situação kafkiana
chas. Por exemplo: para não haver dúvidas (...) Um escritor que arquiteta um romance,
quanto a uma ordem, telegramas eram en- um ensaio ou uma crônica pode muito bem
viados aos veículos, como este ao diretor do estar atemorizado ou influenciado pela cen-
jornal O Estado de São Paulo: sura que, ao escolher um assunto ou desen-
“De ordem do senhor ministro da Justiça volver uma ideia, nem chega a perceber que
fica expressamente proibida a publicação de: está obedecendo às ordens de um agente se-
notícias, comentários, entrevistas ou critérios de creto que dirige em seu cérebro o trânsito de
qualquer natureza, sobre abertura política ou
seus pensamentos: “Não dobre à esquerda”,
democratização ou assuntos correlatos, anistia
a cassados ou revisão parcial de seus processos,
“Pare”, “Siga”, “diminua a velocidade”. De
críticas ou comentários ou editoriais desfavo- fato, depois de algum tempo a censura não
ráveis sobre a situação econômico-financeira, precisava mais de censor externo; cada um
ou problema sucessório e suas implicações. As carregava dentro de si o seu.
ordens acima transmitidas atingem quaisquer Aos 28 anos de idade e sete de carrei-
pessoas, inclusive as que já foram ministros de ra, Chico Buarque de Holanda já tinha uma
Estado ou ocuparam altas posições ou funções
obra surpreendentemente extensa e rica.
em quaisquer atividades públicas. Fica igual-
Com cinco LPs gravados (um dos quais,
mente proibida pelo senhor ministro da Justiça
a entrevista de Roberto Campos.” Construção, vendera logo 100 mil cópias e
outro, com Caetano, 120 mil) e duas pe-
Alguns escritores, como o Acadêmico An- ças teatrais, Roda Viva e Calabar, ele con-
tonio Callado, se insurgiram publicamente seguia agradar todos os gostos, o culto e o
C u lt u r a e a dv e r si da d e   •  13

popular, menos o da censura – era um de Em alguns casos, os próprios censores


seus autores mais visados. faziam os versos. “Por exemplo”, conta-
Ele próprio explicava: “Os censores va Chico, “a música que fiz para o Mario
acham que vai ter problema e então levam Reis, A bolsa de Amores, terminava assim:
mais tempo censurando, dificilmente apro- “a moça é fria, ordinária, ao portador.” Era
vam da primeira vez.” Com a autoridade de um trocadilho, e a brincadeira da música se
freguês, o compositor que chegou a se es- resumia nisso. Eles acharam que era uma
conder atrás do pseudônimo de Julinho da ofensa à mulher brasileira e sugeriram: ‘a
Adelaide, conhecia como poucos a rotina moça é tola, perdulária e sem valor’. Aí eu
dos censores. Eis o seu depoimento: preferi deixar a música sem gravar.”
“Eles querem ouvir a gravação, querem “Mas agora”, é ele ainda quem infor-
bater papo e, por via das dúvidas, acabam ma, “não fazem mais assim não, tudo vai
censurando. Depois mandam para Brasília e
pra Brasília, o advogado da empresa tenta
lavam as mãos. Ninguém quer assumir sozi-
aprovar. A peça Calabar ficou três meses na
nho a responsabilidade de liberar uma música.
E o que importa é menos a letra ou a música, censura, e quando eu já estava achando que
mas o autor, que é fulano que já fez tal música não ia acontecer nada de bom, foi liberada
e tais declarações.” com alguns cortes e algumas músicas que
“A última música que mandei”, continua- não podem ser cantadas. Aliás, agora existe
va, “não tem nada, mas eles vão ler cem ve- esse tipo de censura: músicas que não po-
zes, olhar nas entrelinhas tentando encontrar dem ser cantadas, outras que não podem
intenções, relações com músicas anteriores
ser tocadas no rádio. Eu só aguento a barra
etc. Qualquer coisa que se mande é sempre
olhada com suspeita, é sempre uma chatea-
porque estou dando umas escapadinhas. Se
ção. Às vezes, eles sugerem que se mude tal estivesse dependendo de músicas e de ficar
verso: “Cuidado, essa palavra é muito perigo- à espera da censura para gravar um disco,
sa, essa frase pode dar problemas.” provavelmente estaria desesperado.”
Inteligência artificial e cultura

Muniz Sodré
Professor Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, escritor

M
uito tempo atrás eu registrava Cultura não é, portanto, o mesmo que
num escrito o comentário irôni- conhecimento. Imagine-se o conhecimen-
co de Nietzsche no sentido de to como um mar em que se deve navegar:
que as classes dirigentes adoram inventar a cultura é um mapa, uma carta de nave-
palavras, em que terminam acreditando. gação, com balizas e faróis. Antes mesmo
Na realidade, por trás de cada uma dessas que apareça o conhecimento, ela já se faz
invenções há uma ideia ou ideias que ser- presente como uma matriz de orientação
vem a funcionamentos estratégicos dentro para fazer diferenças e estabelecer critérios,
das relações sociais. A palavra cultura é um mas também como um mapa da memória
exemplo privilegiado. Desde o final do sé- do saber pertinente à reprodução da cons-
culo XVIII, essa palavra-ideia tem estado no ciência moderna. Essa matriz ou conjunto
de formas simbólicas publicamente dispo-
centro de projetos, obras, ciências, tal é o
níveis sempre pressupôs uma elite moral ou
poder de crença que nela se deposita.
ético-política, que efetivamente representa
De fato, a ideia de cultura como um
a classe dirigente e exerce um poder de ne-
campo autônomo é um fenômeno mo-
gatividade, isto é, o poder de criticar (inclu-
derno, uma forma alinhada com outras (a
sive a sua própria classe) aliado ao poder de
democracia, a escola, a mercadoria etc.)
universalizar o seu discurso.
constitutivas da sociedade burguesa. Mais
Mas o pano de fundo religioso é bem vi-
precisamente, é a forma assumida pelo co- sível. Há na ideia grandiosa de cultura uma
nhecimento que se assenta no comum bur- inclinação, ao mesmo tempo historicista e
guês. Mas a sua singularidade está no fato teológica, para responder pela totalidade
de ser uma forma que passa transversal- no momento em que a hipótese religio-
mente por todas as outras ao modo de uma sa deixa de cumprir esta função. Por mais
“trans-forma”, isto é, de algo que modifica problemática que se apresente, essa noção
a percepção, mais do que é reconhecido e entra no espaço deixado em aberto pela
absorvido pela percepção. moderna crise dos fundamentos. Não falta
Conferência pronunciada na Academia Brasileira de Letras em 14 de junho de 2018.
16  •  Muniz Sodré

quem pense nesta direção, sugerindo que a no transcender”, como observa George
cultura seja “uma resposta ambígua à frag- Steiner, duas décadas e pouco mais tarde,
mentação da experiência tradicional mítica em sua crítica ao texto de Eliot. Steiner, fi-
e teologicamente orientada”.1 lósofo, crítico literário, romancista, poeta,
As teorias da cultura seriam, assim, professor em Oxford e em Harvard é uma
“coniventes com o desejo de restauração das mentes mais brilhantes do pensamento
da unidade que se terá perdido com a ins- social entre os séculos XX e XXI. É também
titucionalização da modernidade: quer seja um grande analista do Holocausto: chama
voltada para o passado, insistindo na comu- Eliot de irresponsável por passar ao largo do
nidade, na tradição, no retorno às origens fato de que a cultura europeia estava asso-
etc. (que caracteriza os romantismos); ou ciada às duas guerras mundiais e ao Holo-
voltada para o futuro, o que caracteriza o causto. Desconstruindo a ilusão clássica de
projetualismo moderno que anseia por re- que as humanidades possam humanizar,
compor a experiência com base em progra- Steiner frisa que a religião cristã é o moti-
mas fortes ou ideias absolutas, como as de vo pelo qual o antissemitismo impregna a
progresso, de emancipação da humanidade fundo a cultura ocidental, culminando as-
etc. (é isso que aparenta entre si os diversos sim nos fornos crematórios dos nazistas,
iluminismos)”.2 no Gulag soviético e anunciando a era da
A idealização da cultura europeia per- “pós-cultura”.
sistiu até a primeira metade do século Pós-cultura, portanto, seria uma espé-
passado, como comprova a leitura de um cie de conceito depauperado para a era em
texto polêmico de T.S. Eliot, em que ele ten- que já ingressamos. É a era em que essa
ta definir o conceito de cultura como um entidade cada vez mais ambígua chamada
transcender.3 A transcendência implícita na “cultura” define-se como o conjunto dos
posição de Eliot é ainda mais intensa do que processos sociais de significação e articula-
aquela que preside aos iluminismos na con- -se com a sociedade, portanto, com a eco-
cepção de cultura, porque Eliot explicita o nomia, a produção e o Estado. É a cultura
cordão umbilical que une religião e cultura, que se afirma como imprescindível à forma-
e não qualquer religião, mas o cristianismo, ção do capital humano no movimento da
que zelou pela expansão do pensamento financeirização do mundo. É a cultura que
europeu: “Só uma cultura cristã poderia perde a clássica potência de negatividade
ter produzido Voltaire ou Nietzsche. Eu não crítica em benefício da integração pelo en-
creio que a cultura da Europa sobreviveria tretenimento e pela informação. Insepará-
vel da mídia – que atua em interação com
ao desaparecimento da fé cristã.”4
fatores econômicos e tecnológicos, mas
Este aspecto religioso da cultura é “uma
não diretamente políticos –, essa cultura
aspiração à transcendência, é uma aposta
concorre indiretamente para a manutenção
1 MIRANDA, José A. Bragança. Teoria da Cultura, Ed.

Século XXI, Lisboa, 2002, p. 22.


do sistema político hegemônico.
2 Ibidem, p. 23. Em termos organizacionais, o fenômeno
3 Cf. ELIOT, T.S. Notes towards the definition of culture.

Faber and Faber, 1948.


gira ao redor da indústria do século XXI: a
4 Ibidem, p. 122. tecnologia da informação, a partir da qual
I n t e l i g ê nc i a a rt if i c i a l e c u lt u r a   •  17

o substrato real do fenômeno pode ser de- Na verdade, não se trata da máquina em
signado como inteligência artificial. Inteli- si mesma, mas do refinamento cognitivo de-
gência entende-se normalmente como a corrente de processamento e armazenamen-
capacidade global de correlação de dados. to de dados, canalizado para a aplicação de
O adjetivo “artificial” serve para caracteri- técnicas neurais, a exemplo do neuromarke-
zar o que alguns designam como “a quarta ting, o marketing com foco neurológico. O
revolução industrial”5, definida pela com- nome corrente para todo esse processo é Big
binação da inteligência de robôs com seres Data, isto é, os dados brutos analisados por
humanos. Para a adequada compreensão algoritmos para a detecção de regularida-
dessa interface homem-máquina, dois ter- des, por exemplo, nas máquinas, nos índices
mos impõem-se: algoritmo e conectividade. econômicos ou no comportamento dos con-
Algoritmo é um conjunto de regras lógi- sumidores. Dessas regularidades se inferem
cas, destinado à resolução de problemas e automaticamente regras preditivas: o futu-
à execução de tarefas. Conectividade é o ro prolonga o passado, abrindo fascinantes
acesso instantâneo tanto a pessoas quanto perspectivas técnicas.
a objetos. O nome cinematográfico para essa in-
São termos de uma nova utopia, que tensificação dos dispositivos de tratamento
se manifesta no discurso dos especialistas de dados e de amplificação das correlações
em computação como a de “um mundo técnicas foi matrix, uma clara fantasia ao
inteligente, conectado e seguro”. Não se estilo da science fiction apoiada na ideia de
trata, portanto, de progresso técnico stricto uma realidade paralela em que a corporei-
sensu, mas de tecnologia em sentido amplo dade se constitui eletronicamente. Mas já
como possibilidade de transformação de in- no primeiro terço do século XX, podiam-se
dústrias, de produção de novos modelos de
registrar experiências estéticas (por exem-
negócios e, mesmo, de subjetividades.
plo, no cinema de Sergei Eisenstein) em que
Essa escala torna o funcionamento dos
o discurso audiovisual visava à corporeida-
mercados progressivamente dependentes
de, procurando intervir no sensório. Isso foi
de inteligência artificial, com possibilida-
largamente amplificado pela publicidade
des de impactar direta e individualmente os
comercial posterior.
consumidores, prévia e secretamente iden-
A publicidade continua por trás de
tificados por perfis computacionais. É lugar
tudo, mas agora é ainda maior o escopo:
comum entre os estrategistas de mercado
uma ambiência paralela, constituída pela
a noção de que o computador pode saber
presença inteligente e invisível das novas
mais de um indivíduo do que ele próprio
tecnologias (em resumo, a inteligência ar-
sobre si mesmo. E o fato é que, dentro de
tificial) se superporia às coordenadas clás-
uma década, a capacidade cognitiva da má-
sicas de espaço-tempo. De fato, nenhuma
quina inteligente será equivalente, senão
coordenada espaçotemporal fixa pode ser
superior à capacidade do cérebro humano.
atribuída a essa forma de experiência do
5 A primeira revolução industrial foi a das máquinas de
real, cujas especificidades são o nomadismo
tear e a vapor; a segunda, a da eletricidade; a terceira,
a da tecnologia eletrônica ou computacional. e a interatividade.
18  •  Muniz Sodré

Aparentemente, essa inteligência artifi- É a inteligência artificial que deixa aflo-


cial é apolítica. Mas só aparentemente, por- rar a face tecnológica dessa nova ecologia,
que em primeiro lugar ela é uma derivação em que se desenvolvem novas formas de
da política das finanças e da economia de existência e em que a própria realidade cir-
mercado que tem guiado a globalização. cundante, inclusive em seus aspectos afe-
E diretamente implica uma biopolítica, por tivos (a dimensão do sensório), pode ser
sua vez inerente a uma ecologia eletrôni- “aumentada” por aplicativos técnicos. A di-
ca (uma tecnologia radicalmente diversa mensão do sensório envolve o sistema lím-
do domínio oitocentista dos motores me- bico (estruturas cerebrais responsáveis pela
cânicos) e biotecnológica em que o corpo integração de informações sensitivo-senso-
humano é progressivamente replicado por riais com o psiquismo) dos indivíduos, regu-
próteses sob medida de membros e tecidos lando comportamentos emocionais, sexuais
simples. e até mesmo religiosos.6 No cérebro, as
Basta tomarmos como exemplo a im- decisões mais rápidas são as emocionais, o
pressão 3D, já usada na fabricação de per- que faz do sistema límbico o foco neuro-
nas e braços mecânicos, articulações do lógico adequado a um ordenamento socio-­
fêmur, ossos da face, pedaços da traqueia, tecnológico orientado pela velocidade da
com perspectivas de substituição de estru- circulação de fluxos de natureza diversa,
turas mais complexas, a exemplo de ová- desde os financeiros até os informacionais,
rios, rins, fígado e coração. Não mais se com potencial para afetação ecológica das
trata do velho tópico midiático (ao gosto de formas de vida.
MacLuhan) de superação do texto impresso Esse ordenamento é homólogo tanto
pela imagem, mas da própria vida impressa à estrutura psicológica do vício quanto ao
em terceira dimensão nas biopróteses. Ou discurso da psicologia comportamental. Ele
então, trata-se de edição genética, que é o provém da própria tecnologia, é aquilo que
emprego de ferramentas de manipulação especialistas costumam designar como per-
de genes em embriões humanos, com o suasive tech, ou seja, o poder indutivo de
objetivo de retificar genes defeituosos ou uma ecologia eletronicamente programada.
responsáveis por doenças específicas. Isso nos permitiria pensar numa cultura do
Dessa tecnologia promissora e restau- autômato. No desenvolvimento tecnológi-
radora em termos médicos, outra corporei- co, autômato é palavra que recobre o trata-
dade avulta virtualmente agora em outro mento de dados maciços com o objetivo de
plano, conectado a um novo tipo de gestão extrair correlações (data analytics) ou de fa-
da vida dos indivíduos pelas forças transna- zer sentido, o que não implica produzir sig-
cionais do mercado e implicitamente conec- nificações ou conhecimento, e sim, pura e
tado a uma política entendida como “dar
forma à vida do povo” – enquanto ambiên­ 6O fenômeno de disseminação das seitas fundamentalis-
tas tem como pano de fundo uma ecologia mental per-
cia subjetiva e cultural – análoga a uma passada pela lógica financeira implícita na “teologia da
biopolítica já anunciada no passado por prosperidade”. Não se trata apenas de crença religiosa,
mas de um agregado de estímulos oriundos de marke-
uma das primeiras ditaduras tecnológicas, o ting empresarial, literatura de autoajuda e doutrinação
nazismo. pseudocientífica relativa à aquisição de riquezas.
I n t e l i g ê nc i a a rt if i c i a l e c u lt u r a   •  19

simplesmente, performances insuspeitadas tal monta que leva a máquina a aprender


ou instrutivas.7 Esta é apenas outra maneira a partir de numerosos exemplos e absorver
de descrevermos a “inteligência artificial”. conhecimentos com vistas a uma tomada
Se quisermos vincular esse processo à de decisão.8 Daí decorre um fato talvez per-
educação, assim como tradicionalmente turbador: o algoritmo já pronto pode ser
vinculamos cultura a educação, veremos ensinado.
que ele comporta métodos de aprendi- Dúvidas não há quanto à “inteligência”
zagem automática ou “profunda” (deep da máquina ou quanto à evidência de que
learning), que permitem a uma máquina o cérebro possa ser concebido como má-
adaptar o seu comportamento de manei- quina, na medida em que não se restrinja
ra dinâmica a partir de um conhecimento a definição a mecanismo físico, mas prin-
previamente adquirido. O deep learning é cipalmente como estrutura lógica de um
de fato um grande passo à frente na evo- mecanismo ou um dispositivo. Quando se
lução da aprendizagem automática. Quan- considera o domínio informacional como
do o computador Deep Blue venceu uma um transbordamento das fronteiras artifi-
partida de xadrez contra o campeão russo ciais do espaço-tempo, o conceito de inte-
Garry Kasparov (1997) o lance vitorioso re- ligência como manifestação global de cor-
sultou da aprendizagem da máquina sobre relações de dados ultrapassa as limitações
uma base prévia de mais de 700 mil parti- antropocêntricas para incluir a matéria. O
das de mestres e grandes mestres, inclusive computador é máquina inteligente capaz
do próprio Kasparov, que tinha vencido as de executar programas, acionada pelas re-
primeiras partidas. gras sintáticas de uma linguagem formal.
Mas, em termos estritamente técnicos, Os pensadores da cibernética vêm insistindo
ainda não se tratava de aprendizagem pro- desde a primeira metade do século passado
funda, que data de 2010, quando realmen- que os sistemas vivos e sociais podem ser
te emergiram os métodos baseados em re- descritos como sistemas de processamento
des de neurônios, conhecidos como deep de informação, do mesmo modo que o cé-
learning, uma aprendizagem “profunda” rebro humano, guardadas as diferenças en-
ensejada por uma rede “neurológica” ar- tre o sistema nervoso e os padrões estáveis
tificial. Em 2016, o deep learning permitiu da máquina.
ao computador Alfago (da Google) derrotar Isso é propriamente o que denomina-
Lee Sedol, campeão mundial no jogo chinês mos bios virtual, uma ambiência magnetica-
Go, mais complexo do que o xadrez e que mente afetiva, uma recriação tecnoestética
requer intuição. da atmosfera emocional da sociedade, ca-
Trata-se agora da modelagem por es- paz de mobilizar os humores ou estados de
sas redes das funções de entradas e saídas espírito dos indivíduos, reorganizando seus
desejadas graças a arquiteturas que com- focos de interesse e de hábitos, em função
preendem diferentes transformações não- de um novo universo menos psiquicamente
-lineares. A precisão dos resultados é de
8Cf. DELEZOIDE, Bertrand. Le deep learning à l`ére in-
7 Dizeres de uma camiseta vendida em shopping: “Se dustrielle. In Clefs (les voix de la recherche). CEA, no.
faz sentir, faz sentido”. 64, juin 2017.
20  •  Muniz Sodré

“interiorizado” e mais temporalmente rela- reciclam-se, no mundo artificialmente inteli-


cionado ou conectado pelas redes técnicas. gente da estética, todas as velhas e gastas
Bios midiático ou bios virtual são expres- imagens, guardadas nos diferentes arquivos
sões adequadas para o novo tipo de forma óticos da civilização ocidental.
de vida caracterizado por uma realidade O que acontece agora às formas clássi-
feita de fluxos de imagens e dígitos, que cas de cultura? Eu diria que a cultura não
reinterpretam continuamente com novos é mais apregoada como o mapa balizador
suportes tecnológicos as representações do conhecimento (o modo como o grupo
tradicionais do real. Nesse bios, os velhos produz o seu real e nele se reconhece).
fenômenos de sociedade tornam-se objeto Também não é mais a sinalização de um
de uma saturação conceitual afim a essa pluralismo institucional frente ao poder de
imaginariedade virtual. Trata-se geralmente Estado. Cultura é agora uma vasta memória
de um imaginário controlado e sistemático, técnica, redistributiva de conteúdos já usa-
sem potência imaginativa ou metafórica, dos, ao modo de um baú de ossos que se
mas com uma notável capacidade ilocutória traz à luz por tecnologia eletrônica. Aliás,
(portanto, um imaginário adaptável à pro- essa não é uma expressão nova: o pensa-
dução) que não deixa de evocar a dinâmi- dor italiano Antonio Gramsci já havia falado
ca dos espelhamentos elementares ou pri- de cultura como puro saber enciclopédico,
mais. Se antes o Estado totalitário pretendia como “baú de coisas velhas”, em que “o
enraizar-se na vida da nação, reunificando homem é visto sob a forma de um recipien-
(contra o liberalismo) corpo e espírito, ago- te a encher e entupir de dados empíricos”.
ra é a mídia que se enraíza culturalmente Sob a superfície do entretenimento, a
na vida social. O totalitarismo de hoje está cultura revela-se também como terreno
no discurso. para um tipo de guerra entre facções so-
No âmbito de um ecossistema simulativo ciais politicamente opostas na dinâmica
ou espectral de vida o dispositivo da mídia, conflituosa pelo controle dos dispositivos
amplificado por inteligência artificial, mobi- ideológicos de Estado e da hegemonia nas
liza os corpos da cidadania, instituindo um estratégias de influência ou de orientação
imaginário que se confunde com a realidade das emoções coletivas.
da vida nua, natural, de modo a constituir Pouco tempo atrás, uma colunista de
uma nova esfera existencial plenamente economia em revista semanal (professora
afinada com as organizações empresariais, brasileira na John Hopkins University, em
onde o desejo se imponha preferencialmente Washington), comentava a propósito de re-
como desejo de mercado.9 Nessa operação, gulação financeira que as perdas de empre-
gos são indissociáveis das mudanças tecno-
9 Na redefinição do sujeito que serve de referência para
lógicas. Ela poderia trocar os termos, trocar
a lógica neoliberal, emerge a figura do empreendedor
ou do homem-empresa. Assim, um empresário e mi- “mudanças tecnológicas” por inteligência
lionário norte-americano responde à questão “o que o
senhor diria para uma pessoa que não é mais tão nova, se renovar...”(O Globo, 25/4/2018). A perspectiva do
que ainda tem vida pela frente, mas não alcançou o empreendedorismo aponta para uma nova forma de
sucesso?” – “Eu recomendaria acessar imediatamente “governo de si” baseada na esfera existencial (o bios
o site da Amazon ou do iTunes e assistir ao filme “Good virtual) regida por finanças, mercado e tecnologia, onde
Fortune”(...) Se você acredita em si mesmo, você pode se exacerba o individualismo neoliberal.
I n t e l i g ê nc i a a rt if i c i a l e c u lt u r a   •  21

artificial. Sim, a cultura tradicional não era democracia das emoções e da cultura como
antitética à empregabilidade humana. A in- mapa existencial para a pós-cultura da dis-
teligência artificial, produto direto do neo- tribuição de pílulas de informação, dirigida
capitalismo, por outro lado, tende a tornar à distância pelas máquinas inteligentes da
obsoleta a maioria das funções exercidas quarta revolução tecnológica, associadas à
por homens. financeirização, centro gravitacional das di-
Mas para a colunista, isso tudo “é per- ferentes órbitas econômicas. Aquilo que a
feitamente sensato, lógico, racional”. E cultura tradicional tentava cingir aos limites
acrescenta: “Infelizmente, o mundo de hoje de um “humano” pensado pela metafísica
não é movido pela sobriedade da reflexão, é agora atravessado por inteiro pela lógica
mas pelos instintos mais primitivos do cére- do capital, “capital humano”. Ora, capital
bro – pela intuição, tantas vezes equivoca- não gosta de gente. Mas a pós-cultura, ai
da, e pelas emoções, que servem para mui- de nós, é medida por seu valor de mercado.
ta coisa, mas raramente ajudam a encontrar
Referências bibliográficas
caminhos razoáveis para solucionar grandes
DE BOLLE, Monica. O liberalismo econômico em xeque. In
problemas”.10 revista Época, 30/4/2018.
O problema é que já saímos da velha de- DELEZOIDE, Bertrand. Le deep learning à l`ére industrielle. In
Clefs (les voix de la recherche). CEA, no. 64, juin 2017.
mocracia argumentativa das opiniões para a ELIOT, T.S. Notes towards the definition of culture. Faber
and Faber, 1948.
10DE BOLLE, Monica. O liberalismo econômico em xe- MIRANDA, José A. Bragança. Teoria da Cultura, Ed. Século
que. In revista Época, 30/4/2018. XXI, Lisboa, 2002.
Língua, cultura e identidade nacional

Domício Proença Filho


Ocupante da Cadeira 28 na Academia Brasileira de Letras

N
ão costumo, por princípio, incluir- enfoques distintos e variados. E mais ainda:
-me entre os conferencistas dos ci- das últimas décadas do século passado até
clos que, eventualmente, coordeno. a atualidade, as mudanças inerentes à di-
Moveu-me, no presente caso, a proximida- nâmica do processo histórico-cultural têm
de com o tema, na condição de estudioso envolvido, na nossa contemporaneidade,
de língua portuguesa e de literatura brasi- “uma caminhada para a ditadura do relati-
leira, intrinsecamente vinculadas à cultura vismo, que não reconhece nada como defi-
em que se inserem. nitivo”. O juízo não é meu: são palavras do
O tema envolve, necessariamente, as- Papa Bento XVI.
pectos históricos e sociais. Não sou historia- Questionamentos e relatividade à parte,
dor nem sociólogo. Perpasso-os nas trilhas situo-me entre os que entendem que a ex-
abertas pelos especialistas da área. Viver é pressão se refere a um conjunto de modos
compartilhar discursos. de pensar, de sentir e de agir que conferem
Mas o tempo é curto, a matéria com- a um indivíduo a sensação de pertencimen-
plexa. to a uma nação.
Começo pelo conceito de identidade Este entendimento implica, de imediato,
nacional. a descodificação deste último termo.
Trata-se de terminologia que divide os Nação é um vocábulo polissêmico, com
estudiosos. Como ficou evidenciado num atesta o Dicionário Houaiss, para não ir
ciclo inteiro realizado nesta Academia em mais longe. Lembro algumas significações,
2016, proposto pelo saudoso Acadêmico acrescidas de exemplos ilustrativos:
Eduardo Portella. Notadamente no texto de
Vamireh Chacon. 1. “Agrupamento político autônomo que
E mais: reveste-se de fluidez e de esgar- ocupa território com limites definidos
çamento. Conceitos, por sua natureza, são e cujos membros, ainda que não ne-
passíveis de simplificações, distorções e in- cessariamente, têm a mesma origem,
terpretações, estas, como tal, vinculadas a língua, religião, respeitam instituições
Conferência pronunciada na Academia Brasileira de Letras em 28 de junho de 2018.
24  •  Domício Proença Filho

compartilhadas, ou seja, leis, constitui- indivíduos, ocupantes de um território com


ções, governos”. Depreende-se, diante limites definidos, com base num vínculo
desse “não necessariamente”, que se fundado na vontade de querer viver coleti-
trata de um significado pouco preciso. vamente, respeitadas instituições comparti-
2. Território ocupado por tal grupamento. lhadas: leis, governos, constituições.
Ex.: Os limites da nação X serão definiti- A comunidade assim configurada cons-
vamente estabelecidos ainda este ano. titui um povo que se caracteriza por deter-
3. O povo que constitui a nação, todas as minados traços culturais.
pessoas que nela vivem. Ex.: A nação Nação, nesse sentido, por consequência,
precisa ser ouvida. vincula-se a povo. Povo envolve comunida-
4. O Estado. A nação se consubstancia nos de, sociedade. Sociedade implica cultura.
poderes estabelecidos. E nos encontramos diante de mais um
5. O país onde se nasce, a pátria. Ex.: O termo multissignificativo. Cultura remete a
Brasil é a nação de Machado de Assis. mais de 250 conceituações.
6. A nacionalidade: Aqueles imigrantes Permito-me destacar apenas a propo-
eram de nação portuguesa.
sição de um dentre eles, de caráter socio-­
7. A comunidade de indivíduos que, dis-
antropológico:
persos em áreas geográficas e políticas Cultura é o conjunto e a integração dos
diversas, estão inseridos por identidade modos de pensar, sentir e fazer que uma co-
de origem. Ex.: A nação judaica, a nação munidade adota na solução de problemas da
maometana, a nação católica. vida humana associativa.1
8. Grupos de pessoas com característi-
cas comuns, especialmente ligadas por Assim entendido, por força da condição
afinidade de caráter, de grupo, índole, comunitária e dos traços culturais singula-
tipo, natureza. Ex: A nação rubro-negra rizadores, o conceito se aproxima efetiva-
vibrou com a vitória sobre a nação co­ mente de nação, em que esses traços se
rinthiana. tornam específicos, configuradores.
9. Grupos indígenas do Brasil ou de outras Cito exemplos.
regiões geográficas. Ex.: A nação tupi- Entre os modos de pensar, situa-se,
nambá, a nação guarani. nesse sentido, na civilização ocidental cris-
10.Grupos de negros africanos trazidos tã, em que se insere a cultura brasileira, a
como escravos para o Brasil, quer se tra- concepção tradicional de família nuclear.
tassem de povos ou de grupos extralin- Compare-se com a concepção poligâmica
guísticos. Ex.: a nação nagô. de outros povos. E observe-se: a multifa-
Na origem, o latim: o termo vem de na- cetada concepção de família na atualidade
tio, nationis, que significava “raça, espécie, brasileira evidencia, desde logo, a dinâmica
casta, gente, nação, povo”. que caracteriza a cultura em processo.
Essa instância nos permite dizer que a Um modo de sentir dominante entre nós
palavra nação implica, em sentido amplo, brasileiros e há algum tempo questionado é
uma comunidade estável, constituída, vo- 1 PROENÇA FILHO, Domício. Estilos de época na litera-
luntária e historicamente, por um grupo de tura. 20.ed. São Paulo: Prumo, 2013. p. 23.
L í n g ua , cu lt u r a e i d e n t i da d e n ac i o n a l   •  25

a cordialidade que nos caracterizaria como de coexistência social”2 e acrescenta, signi-


povo, o mito do brasileiro cordial. É um tra- ficativamente: “A educação é o momento
ço que parece enfaticamente desmentido institucional marcante desse processo.”3
pelo passionalismo extremado que ganha Tal conceito confere ênfase à tradição,
vulto na contemporaneidade brasileira. do latim traditione, “entrega”, “transmis-
Julgo desnecessário apontar exemplos são”.
de modos de fazer, entre muitos os que Considerada a dinâmica assinalada, essa
singularizam manifestações de práticas es- “tradição”, sabemos, é submetida, com
téticas, como na música, nas artes plásticas, maior ou menor aceleração, a um processo
nas artes cênicas, na literatura, no folclore, de erosão.
na culinária. Claro que todos marcados pela No âmbito desse erodir-se, avulta a ace-
égide da mudança inerente ao processo cul- leração das mudanças que, há algum tem-
tural. po, marcam a cultura ocidental. Em desta-
A singularidade que as caracteriza é tal que, o papel dos meios de comunicação de
que são adjetivadas com a marca nacional: massa; a cultura como recurso, dimensiona-
música brasileira, arquitetura brasileira, lite- da em termos econômicos e mercadológi-
ratura brasileira, folclore do Brasil, comida cos; a emergência avassaladora das novas
brasileira. tecnologias digitais de informação e de
E assinalo um aspecto peculiar no pro- comunicação e suas decorrências, imedia-
cesso de estruturação de tais traços sin- tamente perceptíveis no nosso cotidiano; a
gularizadores: a nossa vocação antropofa- revolução ampla mobilizada pela emergên-
gicamente assimiladora. Somos mestiços. cia da inteligência artificial, em processo
Somos basicamente lusoafroíndios. Deglu- acelerado de desenvolvimento.
timos e incorporamos contribuições imi- Não nos esqueça de que vivemos um
grantes das mais diversas origens. Somos tempo de mundo virtual, tempo de comu-
capazes de fazer pizza de banana e sushi à nicação simultânea e imediata.
italiana. Assimilamos um certo esporte bre- E mais: na sequência do processo his-
tão e passamos a ser o país do futebol e tórico, corporifica-se, na realidade globa-
pentacampeões do mundo. lizada, uma nova circunstância: o enten-
Desde logo se percebe que, no âmbito dimento de que a cultura vai além de um
da dinâmica do processo cultural, configu- conjunto homogêneo de ideias e valores
ram-se modos de pensar, sentir e fazer ins- sedimentados e condicionadores, repre-
titucionalizados e referendados pela socie- sentativos do modo de ser da comunidade
dade brasileira como dela representativos. como um todo: a cultura comunitária passa
Essa representatividade é tal, que a cul- a fundamentar-se na diferença.
tura é também entendida, em outro enfo- Assumem forte presença, em conse-
que, como propõe Alfredo Bosi, integrante
quência, movimentos de afirmação de iden-
desta Casa, como “o conjunto das práticas,
tidade cultural fundados na preservação de
das técnicas, dos símbolos e dos valores
2 BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo:
que se devem transmitir às novas gerações Cia. das Letras, 1992. p. 16.
para garantir a reprodução de um estado 3 Id. ib.
26  •  Domício Proença Filho

manifestações culturais peculiares de seg- Não implica desintegração da identidade


mentos comunitários, destacada a defesa que nos une, fortalece.
da participação igualitária na sociedade que Somos todos brasileiros. É a instância
integram. maior que efetivamente nos identifica, cio-
Tal circunstância vincula-se ao surgimen- sos de que essa condição nos assegura o
to de grupos constitutivos da sociedade direito à cidadania.
unidos por determinados traços singulari- No âmbito da dinâmica que caracteriza
zadores, sejam eles de caráter físico, social a cultura no nosso país, seja-me permitido
ou cultural. Por exemplo, marcas de etnia, um lembrete, por cronologicamente opor-
opções de gênero, etc. E, em função da tuno.
natureza da singularização, possibilita duas Não nos esqueça dos tempos do Estado
situações: Novo em que a regulação governamental se
Primeira: pode conduzir a distancia- propôs e concretizou a tutela do processo
mentos acentuados que, não sem conflito, cultural e, com base nesse propósito, ado-
tou e impôs determinados procedimentos.
mobilizam movimentos separatistas. Nesse
Estabeleceu a diferença entre o que seria
caso, a identidade comunitária setoriza-
“alta cultura” e “cultura menor”. Na base
da ganha tal relevância, que culmina por
da distinção, o índice de nacionalidade, va-
superpor-se ao sentimento de identidade
lorizador. Assim situada, a cultura passou
da nação que integra e conduz a forma-
a ser entendida como “matéria oficial”. O
ção de nações independentes, converte-se
governo ditatorial adotou um projeto de
em identidade nacional. Um exemplo: o
nacionalização pautada no paternalismo
caso da ex-Iugoslávia. Por força, sobretu-
governamental, objetivada a “promoção
do, de um conflito étnico histórico, o país
cultural” do povo. De cima para baixo.
desintegrou-se e deu origem a sete outros
Pretendeu-se um Brasil culturalmente
atualmente reconhecidos: Bósnia e Herze-
uno, marcado pela uniforme e homogênea
govina; Croácia, Montenegro, República da
“cultura nacional”. Excluído o pluralismo
Macedônia, Sérvia, Eslovênia e Kosovo. Na cultural, como excluído estava o pluralismo
década de 1990. político. Negada, em decorrência, a condi-
Segunda situação: pode levar à partici- ção de cultura a manifestações não abran-
pação igualitária na sociedade que os gru- gidas pelo conceito orientador, tal como se
pos emergentes integram, sem fraturas na propugnava. Entre elas, manifestações de
unidade e na identidade nacional. O Brasil minorias étnicas, como as dos núcleos de
é um exemplo. No nosso país, a afirma- imigrantes alemães do Sul e grupos repre-
ção da identidade cultural buscada pelos sentativos da etnia afro-brasileira. Cultu-
negros, pelas mulheres e pela assunção de ra padronizada. Controlada e disciplinada
gênero não se opõe ao que nos faz ser a pelo Estado, como sintetiza Sônia Regina de
gente brasileira, com plena consciência de Mendonça, “em todos os domínios da pro-
pertencimento. dução, difusão e preservação de bens cul-
A busca dessa afirmação identitária por turais, posto que nacionalizar era sinônimo
tais grupos vincula-se ao direito à diferença. de unificar o descomposto, representava a
L í n g ua , cu lt u r a e i d e n t i da d e n ac i o n a l   •  27

busca da homogeneização da língua, com- Depreende-se de imediato a relevância


portamento e ideias”.4 Sem concessão ao do discurso da História nesse percurso.
contraditório. Violentada a liberdade de ex- As manifestações folclóricas, a arte po-
pressão. pular, a literatura contribuem, por outro
Volto à questão nuclear: como se situa lado, para a mitologia que integra o ima-
a língua nessa relação que vincula cultura e ginário, poderoso nutriente das peculiarida-
identidade nacional? des da identidade da nação.
Pensemos. Em todos esses espaços, ganha desta-
A língua que falamos é a forma de lin- que a língua, sobretudo na sua legitimação
guagem em que melhor se organiza o caos como idioma oficial.
dos universais físicos. Esse destaque do idioma abre-se a al-
O conceito de nação se fundamenta na gumas considerações. Sobretudo diante do
autodescrição da cultura comunitária veicu- primeiro conceito de nação a que me referi.
lada na língua da comunidade. A língua contribui para a caracterização
Essa autodescrição pode fundar-se a identitária. Constitui um elemento de soli-
partir de uma consciência identitária ou dariedade e de reconhecimento dos inte-
com base na diferença em relação a outras grantes da comunidade.
culturas. A dinâmica do processo cultural e o cur-
A identidade nacional envolve a cons- so da História relativizam, entretanto, essa
ciência comunitária das manifestações cul- condição.
turais que singularizam a nação. De tal for- A matriz linguística importa muito e im-
ma, que implicam a mobilização dos seus porta pouco. E, por vezes, carece de impor-
integrantes a nelas se reconhecer e a elas tância.
aderir. Países há, sabemos, em que se configu-
Essas manifestações se concretizam, en- ra a convivência de várias línguas em per-
tre outros, em produtos da arte, paisagens centuais significativos de usuários.
típicas, símbolos, como o hino nacional e a Neles, as populações se valem de idio-
bandeira, elenco de obras representativas, mas distintos, que não estão circunscritos a
conceitos e mesmo preconceitos, ainda que divisões geográficas e políticas vigentes.
estes devam ser veementemente combati- Na Índia, por exemplo, como apontou
dos, tudo isso enraizado nos integrantes da Vamireh Chacon em conferência anterior
nação. Monumentos, personagens e datas deste ciclo, as línguas oficiais são estabele-
históricas, obras literárias, paisagens, tradi- cidas para cada estado. O hindi, na escrita
ções, costumes, por seu turno, integram a devanágari, é conhecido como língua oficial
base comum da memória social. Atuam na do governo, mas é permitido também o uso
inserção da memória individual na memória do inglês para fins oficiais. A Constituição
comunitária. indiana concede também a 23 línguas a
4 MENDONÇA, Sônia Regina de. As bases do desen- condição de oficial.
volvimento capitalista dependente: da industrialização Os habitantes da Suíça que usam o ale-
restringida à internacionalização. In: LINHARES, Maria
Yeda Leite (org.) História geral do Brasil. 9.ed. rev. e
mão como língua de comunicação se con-
atual. 2.ed. Rio de Janeiro,: Campus, 1990. p. 344. sideram suíços.
28  •  Domício Proença Filho

Os canadenses se valem do francês e do • línguas trazidas por imigrantes, nota-


inglês. damente japonês, italiano, espanhol,
A Sérvia, ao constituir-se em nação, con- alemão, chinês, ucraniano, polonês, e li-
cedeu tal importância à língua oficial, que banês, usadas na comunicação familiar.
passou a adotar o alfabeto cirílico, em subs- Algumas delas são também utilizadas na
tituição ao latino, com elemento de singu- imprensa e em livros regularmente edi-
larização identitificatória. tados e consideradas, em termos menos
É também exemplar o caso de várias na- coletivos e mais individuais, como se-
ções africanas. Mesmo nos países lusófonos. gunda, terceira ou quarta língua;
Não sem razões históricas, em convivência, • o português lusitano, de falantes de ori-
nem sempre politicamente tranquilas, com gem portuguesa;
as chamadas línguas nacionais. São lusófo- • o falar crioulo de pequenas comunida-
nos porque o português é assumido como des de descendentes de antigos escra-
língua oficial. Os índices de falantes de um vos africanos.
e de outras é significativamente revelador.
Já se percebe o impacto dessas circuns- Configura-se, portanto, no Brasil, uma
tâncias no espaço das políticas do idioma. realidade linguística unilíngue no geral, de
Um exemplo são as divergências em torno par com realidades multilíngues localizadas.
do Acordo Ortográfico da Língua Portugue- Essa circunstância envolve:
sa de 1990.
Em outras nações, a língua oficial des- • Falantes unilíngues: só falam o portu-
fruta de uso generalizado. Contribui fun- guês ou uma língua indígena. Consti-
damentalmente, assim configurada, para a tuem a maioria.
identidade e a unidade da nação. Destaco o • Falantes bilíngues: usam vernáculo pró-
caso do Brasil. prio e a língua comum, o português.
Mas será o nosso um país unilíngue? São pequenos grupos minoritários.
Vejamos. • Falantes trilíngues: valem-se do verná-
O português do Brasil é, na atualidade, culo, da língua portuguesa e de uma
a língua usada por mais de 210 milhões de terceira língua: são poucos, em relação
habitantes, consolidado como idioma ofi- à totalidade da nação.
cial e hegemônico do país. • Falantes culturalmente poliglóticos: va-
Com ele convivem: lem-se do português vernacular e, não
raro, usam, oralmente ou por escrito,
• diversas línguas e dialetos indígenas fa- três a mais idiomas: ainda não são rele-
lados na região amazônica. O número vantes em termos de proporcionalidade
de falantes oscila em função de vários populacional.
fatores: deperecimento, fixação de re-
servas indígenas e suas decorrências. O Como se depreende de imediato, o por-
Censo de 2010, do IBGE, registra 850 tuguês é comum a todos.
mil falantes, distribuídos em 205 etnias, Uma curiosidade: atualmente, três loca-
usuários de 274 dialetos e línguas; lidades brasileiras têm mais de um idioma
L í n g ua , cu lt u r a e i d e n t i da d e n ac i o n a l   •  29

oficial: São Gabriel da Cachoeira, no interior A legislação régia não impede os rumos
da Amazônia, fronteira com a Colômbia e a da mistura e das influências, que seguem
Venezuela, que é ó único município brasilei- seu fluxo.
ro oficialmente quadrilíngue: além do por- Quem faz a língua é o povo. E o povo
tuguês, são línguas oficiais o nheengatu, segue mesclando assumidamente na sua
o tucano, o baníua; Pomerode, em Santa comunicação português e línguas índias,
Catarina, oficializou, ao lado do português, africanas e, em menor escala, imigrantes.
a língua alemã; Tacuru, no Mato Grosso do Com a Independência e o Império, a na-
Sul, onde ao português se junta o guarani. ção converte-se numa comunidade para si.
Ao fundo, razões históricas e culturais. Presentifica-se a oposição à memória colo-
Até meados do século XVIII, a comuni- nizadora e, consequentemente, a constru-
cação no Brasil se fazia em língua geral. E ção no discurso, sobretudo escrito, da his-
foram várias: a Língua Geral de base tupi, tória e da memória da nação emergente: o
ou Tupi Missionário; a Língua Geral Paulista; Império do Brasil.
Caracteriza-se a busca de uma nacio-
a Língua Geral Amazônica, depois nheen-
nalidade brasileira. Começa a corporificar-
gatu; a língua Geral Cariri; a língua Geral
-se um imaginário nacional. Seu espaço de
Guarani. O português era língua da comu-
construção: a língua portuguesa, já mati-
nicação escrita e da comunicação oficial.
zada de influências indígenas e africanas.
A partir de então, a Coroa torna obriga-
Como acontece com a nossa cultura. É a
tório o uso oficial da língua portuguesa no
juventude do português brasileiro, que logo
Brasil. Primeiro, no Diretório de 3 de maio
se converterá numa norma paritária em re-
de 1757, no Maranhão e no Pará. Depois,
lação ao sistema língua portuguesa.
em 1758, ao convertê-lo num Alvará Régio,
Configura-se, a propósito, desde os pri-
estendido a todo o espaço da Colônia. Ao
meiros tempos do Brasil independente, a
fundo, o Marquês de Pombal, Brasil Colô-
preocupação de estudiosos com a especifi-
nia: uma comunidade nascente, para a ou- cidade do português brasileiro, que se avo-
tra, a do colonizador luso. luma a partir da segunda metade do século
O texto leva a questão ao extremo: proí­ XIX.
be terminantemente o uso de quaisquer Pouco a pouco, ganha vulto a nossa lite-
outras línguas, principalmente das que cha- ratura, uma arte que tem uma língua como
mam “geral” “invenção abominável e dia- suporte. No caso, a língua portuguesa. Bra-
bólica”, na letra do texto. sileiramente. E se constrói, no discurso, uma
O Alvará, na verdade, consolida o que mitologia fundadora. E nosso céu passou a
estabelece a Carta Régia de 1727, que de- ter mais estrelas, nossa várzea, mais flores,
termina o ensino da língua portuguesa no nossos bosques, mais vida, nossa vida, mais
Brasil e mais, torna oficial em todo o terri- amores. Mitifica-se o espaço geográfico. De
tório da Colônia a expressão língua portu- tal forma, que os versos de Gonçalves Dias
guesa como denominação do instrumento passam a integrar nada menos do que o
linguístico se queria unificado. hino nacional.
30  •  Domício Proença Filho

E contam-se histórias de índios e de por- projeção, o nosso sentimento de pertença.


tugueses, e de negros de África, sangue e Com a marca apontada por Machado de
luta. E de vocação para a liberdade. Assis: o instinto de nacionalidade.
Nessas histórias, mitifica-se o índio, que Os textos literários contribuem, no dis-
passa a ser símbolo de Brasil. Mitifica-se a curso, para a construção da nossa identida-
gente de África e seus descendentes. E todo de como povo, como nação.
o nosso sentimentalismo. Em narrativas do Poesia, romance, conto, todas as formas
folclore e da literatura. As bases, lusitanas, literárias culminam por revestir-se das mar-
índias e africanas. E nos textos literários cas identificadoras da sociedade brasileira.
configuradores de espelho e denúncia, em Em síntese: por meio do português bra-
destaque a prosa de Machado de Assis, na sileiro, norma paritária do sistema língua
produção reveladora dos nossos modernis- portuguesa, nosso idioma oficial constrói,
tas, na nossa literatura contemporânea, nos no discurso, a nossa história e a nossa saga,
textos que fizeram e fazem a nossa arte lite- a nossa memória, os nossos mitos. Nessa
rária representativa. condição, é de alta relevância para a nos-
Tudo isso se incorpora ao nosso ima- sa identidade como cultura, como povo e
ginário. E amplia, por identificação ou como nação.
H O M EN A G E M A D A NTE M I L A NO

Dante Milano: o pensamento


emocionado

Ivan Junqueira
Sexto ocupante da Cadeira 37 na Academia Brasileira de Letras

Em outras palavras, seu pensamento é de sempre acrescidas de novos poemas – a de


fato sua forma. 1958, pela Agir, e a de 1971, pela Sabiá –,
S érgio B uarque de H olanda até que o Núcleo Editorial da UERJ, em con-
vênio com a Civilização Brasileira, decidiu

D
ante Milano é, como amiúde já se em 1979 reeditar-lhe toda a poesia, além
disse, a maior “vocação póstuma” de boa parte das traduções e da prosa pu-
de toda a literatura brasileira. Mas blicada em jornais. Finalmente, em 1994,
por que assim o consideram? Em certo sen- pela Firmo, de Petrópolis, foi lançada a úl-
tido, porque ele próprio assim o pretendeu, tima edição, já póstuma, de suas Poesias.
já que nunca cogitou em vida de publicar Apesar dessas reedições, Dante Milano foi
seus poemas, o que, afinal, acabou por o poeta de um livro único, um livro que, se
acontecer em 1948, quando o poeta já bei- dependesse dele, jamais seria publicado. É
rava os cinquenta anos, mas à sua inteira em parte nesse sentido que seus pares o
revelia: um amigo, Queirós Lima, pediu-lhe entendem como uma “vocação póstuma”.
emprestado os originais e levou-os para a Mas cabe aqui outra interpretação: Dan-
Imprensa Nacional. Cerca de dois meses de- te Milano foi “póstumo”, também, no sen-
pois reapareceu com as provas e solicitou tido de que jamais frequentou com assidui-
ao poeta que fizesse as emendas. Mas es- dade as rodas literárias e, mais ainda, porque
tas foram tantas que a Imprensa Nacional sempre lhe repugnou quaisquer formas de
se recusou a publicar o volume. Nesse mes- popularidade ou mesmo de glória. Em en-
mo ano, entretanto, o livro foi editado pela trevista que concedeu à TVE, João Cabral de
José Olympio, tornando-se, como na época Melo Neto diz que, de todos os poetas que
se comentou, o maior acontecimento literá- conheceu, Dante Milano era “o que menos
rio do ano, tendo a obra recebido o Prêmio fazia vida literária, o mais retirado, aquele
Felipe de Oliveira, láurea que hoje se pode- que fazia uma poesia mais independente
ria comparar ao Prêmio Jabuti. Seguiram-se, de qualquer modismo”. E acrescenta pouco
a longos intervalos, duas outras reedições, adiante: “Ele vivia para a poesia no sentido
In: Dante Milano, Obra reunida. Coleção Austregésilo de Athayde, v. 21. Organização e estabelecimento de texto,
Sérgio Martagão Gesteira. Apresentação e biobibliografia de Ivan Junqueira, xix-liv.
32  •  I van Junqueira

de viver em poesia, e não no sentido de se jamais se filiou nem durante nem depois da
dar a conhecer como poeta. Ele era sob certo festiva e turbulenta década de 1920. Não
ponto de vista, vamos dizer, moral, o poeta há dúvida de que apoiou o movimento, pois
puro por excelência.” Tudo isso está confir- nele via, como todos os artistas da época,
mado na última entrevista que Carlos Drum- um caminho de libertação estética. A rigor,
mond de Andrade deu ao Jornal do Brasil, entretanto, o Modernismo pouco ou nada
na qual observa: “Temos um poeta de quase teria a oferecer-lhe em termos de subsídio
noventa anos que mora em Petrópolis e nin- literário ou de plataforma estética. E mais: à
guém o conhece. Ele é da geração moder- época da agitação modernista, o poeta Dan-
nista, um grandessíssimo poeta. Chama-se te Milano já estava pronto, infenso, portan-
Dante Milano.” E se recorrêssemos ao pró- to, a quaisquer aquisições mais profundas e
prio poeta, o que vamos encontrar é sempre radicais do ponto de vista formal, ainda que
o mesmo, talvez até de forma mais enfáti- aberto e sensível às conquistas expressionais
ca, como se lê em entrevista que ele próprio do movimento. Por outro lado, dizer-se que,
concedeu àquele mesmo jornal em agos- entre 1920 e 1948 – quando saiu a primeira
to de 1987. Indagado sobre sua aversão à edição das Poesias –, haja ele se conservado
fama, respondeu Dante Milano: “A fama tira na condição de bissexto não procede: Dan-
a sua privacidade. Não gosto de ser aponta- te escrevia muito – e muitíssimo destruiu do
do na rua, não gosto que ninguém me re- que escreveu –, conquanto nada publicas-
se em livro até aquela data. A que se deve,
conheça. Quanto à glória, é uma ilusão, é
então, esse altivo silêncio, essa monástica
algo que muda como mudam as folhas de
reclusão, esse obsessivo mutismo editorial
uma árvore. Um dia você é famoso, daqui
– cúmplice, talvez, daquela “vocação póstu-
a pouco não é mais.” Foi a ameaça dessa
ma” a que já aludimos? É o que tentaremos
mundanidade, aliás, que o levou a escrever
decifrar, leitor, se possível com o teu benévo-
num de seus poemas:
lo e empático beneplácito.
Parece-nos que há, pelo menos, dois
Tanto rumor de falsa glória,
Só o silêncio é musical, indícios capazes de nos levar à compreen-
Só o silêncio, são parcial desse procedimento, que não
A grave solidão individual, pode ser aceito como fortuito. Primeiro,
O exílio em si mesmo, o que estaria associado ao próprio tem-
O sonho que não está em parte alguma. peramento do poeta, sempre esquivo aos
círculos literários oficiais. Embora conhe-
Daí esse conceito de “vocação póstuma”, cido e celebrado por quase todos os seus
que não pode ser descartado quando se contemporâneos, além de assíduo habitué
examinam a gênese e a evolução da poesia dos grupos boêmios da antiga Lapa, Dan-
de Dante Milano. te Milano nunca se sentiu inteiramente
Embora egresso do Modernismo de à vontade enquanto descendente desse
1922, Dante Milano é, na verdade, anterior ruidoso e noctâmbulo habitat. E jamais
ao movimento modernista, do qual parti- dele se valeu, como alguns outros nessa
cipou a distância e ao qual, efetivamente, época, para angariar, como ele mesmo o
Dante Milano: o p e n sa m e n to e m oc i o n a d o   •  33

diz, qualquer “rumor de falsa glória”. A Como já havíamos sublinhado em es-


irreversível e funda solidão em que poste- tudo sobre Eliot, o fato não é novo: assim
riormente haveria de viver o poeta já de- o fizeram, entre outros e cada qual ao seu
veria se lhe impor então como irrecusável modo, Sá de Miranda, Camões, Antero de
exigência espiritual, assim como aconteceu Quental, Camilo Pessanha e Fernando Pes-
com Manuel Bandeira, talvez seu maior soa, isto para ficarmos apenas na poesia de
amigo, ao lado de Olegário Mariano, Os- língua portuguesa. Quanto a Dante Milano,
valdo Costa, Jaime Ovalle, Ribeiro Couto que o confirmem o já citado Manuel Bandei-
e mais alguns outros. Segundo, sua poe- ra e, além deste, Sérgio Buarque de Holan-
sia, como oportunamente observa Sérgio da, quando afirma que, em “outras palavras,
Buar­que de Holanda, nada tem a ver com seu pensamento é de fato sua forma”,3 ou
o que “foi escrito entre nós nestes vinte ou Franklin de Oliveira, ao assegurar-nos que
trinta anos”.1 Ocorreria então uma defasa- a poesia de Dante Milano é a “poesia das
gem estético-literária, consubstanciada no significações”, já que nela a emoção, “go-
ulterior afastamento do poeta relativamen- vernada pela inteligência”, se apresenta
te a um momento histórico e editorial que “rarefeita, restaurada, reconstituída sob o
não lhe dizia respeito. É que, contrariando império da lucidez”.4 Isso explica, talvez, por
as tendências efusivas e algo emocionais que não se possa considerar o autor como
da poesia brasileira – mas não, necessaria- poeta estritamente lírico, ou então seu liris-
mente, as da poesia de língua portuguesa mo (ou “antilirismo sinistro”, no entender de
–, Dante Milano cultiva uma poética do Paulo Mendes Campos)5 seria aquele capaz
pensamento emocionado, como o fizeram de, como insiste Franklin de Oliveira em seu
os chamados “poetas metafísicos” ingle- arguto estudo, “harmonizar pensamento e
ses do século XVII, o que não significa que encantação”, conjugando assim o substrato
sua expressão haja renunciado à emoção. referencial do pensamento lógico à ambigui-
Quem nele sente, porém, é o pensamen- dade semântica do pensamento simbólico
to. Em outras palavras, sua poesia busca ou metalógico. Ora, a essa linguagem tensa
atender àquelas exigências eliotianas do e severa, a essa poética de essências e sig-
objective correlative, ou seja, transformar nificações, a essa expressão, enfim, na qual
o ato de sentir em emoção pensada e o se conjugam os mandamentos do rigor, do
ato de pensar em reflexão sentida. Ou, ain- ascetismo e do equilíbrio, se poderia aplicar,
da, como disse certa vez o nosso Manuel como a pouquíssimas outras, aquele concei-
Bandeira a respeito do autor das Poesias: to wordsworthiano segundo o qual a poesia
“Exemplo singularmente raro em nossas deve ser apreendida como uma emotion re-
letras, parece o poeta escrever seus versos collected in tranquility.
naquele indefinível momento em que o
pensamento se faz emoção.”2
3 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Op. cit.
4 OLIVEIRA, Franklin de. “A claridade estelar”. In: Cor-
1 HOLANDA, Sérgio Buarque de. “Mar enxuto”. In: Co- reio da Manhã, Rio de Janeiro, 30.1.1972.
bra de vidro. São Paulo: Perspectiva, Col. Debates, 1978. 5 CAMPOS, Paulo Mendes. “O antilirismo de um gran-
2 BANDEIRA, Manuel. Política e letras. Rio de Janeiro, de poeta brasileiro”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro,
1948. 29.1.1972.
34  •  I van Junqueira

Para melhor compreendermos as raízes de Dante Alighieri (de quem verteu mode-
de todo esse instigante complexo estético- larmente três dos cantos do Inferno), Horá-
-literário, entretanto, impõe-se dissecar um cio, Virgílio e Leopardi (sobre quem escre-
pouco as vísceras do próprio corpus poeti- veu um memorável estudo), bem como de
cum milaniano no âmbito de uma análise outros autores italianos do Trecento e do
que se pretenderá, daqui em diante, estri- Cinquecento, dos pré-rafaelitas ingleses, de
tamente textual. Para tanto, consideraremos Camões e daqueles que, como Baudelaire e
aqui os seguintes elementos incidentais ou Rimbaud, já antecipavam a poesia moderna
já declaradamente estilísticos: 1) o próprio na segunda metade do século XIX, Dante
texto do legado poético em pauta; 2) a con- Milano formou-se, enquanto modernista, a
vicção, por parte do autor, de que a poe- partir de uma herança acima de tudo classi-
sia é produto do pensamento emocionado cizante. Sua poética é, por isso mesmo, um
ou, como insinua Fernando Pessoa, de um tecido de cruezas expressionais e significa-
pensamento que se “emocionaliza”; 3) o ções objetivas, um voto de fidelidade à clar-
predomínio do símile sobre a metáfora; 4) té cartesiana, um exercício raisonnant de
o “ritmo semântico”, já denunciado por “imaginação irônica”, em tudo oposta à di-
Sérgio Buarque de Holanda em seu lumi- fusa deliquescência da “ironia romântica”.
noso ensaio sobre a poesia do autor; 5) a E reside aqui, sem dúvida, o segredo de sua
prevalência das formas ditas fixas ou regu- unidade estilística e formal, essa unidade
lares sobre o verso livre; 6) os esquemas rí- que, como ensina Buffon, nada mais é que
micos e a flutuação métrica; 7) os campos um reflexo da unidade do próprio espírito.
semântico-vocabulares; 8) o aproveitamento Nada disso, entretanto, nos autoriza a
plástico-visual da estrutura poemática; 9) o arriscar uma definição precisa a que obe-
“antilirismo sinistro” da linguagem do au- dece a gestalt poética de Dante Milano ou
tor, que preferiremos aqui chamar de lirismo da matéria que lhe informa e sustenta a
“fantasmagórico” ou “visionário”; 10) o tessitura verbal. De um ponto de vista es-
substrato temático; e 11) classicismo e mo- tritamente conceitual, ficaremos aqui, ainda
dernidade. É claro que tais elementos serão uma vez, com Sérgio Buarque de Holanda,
sempre considerados ou referidos de forma que recorre à antiga noção de “realismo
assistemática e mobilizados apenas na me- estético”, entendendo-se realismo como a
dida em que, cumulativamente ou não, fo- concepção medieval que se opunha ao no-
rem capazes de oferecer subsídios concretos minalismo e ao conceptismo, ou seja, como
ao melhor esclarecimento do texto. atitude filosófica que afirmava possuírem as
O que chama logo a atenção de quem ideias uma existência independente das coi-
se imponha uma leitura mais atenta dos 141 sas concretas, o que vale dizer, ante res. E
poemas em que se resume todo o cânon isso porque, como admite o autor de Cobra
milaniano é sua irrepreensível unidade – de vidro, tudo nos leva a crer que “a poesia
unidade de forma, de estilo, de linguagem, tem uma realidade independente da maté-
de abordagem temática, de ritmo e até de ria que serviu para sua criação, é por assim
vocabulário. Acostumado à seleta e austera dizer exterior a essa matéria, participando
companhia dos antigos e leitor contumaz muito mais do espírito de seu criador, ou
Dante Milano: o p e n sa m e n to e m oc i o n a d o   •  35

da época, da finalidade, das circunstâncias, essa consciência cósmica e quase táctil da


do ambiente em que foi criada”.6 É claro morte, que se avoluma e sazona como um
que não se pode dizer da poesia de Dante fruto, lembra-nos a daquele ser que, como
Milano que ela seja neoplatônica, como o o pretendiam Rilke e Heidegger, estaria ma-
foram os adeptos daquele tipo de realismo, duro apenas para a sua morte, cuja verônica
mas não se deve esquecer também que os se imprime a fundo no “ar de despedida”
pensadores medievos, ao considerar a natu- que parecem adquirir os vivos em seu pe-
reza dos universais, se contentaram em afir- noso e efêmero périplo terráqueo. E é isso,
mar apenas a existência das ideias na mente sem dúvida, o que também nos insinua
divina, escamoteando por completo quais- Dante Milano ao afirmar que
quer possibilidades de participação humana
no processo do conhecimento conceitual. Viver é um ir-se embora
Tratava-se, como se vê, de um platonismo Da vida, hora após hora...
subserviente aos dogmas escolásticos. Se
procedermos a uma redução ontológica, A evasão só lhe será possível, todavia,
entretanto, veremos que esse vínculo espiri- através do amor – do amor sem objeto, bem
tual entre poeta e poema se torna extraor- entendido, e que será sempre celebrado
dinariamente íntimo e palpável, justifican-
do-se assim a suposição daquele ensaísta Em ato não, mas só em pensamento.
de que “seria possível meditar um pouco
sobre alguns pormenores formais”7 da poe- Ou do sonho, “que não está em parte
sia milaniana. alguma” e que, às vezes, é “maior que o
É justamente essa redução ontológica sonho de quem dorme”.
que nos permite entender também a cons- Segundo cremos, é sobre esse tripé te-
ciência do poeta quanto à sua caducidade e mático – a morte, o amor e o sonho – que
contingência humanas, quanto à sua crença se articula, basicamente, o discurso poético
de que o ser progride apenas para a morte e milaniano. Que o confirmem os dados esta-
que, enquanto tal, só lhe resta mesmo acei- tísticos que nos demos o trabalho de com-
tar a condição de “culpado” até do ato de pulsar nos estratos vocabulares do autor.
existir, como ele próprio nos confessa, aliás, Assim, nos 141 poemas que nos deixou o
ao dizer que é autor, registramos 77 referências explícitas
ou diretas à palavra “morte”, ou a seus sí-
homem culpado de ser homem, miles semântico-morfológicos (excluídos os
vocábulos de significado próximo ou contí-
revelando-nos, assim, uma dramática cons- guo, como “suicídio”, “cadáver”, “defun-
ciência agônica de si mesmo e da existên- to” etc.); 69 à palavra “amor”, ou a seus
cia, o que o levará à escolha da morte como símiles de idêntica natureza; e 58 à pala-
tema nuclear de toda a sua dolorosa e cris- vra “sonho” (incluindo-se aqui o vocábulo
pada mentação poética. Por outro lado, “sono”, que fisiologicamente a contém e
6 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Op. cit.
semanticamente a pressupõe). Se consi-
7 Idem, ibidem. derarmos ainda as difusas e multiformes
36  •  I van Junqueira

ramificações que se irradiam de cada um sentimento que se experimenta, quando


desses temas e que, não raro, se entrelaçam grande e autêntico, apenas a um, na infi-
numa trama inconsútil de correspondências nita e imperturbável solidão individual, o
e isocronias, teremos então esboçado um que de modo algum implica o expurgo do
segmento assaz abrangente do universo outro enquanto sujeito de convívio e frui-
vivencial milaniano. Parece-nos, ainda, que ção sensual. Essa noção de amor sem obje-
cada um desses temas emite uma ou duas to definido, sem possessão ou partilha – e
ramificações principais e outras subsidiárias que somente a si próprio tem por meta –,
ou apenas adjacentes. A morte, por exem- pode ser desglosado em diversos poemas
plo, é vista sobretudo como um impulso do autor, como “Homenagem a Camões”
que projeta o ser para além da própria mor- (Soneto IX), “Sombra na água”, “Vespe-
te, confundindo-se amiúde com a impres- ral”, “Divagação”, “Mulher contemplada”,
são abismal que por vezes nos infunde o “Meditação da carne”, “Olhos fechados”,
amor, como se vê na invocação que serve “O corpo de Vênus”, “Separação”, “Fur-
de coda ao poema “Fanal distante”: tivo”, “Poema do falso amor” ou “Diálo-
go”. Mais do que estes, “A busca” é quase
Vem, morte, dor mais branda, um paradigma da condenação do poeta ao
Com esse olhar estagnado e o sorriso tenaz.
“vulgar amor dos homens” e de sua crença
Vem, morte, e mata o amor; vem, morto
naquele
mar.
E se isso não é morte, o que é o amor?
Amor, amor sem objeto,
Que anda à procura do amor.
Outras vezes, porém, ela se confunde,
não com o amor, mas com o pressuposto
E, mais do que este, o majestático So-
escatológico do repouso eterno, pois o ver-
neto III, de “Sonetos e fragmentos”, nos
dadeiro hosanna será entoado apenas por
desvela o nervo mais recôndito desse amor
aqueles
que, ao nutrir-se apenas de si próprio, con-
[...] que já morreram juga a caducidade fenomênica do agora à
E são dignos da paz espiritual. infinitude espiritual do eterno. Para com-
preendê-lo, força é que se recorra à trans-
Em outros casos, ainda, a morte tangen- crição integral:
cia o sonho e instaura uma como que trans-
mutação onírica através da qual o morto des- O amor de agora é o mesmo amor de
outrora
denha a própria morte, ultrapassando-lhe os
Em que concentro o espírito abstraído,
confins corpóreos da dissolução cósmica:
Um sentimento que não tem sentido,
Uma parte de mim que se evapora.
Quem sonha se transfigura,
Quem morre sorri da morte. Amor que me alimenta e me devora,
E este pressentimento indefinido
Quanto ao amor, não há dúvida algu- Que me causa a impressão de andar perdido
ma de que, para Dante Milano, é ele um Em busca de outrem pela vida afora.
Dante Milano: o p e n sa m e n to e m oc i o n a d o   •  37

Assim percorro uma existência incerta Assim também em “Noite”, em que sus-
Como quem sonha, noutro mundo acorda, tenta que
E em sua treva um ser de luz desperta.
E sinto, como o céu visto do inferno, Todos os sonhos são verdadeiros.
Na vida que contenho, mas transborda,
Qualquer coisa de agora, mas de eterno. E o mesmo em “Sombra no ar”, ao ad-
mitir ser
Como poucos, este soneto justificaria
aquele juízo de Manuel Bandeira, segundo Este mundo a que vim, de pedra e sono.
o qual Dante Milano parece escrever “seus
versos naquele inefável momento em que o E também o mesmo, ainda, em “O ho-
pensamento se faz emoção”. mem e sua paisagem”, cujo primeiro verso
Para Dante Milano, a realidade da vida nos ensina que
somente se realiza, enquanto floração fe-
nomênica, na medida em que se irrealiza. Toda paisagem tem um ar de sonho.

Assim, o que lhe importa é


Ou, afinal, em “Gruta”, em que implora
A vida, a verdadeira vida, a Deus que lhe “dê sonhos...”. Assim, a rea-
Aquela que não é vivida, lidade só será real na medida em que não o
for. Ou melhor, somente o será, enquanto
A que é perdida, sonhada, tal, na medida em que se confunda ao es-
A realidade irrealizada. garçado tecido onírico, à “gaze que não se
rasga” e que é
O poeta voltará a afirmá-lo em diversos
outros poemas, como seria o caso de “Gló- Opaca flor de mármore,
Sonho compacto, carne.
ria morta”, no qual, já distante da turbu-
lência dos sentidos e investido na condição
Essa noção de realidade irrealizada só po-
de demiurgo da realidade inteligível, nos
deria mesmo levá-lo, como anteriormente se
confessa que
disse, à certeza de que a vida, tanto para o
vivo quanto para o morto, é apenas “tempo
De tão lúcido, sinto-me irreal.
perdido”, como se lê em “Cantiga”:

Atitude quase idêntica é a que iremos A vida é tempo perdido.


encontrar em “Sol forte”, no qual, após O que se ganha é bem pouco.
especular sobre a origem da perplexidade Que vale ao morto o vivido?
humana diante da existência, responde o Que vale ao vivo, tampouco?
poeta:
Vejamos agora qual a natureza desse
Por quê, sobre o mistério, um sol tão forte sonho, que de modo algum pode ser iden-
Que revela a existência e esconde a morte: tificado apenas com a função fisiológica
Tanto sonho e tão pouca realidade?! desempenhada pelo inconsciente durante o
38  •  I van Junqueira

sono, ou seja, com o “sono de quem dor- o papel desempenhado pelo sonho no pro-
me”. Para Dante Milano, o expediente oní- cesso do conhecimento amoroso, como se o
rico não se destina a alienar o ser da realida- poeta recorresse a uma gnosiologia fantas-
de que o cerca. Quem sonha o faz sempre magórica que lhe permitisse ver “de olhos
de olhos abertos. Quem sonha não dorme: abertos” a suprarrealidade da vida. São
acorda para uma visão interior, passando esses assombros e fabulações surrealistas,
assim a comportar-se segundo as premissas aliás, que lhe caracterizam aquele fulgurante
de um pensamento mágico e, necessaria- lirismo visionário, talvez o mesmo que levou
mente, metalógico. Eis por que a realidade Rimbaud a exclamar, perplexo: “Et j’ai vu
se irrealiza. Em “Duplo olhar”, essa pers- quelquefois ce que l’ homme a cru voir!”,
pectiva visionária da realidade interior ma- tal como o lemos em “Le bateau ivre”. E foi
nifesta-se particularmente nítida e aguda: isto, sem dúvida, o que viu Dante Milano no
Soneto VII, quando na “noite cor de sono,
E há a visão interior de olhos abertos, cor de sonho”, uma mulher aparece
A de quando desvio o olhar do livro
Para um lugar mais livre, mais distante, E em meus braços se atira. Então, absorto,
E me parece uma visão divina Vi que o corpo, quando ama, desfalece,
A paisagem que vejo todo dia. Vi que o rosto, ao beijar, parece morto,
Como se o beijo os lábios lhe torcesse,
Já em outros poemas, a faculdade de ver A boca toma a forma de um sorriso
Que se contrai, como se o beijo doesse.
o invisível para além da episodiação lógica
Visões do amor, possuídas mas incertas,
opera no sentido de subsidiar a compreen-
O corpo se entregou, mas indeciso,
são do amor, que só pode ser entendido em E deixou-se cair de mãos abertas!
sua totalidade através de uma visão, como
ocorre em “Corpo”: “Visões do amor...” Não muito diferem
destas as que o poeta volta a ver em “Me-
Absorvi a existência,
tamorfoses”, no qual nos assegura que, ao
Vi todas as coisas numa coisa só.
sonhar um
Compreendi tudo desde o princípio do Mundo.
Sonho maior que o sonho de quem dorme,
Ou em “Cântico”, em que o poeta sonha Eu vi, de olhos despertos, fabulosas
Metamorfoses, conexões monstruosas
a carne
Entre o olhar e a aparência multiforme.
E seu mistério,
O que ela tem de intangível,
E, como lá, também aqui essas “visões”
Inatingível
Como uma visão! são “incertas”, contempladas em meio à
mais insólita perplexidade:
Mas será em dois sonetos, dois sonetos
E num leito de amor já vi perplexo
gêmeos e soberbos – o de número VII, de Seios com olhos! e mudar-se a dura
“Sonetos e fragmentos”, e “Metamorfo- Nuca em anca, o ombro em joelho, a axila
ses”, pertencente às “Variantes de temas an- em sexo,
tigos”, que mais agudamente se perceberá O dorso em coxa, o ventre em fronte pura.
Dante Milano: o p e n sa m e n to e m oc i o n a d o   •  39

Conquanto seja temerário afirmar, é Tempo, vais para trás ou para diante?
possível que a escolha dessa tríplice temá- O passado carrega a minha vida
tica (na verdade, ela é inumerável) guarde Para trás e eu de mim fiquei distante,
algum parentesco com a galáxia de recursos
Ou existir é uma contínua ida
técnicos, formais e estilísticos mobilizados E eu me persigo nunca me alcançando?
pelo autor ao longo desses 141 poemas. É A hora da despedida é a da partida
que a poesia de Dante Milano envolve um
contínuo esforço ascensional em busca da A um tempo aproximando e distanciando...
Sem saber de onde vens e aonde irás,
transcendência, do absoluto, do eterno. O
Andando andando andando andando
chamado lirismo cotidiano, tão explorado
andando
pelos modernistas, ou o humor pedestre
do poema-piada praticamente inexiste nos Tempo, vais para diante ou para trás?
versos do autor, que jamais atua no nível
do tempo presente ou do imediatismo his- Mas foi por coexistir com esse ir-e-vir que
tórico. Para ele, assim como para Eliot em pôde o poeta realizar sua extraordinária sín-
Burnt Norton, o primeiro dos Four Quartets, tese entre passado e futuro, entre classicis-
mo e contemporaneidade. Assim, embora
O meu passado é todo o meu presente fiel à herança clássica, Dante Milano revela
E todo o meu futuro é já passado..., uma dicção e uma expressão genuinamente
modernas, mas que, na maioria das vezes,
pois o que conta é o tempo interior, ou seja, só encontram sua plena realização quan-
a durée metalógica de um tempo que, con- do desenvolvidas dentro dos “limites” das
forme o pressupunha Bergson, se distende chamadas formas fixas ou regulares, muito
para além do próprio tempo que, como tal, embora o poeta só o faça, ortodoxamen-
jamais poderia estar incluso na transitorie- te, com relação ao soneto. Por outro lado,
dade de um lirismo do dia a dia. Por isso Dante Milano adota amiúde esquemas de
nos diz ele que estrofação (dísticos, tercetos, quartetos,
pentásticos) e de isocronia rímica inteira-
O tempo eterno é para mim esta hora, mente avessos à iconoclastia modernista,
chegando mesmo a reviver – com inexce-
acrescentando: dível mestria, aliás –, a terza rima dantes-
ca. E o surpreendente é que, quanto mais
Bem no fundo de meu ser obscuro atenta a essa rígida ossatura formal, mais
Lembro-me antigamente do futuro. fluida e espontânea se torna a sua poesia,
assim como ocorre no caso de Odylo Costa,
Pode-se mesmo dizer que o poeta se filho, cuja poesia – como ele próprio escre-
move numa espécie de pantempo, submer- veu – só era “livre porque cativa”. Observe-
so na correnteza dos momentos passados e -se, por exemplo, a fluidez absoluta dos
futuros que, simultaneamente, se entrecru- admiráveis dísticos (no caso, arrímicos) nos
zam e se invertem, como se pode ver em quais se apoia o poema “Imagem”, em que
“Ao tempo”: aflora, aliás, a obsidiante volúpia do autor
40  •  I van Junqueira

pelo branco e pelas formas radiantes da luz, hierático da imutabilidade das inatingíveis
dessa luz que – como dirá ele depois –, por formas eternas que, desde o início, haverão
“mais que resplandeça”, é sempre cega: de seduzir o poeta. É a essa “pedra” que,
pelo resto da vida, ele se abraçará em vão,
Uma coisa branca, pois que vão é todo afã de imobilizar o flu-
Eis o meu desejo. xo do tempo:

Uma coisa branca,


Pedra, coisa do chão, face parada,
De carne, de luz,
Indiferente à carícia da mão,
Figura inerte que não sente nada,
Talvez uma pedra,
Corpo que dorme e a que me abraço em vão.
Talvez uma testa,

Uma coisa branca, Ainda no que concerne ao uso de certas


Doce e profunda, formas métricas da preferência do poeta,
medite agora o leitor sobre a “infração” co-
Nesta noite funda, metida nos hexâmetros dessas terze rime,
Fria e sem Deus.
onde Dante Milano substitui a rima alterna-
Uma coisa branca,
da, característica das terzine dantescas, pela
Eis o meu desejo,
rima continuada. Eis as sete últimas terzinas
Uma coisa branca, de “Os reis”, poema que principia com a
Bem junto de mim, tragédia de Macbeth e termina com a da-
quele “Rei dos Reis” que morreu na cruz
Para me sumir, para nos salvar:
Para me esquecer,
Aquele rei decrépito,
Nesta noite funda,
De bruxedos adepto,
Fria e sem Deus.
Astuto mas inepto.

Essa obsessão pelo branco – que nada Aquele rei demente


mais é, no nosso entender, do que um re- Que olha traiçoeiramente
flexo dantesco da “metáfora sobre a gera- E sorri com um só dente.
ção da luz”, como arguiu Ezra Pound em
relação à fulgurante escrita paradisíaca – Aquele rei profeta
percorre toda a poesia do autor, que a ma- Que insulta, ameaça, inquieta
nifesta até mesmo em seus derradeiros poe- A turba analfabeta.
mas, como, entre outros, “Nuvem acesa”,
Os reis e sua glória,
“Noturno do Praia Hotel”, “Objeto de arte”
De quem se escreveu a história
ou “Diálogo”. É curioso observar, também,
Para a eterna memória.
que essa prima forma in materia creata,
como diria Roberto Grosseteste, de uma luz Dentro ou fora da lei,
que é anterior a Dante, esteja amiúde as- Bom ou mau, rei é rei
sociada àquela “pedra” milaniana, indício E eu sempre os respeitei.
Dante Milano: o p e n sa m e n to e m oc i o n a d o   •  41

Mas o rei principal, Nos “Últimos poemas” de Poesias e pro-


personagem fatal sa, todos inéditos até 1979, essa obstinada
Deste mundo teatral, tendência à estrofação simétrica e à isocro-
É aquele Rei dos Reis nia dos esquemas rímicos parece acentuar-
Que igual a Deus se fez.
-se ainda mais, como se o poeta chegasse
Mais humano, talvez.
afinal à cristalização dos recursos formais
Consigne-se, a propósito, que o tema por ele anteriormente utilizados. E tanto
dos reis – dos reis malditos, devassos, ve- isso é verdade que, de um total de 36 poe-
lhacos, decrépitos, vagabundos, treslouca- mas, sete estão dispostos em dísticos, qua-
dos, bêbedos – já fora abordado pelo autor tro em terze rime (em três casos, atípicas),
muitos anos antes, como em “O bêbedo”, um em dísticos e terze rime alternados, qua-
poema que denuncia o fascínio de Dante tro em quartetos (em “Separação”, o autor
Milano pelas personagens marginais, os de- aduz um remate), um em pentásticos, três
serdados da sociedade e os vagabundos de em hexásticos, um em heptásticos e um ou-
toda têmpera, mas que, pelo “gesto” e a tro que conjuga o quarteto ao pentástico,
“estranheza do olhar”, não se podem com- além de dois sonetos anômalos – “A vaga”
parar aos “miseráveis”: e “Paisagem” –, num total, portanto, de 27
poemas que, apesar de algumas flutuações
O bêbedo que caminha métrico-rímicas, obedecem a padrões regu-
Que mantos arrastará? lares de estrofação e a esquemas rímicos
Que santo parecerá? isócronos, restando apenas nove compo-
Gaspar, Melchior, Baltasar? sições em forma livre. Nestas, todavia, se
falha a isocronia rímica, nem por isso deixa
Um miserável não é,
Logo se vê pelo gesto, de haver uma intenção subjacente de rima.
Pela estranheza do olhar. É pertinente observar ainda, com rela-
O bêbedo que caminha ção a esses “Últimos poemas”, o retorno de
Que rei bêbedo será? certos temas a que chamaremos aqui, com
algum arbítrio, de suborbitais, como o dos
Assim, para o poeta – e não seria ele, reis (“Os reis”), o do bêbedo (“Diálogo”,
também, bêbedo, talvez como nós? –, a “Tocata e fuga”), o dos cavalos do Apocalip-
condição de realeza perdura até mesmo se (“Nuvem acesa”), o das paisagens oníricas
entre aqueles que a vida exilou do convívio (“Paisagem”), o da luz cega (“Testemunha”
social. Mais significativo ainda: ela persis- e “Enumeração”, sendo que este último,
te exatamente naqueles que, subjugados convém registrar, inclui uma espécie de re-
pelo delírio da evasão etílica, conseguiram trospectiva temática), o do suicídio (“Alen-
romper o círculo de ferro da razão lógica, to”), o do andarilho (“Escrito no ar”), o
acercando-se assim de uma consciência que do momento musical (“Tocata e fuga”), o
já renunciou à consciência de si própria. Em do espelho das águas (“Divertimento”), o
outras palavras: de uma consciência que, da nudez branca (“Noturno do Praia Ho-
embora corrupta e perversa, é também tel”, “Objeto de arte”, “Diálogo”) ou o
uma forma de inocência. dos velhos mendigos (“Um velho”, “A um
42  •  I van Junqueira

mendigo”), estes dois últimos, aliás, de far- magistral “Baixo-relevo funerário”, escrito
ta incidência na poesia do autor. O velho e o sem dúvida muitos anos antes (já constava,
mendigo, com efeito, estão presentes des- com efeito, da primeira edição das Poesias)
de os primeiros poemas, como, por exem- e cujos versos nos induzem antes a ver a
plo, em “Mendigo”, o mesmo ocorrendo cena ali gravada do que a ler o texto gra-
com a obsessão do poeta relativamente à fado. Repare o leitor que a pontuação em
brancura da nudez feminina, cujo paradig- stacatto ao fim de cada verso nada tem de
ma estaria, como aqui já insinuamos, na- gratuita; ao contrário, ela nos sugere, sem
queles esplêndidos dísticos de “Imagem”. dúvida, não o término convencional da li-
Mas o velho mendigo desses derradeiros nha, mas o entalhe, pelo cinzel do artista,
poemas, é bom que se advirta, não é mais de abruptos e sucessivos sulcos na pedra:
aquele que, resignadamente, agradece a
Deus a “esmola de mais um dia”. Esse ve- Os guerreiros avançam em gestos ritmados.
Os escravos vão de rastros, acorrentados
lho é agora, como o “Gerontion” de Eliot,
pelos pulsos.
alguém que
Servas carregam vasos com essências.
O esquife transpõe o infinito.
Já sem ideias O carro voa para o sol.
No crânio oco Os cavalos entram na glória.
Reduz todo o vocabulário
A secas palavras. Perceba ainda o leitor que a descrição
dos segmentos cênicos evolui gradualmen-
Ora, a persistência ou o retorno desses te do plano concreto (sensível) ao plano
temas e subtemas confirmam à saciedade abstrato (inteligível). Com isso, o poeta nos
o que aqui já se afirmou quanto à unidade mobiliza a dois níveis distintos de visualiza-
conteudística da poesia de Dante Milano, ção: vê-se com os olhos o que descrevem
que, à semelhança daquele carvalho heide- (ou entalham) os três primeiros versos, mas,
ggeriano, permanece idêntica a si mesma, a partir do quarto, quando o “esquife trans-
do primeiro ao último verso, na aparente põe o infinito”, a cena só poderá ser vista
imutabilidade de seu devir. se mentalizada, se concebida ou intuída
Incluem também esses “Últimos poe- em instância transcendente àquela em que
mas” diversos exemplos do afã milaniano se organizam “les données immédiates de
de imobilizar, amiúde sob forma estatuá- la conscience”, ou seja, como o pretendia
ria, seres e paisagens de seu mundo inte- Bergson, para além do que nos transmite a
rior, como ocorre em “A vaga”, “Objeto caducidade da informação fenomênica. O
de arte”, “O corpo de Vênus”, “Paisa- quinto verso introduz uma pausa no proces-
gem”, “Pietá”, “Pietá II” e “Lição de músi- so de rarefação sensorial, ainda que, fantas-
ca”. Essa preocupação, aliás, também não ticamente, um carro esteja voando para o
é nova na poesia do autor, que a manifesta sol. O último verso, entretanto, desencadeia
de modo obsessivo (não fora ele o escul- uma tempestade catártica: os cavalos, que
tor bissexto que foi) desde seus primeiros simbolizam aqui a transcrição visual do ím-
textos, como é o caso, entre outros, desse peto cósmico rumo ao Absoluto, “entram
Dante Milano: o p e n sa m e n to e m oc i o n a d o   •  43

na glória”. Poucos poemas em toda a lite- da emoção, da lógica e do sonho”, confe-


ratura brasileira conseguiram, como este, rindo-lhe assim o que aquele ensaísta cha-
conjugar tamanha precisão verbal a tão in- ma de “lucidez estelar”.8
tensa pulsação de luz interior. A segunda característica – e que nos
Em seu breve e lúcido ensaio sobre a parece poderá vir a ser a chave para a so-
arte poética de Dante Milano, Sérgio Bu- lução de muitos dos “claros enigmas” da
arque de Holanda apontou-lhe duas carac- poesia milaniana –, refere-se ao que Sér-
terísticas que, segundo cremos, poderão gio Buarque de Holanda considera como
fornecer subsídios imprescindíveis à sua tangencial ao ritmo semântico, isto é,
correta interpretação. A primeira relaciona- aquele que se deixa guiar “não pelo ouvi-
-se à sistemática predominância do símile do apenas, mas também, e principalmen-
sobre a metáfora, circunstância que, a pro- te, pelo sentido”,9 o que, ainda uma vez,
pósito, viria a confirmar nossa tese de que confirmaria ser Dante Milano um poeta do
Dante Milano foi, basicamente, um poeta pensamento. É que, em vez de orientar-se
do pensamento emocionado, tal como sensualisticamente apenas pelo som do
Leopardi, autor de sua confessa predileção. significante, o ritmo (e, no caso do poeta
No processo analógico operado através do em questão, até mesmo a rima), passa a
símile não ocorre, como no caso da metá- ser permeado pelo sentido inteligível do
fora, nenhuma substituição de significado significado. Assim o fizeram Rilke e, mais
destinada a sugerir uma semelhança que aí do que este, Gerard Manley Hopkins, entre
apenas se subentende. Ora, a linguagem alguns outros, e assim também o aconse-
crua e transparente do autor jamais pode- lhava Eliot através daquela auditory ima-
ria absorver o barroquismo sensualístico gination preconizada em seu memorável
em que, não raro, se resume o jogo de luz ensaio The Music of Poetry. Para compro-
e sombra imposto pela metáfora. Assim, a var o que disse, Sérgio Buarque de Holan-
comparação direta e frontal proporcionada da toma como exemplo o primeiro dos
pelo símile atenderia mais às exigências do sonetos de “Sonetos e fragmentos”. Por
pensamento, enquanto o processo elíptico razões estritamente pessoais – e, também,
de substituição da metáfora satisfaria, com para que o leitor dê crédito à nossa des-
maior pertinência, às instâncias da emo- confiança de que esse ritmo semântico se
ção. Vê-se, portanto, que esse predomínio acha difuso em toda a poesia milaniana –,
do símile é antes de caráter estrutural do preferimos trabalhar aqui sobre a matéria-
que propriamente formal. Ponto de vista -prima de outro soneto, “Metamorfoses”,
semelhante é o que defende Franklin de já por nós parcialmente transcrito neste es-
Oliveira, quando sustenta que, na poesia tudo. Verás a seguir, incrédulo e paciente
de Dante Milano, a emoção está “gover- leitor, como Deus e o diabo às vezes dão-se
nada pela inteligência, refeita, restaurada, as mãos para a glória da poesia e a pereni-
reconstituída sob o império da lucidez”, dade da linguagem dos vivos.
o que dela faz uma “poesia das significa-
ções”, pois em seus versos o “ato semân- 8 OLIVEIRA, Franklin de. Op. cit.
tico emerge das matrizes do pensamento e 9 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Op. cit.
44  •  I van Junqueira

Os quatro primeiros versos – a relembrar o que sonhara. Já no segundo


verso, entretanto, a fricativa labiodental so-
Sonho maior que o sonho de quem dorme, nora v, associada ao timbre agudo da vogal
Eu vi, de olhos despertos, fabulosas i e à súbita pausa imposta pela vírgula, nos
Metamorfoses, conexões monstruosas dá a impressão de que, de repente, aquele
Entre o olhar e a aparência multiforme.
que estivera sonhando acorda em sobres-
salto e de olhos arregalados, como se, já
– engendram-se sob o jugo quase tirânico “desperto”, sonhasse agora de olhos aber-
das consoantes oclusivas m e n (nasais), b tos. Tal sensação de sobressalto mais ainda
e p (bilabiais), d e t (linguodentais) e c (ve- se acentua através do colapso rítmico pro-
lar surda); e das vogais mediais orais a, e e vocado pelo enjambement que elide o se-
o, sendo que apenas a primeira pode ser gundo ao terceiro verso.
considerada baixa, como se o poeta nos O verso seguinte –
quisesse transmitir, através do processo da
oclusão fônica, um clima de suspense, de Eu vi o que a luz expele e a sombra engole
perplexidade, no qual a respiração somente
se fizesse a custo, entrecortada, quase disp- – desliza como um jorro peristáltico, em mo-
neica. Enfim, uma vaga e opressa sensação vimento antitético de fluxo e refluxo (observe-
de assombro. Essa impressão vê-se refor- -se que aí atuam também, como polos que se
çada, ainda, não apenas pela presença do opõem, os termos “luz” e “sombra”), simbo-
dígrafo nh (cujo valor fônico é o de uma lizando assim o ir e vir daquilo que é “expeli-
oclusiva palatal nasal), mas também pela in- do” e “engolido”. Perceba o leitor que a la-
cidência das fricativas surdas s (alveolar), f teral alveolar l desempenha aqui uma função
e v (linguodentais), as quais introduzem no rítmica essencial, assegurando a celeridade
poema uma espécie de frisson expectante exigida pelo fluxo a que acima nos referimos.
que, conjugado ao timbre medial predomi- O verso que se segue, entretanto,
nante da vogal o, envolve os quatro versos
Vi como na água o corpo em si se enrola,
num cone de penumbra e de indetermi-
nação ambiental. O poeta diz que vê, mas – altera o caráter retilíneo desse movimento
apenas de modo difuso – pois o que é visto de vaivém, que passa então a serpentear. A si-
flutua entre “o olhar e a aparência multi- nuosidade do ritmo encontra aqui pertinente
forme” –, “metamorfoses” e “conexões”, apoio fônico na flutuação criada pela oclusiva
às quais, por não serem ainda passíveis de velar sonora c, pela fricativa alveolar surda s
exata percepção, ele se refere, adjetivamen- e pela vibrante velar intervocálica r. No verso
te, como “fabulosas” e “monstruosas”. que se sucede –
Repare-se, ainda, que o primeiro verso flui
naturalmente, sem qualquer pausa rítmica, Quebra-se o torso, a perna se descola,
como um vulto que se esgueirasse devagar
no movediço e umbroso substrato onírico – a ocorrência múltipla e alternada das oclu­
dentro do qual estivera imerso e que, ain- sivas bilabiais e linguodentais – b (sonora),
da úmido das águas do sono, principiasse p (surda), d (sonora) e t (surda) –, com sábia
Dante Milano: o p e n sa m e n to e m oc i o n a d o   •  45

intermediação da oclusiva velar c (surda) e assegurado, também, pela abrupta violência


da pausa rítmica outra vez interposta pela do enjambement que se prolonga no impulso
vírgula, irá determinar, não mais uma al- iâmbico do primeiro hemistíquio do verso se-
teração na natureza do movimento, e sim guinte (“e mudar-se a dura/Nuca em anca”),
sua ruptura parcial: parcial porque, graças à cuja anfractuosidade rítmica infunde a angu-
presença da fricativa alveolar surda s, persis- lação indispensável ao cortejo de incongru-
te ainda um tíbio vestígio de ondulação. No ências anatômicas em que consistem aque-
verso que dá sequência ao poema – las “fabulosas metamorfoses” e “conexões
monstruosas”. A plausibilidade dessas me-
E os braços se desmancham na onda mole, tamorfoses está reforçada ainda pela riquís-
sima conjugação, nestes três últimos versos,
– o ritmo como que se dissolve, espregui- das oclusivas nasais m e n, das linguodentais
çando-se lentamente através da macia d e t e das bilabiais p e b, alternadamente
distensão fônica insuflada pelas fricativas surdas e sonoras, às fricativas palatais s e j –
surdas s e x (esta com valor sonoro equi- também ora surdas, ora sonoras – e às vogais
valente ao do dígrafo ch), pela nasalização orais altas u (posterior) e i (anterior), as quais,
das oclusivas m e n e pela falta de relevo das por sua vez, se revezam com as mediais orais
vogais fracas. o e e, dando-nos a impressão de que fomos,
Graças ao hábil emprego desses recursos afinal, tragados no fantástico e lúbrico vórtice
fônicos e rítmicos, os três versos seguintes – das “visões” milanianas.
Observe-se, também, ainda nestes
Vi num espelho alguém cujo reflexo versos finais, a extraordinária pertinência
O transformava noutra criatura. anatômico-analógica dos símiles oclusos
E num leito de amor já vi perplexo
nos antípodas que se metamorfoseiam uns
nos outros, ora de cima para baixo, ora de
– como que preparam, à semelhança dos
baixo para cima: nuca/anca (prolongamen-
alicerces de um anticlímax, a fulgurante e
to medial da cintura escapular/contrafortes
tempestuosa plurirritmia semântica dos três
da cintura pélvica), ombro/joelho (ângulo
versos finais:
superior dos membros superiores/ângulo
Seios com olhos! e mudar-se a dura medial dos membros inferiores), axila/sexo
Nuca em anca, o ombro em joelho, a axila (concavidade pilosa par da escápula/conca-
em sexo, vidade pilosa ímpar da pelve), dorso/coxa
O dorso em coxa, o ventre em fronte pura. (segmento retilíneo ímpar do tórax/segmen-
to retilíneo par dos membros inferiores) e
O démi-vers “Seios com olhos!”, já pela ventre/fronte (convexidade ântero-inferior
fantasmagoria surrealista da comparação de da cavidade abdominal/convexidade ante-
olhos a mamilos, já pela repentina coda ex- rossuperior da caixa craniana).
clamatória que explode sobre a quarta síla- É na síntese poética de todos esses ele-
ba, antecipa o impacto visual causado pelo mentos, que se harmonizam sob o signo in-
assombro das metamorfoses que, agora sim, teligível do ritmo semântico e que – enigma
serão descritas pelo poeta. Esse impacto está insondável – em momento algum sequer
46  •  I van Junqueira

arranham a espontaneidade da expressão, Talvez a exprimisse o ai da cabeça separada


que se resume, sem dúvida, o princípio de- do corpo que rola ensanguentada,
miúrgico da irrepreensível gestalt do verso Talvez a escrevesse a mão hirta que no último
milaniano. Sim, um poeta do pensamento, gesto de horror largou a espada,
Talvez a dissesse o grito sufocado, o pranto
de um pensamento que se emociona em ní-
que salta, o suor frio, o olhar esbugalhado...
vel de exigências a um tempo intelectuais e
sensoriais. Ou talvez – e por que não? – o
Passagens como esta são comuns na
exemplo supremo daquele prodígio a que
obra do autor, cuja poesia parece também
Marcel Proust chamou de “l’intelligence du
sinistra por revelar-se, sob certos aspectos,
coeur”. Não importa. Mais vale aqui, ao
efetivamente nua e desértica, embora aqui
menos para nós, endossar ainda uma vez o
tais características nos sugiram antes um
percuciente insight exegético de Sérgio Bu-
parentesco com a nudez do verso leopar-
arque de Holanda, segundo quem o verso
diano. Para nós, entretanto, essa nudez e
milaniano “parece descrever, e não apenas
pelo sentido das palavras, o pensamento esse vazio manifestam-se amiúde enquanto
que nele se quer representar”.10 signos de uma austeridade expressiva, de
Restaria aqui uma palavra sobre o con- uma estrita e obstinada economia de meios,
troverso lirismo de Dante Milano. Não deixa de um expurgo de tudo aquilo que o poeta
de ter certa razão Paulo Mendes Campos considerasse supérfluo, e não exatamente
quando se refere ao antilirismo do autor, como indícios de secura ou desolação es-
concluindo ainda que sua poesia é “sinistra, pirituais. Lembre-se o leitor de que aquele
nua, desértica”.11 Embora a opinião não que muitos consideram o maior poema de
seja de modo algum impertinente, é bem Leopardi, “L’infinito”, é tido por outros tan-
de ver que não iremos tão longe. Há lirismo, tos como uma obra cuja desolação não tem
sim, amiúde sinistro, mas também talvez espectadores, tamanha a sensação de vazio
fantasmagórico, talvez algo visionário. Dan- cósmico que dela se irradia. E no entanto
te Milano é, sem dúvida, um poeta hipnoti- é este o poema mais estimado do autor
zado pela visão escatológica da realidade, e dos Canti, e mais estimado porque, como
não são poucas as vezes em que nos remete observa o próprio Dante Milano no estudo
àquela “visão interior de olhos abertos”. Lí- que dedicou ao poeta italiano, é justamente
rico ou antilírico, o poeta nos revela de fato nesse texto que Leopardi “cria uma atmos-
um acentuado fascínio pelos aspectos sinis- fera tão densa e seu estilo é tão convincen-
tros da vida. Diversos poemas o denunciam te que ao lê-lo tem-se a ilusão de que todos
graças a um prazer detalhístico quase mór- os homens são poetas e de que a existência
bido na descrição de minudências absoluta- é um poema”.
mente macabras, como ocorre, por exem- Não há dúvida, contudo, de que a crue-
plo, no poema “Vozes abafadas”, em que, za e o ascetismo de sua linguagem podem,
ao afirmar que nenhuma língua será capaz às vezes, sugerir ou acusar essa tendência
de transmitir a dor humana, diz ele que ao sinistro. E, na verdade, não há como
10 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Op. cit.
negar que o poeta a ela se incline até
11 CAMPOS, Paulo Mendes. Op. cit. mesmo em nível do vocabulário. Para nos
Dante Milano: o p e n sa m e n to e m oc i o n a d o   •  47

restringirmos apenas a uma única vertente charogne”, “L’irrémédiable”, “L’horloge”,


léxica, adjetivos como terrível, alucinante, “Une martyre”, “La Béatrice”, “Le Léthé”
tenebroso, medonho, horrendo, tétrico, e “Un voyage à Cythere”, todos rigorosa-
fantástico, louco, demente, escaveirado, mente... sinistros. Seria esse fascínio pelo
desfigurado, transfigurado, encovado, dis- macabro e pelas trevas a contrapartida de
forme, carcomido, podre, apodrecido, mi- sua obsessão pela luz?
serável, irreparável, assustador, perplexo, Enfim, e ainda uma vez, o gênio maior
fabuloso, monstruoso, esfacelado, ensan- do poeta parece brincar conosco, apagan-
guentado, dilacerado, crucificado, esbuga- do indícios e falseando pistas que porven-
lhado, esgazeado, revirado, desgrenhado, tura nos pudessem levar à descoberta de
hirto, lívido, esquálido, crispado, ululante, seus mais recônditos segredos. É possível
cruel, fatal, torvo, taciturno, soturno, no- até que o lírico se vergaste no antilírico e
turno, escuro, obscuro, assassino, repelen- este se redima naquele, assim como a luz
te, infecto, imundo, pisado, cuspido, recur- que, para resplandecer, exige o concur-
vo, mortal, funerário, fúnebre etc. etc., têm so das trevas. Mas esses e outros seriam
curso livre e copioso na poesia do autor, apenas ingênuos artifícios maniqueístas,
que, nesse particular, se aproxima não ape- incapazes como tais de nos revelar o que
nas da linguagem “macabra” de Augusto se oculta sob o epidérmico e fortuito dua-
dos Anjos – a quem, aliás, consagrou um lismo de uma máscara. Quanto ao rosto de
estudo em que lhe sublinha, justamente, que agora nada mais resta, leitor, façamos
o caráter hediondo dos versos –, mas tam- nossas as palavras do próprio poeta, que
bém da sinistra “putrefação” baudelairiana. nos impõe, como condição para encará-lo
Não nos parece gratuito, a propósito, que, face a face, pacientarmos
dentre os 38 poemas que traduziu de Bau-
delaire, haja Dante Milano escolhido, entre Até que a terra
outros, “Un fantôme”, “Horreur sympa- Com sua garra
tique”, “L’héautontimorouménos”, “Une Nos rasgue a máscara.
Terzinas para Dante Milano

Ivan Junqueira
Sexto ocupante da Cadeira 37 na Academia Brasileira de Letras

ché ’n la mente m’è fitta, ed or m’accora


la cara e buona imagine paterna
di voi, quando nel mondo ad ora ad ora
m’insegnavate come l’uom s’etterna:
e quant’io l’abbia in grado, mentr’io vivo,
convien che ne la mia lingua si scerna.
Dante Alighieri, Inferno

Vejo o teu vulto imerso na neblina,


a fronte austera, o olhar inquieto e agudo,
desperto o pensamento, a boca fina,

como se nela o verso, embora mudo,


de graves timbres se tornasse pleno
e assim, mesmo sem voz, dissesse tudo.

Vejo-te a mão nodosa, de ar terreno,


compor à sombra a música de um hino
que jamais escreveste: esquivo aceno

de quem saúda, em gesto florentino,


tudo o que o ser consigo traz de eterno
– a morte, o amor, o sonho, o árduo destino.

O organizador da presente edição optou por acrescentar à visão do crítico Ivan Junqueira, tal como nos revela o texto
que abre esta Obra reunida, a do poeta Ivan Junqueira sobre a figura, a presença e o legado de Dante Milano. As
“Terzinas a Dante Milano”, originalmente publicadas em A sagração dos ossos (1994), bem atestam, por sua notável
força expressiva, o quanto aquele que aí se diz discípulo de Dante Milano logra alçar-se, na crispada homenagem
que rende a seu mestre, às mais altas dimensões da poesia deste.
50  •  Terzinas para Dante Milano

E vejo mais: as sílabas do inferno


que em teus lábios crispados se torciam
como se torce o fogo à luz do inverno.

E vejo, vejo ainda, quanto ardiam


nos olhos teus aquelas flamas nuas
que nem os velhos deuses saberiam

como apagar, ou se eram mesmo tuas,


tal qual alguém, que de si próprio ausente,
súbito a alma repartisse em duas.

E mais do que isso, vejo agora à frente


o abismo a que desceste desde a origem:
essa busca do ser, essa fremente

paixão da lucidez, verde vertigem


de se arriscar sem guia à selva escura
no encalço do que ali fosse mais virgem.

Assim, teu verso, alheio a essa impostura


da fama e das seletas confrarias
nas quais ao pó o mofo se mistura.

Mas o que vejo, enfim, além das frias


lembranças que me restam na memória,
é mais que o sol e o céu daqueles dias,

quando na serra se escrevia a história


de um discípulo em busca de seu mestre
e a desse mestre avesso à pompa e à glória.

E foi lá, entre esfíngico e campestre,


que me ensinaste a ver como o homem
pode tornar-se eterno sendo o que é, terrestre.

E é por isso que agora me sacode


esse tremor que aos poucos vai tomando
a vagarosa forma de uma ode,
Terzinas para Dante Milano   •  51

ou de algo informe que, rugindo e urrando,


procura entre as palavras somente uma
capaz de celebrar-te o engenho, quando

não fores sobre a escarpa mais que a bruma


e de ti não restar senão um nome
que há de afogar-se sob os pés da espuma.

O beco, os reis, a gruta – tudo some


no silêncio e no azul da eternidade.
Sob a lápide dormes. Não tens fome

de nada o que não seja essa saudade


das mulheres que amaste em tua vida
e do sonho fugaz da realidade.

Vagueiam sombras na erva desvalida


cujos dedos te afagam com doçura
e te abençoam a alma dolorida.

“Aqui jaz”, leio em tua sepultura.


Mas nada ali recorda a tua morte
nem teu exílio em gleba tão escura.

A tumba é amiúde ambígua, de tal sorte


que nela estás e não estás sepulto.
(Quem poderia, aliás, tendo o teu porte,

ali permanecer, umbroso e oculto?)


Já não és relva nem raiz nem terra,
mas tão somente a luz de um vago vulto

que se move, sutil, no ermo da serra


em busca da mais funda solidão
e de tudo o que a morte não enterra.

Descansa, ó poeta. Aperto em minha mão


o que me deste: esse íntimo segredo
que me fez teu herdeiro e teu irmão.

E o resto é o vento no áspero rochedo.


ENS A I O

Ramón Menéndez Pidal

Arno Wehling
Ocupante da Cadeira 37 na Academia Brasileira de Letras

“D
on Ramón Menéndez Pidal, como especialista em literatura medieval,
gloria de España...” particularmente por seus estudos sobre o
Era assim que as orelhas Poema de Mio Cid e os infantes de Lara.
dos livros da Editora Espasa Calpe referiam- Membro da Real Academia de la Len-
-se ao autor da obra que apresentavam. Por gua, em 1901 e depois da de História, teve
diferentes razões não era um exagero e o intensa atividade como professor visitante
cinquentenário de sua morte, por pouco em universidades europeias, dos Estados
mais de um ano coincidindo com o sesqui- Unidos e da América espanhola, a par de
centenário, merece ser lembrado. uma constante atuação na pesquisa filo-
Ramón Menéndez Pidal foi sócio corres- lógica e histórica até ultrapassar os no-
pondente da Academia Brasileira de Letras, venta anos. Fundou a Revista de Filologia
ocupando a Cadeira 14 de 1951 a 1969. Española e dirigiu por muitos anos a Real
O patrono, o franciscano Frei Francisco de Academia de la Lengua. Atuou na diplo-
Mont’Alverne, era o mais distinguido da úl- macia em 1904, mediando em nome da
tima grande safra de oradores sacros que Espanha a questão de limites entre Peru e
dominaram o púlpito entre o Brasil joanino Equador, mas manteve-se fora da vida pú-
e meados do século XIX. A Cadeira seria blica – exceto por sua atividade acadêmica.
inaugurada em 1898 por ninguém menos Nos momentos difíceis da segunda repú-
que Herbert Spencer, e seu atual ocupante blica espanhola e na guerra civil afastou-se
é Daisaku Ikeda. por algum tempo do país. Após o retorno
Menéndez Pidal era de La Coruña, mas ocupou pela segunda vez a presidência da
cedo castelhanizou-se, como dizia, sem es- Real Academia de 1947 até sua morte, em
quecer os vínculos galegos. Após os estudos 1968, recusando-se a substituir os acadêmi-
nas Universidades de Madrid e Toulouse, cos exilados pelo regime franquista.
tornou-se, em 1899, catedrático de Filolo- Discípulo preferido de Menéndez y Pe-
gia Românica da Universidade Compluten- layo, fazia questão de identificar-se com a
se, quando já havia alcançado nomeada “geração de 98”. Com Ortega y Gasset e
54  •  A rno Wehling

Miguel de Unamuno representou o ponto na Espanha. Admiti-la, entretanto, poderia


alto da cultura espanhola na primeira meta- implicar aceitar a origem germânica não só
de do século XX. da epopeia espanhola, como da francesa, o
A obra de Menéndez Pidal é a de um au- que o levou a chocar-se com as interpreta-
têntico polígrafo, não obstante a especia- ções então clássicas de Bédier sobre a ori-
lização universitária. Elegeu a Idade Média gem autóctone da Chanson de Roland. O
espanhola como foco de seu interesse filo- filólogo francês, diz Menéndez Pidal, “dava
lógico e histórico e nela o poema e a vida seu curso no Collège de France sobre La
de Don Rodrigo de Vivar, El Cid. Mas fez Chanson de Roland et la nationalité fran-
incursões para trás, para as origens godas
çaise, em 1870, em meio ao círculo de ferro
da literatura espanhola e para adiante sobre
que os exércitos alemães haviam colocado
o século XVI dos Reis Católicos e de Carlos
em torno à cidade”.
V e ainda além. Seu leit motiv era o que via
Encaminhando o assunto, o autor, no li-
como a grandeza da Espanha: a luta por si
vro Los godos y la epopeia española lembra
só épica da Reconquista, a unidade de Ara-
que
gão e Castela e a última manifestação de
“todo estudo de tradicionalidade épica há de
“monarquia universal” europeia com Car-
partir do conhecido texto de Tácito: os germâ-
los V. Escreveu sobre Cervantes e Lope de
nicos, todas as suas estirpes, usavam canções
Vega e sobre o que considerava como as que lhes serviam de memórias e anais”.
dualidades espanholas depois do Iluminis-
mo; por fim dirigiu monumental obra co- Mas observa que, consequentemente
letiva, uma História da Espanha que no fim admitir uma origem puramente germânica
dos anos 1950 só a ele caberia coordenar. implicava supor uma “larga tradição inin-
Mas sua alma estava em algum lugar entre terrupta”, quando o que existe, a par da
os séculos XI e XVI, quando para ele a Espa- tradição, é uma sucessão de incorporações
nha se encontra consigo mesma pela língua poéticas individuais:
e pela história e se impõe ao mundo pelo “não há transmissão de obra tradicional,
catolicismo e pelo império. seja por escrito, seja oralmente, que não tra-
De certo modo, foi a maneira que en- ga consigo algo de refundação ao gosto do
controu para superar o trauma de 1898 e transmissor”.
contribuir ao “regeneracionismo” daquela
Esses avatares de historicidade levam-no
geração.
à seguinte conclusão, tantas vezes discutida:
O primeiro e certamente principal de
“Demonstra-se assim algo que parece pa-
seus campos, o da filologia, interessava-o
radoxal: os godos, cuja literatura ignoramos
sobretudo pelas origens e significado da
totalmente, influenciaram de modo persis-
poesia épica no contexto histórico baixo- tente e profundo sobre toda a literatura espa-
-medieval. nhola, dando vida a um gênero poético que
Uma de suas teses preferidas era a ques- não é como os demais: a epopeia que vence
tão da origem goda da epopeia espanhola, a morte, um gênero cujo espírito transmigra
que via em paralelo com a influência das em fins da Idade Média ao romanceiro, e mais
Chansons de Geste e das baladas nórdicas tarde renasce no teatro nacional, revivendo
R a m ó n M e n é n d ez P i da l   •  55

depois na poesia, no drama e na novela da do Islã; e a competência militar provada


época moderna”. pelo Cid ante exércitos muito mais podero-
sos. Neste aspecto o autor amparava-se nos
No artigo Poesia e Historia em el Mio
historiadores muçulmanos como Ben Bas-
Cid, de 1949, remonta à grande tese de
sam, que dizia, citado por Menéndez Pidal:
meio século antes e a discussões com espe-
“Rodrigo – Deus o maldiga – viu suas ban-
cialistas franceses e alemães sobre o tema.
deiras favorecidas pela vitória, e com um
Destaca na relação entre a arte e a história
pequeno número de guerreiros aniquilou
que o poema deixa-se interpretar nas duas
exércitos numerosos.”
condições, mas que “o poema é verídico e
A conclusão do livro sobre o Cid
histórico sem propósito, sem necessidade
traduz muito mais do que as reflexões de
de sê-lo”. No caso do debate acerca das
um erudito sobre seu tema, embora seja
fontes do Mio Cid defende que o poema
também isso. Expressa, talvez com alguma
estava “cimentado sobre a própria vida
ucronia, uma visão histórica da futura Espa-
coetânea” e não sobre crônicas que regis-
nha: o Cid
travam os acontecimentos e muito menos
“em época de extrema crise, tanto dentro da
na “livre invenção fantástica”. Ao contrá- nação como no exterior, estabelece... a hege-
rio de outras narrativas épicas, o Cid não é monia peninsular de Castela, afirma a nobreza
para o autor um herói mítico cuja possível das obras superior à nobreza de sangue, doma
realidade se encontra mesclada na lenda e a cizânia ambiente logrando a cooperação de
traduzida na poesia. Desde o início poesia todos os príncipes cristãos antes desavindos
e história estão mescladas numa “rara con- e rechaça o avanço da invasão africana esta-
belecendo a supremacia da Espanha europeia
formidade caracterizadora”. A poesia épica
sobre a Espanha islâmica.”
coexiste com a abundância de fontes histó-
ricas sobre personagem e atos, o que acar- O outro polo de interesse de Me-
reta consequência pouco usual: “frequente- néndez Pidal é o século que vai dos Reis
mente sucede que o caráter real do Cid é Católicos à abdicação de Carlos V. Ele vê
de maior interesse poético que o da lenda”. uma notável uniformidade de política que
As vitórias e desventuras do Cid, para se estende das últimas décadas do século
Menéndez Pidal, possuem duplo significa- XV, com a união dos reinos de Castela e
do: triunfam sobre as dissenções e a cizânia Aragão apoiada num casamento até o fi-
do lado dos cristãos e os unem contra os nal do reinado de Carlos V, em 1556. Esta
mouros nas lutas da Reconquista. Vê ain- uniformidade se traduziria em dois proje-
da coincidir fontes históricas e legenda do tos: a manutenção da unidade espanhola e
Campeador em dois pontos: o reconheci- a identificação do reino com a concepção
mento da habilidade política demonstrada universalista cristã medieval. Poderíamos
ao distinguir entre os mouros valencianos e acrescentar: um ideal moderno, o da uni-
moçárabes que conviviam com os cristãos dade monárquica, e um ideal antigo, o do
no que foi o ponto alto da civilização islâmi- império universal.
ca na península e os invasores almorávidas O autor tinha muito claro, entretan-
que defendiam uma radicalização religiosa to, que a monarquia unida nada tinha de
56  •  A rno Wehling

absolutismo, antes realizava o ideal de go- singular das bulas alexandrinas segundo
verno limitado que vinha das lições tomis- a qual a presença espanhola justificava-se
tas e se renovaria na escola de Salamanca. apenas pela predicação evangélica às suas
Pelo menos é o que demonstra em seus tra- expensas. Vitória, por outro lado, não era
balhos sobre os Reis Católicos, Carlos V e jurista, mas teólogo e para o filólogo-histo-
Maquiavel. De qualquer modo, a unidade riador era um homem aberto do Renasci-
espanhola era uma concepção política for- mento, capaz de entender as circunstâncias
te na época dos Reis Católicos e Menéndez diversas, culturais, políticas e materiais dos
Pidal evoca o testemunho do gramático Ne- indígenas, ao mesmo tempo que defendia a
brija dirigindo-se à rainha Isabel: “pela in- missão evangelizadora do Rei e a existência
dústria e trabalho de Vossa Real Majestade, de áreas baldias, res nullius, utilizáveis pe-
os membros e pedaços da Espanha se re- los colonizadores espanhóis. Várias de suas
duziram em um corpo e unidade de reino... ideias consubstanciariam, antes de Grotius,
que muitos séculos, injúria e tempos não a os pilares do direito internacional público. A
poderão romper nem desatar.” extensa polêmica entre os religiosos do sé-
O tema da unidade espanhola era caro culo XVI foi estudada por Menéndez Pidal,
ao autor e foi uma tônica de sua obra, com- recorrendo entre outros ao Inca Garcilaso de
patibilizando-se no plano internacional com la Vega, para concluir decididamente a fa-
a ideia da paz cristã, paz universal que Car- vor dos argumentos de Francisco de Vitória,
los V representou. Menéndez Pidal via estes atribuindo a Las Casas uma anti-hispanidade
dois temas numa leitura contemporânea: quase patológica.
a unidade possível e desejável da Espanha No primeiro volume da História da Espa-
franquista e pós-franquista por cima das nha que dirigiu até morrer, Menéndez Pidal
cisões da guerra civil e o ideal pacifista e publicou em 1947 o ensaio “Os espanhóis
democrático do segundo pós-guerra. na história e na literatura”. Refez o tex-
Entranhadamente espanhol, este profes- to e em 1959 publicou a versão definitiva
sor universitário treinado no método e na em outro livro, apenas retirando do título
confrontação de teses revelava-se apaixona- a menção à literatura. A primeira frase da
do em várias circunstâncias. Uma delas foi obra é incisiva: “os fatos históricos não se
a maneira como opôs Las Casas e Francisco repetem, mas o homem que realiza a Histó-
de Vitoria, em estudos polêmicos a propó- ria é sempre o mesmo.” Em consequência,
sito do indígena americano e da coloniza- é a este homem – espanhol, no caso – que o
ção espanhola da América. Para Menéndez autor procura. Avançando numa ideia de Fi-
Pidal o sevilhano Bartolomeu de Las Casas delino de Figueiredo a propósito das “duas
era um canonista de mente medieval, aferra- Espanhas”, constata que o país sistematica-
do a fórmulas jurídicas tradicionais, incapaz mente se dividiu entre tradição e inovação,
de entender a realidade concreta e preso a numa disputa quase sempre ferrenha, ao
dois princípios legais, o direito de proprieda- contrário de outros povos, nos quais a dico-
de dos reis e caciques indígenas sobre todas tomia só apareceria em momentos críticos.
as terras americanas e o direito limitado dos O livro prossegue na bipolaridade, com ou-
Reis Católicos, a partir de uma interpretação tras categorias como Europa versus África,
R a m ó n M e n é n d ez P i da l   •  57

europeísmo versus casticismo medieval, re- preconceituosa atitude francesa e anglo-


volucionários ilustrados versus tradicionalis- -saxônica de desprezar a cultura hispânica
tas, para deter-se no problema do isolamen- como atrasada e arcaizante.
to do país em diferentes momentos – que Neste sentido, podemos entender sua
na verdade refletia o que vivia, o duríssimo conclusão, de que se tornara necessidade
pós-guerra – e no que lhe parecia o desafio atual da história remediar os “descuidos e
histórico maior, realizar a unidade respei- parcialismos anteriores, descobrindo e tra-
tando a diversidade, regional e ideológica, zendo à luz aquelas zonas pretéritas que
do país. estão esquecidas...”, de modo a subsidiar
Isolado em sua obra, não era um livro de as decisões dos tempos presentes com a ex-
história, mas de filosofia da história delimi- periência do passado.
tado no universo espiritual espanhol, seme- Hispanista, espanhol, mas sobretudo
lhante a alguns ensaios de Ortega y Gasset humanista, quer no sentido da erudição
e à “ideia de hispanidade” de Manuel Gar- renascentista, quer no da cosmovisão ilus-
cia Morente, todos de certa forma reagindo trada: talvez sejam os conceitos que melhor
ao que percebiam como injusta e mesmo traduzam a vida deste novo Campeador.
Memória reverenciada – Afonso
Arinos

Antônio Torres
Ocupante da Cadeira 23 na Academia Brasileira de Letras

A
ntes dele não havia Arinos algum. primeiras balizas que fizeram do regionalis-
Ou, para parodiar o início de um mo “um gênero literário típico e brasileiro
conto magistral, A hora e a vez de por excelência”, no dizer de Otto Maria
Augusto Matraga, Arinos não era Arinos Carpeaux.
nem nada. Daí poder-se inferir que o pré-modernis-
Pois é assim que começa a sua história: ta Pelo Sertão foi o abridor da estrada em
com um apelido que um pai deu a um fi- que trilharam José Lins do Rego, Graciliano
lho chamado Afonso. E este o adotou como Ramos e Guimarães Rosa. O que não é pou-
sobrenome, com o qual viria a se distinguir co. O seu autor, que naquele mesmo ano
nas nossas letras entre o final do Império e de 1898, com o pseudônimo de Olívio de
os inícios da República, sobretudo a partir Barros, publicou em folhetim o romance Os
da publicação do seu livro de contos Pelo Jagunços, teve imediato reconhecimento
Sertão, subintitulado Histórias e Paisagens, não só pelo pioneirismo de suas imersões
escrito de 1888 a 1895, e publicado em num mundo de vaqueiros, capangas, assas-
1898. (O Acadêmico, poeta, ensaísta e bi- sinos, escravos fugidos, vinganças políticas,
bliófilo Antonio Carlos Secchin guarda em amores trágicos, acontecimentos singelos -
sua biblioteca um exemplar da primeira edi- tudo permeado pelo conservadorismo rural,
ção desse livro, pela editora Laemert, em sua rudeza, crenças e mitos -, mas também
cuja capa o autor escreveu: “O título que pelo seu apurado senso estético, expressa-
constava do contrato com a casa editora era do na simplicidade e limpidez da sua fatura
simplesmente Sertão”. E assina embaixo). literária. Tais qualidades o fariam chegar à
Pelo visto história afora, acabou preva- Academia Brasileira de Letras e ao Institu-
lecendo o acréscimo do editor para o tí- to Histórico e Geográfico Brasileiro quase
tulo que antecedeu em quatro anos o de instantaneamente, pois foi eleito para estas
Euclides da Cunha, e mais de meio século duas instituições em 1901, apenas três anos
o Grande Sertão: Veredas. A posteridade depois da sua estreia em livro, e no pleno
o consagraria como o estabelecedor das vigor dos seus 33 anos.
60  •  A ntônio Torres

Ele tomou posse na ABL em 18 de se- praça, como um monumento às gerações ex-
tembro de 1903, para ocupar a Cadeira 40 tintas, uma página sempre aberta de um poe-
– hoje pertencente ao economista Edmar ma que não foi escrito, mas que referve na
mente de cada um dos filhos desta terra.”
Bacha – tendo sido recebido por Olavo Bi-
lac, que definiu a sua literatura como “uma Esse trecho do conto Buriti Perdido pode
larga ponte batida de sol, lançada entre o até ser lido hoje como uma profecia de Bra-
passado e o futuro”, e da qual o príncipe sília, cidade que, não por acaso, fez do bu-
dos poetas brasileiros destacava o estilo riti a sua árvore símbolo, plantada na Praça
“temperado pela suavidade que a língua do Buriti, em frente ao palácio de mesmo
dos nossos maiores adquiriu ao passar da nome, projetado pelo arquiteto Nauro Jor-
velha para a nova pátria”. ge Esteves em 1969 para a sede do governo
Autor de um célebre poema sobre a lín- do Distrito Federal.
gua portuguesa, Olavo Bilac exaltou a con- Abundante no Cerrado, o buriti é uma
tribuição de Arinos ao progresso da “última das palmeiras mais singulares do Brasil,
flor do Lácio” – então inculta, ainda que também chamada de coqueiro-buriti, ca-
bela –, mas sem tornar-se subserviente à sua radu-guaçu, caradaí-guaçu, palmeira-dos-
pureza primitiva. E nisso Bilac vislumbrava o -brejos. O seu fruto é fonte de alimentação
destino do português do Brasil, que, a seu privilegiada. Rico em vitamina A, B e C, ain-
ver, na pena de Arinos passava da garganta da fornece cálcio, ferro e proteínas. Consu-
do pardal para a do sabiá, num abranda- mido tradicionalmente ao natural, também
mento de escala com um quebro langoroso pode ser transformado em doces, sucos e
que lhe veio a redobrar o encanto. licores. E mais: suas substâncias dão cor e
E dá como exemplo disso uma página aroma a diversos produtos de beleza (cre-
de Pelo Sertão em que Arinos glorifica um mes, xampus, filtros solares, sabonetes). O
velho buriti, “venerável epônimo dos cam- óleo extraído dessa fruta tem valor medici-
pos”, mais idoso do que a nossa raça, perdi-
nal, sendo utilizado como vermífugo, cica-
do no meio de uma planície verde:
trizante e energético.
“Se algum dia a civilização ganhar essa pa-
O Arinos contista via nele o símbolo de
ragem longínqua, talvez uma grande cidade
se levante na campina extensa que te serve uma raça quase extinta, como a canção
de soco, velho Buriti Perdido. Então, como os dolorosa do sofrimento das tribos, como
hoplitas atenienses cativos em Siracusa, que o hino glorioso dos seus feitos, a narração
conquistaram a liberdade enternecendo os comovida das pugnas contra os homens de
duros senhores à narração das próprias des- além.
graças nos versos sublimes de Eurípides, tu E perguntava:
impedirás, poeta dos desertos, a própria des- “Por que ficaste de pé, quando os teus co-
truição, comprando teu direito à vida com a evos já tombaram?
poesia selvagem e dolorida que sabes tão bem
comunicar. Então, talvez, uma alma amante Nem os rapsodistas antigos, nem a lenda
das lendas primevas, uma alma que tenhas cheia de poesia do cantor cego da Ilíada co-
movido ao amor e à poesia, não permitindo a movem mais do que tu, vegetal ancião, cantor
tua destruição, fará com que figures em larga mudo da vida primitiva dos sertões”.
M e mó r i a r e ve r e n c i a da – A f o ns o A r i n os   •  61

Sim, era assim que escrevia o primeiro o que lhe moldaria profundamente a perso-
Afonso Arinos de Melo Franco, tio do seu nalidade, levando-o a se tornar um dos mais
homônimo jurista, político, memorialista, significativos intérpretes de tipos populares
biógrafo e historiador, autor de, só para regionais, tendo como cenário a geografia
lembrar dois de seus títulos, O Índio Brasi- do Brasil Central, numa extensa área entre
leiro e a Revolução Francesa, e A Alma do Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás.
Tempo, este voltando às livrarias esta sema- Os primeiros registros sobre ele não dei-
na, pela Topbooks, num volume de 1.780 xam de ser uma biografia sentimental, es-
páginas, o mais alentado deste ano. Esta- crita pelo seu pai, o juiz de direito Virgílio
mos falando de outro Arinos membro desta de Melo Franco, num caderno de anotações
casa - na qual ocupou a Cadeira 25, hoje particulares:
ocupada pelo igualmente jurista Alberto “Nasceu meu filho Afonso, o primogênito,
Venâncio Filho, o coordenador deste Ciclo no dia 1.o de maio de 1868, sexta-feira, às 10
de Memórias Reverenciadas. horas da manhã, estando eu pousado no Pe-
Ainda e sempre bem lembrado pela lei dro Pereira, em viagem para Ouro Preto, como
contra a discriminação racial, o segundo deputado provincial. Foi batizado na igreja
matriz desta cidade (Paracatu), servindo-lhe
Afonso Arinos vem a ser pai do terceiro aca-
de padrinho o seu avô materno, coronel João
dêmico de mesmo nome, este diplomata e
Crisóstomo Pinto da Fonseca, meu sogro, e de
escritor, que aqui ocupa a Cadeira 17, su- madrinha minha mãe, Dona Antônia de Melo
cedendo ao filólogo Antônio Houaiss. É ele Franco. O sacerdote que o batizou foi o cô-
quem conta: seu pai também não fora bati- nego vigário Miguel Arcanjo Torres, o mesmo
zado Arinos. Adotou o nome do tio quando que casou meu sogro, batizou-lhe a primeira
este faleceu, a instâncias da avó paterna, filha, casou-a comigo, e tem batizado os nos-
mãe do primeiro Arinos, que nele, aos 10 sos filhos.”
anos, divisava inclinação literária.
Vinculado a antecedentes ilustres, o pri- Biografia que segue
meiro Afonso Arinos nasceu em uma famí-
lia fundadora da cidade mineira de Paracatu Aos 9 anos, Afonso viajou com os pais
– os Caldeira Brant e os Melo Franco -, cujos para o interior de Goiás, onde conheceu o
remotos parentes lá chegaram no apogeu sertão e estudou em Vila Boa de Anhangue-
do extrativismo dos metais preciosos na re- ra, ou Vila Boa de Goiás, capital daquele es-
gião, para se destacarem, além da minera- tado até 1937, hoje a cidade histórica de
ção, na política, na literatura e na ciência. Goiás Velho. Aos 13, ingressou no colégio
Desse berço de ouro emergiria um ho- do Cônego Antônio José da Costa Macha-
mem de porte helênico, extraordinária sim- do, de São João del Rei. Cursou humanida-
patia, maneiras fidalgas, a contrastar com o des no Ateneu Fluminense, do Rio de Janei-
outro e mesmo Arinos que, desde os seus ro, e Direito em São Paulo.
anos mais juvenis, costumava vagar descal- Em 1889 mudou-se para Ouro Preto,
ço pelos campos, embrenhando-se nas ma- então capital de Minas Gerais. Concorreu
tas ao lado de caipiras, dos quais gostava a uma vaga de professor de História do
de ouvir as histórias e os ponteios de viola, Brasil no Liceu Mineiro e ajudou a fundar a
62  •  A ntônio Torres

Faculdade Livre de Direito que, em 1892, se das grandes cidades cosmopolitas do lito-
mudaria para Belo Horizonte, sob a direção ral; até aqui, toda a atenção dos governos e
de Afonso Pena. grande parte dos recursos dos cofres públi-
Afonso Arinos foi secretário e regente cos eram empregados na imigração ou no
da cadeira de Direito Criminal, ao lado de tolo intuito de querer arremedar instituições
professores como Augusto de Lima, Silviano ou costumes exóticos. O Brasil central era
Brandão, Davi Campista e o poeta Raimun- ignorado; se nos sertões existe uma popu-
do Correia. lação, dela nada se conhece, dela não cura
Durante a Revolta da Armada, entre o governo; e eis que ela surge, numa es-
1893 e 1894, abrigou em sua casa os escri- tranha e trágica demonstração de energia,
tores Olavo Bilac, Carlos de Laet, Magalhães afirmando sua existência, e lavrando com o
de Azeredo e Coelho Neto que, suspeitos sangue um veementíssimo protesto contra
de participação naquele movimento, refu- o desprezo e o olvido a que fora relegada.
giaram-se no interior de Minas. E essa força, que assim apareceu, há de
Em 1896, partiu para a Europa, itinerá- ser incorporada à nossa nacionalidade (...)
rio que repetiria várias vezes, até o fim da Esses que foram mortos ou subjugados pe-
vida, sem deixar de escrever sobre essas via- las armas nacionais fazem parte do grande
gens. Ao regressar da primeira delas aceitou conjunto de homens (...) que vivem igno-
um convite de Eduardo Prado para assumir rados e esquecidos” - e por aí ele ia, como
a redação do seu diário O Comércio de São um dos primeiros, senão o primeiro – como
Paulo, que veio a ser empastelado na onda lembrou Alceu Amoroso Lima – a ver na
de violência antimonarquista que irrompeu Guerra de Canudos o marco para uma polí-
com a morte em combate do coronel Mo- tica de integração nacional.
reira César, comandante da segunda expe- Naquele mesmo ano de 1897, ele se ca-
dição militar derrotada pelos sertanejos de sou com Antonieta Prado, filha do conse-
Canudos. lheiro Antônio Prado, sobrinha de Eduardo
Num prefácio de Afonso Arinos, filho, a Prado, irmã de Paulo Prado, seu ex-colega
uma edição de Pelo Sertão, publicada em de faculdade, e Antônio Prado Júnior, e que
2005 na Coleção Afrânio Peixoto da Aca- passou a se assinar Antonieta Arinos. Do
demia Brasileira de Letras, vemos que em seu casamento – que teve como padrinho
outubro de 1897 o seu tio-avô publicou o visconde de Ouro Preto, último chefe do
um artigo memorável sobre a guerra que governo imperial – nasceria uma filha, Ma-
arruinava o sertão da Bahia, no qual con- ria Catarina, morta na primeira infância.
clama que “essa luta deveria merecer a Em 1901 morre Eduardo Prado, dei-
atenção dos publicistas, para ser estudada, xando duas vagas, uma nesta Academia e
não simplesmente na trágica irrupção e no a outra no Instituto Histórico e Geográfico.
desenvolvimento, mas em suas origens pro- Afonso Arinos se candidata a ambas, com
fundas, como um fenômeno social impor- sucesso, como já vimos no começo desta
tantíssimo para a investigação psicológica memória. Volta ao Rio, e à advocacia. Pu-
e o conhecimento do caráter brasileiro (...) blica na imprensa Atalaia Bandeirante e Tro-
Até aqui, só eram brasileiros os habitantes pas e Tropeiros.
M e mó r i a r e ve r e n c i a da – A f o ns o A r i n os   •  63

Em 1904, se estabelece em Paris, onde uma crise de vesícula, que o mataria em


abre um escritório comercial, tendo como Barcelona, depois de uma operação inútil,
sócio o seu cunhado Luís da Silva Prado, em 16 de fevereiro, aos 47 anos.
passando a vir ao Brasil uma vez por ano. “Morto em terra estranha, não tivera
Retorna ao país em 1914, no exato dia em Arinos nem a vida nem a morte com que
que explode a primeira guerra mundial, sonhara”, condói-se o seu sobrinho-neto –
aqui permanecendo até 1916. Nesse entre- o terceiro Afonso Arinos -, que encontrou
tempo fez a sua última viagem ao sertão, em velhas cartas e papéis piedosamente
com uma parada em Belo Horizonte para conservados pelo seu pai um histórico do
participar de um espetáculo em benefício enorme golpe que atingiu os Melo Franco,
dos flagelados da seca que assolava o Nor- até então a se considerarem uma família
deste, a de 1915, tão bem retratada no ro- feliz.
mance de estreia de Raquel de Queiroz – O O desaparecimento inesperado do pri-
quinze -, hoje um clássico, com mais de 100 meiro Arinos repercutiu nacionalmente,
edições. sendo pranteado na imprensa de várias ca-
O evento mineiro em solidariedade aos pitais. Trazido para São Paulo, o seu corpo
nordestinos foi realizado no Teatro Munici- foi sepultado diante de uma consagração
pal de Belo Horizonte e nele Afonso Arinos oficial e popular, como registra Afonso Ari-
proferiu uma conferência intitulada A Uni- nos, filho, certamente baseando-se em in-
dade da Pátria. De acordou com o seu sobri- formações contidas no livro Um Estadista da
nho-neto, nessa conferência ele sustentou, República, biografia do seu avô, Afrânio de
“num texto denso de observações e concei- Melo Franco, escrita pelo seu pai, o segun-
tos de alcance excepcional, a tese de que do Afonso Arinos.
a unidade nacional se realizou muito mais Essas memórias familiares levam o ter-
pelo sofrido labor das classes populares ao ceiro Arinos a esta reflexão:
longo do atual território brasileiro do que “Causa até certa surpresa ver que aquele
por medidas governamentais inspiradas na homem que nunca tivera funções de relevo,
intenção dos homens de Estado”. nem influência de qualquer espécie; que des-
de tantos anos vivia no estrangeiro e afundava
Em carta de 1912, ele se queixava para
no sertão quando vinha de passagem ao Bra-
a sua mãe da vida de judeu errante que le- sil, podia ter despertado e conservado tantas
vava, sempre em marcha e sem lar. E con- afeições. É que o seu encanto pessoal, sua pu-
fidenciava-lhe o seu sonho para um futuro reza sadia, seu generoso desinteresse e, prin-
que desejava não ser longínquo: um canto cipalmente, seu profundo, autêntico coração
bem propício à mansão da velhice em algu- brasileiro, compunham uma personalidade
ma fazendola entre coqueiros, com um belo ao mesmo tempo romântica e real, feita para
atrair atenção e prender sentimentos.”
córrego ao lado, o quintal cheio de laranjei-
ras, juritis e sabiás, onde pudesse esperar a Quarto ocupante da Cadeira que per-
morte de pé. tenceu ao autor de Pelo Sertão nesta Aca-
Encontrou-a em trânsito. demia, na sucessão a Miguel Couto, Alceu
Ao embarcar num navio espanhol em ja- Amoroso Lima, o Tristão de Athayde, estreou
neiro de 1916, Afonso Arinos teve a bordo nas letras em 1922 com uma biografia de
64  •  A ntônio Torres

Afonso Arinos, na qual elege três de seus O tempo, porém, não lhe tem sido tão
contos como obras-primas: Assombramen- justo quanto o foram tantos críticos e es-
to, Joaquim Mironga e Pedro Barqueiro. No critores importantes do passado, a exemplo
discurso pronunciado quando da sua posse, do Doutor Alceu – Lúcia Miguel Pereira, Au-
em 14 de dezembro de 1935, ao reveren- gusto de Lima, Olegário Mariano, sem es-
ciar o seu biografado, Alceu Amoroso Lima quecermos o próprio Guimarães Rosa, que
destacou que nos poucos, mas imortais con- não lhe negava a filiação, pelo menos em
tos que deixou, Arinos fez do sertanejo e do conversas particulares, tendo confessado a
sertão não apenas um tema literário, mas Afonso Arinos, filho, que acrescentara Vere-
uma advertência a toda a nacionalidade, e das ao seu Grande Sertão para que ele não
muito particularmente aos responsáveis pelo fosse confundido com Pelo Sertão.
seu futuro. Para o pensador que, ao chegar à Lá se vai meio século da publicação
Academia Brasileira de Letras já havia escrito da sua obra reunida num único volume
sobre quase tudo, da economia à literatu- de 903 páginas, pela editora Nova Agui­
ra, da pedagogia à política, Afonso Arinos lar, sob a organização do grande mestre
dedicou-se, de corpo e alma, à defesa dos Afrânio Coutinho. Passou-se isto em 1968,
que encarnam, na sua humildade, no seu ano do centenário de Pelo Sertão e Os
anonimato, na sua indigência, o próprio co- Jagunços.
ração da pátria, preservado no misterioso e Fica aqui, portanto, em nome desta
violento sertão. O que ele queria, enfatizou Casa que lhe pertenceu, esta reverência de
Alceu, era defender a sua terra e a sua gente um sertanejo que o leu ainda no sertão da
contra a invasão do pedantismo que já vinha Bahia – pois o sertão está em toda parte – e
rondando traiçoeiramente os horizontes. muito lhe deve.
O orgulho de ser professor

Arnaldo Niskier
Ocupante da Cadeira 18 na Academia Brasileira de Letras

S
empre que entro numa universidade, Analítica nos cursos de Matemática, Física e
emociono-me ao pensar que meu Química. Depois, já na década de 60, passei
filho Celso é o mais jovem reitor do a dar aulas de Administração Escolar e Edu-
nosso país, comandante, ao lado da sua cação Comparada, cadeira na qual fiz os
Andrea, da vitoriosa Unicarioca, hoje com concursos de Livre Docente e professor titu-
quase 15 mil alunos. Mas minha memória lar. Ganhei o título de Doutor em Educação.
afetiva é igualmente invadida pela lembran- Anos mais tarde, num concurso de títu-
ça de todas as Paulinas, Irmas e Rosas do los, fixei-me na cadeira de História e Filoso-
meu caminho, professoras das primeiras fia da Educação do curso de Pedagogia, até
letras, heroínas de uma profissão eterna, a aposentadoria em 1997. Lecionei na UERJ
cuja força reside exatamente na sua imen- nada menos de 37 anos, incluindo o tem-
sa capacidade de resistir, com coragem, a po em que servi ao Colégio de Aplicação,
todas as vicissitudes, conduzindo as novas como um dos seus fundadores, ocupando a
gerações pelos caminhos do nosso desen- cadeira de Desenho Geométrico.
volvimento. Em todos esses anos fiz um extraordi-
Graças à iniciativa do reitor San Gil Jutu- nário esforço para entender o fenômeno
ca, recebi o título de Doutor Honoris Causa da educação, procurando trabalhar pelo
da UniRio, concedido a quem pode se or- seu constante aperfeiçoamento. Como pro-
gulhar de uma longa vida de magistério, na fessor dedicado e homem público, sempre
verdade mais de 60 anos de carreira. busquei separar o que era ensino do que
Minha primeira formação em nível supe- representava educação. Sem confundir as
rior foi em Matemática, na antiga Faculda- responsabilidades de cada um.
de de Filosofia, Ciências e Letras da então Servi ao governo do Rio de Janeiro, por
Universidade do Distrito Federal, na década quatro vezes, como Secretário de Estado.
de 50. Depois, a licenciatura em Pedagogia Primeiro, como Secretário de Ciência e Tec-
na Universidade do Estado do Rio de Janei- nologia da Guanabara. Depois, durante
ro. Na UERJ, comecei a lecionar Geometria quatro anos, de 1979 a 1983, quando fui
66  •  A rnaldo Niskier

Secretário de Educação e Cultura do Go- publicados, há mais de 15 anos, em mais


verno Chagas Freitas. Foi uma rara oportu- de 20 jornais brasileiros, como presidente
nidade de comandar o sistema. Inaugurei do Centro de Integração Empresa-Escola
88 escolas, é verdade, mas com uma no- (CIEE) e como autor de dezenas de confe-
tável equipe foi possível servir à expansão rências em diversos estados brasileiros, pos-
do processo educacional, com a ajuda de so afiançar que conheço muito bem quais
grandes educadores, como Edília Coelho são os melhores caminhos que devem ser
Garcia, Cylene Gallart, Fátima Cunha Ferrei- percorridos pela nossa Educação, para que
ra Pinto, Aloísio Boynard, Maria Alice Máxi- seja devidamente aperfeiçoada.
mo e Lúcia Venina, entre outros. Também Se considerarmos o trabalho da Unesco
contei com a colaboração inestimável de para o século 21, coordenado por Jacques
Carlos Alberto Serpa, Edgard Flexa Ribeiro, Delors, são quatro os pilares da educação:
Roberto Boclin, Padre Leme Lopes e outros 1. Aprender a conhecer; 2. Aprender
grandes educadores no Conselho Estadual a fazer; 3. Aprender a viver juntos; e 4.
de Educação. Todos entendiam muito bem Aprender a ser.
o que deveria ser feito pelo enriquecimen- É com esse conjunto que se aprende a
to da educação do nosso Estado. Vivemos descobrir o outro. E assim se pode entender
entre 1979 e 1983 um período notável, de melhor o que é exatamente a missão da edu-
que nos lembramos muito bem. cação, nos seus fundamentos essenciais.
Tive ainda o privilégio de viver um se- Devo confessar que não tenho nenhu-
gundo período como Secretário de Estado ma dúvida de que o sucesso do nosso futu-
de Educação, no ano de 2006, uma época ro passa necessariamente pelos professores,
de consolidação das conquistas realizadas. o seu respeito e a melhor e mais adequada
A esses feitos pode-se agregar os oito remuneração. O curioso é que essa conclu-
anos vividos a serviço do Conselho Federal são não vem de hoje. Quando surgiu em
de Educação (seis anos) e depois dois anos 1932, por exemplo, o Manifesto dos Pio-
no Conselho Nacional de Educação. Foram neiros da Educação Nova, assinado por 26
oportunidades raras, como a colabora- grandes educadores, entre os quais Fernan-
ção prestada ao senador Darcy Ribeiro, na do de Azevedo, Anísio Teixeira, Cecília Mei-
elaboração da Lei de Diretrizes e Bases da relles, Francisco Venancio, Roquete Pinto e
Educação Nacional (Lei n.o 9.394/96), es- Lourenço Filho, entre outros, já se falava em
pecialmente no que se refere à inserção da ensino de qualidade e valorização dos pro-
modalidade de educação à distância no sis- fessores, o que infelizmente não passou da
tema brasileiro. Vivemos a experiência em teoria. Não se conseguiu organizar adequa-
Brasília, de 1986 a 1992, e, depois, de 1996 damente a educação brasileira.
a 1998. Saí do Conselho com uma vivência Hoje, vivemos às voltas com o Plano Na-
muito grande, que serviu extraordinaria- cional de Educação e suas 20 metas. Na
mente aos meus feitos como educador. verdade, somente quatro delas tem um an-
Como professor de História e Filosofia damento adequado e sabe-se que faltam
da Educação, como autor de mais de três recursos financeiros para torná-las viáveis.
mil artigos e cem livros sobre educação, Queremos hoje dar um novo ensino médio ao
O o r g u l h o d e s e r p ro f e sso r   •  67

país, mas com os atuais recursos isso é muito inovador trabalho, abrangendo o período
difícil. Por que esconder essa realidade? de 1980-1983. Partimos da frase do escri-
Volto a falar nos meus grandes professo- tor Machado de Assis: “Afinal, somos todos
res. A primeira delas foi Dona Paulina, no Ins- fluminenses.”
tituto de Educação. Por coincidência, minha O PAEC viveu alguns princípios essen-
amada sogra, mãe da querida Ruth, a quem ciais, como a vocação energética, a cons-
devo lições por toda a vida. Em São Paulo, no trução naval, a mentalidade turística, a re-
Grupo Escolar Rodrigues Alves, onde estudei ativação do setor agrícola, a distribuição de
dois anos, tive as professoras Rosa e Irma. riqueza e o novo tônus representado pela
No Colégio Vera Cruz, no Rio, lembro do população estudantil que ultrapassava 1
professor José Pacheco, especialista em Ma- milhão de estudantes e um corpo docente
temática. Na Faculdade de Filosofia, Ciências que era superior a 70 mil professores no Rio
e Letras, os professores Ney Cidade Palmei- de Janeiro.
ro, Francisco Alcântara Gomes, Felipe Santos A qualidade do ensino foi alcançada
Reis, Haroldo Lisboa da Cunha, Luiz Caetano pelo nítido aperfeiçoamento do sistema,
de Oliveira e Faria Goes Sobrinho. De todos graças a aumentos consideráveis nos salá-
guardo uma inesquecível recordação. rios dos professores. Foi pensada uma eco-
nomia de guerra, para a superação dos pro-
blemas, a fim de viabilizar o projeto que era
A direção de escolas a nossa empresa: o Rio de Janeiro.
Além dessas lembranças dos meus tem- Propusemos uma política de educação e
pos de UDF, UEG e UERJ, devo assinalar as cultura, com atendimento a todos os níveis
três escolas médias de que fui diretor, a par­ de ensino, o que se fez de forma compe-
tir da década de 70. Primeiro foi o Colégio tente e cuidadosa. A melhoria do ensino
Brasileiro de Almeida, recebido das mãos da estava estritamente relacionada ao preparo
educadora Edília Coelho Garcia; depois o do professor, tanto no que se refere aos co-
Colégio Anglo-Americano e, por fim, o Insti- nhecimentos relativos a sua especialização,
tuto Souza Leão, transferido pelo educador como aos das técnicas a serem utilizadas
Roberto Leão Veloso Ebert, com as caracte- para motivar e dinamizar o processo ensino-
rísticas de escola experimental. Em cada um -aprendizagem.
desses estabelecimentos vivi a experiência O sucesso do PAEC vinculou-se aos re-
do que representava o processo educacio- cursos financeiros disponibilizados pelo go-
nal, com uma soma notável de alunos. Uma verno. Num dado momento, chegamos a
vivência bastante expressiva. aplicar 33% do orçamento, bem mais do
que os 25% determinados em lei. Essa foi
uma das razões do planejamento bem-su-
A inovação do PAEC cedido, o que marcou historicamente esse
Uma experiência notável vivida por mim, período, graças ao empenho do governa-
na SEEC-Rio, foi a elaboração do Plano de dor Chagas Freitas.
Ação de Educação e Cultura (PAEC), no O reconhecimento do sucesso che-
Estado do Rio de Janeiro. Foi um bonito e gou no governo seguinte. Quando Leonel
68  •  A rnaldo Niskier

Brizola venceu a eleição (contra a situação), têm obtido bons resultados no processo
para surpresa geral, fez-me o convite para ensino-aprendizagem.
ser membro do Conselho Estadual de Edu- A Base Nacional Comum Curricular
cação. Situando-me acima dos interesses (BNCC) abre uma nova fase na educação
político-partidários, aceitei o oferecimento brasileira. Resultado de intensa participação
e integrei o CEE, até que precisasse optar da sociedade, a primeira versão, lançada
pelo Conselho Federal de Educação. em 2015, recebeu 12 milhões de contribui-
Estamos vivendo tempos difíceis. As mu- ções e deu origem à segunda, em maio de
danças de grande amplitude que caracteri- 2016. A versão final incorpora sugestões de
zam a sociedade contemporânea vêm cau- 9 mil professores e especialistas e estabele-
sando um impacto de proporções inéditas ce, entre outros pontos, que toda criança
no campo educacional, particularmente no deve estar plenamente alfabetizada até o
que concerne à juventude. O aumento cres- fim do segundo ano, entre 6 e 7 anos de
cente da demanda por mais escolaridade, a idade – um ano antes do prazo previsto pela
versão anterior. O documento, que servirá
busca por novas formações, a necessidade
como referência para o currículo de todas
de percursos curriculares mais flexíveis, a
as escolas do país, foi entregue ao Conselho
existência de recursos pedagógicos tecno-
Nacional de Educação (CNE) para avaliação
logicamente avançados, o advento da in-
e, até o final do ano, deve ser homologado
ternet e das redes sociais e a comprovada
pelo MEC.
limitação das metodologias mais ortodoxas
As escolas terão dois anos para se ade-
tornam evidente que a escola, como é hoje,
quar às novas diretrizes. Entre outros pon-
não atende às expectativas e necessidades
tos, o documento exclui o ensino religioso e
da juventude brasileira. Espera-se a imple-
indica a Língua Inglesa como idioma estran-
mentação da nova Base Nacional Comum
geiro a ser ensinado. Outros pontos cha-
Curricular, com um revolucionário ensino
maram atenção da nova versão da BNCC:
médio, como pretendia o ministro Mendon-
o texto traz dez competências para a edu-
ça Filho. Já era tempo dessa mudança, que, cação básica. A Base determina o que é es-
na verdade, melhor seria se abrangesse sencial, quais habilidades e conhecimentos
todo o sistema, com uma nova lei de diretri- serão exigidos dos estudantes ao final de
zes e bases da educação nacional. Estamos cada ano letivo da educação básica. O pas-
na expectativa de novos dias. so mais difícil, sem dúvida, será tirar o novo
A escola tem sido pressionada a inte- currículo do papel. A Base não é currículo.
grar a educação com tecnologias eletrôni- Não estabelece método de ensino, proje-
cas, mas nem todos os espaços físicos estão to pedagógico nem formas de avaliação.
adaptados para receber os equipamentos, e Apenas determina o ponto aonde se quer
muitos docentes ainda não dispõem de co- chegar.
nhecimentos teóricos e práticos para o uso Ao definir conhecimentos essenciais e
dos novos recursos didáticos. Os ambientes competências que todo aluno deve desen-
que conseguiram reunir as condições ma- volver, a Base estabelece direitos iguais de
teriais e os recursos humanos qualificados aprendizagem, organizando a progressão
O o r g u l h o d e s e r p ro f e sso r   •  69

do ensino e apontando o que se espera da em diversos segmentos e influenciam a vida


escola. Mas seu papel é ser referência para social. A escola como centro de formação e
a elaboração dos currículos. A Base dá o do saber não pode negar o relacionamento
rumo; os currículos traçarão os caminhos. entre o conhecimento no campo da infor-
Para que o guia curricular anunciado mática e os demais setores do saber huma-
passe a valer em 2019, após apreciação fi- no. Trata-se de uma nova forma de lingua-
nal do CNE – que ainda vai levar um ano gem e de comunicação.
– será preciso investir na infraestrutura das Hoje, só uma em cada dez escolas pú-
escolas do país inteiro. Maior do que qual- blicas que oferecem ensino fundamental
quer administração, a Base é um esforço do (1.o ao 9.o ano) no Brasil tem laboratório
Estado brasileiro, prevista na Constituição, de ciência, de acordo com dados do Censo
na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Na- Escolar 2015. Isso dá menos de dez mil es-
cional e no Plano Nacional de Educação. Por colas de ensino fundamental regular, de um
si só, o documento não mudará o cenário total de 112.393 espalhadas pelo país.
atual. Para que transforme a vida de mi-
O ensino por experimentação, como re-
lhões de crianças e adolescentes, precisa-se
quer a Base, demanda pesquisa – o que, hoje
da estreita colaboração de todas as esferas
em dia, é impossível sem acesso à internet.
de governo.
No Brasil, a maioria das escolas tem laborató-
As escolas das redes públicas e privadas
rios de informática trancafiados em salas que
deverão adequar seus currículos. O mesmo
ninguém acessa, e a internet, quando exis-
vale para a formação de professores, a pro-
te, não dá conta de pequenos downloads.
dução de materiais didáticos e as avaliações
Se a Base curricular não vier acompanhada
nacionais.
de um bom planejamento, corre o risco de
ficar desconectada da realidade.
Planejamento
A tecnologia está mudando a educação, Autonomia
não apenas na organização, escolha e dis-
ponibilidade dos conteúdos, mas também A sociedade contemporânea vive conec-
na distribuição. Isso obriga instituições de tada à mídia, o que acarreta uma mudança
ensino a se adaptarem ou irão fracassar nos considerável na velocidade de propagação
novos conceitos da sociedade digital. Um da informação, da mesma forma que cola-
dos objetivos da educação é desenvolver bora para a criação de ambientes virtuais e
a capacidade de tomar decisões conscien- de um novo espaço de comunicação.
tes, formar o cidadão para a sociedade, Com o atual nível de extremo desen-
tornando-o mais crítico sobre assuntos do volvimento dos meios de telecomunicação,
cotidiano. como as redes interativas de computadores,
Há uma disseminação geral das tecnolo- vídeos e áudios, é possível um diálogo mais
gias da informação e comunicação. É pos- ágil e particular com o professor e, principal-
sível perceber que de forma geral elas in- mente, com os próprios alunos. Assim, esses
tegram a vida das pessoas, estão presentes meios de comunicação viabilizam programas
70  •  A rnaldo Niskier

menos estruturados que os meios de comu- EAD


nicação impressos e gravados.
Com o desenvolvimento das tecnolo- Com a necessidade de atendimento edu-
gias, o aluno tornou-se cada vez mais au- cacional, sobretudo em países socialmente
tônomo e independente sem ficar limitado desfavorecidos, esses novos mecanismos
pelas restrições de tempo e espaço. Países abrem perspectivas de democratização de
da Europa, África e América têm se des- oportunidades como jamais se viu. Assim,
tacado como propulsores de metodologias pode-se ligar a Internet a uma escala plane-
ligadas às novas tecnologias. Como exem- tária de ofertas, valorizando o conceito de
plo de inovações tecnológicas no âmbito direitos humanos.
do ensino, a partir de 1994, com a expan- A que se devem agregar as potencialida-
são da internet nas Instituições de Ensino des da modalidade de Educação à Distân-
Superior (IES), as universidades brasileiras cia, hoje, em plena expansão, pois se trata
começaram a ofertar cursos superiores à de um fator reconhecidamente barato e efi-
distância e a utilizar as novas tecnologias caz. A EAD se vale dos avanços científicos e
de informação e comunicação (TIC) com tecnológicos e tende a um crescimento ex-
maior frequência. Desde então, a Educa- plosivo, mesmo em nações subdesenvolvi-
ção à Distância criou um mercado amplo e das, onde as inovações custam mais a che-
sem precedentes cujas fronteiras parecem gar, mas acabam se beneficiando também
infinitas. do progresso.
Estamos vivendo em pleno mundo digi- No Brasil, a EAD está vencendo precon-
tal. Embora ainda existam bolsões de po- ceitos iniciais e conquista cada vez mais es-
breza, a verdade é que, de 20 anos para cá, tudantes, com mais de 1 milhão e 300 mil
a internet comercial é uma realidade, hoje matriculados. Há 1.200 cursos à distância
com cerca de três bilhões de navegantes. no país e a alta nos vestibulares é bastante
Ter um celular passou a ser um direito hu- significativa: cresceu 80% nos últimos dois
mano para cerca de 5,2 bilhões de pessoas, anos. A modalidade atrai um número cada
que representam ¾ do mundo. vez maior de adeptos, embora a maioria
A esse incrível número correspondem pertença ao ensino privado (cerca de 60%
empresas que valem 2,4 trilhões de dólares do total).
na Bolsa de Valores de Nova Iorque. A in- Hoje, com o avanço tecnológico, os al-
ternet continua a crescer, inclusive porque vos da EAD passaram a ser os indivíduos
Google e Facebook têm projetos sociais de que já estão inseridos no processo produ-
implantar a benfeitoria em regiões caren- tivo, com faixa etária acima dos 25 anos e
tes. É uma forma de valorizar o que enten- problemas de tempo ou geográficos, para
demos por direitos humanos universais. frequentar uma faculdade regular. São
Vídeos são vistos em celulares, registrando também gerentes de bancos ou de super-
um fenômeno novo em escala mundial: são mercados, por exemplo, que se matriculam
telas verticais e móveis. Há 20 anos seria nos cursos de educação à distância com o
pouco provável que se pensasse nessa pos- objetivo de melhorar o desempenho em
sibilidade. seus trabalhos. E sem a necessidade de
O o r g u l h o d e s e r p ro f e sso r   •  71

abandono de emprego ou de afastamento terceiro, que não sabe o conteúdo, mas


da família. sabe onde encontrá-lo. No mundo atual e
O esforço para integração de platafor- futuro, é mais relevante a atitude de uma
mas deve incluir softwares, equipamentos pessoa diante de uma pergunta para a qual
e serviços de telecomunicações. Há diver- ela não tem resposta, porque o acesso à in-
sas experiências em andamento, a partir formação não é mais crítico.
de autorizações do Conselho Nacional de A sociedade do conhecimento é uma
Educação. Mas o número ainda é pequeno sociedade de aprendizagem. O sucesso eco-
para as imensas necessidades pedagógicas nômico e uma cultura de inovação contínua
do país. dependem da capacidade de atualização
Cerca de 25 milhões de brasileiros com socioeducativa. A era atual não funciona
mais de 16 anos têm acesso à internet, mas mais a partir da força das máquinas, mas
devemos pensar que somos uma população a partir da força do cérebro, do poder de
superior a 204 milhões de habitantes. Ain- pensar, de aprender e de inovar. Pretende-
da é pequeno o índice dos que têm esse pri- -se trocar a educação conteudística, mar-
vilégio, mais adstrito a escolas particulares, cada pelos decorebas, por uma educação
tornando bem visível o fosso entre incluídos comportamentalista que envolve, basica-
e excluídos digitais, no quadro geral de po- mente, a formação do caráter dos jovens,
breza do País. transmitindo tanto conhecimentos quanto
comportamentos éticos, práticas sociais e
habilidades gerais.
Século 21 A tradição educativa ocidental tem
O professor, muito além de letras e nú- determinado uma educação voltada para
meros, transmite valores. Na escola o alu- o saber cumulativo de conteúdos, intima-
no aprende a pensar. Essa é a sua função mente ligado ao comportamento verbal dos
essencial: desenvolver a inteligência reflexi- professores, onde a preocupação maior é a
va. Ao focar a ética é impossível dissociá- obtenção de grau quantitativo e não qua-
-la da educação e da qualidade da escola. litativo.
É também função da escola desenvolver o O grande problema das organizações
potencial de liderança que existe em todo atuais é a relação fragmentada do poder.
ser humano. No caso da organização escolar, as lideran-
Todo o processo educativo tradicional ças dispersas em ilhas formam um arquipé-
é baseado na cognição, ou seja, como se lago organizacional, onde cada um cumpre
aprende e como se ensina. O mais impor- burocraticamente seu papel.
tante no futuro será a metacognição: o Esse modelo de escola já não nos leva
aluno terá que entender o processo a que a uma aprendizagem efetiva, pelo fato de
está submetido e conhecer seus avanços, estar em desarmonia não só com as mu-
obstáculos e deficiências. Isso abre a por- danças de comportamento social, quanto
ta para um novo ponto: a classe não se di- aos avanços tecnológicos. Se o professor
vidirá mais entre aqueles que sabem e os não estiver atento à estrutura cognitiva e
que não sabem, mas dará espaço para um emocional do aluno, o aprendizado fica
72  •  A rnaldo Niskier

comprometido. Segundo especialistas, co- devem ter fluência na leitura e nas opera-
nhecer o funcionamento do cérebro contri- ções matemáticas. Português e matemática
bui para o rendimento dos estudantes. são duas disciplinas estruturantes, que per-
Pesquisas recentes revelam que a neu- mitirão progredir nas outras. Isso permite
rociência potencializa a inteligência dos alu- aos alunos libertar a mente para as outras
nos. O professor precisa trabalhar a mesma atividades de ordem cognitiva. É impossí-
informação de modos diferentes, buscando vel aplicar criativamente conceitos se não
as individualidades e tornando as aulas atra- se conhecem esses conceitos. Não se pode
entes. Para prestar atenção em algo, o cére- saltar etapas.
bro está sempre lutando contra pensamen- As escolas não são máquinas de ensino.
tos e elementos visuais que se dispersam. O papel de liderança do professor é funda-
É preciso buscar melhores caminhos para a mental para reverter a situação mecanicista
assimilação de informações, reforçando a que ainda predomina em nossas salas de
necessidade de se combater um modelo de aula. Mas para isso é necessária a mudança
ensino que reduz a aprendizagem à memo- na cultura organizacional, criando-se um cli-
rização de conteúdos. ma motivador à participação e à criatividade.
Não por acaso, vemos professores inves-
tindo em práticas ligadas à música e à drama-
UNIRIO
tização em suas aulas. Os ritmos e sons abrem
muitas conexões para a memória de longo Homenagear, em qualquer situação,
prazo, que é a que fixa a aprendizagem. os professores é uma questão de justiça.
O professor é o agente educacional bási- Devemos ser gratos a esses heróis que
co. É ele quem interage com o aluno quase transformam vidas e são dominados por
o tempo todo. Por paradoxo, o magistério, belíssimos sonhos. Homens e mulheres,
em geral, não recebe a consideração mere- assim envolvidos, merecem o nosso mais
cida e, por frustração, reage inconsciente- profundo respeito.
mente, adotando atitudes incompatíveis às Hoje, a homenagem que presto aos pro-
suas funções. fessores se volta para a figura do reitor des-
Por mais controvérsias que existam so- ta Universidade, Luiz Pedro San Gil Jutuca.
bre métodos de ensino, um conjunto de Com 827 docentes, a UNIRIO originou-
ideias virou praticamente consenso entre -se da Federação das Escolas Isoladas do Es-
educadores nas últimas décadas. Algumas tado da Guanabara (FEFIEG), criada no dia
delas: o aluno deve gostar do que apren- 20 de agosto de 1969. Com a fusão dos
de; decorar informações é negativo; e de- Estados da Guanabara e do Rio de Janeiro,
senvolver competências como pensamento em 1975, a FEFIEG passou a denominar-
crítico, mais do que ensinar o conteúdo cur- -se Federação das Escolas Federais Isola-
ricular, é o verdadeiro papel da escola do das do Estado do Rio de Janeiro (FEFIERJ).
século XXI. Dois anos mais tarde, foram incorporados à
A verdadeira pedagogia moderna, ba- FEFIERJ o Curso Permanente de Arquivo (do
seada nas ciências cognitivas do século XXI, Arquivo Nacional) e o Curso de Museus (do
mostra que não basta saber ler. Os jovens Museu Histórico Nacional).
O o r g u l h o d e s e r p ro f e sso r   •  73

Em 5 de junho de 1979, a FEFIERJ foi ins- agruras de baixos salários, o que vem de
titucionalizada com o nome de Universidade longe. A escritora Clarice Lispector falava
do Rio de Janeiro (UNIRIO). E, em 24 de outu- de alegrias e agonias na profissão que ela
bro de 2003, alterou o nome da Universidade também respeitava muito. Gostaria de en-
para Universidade Federal do Estado do Rio contrar no mestre a figura do orientador ou
de Janeiro, mas a sigla UNIRIO foi mantida. facilitador de aprendizagem, para atribuir-
Oferece atualmente 48 cursos de gra- -lhe a devida importância, fazendo do amor
duação e 79 de pós-graduação. Alguns a sua maior arma.
cursos lecionados na UNIRIO são bastante Dos que concluem o ensino médio, hoje
tradicionais e prestigiados, – vários deles no Brasil, somente 2% se voltam para o
pioneiros em suas respectivas áreas – mui- magistério como profissão. Os sacrifícios
tos datando do início do século XX, como impostos aos professores brasileiros nem
os de Medicina – que completou 100 anos sempre têm o devido reconhecimento da
em abril de 2012. sociedade. Mas existe a convicção de que
Temos hoje no Brasil mais de 2,5 mi- eles são fundamentais para o nosso futuro
lhões de professores. Muitos felizes por e como são importantes para a educação
sua inequívoca vocação, mas sofrendo as brasileira, hoje e sempre.
Autor captura a realidade do
migrante num país em transe

Ronaldo Cagiano
Poeta e escritor

A literatura se nutre do real. Como assinalou a anfitriã em recente re-


C yro dos A njos senha no Jornal de Letras, a obra de Torres é
um retrato “de um Brasil profundo, resilien-
te e vibrante de contradições e contraste,

F
inalmente chega a Portugal um dos onde o sonho de triunfar na grande cidade
mais importantes escritores brasileiros, se transforma em grande fracasso”. E a fi-
cuja obra é um marco na bibliografia gura de Totonhim, o narrador-testemunha
brasileira por fazer um recorte da realida- da transição por que passam os persona-
de de um país em transformação a partir gens e o País, é um elo entre o presente
da realidade de seus personagens, particu- e o passado, território físico e afetivo onde
larmente o migrante nordestino, que, em deambulam os sonhos, esperanças, frus-
grande marcha desde os anos cinquenta do trações, fracassos e fantasmas de cada um
século passado, deixou o interior agreste e nesse percurso entre as suas origens e o
sem perspectivas para tentar a vida e a sorte mundo idealizado da metrópole.
nas grandes metrópoles. Essa terra – um dos mais emblemáticos
Já tendo vivido alguns anos em Lisboa na e aclamados romances do autor – panora-
década de 60, Antônio Torres é (re)descober- miza a família pobre e sem horizontes, ao
to em Portugal em dose tripla, com a publi- deslindar a figura de Nelo, que mudou para
cação pela Editora Teodolito, de três de seus São Paulo à procura de emprego e melhores
principais romances: Essa terra, O cachorro condições de vida e depois retorna a Junco,
e o lobo e Pelo fundo da agulha, trilogia seu torrão natal, sem outra sorte, senão o
que tematiza esse deslocamento geográfico, próprio fracasso e as marcas psicológicas
temporal e psicológico de seus protagonis- e materiais dos impactos em sua vida. Ao
tas, cujo lançamento aconteceu recente- voltar, sem eira nem beira, depois de sua
mente na Livraria Ferin, com apresentação mulher tê-lo largado para viver com um pri-
da escritora Teolinda Gersão e presença do mo, tendo sofrido o diabo nas mãos da po-
seu editor Carlos da Veiga Ferreira. lícia, suicida-se após uma bebedeira com o
76  •  R onaldo Cagiano

irmão Totonhim, vergado pelo peso de seu mundo com as lentes ou o farol de sua ex-
próprio destino que lhe torceu a corda ao periência. Aqui reside a grande metáfora
pescoço. do livro, pois pelo pequeno orifício ela con-
Em O cachorro e o lobo, concebido vinte segue passar o seu fio existencial e resga-
anos após Essa terra, Torres dá sequência à tar pela memória os tantos tempos de uma
crônica existencial dessa geografia permeada vida, sem perder a direção ao remendar o
de dissabores e diligenciado por contrastes tecido das lembranças. O filho mergulha
que se alternam na saga de uma família de nessa sombra em que os diversos tempos
migrantes. Aqui, quem toma as rédeas é An- e nuances da caminhada se interpenetram
tão (Totonhim), cuja experiência igualmente numa relação simbiótica, em que os para-
dilacerante tece no seu inconsciente uma doxos e possibilidades da trajetória indivi-
aguda e cáustica observação sobre um des- dual (ou coletiva) constituem parte de um
tino comum. Preparando-se para regressar, discurso narrativo cáustico, mas profunda-
após o suicídio do irmão Nelo e para come- mente humano e poético, em que emer-
morar os oitenta anos do pai, encontra um ge uma (in)tensa e densa reflexão sobre
ambiente transformado, que lhe apresenta o nosso destino, a identidade perdida, a
um cenário de melancolia e puro desalento: procura de nossas raízes e ancestralidade,
“E assim se passaram vinte anos, pensarei, quando já se aproxima o inevitável crepús-
ao chegar lá. Assim se passaram vinte anos culo, estação de que não se pode fugir.
sem eu ver estes rostos, sem ouvir estas vozes,
Ao chegar a Portugal, a obra de Antônio
sem sentir o cheiro do alecrim e das flores do
Torres celebra não apenas a vitalidade da
mês de maio.”
ficção brasileira contemporânea, na voz de
Então, depara-se com um Junco diferen- um de seus mais virtuosos escritores, mas
te, inclusive o progresso sulcando mudanças acima de tudo apresenta um caleidoscópio
na cidade, no rosto e na alma das pessoas, sem distorções de um cenário tão pouco
como em seu pai, que já não o reconhe- explorado pela literatura em nosso País.
ce, e nesse diapasão de interdições, vão se Aborda esse drama tão antigo e que se re-
desenrolando, entre memórias e espantos, nova cada vez que a sociedade e o Estado
recordações da infância, as cicatrizes da entram em crise, obrigando seus filhos a (i)
ausência, a marca inexorável do tempo em migrarem, seja dentro da própria terra ou
suas vidas e corações. atravessando oceanos, para escapar à cruel-
Pelo fundo da agulha fecha com chave dade que lhes é imposta pela condição po-
de ouro a trilogia desse sutil mapeamento lítica, econômica ou social, como é o ciclo
geográfico, existencial e afetivo, focando que hoje estamos experimentando.
em Totonho, já aposentado, mas solitário A bibliografia de Antônio Torres home-
na cidade grande, tendo perdido a mu- nageia o que há de melhor na prosa lusó-
lher, os filhos para a separação, e o me- fona e também atualiza essa percepção
lhor amigo. Nessa viagem de retorno, dez de um país em transição, cujas metamor-
anos depois, para rever a mãe, já velha, foses têm alterado vidas e separado famí-
mas profundamente lúcida e com visão lias, em busca de uma sorte imponderável
privilegiada que ainda lhe permite olhar o e imprevisível noutros sítios. A exemplo de
A u to r c a pt u r a a r e a l i da d e d o m i g r a n t e n u m pa í s e m t r a ns e   •  77

Faulkner, Gabriel García Márquez, Juan Car- Torres é caudatário de uma exígua famí-
los Onetti e Juan Rulfo, que em suas míticas lia de escritores – nas quais podemos incluir
Yoknapatawpha, Macondo, Santa María e Amando Fontes, Roniwalter Jatobá e Luiz
Komala reverberaram os conflitos e dilemas Ruffato – que, peculiarmente, realizam uma
próprios do ser, as situações e vivências de imersão literária por meio de seus romances
sua universal e tolstoiana Junco são encon- em nosso Brasil profundo, incursionando
tradiças em qualquer sertão do mundo, por nossas diásporas internas, numa fiel e
pois as histórias desse baiano cosmopolita autêntica cartografia dos deserdados, insu-
de Sátiro Dias são especulares dos temas ou larizados, deslocados e proletários de todos
tormentos que atravessam a humanidade os tempos e lugares que habitam nossa his-
em qualquer tempo e lugar. tória como povo e nação.
Euclides vive: Dedicatórias

Felipe Pereira Rissato


Graduado em Comunicação Social: Publicidade e Propaganda pela FEAPA e pesquisador independente

P
edindo a devida licença a Alexei Bueno, foi orçada em 520.300 (quinhentos e vinte
cometemos a ousadia de tomar em- mil e trezentos réis), com cerca de 500 itens.
prestado o título de sua bela obra Ma- Da biblioteca de Euclides, sabemos do
chado vive: dedicatórias, editada em 2008 e seu teor por conta do inventário detalha-
cujo nome também intitulou a exposição que do; da de Machado, o inventário informa
a Academia Brasileira de Letras preparou na- apenas a quantidade, numa contagem pro-
quele mesmo ano em homenagem ao cente- vavelmente feita por estimativa. Sua catalo-
nário de morte de seu presidente perpétuo. gação somente surgiu nos anos 60 do sé-
Se no livro organizado por Alexei é possível culo XX, levantada por Jean-Michel Massa;
apreciar nada menos que 164 (cento e sessen- contudo, àquela altura mais da metade da
ta e quatro) dedicatórias escritas por diversos biblioteca havia se perdido.
amigos em livros oferecidos a Machado de Em seu registro, Massa listou pouco mais
Assis, o mesmo, infelizmente, não podemos de 700 itens (todos encadernados), guarda-
falar de Euclides da Cunha. A vantagem que a dos na casa da única herdeira do escritor:
preservação da biblioteca de Machado possui d. Laura Costa Leitão de Carvalho, sobrinha
perante a de Euclides é incomparável. Ambas de Carolina. Aquela primeira avaliação, por-
as bibliotecas sofreram duros desfalques, po- tanto, ignorou cerca de 300 volumes enca-
rém, a daquele possui uma unidade, enquan- dernados, o que elevaria o número de itens
to a deste foi desmantelada, encontrando-se para mais de 1.700. E a biblioteca poderia
parcos exemplares aqui e ali. ser ainda maior, pois cerca de 200 volumes
Reunindo cerca de 1.400 itens entre vo- foram doados a destinatário ignorado ainda
lumes encadernados (400), brochuras (600) antes de se lavrar o inventário. Massa não
e fascículos de revistas (400), a biblioteca encontrou as brochuras e fascículos por-
de Machado foi avaliada em 1:020.000 (um que foram destruídos nos anos 40 do sé-
conto e vinte mil-réis) cerca de 40 dias após culo passado pelas intempéries do tempo,
a sua morte; a de Euclides, por sua vez, de enquanto estavam mal armazenados numa
acordo com o seu inventário, somente le- garagem. Dos pouco mais de 700 volumes
vantado seis meses após seu falecimento, por ele catalogados, cerca de 640 fazem
80  •  Felipe Pereira Rissato

hoje parte do acervo da Biblioteca Lúcio de Castro Alves e seu tempo (1907): 11 [onze]
Mendonça, da ABL, além de outros recebi-
Essa foi a disposição que optamos para a
dos pela Instituição por outras mãos.
exibição das dedicatórias neste trabalho: or-
Herdada por Euclides da Cunha Filho, o
dem de publicação de cada título e/ou edição.
Quidinho, e por este deixada com o seu tutor,
As dedicatórias podem revelar o estado
José Carlos Rodrigues, proprietário do Jornal
de espírito do autor ao transpô-las no papel.
do Commercio (RJ), o que sobrou da biblioteca
No caso de Euclides, o escritor frequente-
de Euclides foi doada por Rodrigues à Bibliote-
mente reclama em sua correspondência da
ca Nacional em 1916, após a morte de Quidi-
falta de tempo que tem para conversar (por
nho. Não é possível, porém, quantificar e tam-
carta) com seus interlocutores, sobrecarrega-
pouco qualificar o que foi doado. No catálogo
do pelos trabalhos de engenharia; e isto se
da BN é possível encontrar alguns volumes
reflete na maioria de suas dedicatórias, algu-
que pertenceram ao escritor, com assinatura
mas extremamente breves. Noutras, porém,
de posse na página de rosto, mas é certo que
seu característico tom autoirônico transpare-
muito do que consta no inventário não teve
ce, mesmo que sutilmente. Seria, portanto,
como destino aquela Instituição; assim como
um desperdício deixá-las encerradas apenas
também é possível encontrar exemplares que
nos livros onde se encontram. Reuni-las aqui
lhe pertenceram e sequer foram inventariados.
não somente franqueia ao público o acesso
Fazendo o caminho inverso da mencio-
a esses microtextos do autor (sobretudo iné-
nada obra de Alexei Bueno, este ensaio tem
ditos e, por isso, pouco estudados), escritos
por objetivo a reunião das dedicatórias que
sem intenção de publicidade, como também
o próprio Euclides inscreveu nos livros en-
permite imaginá-lo numa singular noite de
viados a amigos, parentes e admiradores,
autógrafos, assinando toda a sua obra.
dada a dificuldade de encontrar quantidade
O primeiro exemplo de dedicatória de
satisfatória de exemplares a ele ofertados,
Euclides, porém, é curioso, visto que não se
devido à dispersão sofrida por sua biblio-
trata de uma de suas próprias obras e, por
teca após a sua morte e mesmo em vida,
isso, não está inserida na contagem acima.
como veremos mais adiante. Tivemos sorte,
Ainda jovem, aos 20 anos, ele ofertou um
contudo, de encontrar cinco desses exem-
exemplar de Éloquence et improvisation, de
plares, aqui também arrolados.
Eugène Paignon, a um amigo. O livro lhe
Voltando às dedicatórias euclidianas, fo-
pertencia, visto conter sua assinatura e ca-
ram estas coligidas num total de 66 (sessen-
rimbo de posse, e no verso da página 475
ta e seis), assim distribuídas:
ter ele escrito algumas notas de leitura da-
Os Sertões (1902): 6 [seis] tadas de 6 de agosto de 1883 e transcritas
Os Sertões (1903, 2.a ed.): 3 [três] pela primeira vez na 4.a página do Jornal do
Os Sertões (1905, 3.a ed.): 4 [quatro] Commercio (RJ) em sua edição de 25 de se-
Relatório da Comissão mista Brasileiro-Pe- tembro de 1923, quando o volume foi doa-
ruana de reconhecimento do Alto Purus do pelo diplomata Mário de Lima Barbosa,
(1906): 4 [quatro] que o encontrou numa casa de “alfarrabis-
Contrastes e confrontos (1907): 10 [dez] tas”, à Academia Brasileira de Letras por
Peru versus Bolívia (1907): 23 [vinte e três] intermédio do Acadêmico Felix Pacheco.
Contrastes e confrontos (1907, 2.a ed.): 5 [cinco] A dedicatória, até hoje inédita, é a seguinte:
E u c l i d es v i ve : D e d ic at ó r i as   •  81

Acervo: Biblioteca Lúcio


de Mendonça, Academia
Brasileira de Letras,
Rio de Janeiro (RJ).

Ao seu distinto companheiro de estudo, Rocha Lima, oferece


Euclides
Rio, 11 de Abril de 1886

Os sertões (1902)
Acervo: Casa de Cultura
Euclides da Cunha, São
José do Rio Pardo (SP)
1.ª publicação
(fac-símile): Os Sertões:
80 anos de publicação.
São Paulo: Imprensa
Oficial, 1982.

Ao meu cunhado e amigo Otaviano Vieira


Euclides da Cunha
Lorena – 2-12-9021

1 Essa data, inscrita no exemplar de Os Sertões que Euclides entregou ao cunhado Otaviano Vieira, casado com sua

irmã Adélia, é considerada pela tradição como a do lançamento do livro, visto ser anterior à primeira crítica apare-
cida na imprensa, publicada no dia seguinte no Correio da Manhã (RJ) e assinada pelo Acadêmico José Veríssimo.
Contudo, é plausível considerar que a obra-prima de Euclides tenha sido lançada alguns dias antes, pois, se lançada
no dia 2, não haveria tempo hábil para o crítico redigir sua resenha.
82  •  Felipe Pereira Rissato

A dedicatória como hoje infelizmente se encontra: cortada devido a uma nova reenca-
dernação e consequente refilamento das margens. Ao longo deste trabalho veremos outros
exemplos, com os trechos cortados entre colchetes.

Acervo: Coleção Pedro


Corrêa do Lago, São
Paulo (SP)
1.ª publicação
(fac-símile e
transcrição): LAGO,
Pedro Corrêa de.
Documentos &
autógrafos brasileiros.
Salamandra: Rio de
Janeiro, 1997.

A Júlio de Mesquita
e Aos bons companheiros do “Estado de S. Paulo”
8-12-902
Euclides da Cunha
E u c l i d es v i ve : D e d ic at ó r i as   •  83

Acervo: Biblioteca Histórica do


Itamaraty, Rio de Janeiro (RJ).
Inédita.

Ao Exmo. Sr. Barão do Rio Branco, oferece como um pálido


testemunho do mais alto conceito e da admiração mais profunda –
Euclides da Cunha
Lorena – 11-12-902
Estado de S. Paulo.

Acervo: Coleção Acadêmico


Antonio Carlos Secchin, Rio de
Janeiro (RJ). Inédita.

A Luiz Murat.
Euclides da Cun[ha]
Rio – 30-12-902

[A Alberto Rangel,]
este poema de heroísmo e de brutalidade.2

2 Dedicatória não localizada em manuscrito, publicada em VENÂNCIO FILHO, Francisco. A Glória de Euclydes da

Cunha. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1940. p.68. Não há referências de que tenha sido inscrita em algum
exemplar da primeira edição; assim inferimos por Rangel e Euclides serem amigos de longa data, colegas na Escola
Militar da Praia Vermelha (RJ).
84  •  Felipe Pereira Rissato

Não sei se faço bem oferecendo a Firmo Dutra,


uma alma moça, aberta a todas as esperanças,
o tristíssimo livro de um desiludido.
Março 19053

Os sertões (1903, 2.a ed.)

Acervo: Casa de Cultura Euclides


da Cunha, São José do Rio Pardo
(SP). Inédita.

Ao Dr. Raimundo Correia


Rio – 3-6-903
Euclides da Cunha

Acervo: Fundação Casa de Rui


Barbosa, Rio de Janeiro (RJ)
Inédita.

Ao Exmo. Sr. Dr. Rui Barbosa – este pequeno sinal da minha profunda veneração.
Lorena – 7-7-903.
Euclides da Cunha

3 Dedicatória não localizada em manuscrito, proferida por Firmo Dutra na conferência “O Euclides que eu conheci”,
na Semana Euclidiana de 1951 em São José do Rio Pardo (SP). Publicada no Jornal de Notícias (SP), 21 out. 1951, p.2.
Anteriormente, Firmo apenas a mencionou, sem citar-lhe o conteúdo, no artigo “Euclides da Cunha: um capítulo da
sua vida”, estampado no Diário de Notícias (RJ), 25 fev. 1934, p.7.
E u c l i d es v i ve : D e d ic at ó r i as   •  85

Acervo: Coleção desconhecida


1ª publicação (fac-símile): PIRES,
Rogério; ROSENBAUM, Paulo. 3º Leilão
de livros raros e papéis antigos. São
Paulo: Fólio Livraria, 2005.

A James Darcy, com um abraço do


Euclides da Cunha
Rio – Junho – 9084

Os Sertões (1905, 3.ª ed.)

Acervo: Biblioteca Lúcio de Mendonça,


Academia Brasileira
de Letras, Rio de Janeiro (RJ).
Inédita.

A João Luso, com um abraço do


Euclides da Cunha
Rio – 21-5-906

4 A julgar pela data da dedicatória, certamente o político e jurista James Darcy (1876-1952) levou o exemplar para

que Euclides o autografasse. É muito pouco provável que o escritor ainda possuísse exemplares da 2.a edição para
distribuir cinco anos depois de editada, mesmo porque a 3.a também já havia sido lançada.
86  •  Felipe Pereira Rissato

Acervo: Cecil H. Green Library,


Stanford University, Stanford
CA (USA).
Inédita.

A Fontoura Xavier, com um abraço do


Euclides da Cunha
Rio – 15-7-906

Acervo: Casa de Cultura Euclides


da Cunha, São José do Rio
Pardo (SP).
Inédita.

Ao belo espírito de Carlos Malheiro Dias


Rio – Maio 907
Euclides da Cunha
E u c l i d es v i ve : D e d ic at ó r i as   •  87

Acervo: Biblioteca Comunitária da UFSCar –


Universidade Federal de São Carlos,
São Carlos (SP).
Inédita.

Ao Exmo. Sr. Dr. Estanisláo Zeballos,


com a maior veneração do
Autor5
Rio – 10-10-907

Relatório da Comissão mista Brasileiro-Peruana


de reconhecimento do Alto Purus (1906)

Acervo: Biblioteca Histórica do Itamaraty,


Rio de Janeiro (RJ). Inédita.

Ao belo espírito de Gastão da Cunha


Rio – 5-5-906
Euclides da Cunha

5 De todas as dedicatórias aqui arroladas, esta é a única na qual Euclides se assina simplesmente “Autor”.
88  •  Felipe Pereira Rissato

Acervo: Biblioteca da UnB –


Universidade de Brasília, Brasília.
(DF). Inédita.

Ao Capão. Tte. Borges Leitão, com um abraço do


Euclides da Cunha
Rio – 6-11-906

Acervo: Biblioteca Pedro


Aleixo, Câmara dos Deputados,
Brasília (DF).
1.ª publicação (fac-símile):
<http://bd.camara.leg.br/bd/
handle/bdcamara/18422>

Ao Dr. Araripe Júnior, com cumprimentos do


Euclides da Cunha
Rio – 20-1-9076

Acervo: Fundação Biblioteca


Nacional, Rio de Janeiro (RJ)
1.ª publicação (fac-símile):
Euclides da Cunha: uma poética
do espaço brasileiro. Rio de
Janeiro: FBN, 2009. p.72.
À Biblioteca Nacional
Secretaria das Relações Exteriores – abril – 1908

6 Dedicatória datada no 41.o aniversário de Euclides da Cunha.


E u c l i d es v i ve : D e d ic at ó r i as   •  89

Contrastes e confrontos (1907)

Acervo: Biblioteca Pedro


Aleixo, Câmara dos Deputados,
Brasília (DF)
1.ª publicação (fac-símile e
transcrição): Catálogo de obras
raras da Biblioteca da Câmara dos
Deputados. v.1. Brasília: Câmara
dos Deputados, 2000, p.390-391.

Ao grande mestre e7 amigo Dr. Araripe Jr.


Rio – 7-1-907
Euclides da Cunha

Acervo: Biblioteca Lúcio de


Mendonça, Academia Brasileira de
Letras, Rio de Janeiro (RJ). Inédita.

Ao grande Mestre e amigo Sílvio Ro[mero,] com um abraço do


Euclides da Cunha
Rio – 14-2-907

7 No original: “a” [sic]


90  •  Felipe Pereira Rissato

Acervo: Biblioteca Lúcio de


Mendonça, Academia Brasileira de
Letras, Rio de Janeiro (RJ). Inédita.

A Domício da Gama, este livro e as saudades do


Euclides da Cunha
Rio – 4 de Março de 1907.

Acervo: Fundação Casa de Rui


Barbosa, Rio de Janeiro (RJ). Inédita.

A Olavo Bilac,
ofe. o admor. e confrade
Euclides da Cunha
Rio – 6-3-907
E u c l i d es v i ve : D e d ic at ó r i as   •  91

Acervo: Fundação Biblioteca


Nacional, Rio de Janeiro (RJ).
Inédita.

A Coelho Neto, com um abraço do


Euclides
Rio – 6-3-907

Acervo: Fundação Biblioteca


Nacional, Rio de Janeiro (RJ).
Inédita.

Ao Exmo. Sr. Dr. Jé. Carlos Rodrigues, com um abraço, do


Euclides da Cunha
Rio – 7–3-907
92  •  Felipe Pereira Rissato

Acervo: Coleção Pedro Corrêa do


Lago, São Paulo (SP)
1ª publicação (fac-símile):
Cadernos de literatura brasileira:
Euclides da Cunha. São Paulo:
IMS, 2002. p.35.

Ao tio José, com um abraço do sobrinho e amo.


Euclides da Cunha
Rio – 8-3-907
Rua Humaitá 61

Ao Sr. coronel João Francisco8


Coelho Neto
Aí vai o exemplar do Contrastes e confrontos que destino ao Sr. coronel João Francisco.
As tuas palavras sinceras transfiguraram-me o homem que até então me aparecera sob um aspecto
selvagem nas arrancadas furiosas dos pampas.
A larva da página 99 deste livro, evoluiu: é crisálida.
Tu me revelaste o herói.
Obrigadíssimo.
Muito cordialmente teu
Euclides da Cunha
Rio – 13-3-07.

8 Dedicatória não localizada em manuscrito, publicada em A Federação, Porto Alegre, 26 mar. 1907, p.1. João
Francisco Pereira de Souza (1866-1953), alcunhado como a “Hiena do Cati” e membro da Guarda Nacional atuante
na repressão à Revolução Federalista (1893-1895), recebeu a dedicatória por intermédio de Coelho Neto, que teria
desfeito em Euclides o conceito que este fazia do coronel gaúcho.
9 “Ainda agora o Aparício oriental tem uma larva, o João Francisco rio-grandense: acorrentai o primeiro num posto

sedentário, e tereis o molosso ferocíssimo da fronteira; arremessai o segundo pelo revesso das coxilhas, e vereis o
caudilho...” (“Heróis e Bandidos”). Apesar da ressalva de Euclides na presente carta-dedicatória, na 2.ª edição de
Contrastes e confrontos publicada ainda em 1907, nada foi alterado, permanecendo a redação da edição anterior,
sucedendo-se nas demais.
E u c l i d es v i ve : D e d ic at ó r i as   •  93

Acervo: Coleção Pedro Corrêa


do Lago, São Paulo (SP).
Inédita.

Ao bom e digno amigo Francisco de Esc[obar]


Rio – 15-3-907
Euclides da Cunha

Acervo: Biblioteca Lúcio de


Mendonça, Academia Brasileira de
Letras, Rio de Janeiro (RJ). Inédita.

Ao belo espírito de Gastão da Cun[ha,]


ofe. o seu amo. admor.
Euclides da Cunha
Rio – maio 90710

10 Segundo o artigo “Euclides da Cunha visto através [de] Gastão da Cunha”, de Rodrigo M. F. Andrade, publicado

em O Jornal (RJ), 6 jan. 1925, p.5, um exemplar de Contrastes e confrontos trazia a seguinte dedicatória: “À ironia
triunfal e vingadora de Gastão da Cunha”. Teria Euclides entregue outro volume ao amigo quando foi lançada a
segunda edição? Improvável. Acreditamos que o articulista tenha se enganado, sendo a dedicatória pertencente a
um dos outros dois títulos possíveis: Os Sertões ou Castro Alves e seu tempo, visto que as dedicatórias no Relatório
e em Peru versus Bolívia, aqui transcritas, são também diferentes daquela divulgada no referido artigo. Dada essa
dúvida, a dedicatória não entrou no cômputo do presente trabalho.
94  •  Felipe Pereira Rissato

Peru versus Bolívia (1907)

Acervo: Biblioteca Histórica do


Itamaraty, Rio de Janeiro (RJ).
Inédita.

Ao Exmo. Sr. Barão do Rio Branco,


respeitosa homenagem do último de seus discípulos.
Rio – 28-8-907
Euclides da Cunha11

Acervo: Biblioteca Pedro Aleixo,


Câmara dos Deputados, Brasília.
(DF). Inédita.

Ao meu digno mestre Dr. Araripe Júnior –


Euclides
Rio – Agosto 907

11 Curiosamente existem duas primeiras edições de Peru versus Bolívia, ambas de 1907. Fruto de oito artigos publi-

cados no Jornal do Commercio (RJ) entre julho e agosto daquele ano, ainda em agosto saía o volume publicado pela
tipografia desse mesmo periódico. A outra edição, simultânea, traz como editora a Livraria Francisco Alves. Das 23
dedicatórias aqui arroladas, apenas duas foram inscritas em exemplares publicados pela Francisco Alves: os ofertados
a João do Rio e Rui Barbosa.
E u c l i d es v i ve : D e d ic at ó r i as   •  95

Acervo: Biblioteca Lúcio de


Mendonça, Academia Brasileira de
Letras, Rio de Janeiro (RJ)
1.ª publicação (fac-símile): PIZA,
Daniel. Academia Brasileira de
Letras: histórias e revelações. São
Paulo: Dezembro Editorial, 2003.
p.87.

A Domício da Gama, com um abraç[o] do


Euclides da Cunha
Rio – Agosto 1907

Acervo: Biblioteca Lúcio de


Mendonça, Academia Brasileira
de Letras, Rio de Janeiro (RJ).
Inédita.

Ao Exmo. Sr. Dr. Salvador d[e Mendon]ça,


homenagem do compatriota e admirador
Euclides da Cunha
Rio – Agosto 907

Acervo: Fundação Biblioteca


Nacional, Rio de Janeiro (RJ)
1.ª publicação (fac-símile): Euclides
da Cunha: uma poética do espaço
brasileiro. Rio de Janeiro: FBN,
2009. p.79.

A Coelho Neto,
Euclides
Rio – Set. 1907
96  •  Felipe Pereira Rissato

Acervo: Biblioteca de Ciências


Humanas, Universidade Federal do
Paraná – UFPR, Curitiba (PR).
Inédita.

A Plínio Barreto, o
Euclides
Set – 1907

Acervo: Oliveira Lima Library, The


Catholic University of America,
Washington, D.C. (USA).
Inédita.

Ao belo espírito de Oliveira Lima,


estas razões de advocacia romântica.
Rio – Setembro de 1907
Euclides da Cunha

Acervo: Biblioteca Brasiliana Guita


e José Mindlin, São Paulo (SP).
Inédita.

Ao robusto espírito de Alfredo Pujol,


estas razões lírico-geográficas
Rio – Set. 1907
Euclides da Cunha
E u c l i d es v i ve : D e d ic at ó r i as   •  97

Acervo: Casa de Cultura Euclides


da Cunha, São José do Rio
Pardo (SP)
1ª publicação (fac-símile): Os
Sertões: 80 anos de publicação.
São Paulo: Imprensa Oficial, 1982.

Ao Otaviano, o
Euclides
Rio – Seto. 1907

Acervo: Casa de Cultura Euclides


da Cunha, São José do Rio Pardo
(SP).
Inédita.

Set – 190712

Acervo: Biblioteca da UnB –


Universidade de Brasília,
Brasília (DF).
Inédita.

A Gastão da Cunh[a], do
Euclides
Set – 1907

12 Triste vandalismo. A dedicatória, irremediavelmente perdida, foi arrancada com fita adesiva! Só restou a data com

a letra de Euclides.
98  •  Felipe Pereira Rissato

Acervo: Coleção Pedro Corrêa


do Lago, São Paulo (SP).
Inédita.

A Francisco Guimarães,
do admirador... da sua admiração,
Euclides da Cunha
Set. 1907

Acervo: Biblioteca Acadêmico


Luiz Viana Filho, Senado Federal,
Brasília (DF).
Inédita.

Exmo. Sr. Dr. Pedro Moacyr


Câmara Federa[l]
Set – 1[907]

Acervo: Instituto Histórico e


Geográfico Brasileiro, Rio de
Janeiro (RJ). Inédita.

Ao Dr. Afonso Celso Jr.,


Euclides da Cunha
Set – 1907
E u c l i d es v i ve : D e d ic at ó r i as   •  99

Acervo: Real Gabinete Português


de Leitura, Rio de Janeiro (RJ).
Inédita.

A João do Rio,
Cordialmte.
Euclides
Set – 1907

Acervo: Coleção Pedro Corrêa


do Lago, São Paulo (SP).
Inédita.

Ao Dr. Sousa Bandeira,


Euclides
Rio – Set. 90713

Acervo: Fundação Biblioteca


Nacional, Rio de Janeiro (RJ).
Inédita.

À Redação do “Jornal do Brasil”

13 Infelizmente, a dedicatória foi separada do exemplar em que foi inscrita.


100  •  Felipe Pereira Rissato

Acervo: Biblioteca Histórica do


Itamaraty, Rio de Janeiro (RJ).
Inédita.

Exmo. Sr. Dr. Joaquim Nabuco –


Embaixador Brasileiro em Washington

Acervo: Instituto Histórico e


Geográfico Brasileiro, Rio de
Janeiro (RJ).
Inédita.

Ao
Instituto Histórico e Geográfico [Brasileiro]

Acervo: Biblioteca do Supremo


Tribunal Federal, Brasília (DF)
1.ª publicação (fac-símile): <http://
www.stf.jus.br/bibliotecadigital/
DominioPublico/18620/
pdf/18620.pdf>

Ao Exmo. Sr. Presidente do Supremo Tribunal Federal14

14 Joaquim de Toledo Piza e Almeida (1842-1908).


E u c l i d es v i ve : D e d ic at ó r i as   •  101

Acervo: Biblioteca Pública Estadual


Luiz de Bessa, Belo Horizonte (MG).
Inédita.

Ao Arquivo Público Mineiro


Belo Horizonte
Estado de Minas Gerais

Acervo: Biblioteca da Marinha,


Rio de Janeiro (RJ). Inédita.

Exmo. Sr. Barão de Teffé


(R. Catete 205)
Rio de Janeiro

Acervo: Fundação Casa de Rui Barbosa,


Rio de Janeiro (RJ).
Inédita.

Ao Exmo. Sr. Conselheiro Rui Barbosa,


Homenagem do compatriota e admirador
Euclides da Cunha
Rio – 4-1-90815

15 Euclides corrigiu o ano, após indevidamente grafar “907”.


102  •  Felipe Pereira Rissato

Contrastes e confrontos (1907, 2.a ed.)


Acervo: Casa de Cultura Euclides da
Cunha, São José do Rio Pardo (SP)
1.ª publicação: Revista do Gremio
Euclydes da Cunha, Rio de Janeiro,
15 ago. 1933 (transcrição) e Os Sertões:
80 anos de publicação. São Paulo:
Imprensa Oficial, 1982 (fac-símile).

Ao admirável coração de Afrânio Peixoto,


estas rudes páginas sinceras.
Euclides da Cunha
Rio – out. 1907

Acervo: Oliveira Lima Library, The


Catholic University of America,
Washington, D.C. (USA).
Inédita.

À poderosa inteligência de Oliveira Lima.


Euclides da Cun[ha]
Rio – out – 1907

Acervo: Cecil H. Green Library, Stanford


University, Stanford, CA (USA)
Inédita.

Ao digno e distintíssimo a[migo] Dr. Licínio Cardoso,


Euclides da [Cunha]
Rio – out.o – 1907
E u c l i d es v i ve : D e d ic at ó r i as   •  103

Acervo: Biblioteca Lúcio de


Mendonça, Academia Brasileira de
Letras, Rio de Janeiro (RJ).
Inédita.

Ao meu distinto confrade e grande


compatriota Afonso Celso,
Euclides da Cunha
Rio – 908

Acervo: Instituto Histórico e Geográfico


Brasileiro, Rio de Janeiro (RJ)
1.ª publicação (fac-símile): LAGO, Pedro
Corrêa do. Brasiliana IHGB. Rio de
Janeiro: Capivara, 2014. p.191.

Ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,


Homenagem do
Euclides da Cunha
Rio – 1908
104  •  Felipe Pereira Rissato

Castro Alves e seu tempo (1907)

Acervo: Casa de Cultura Euclides da


Cunha, São José do Rio Pardo (SP).
Inédita.

A Otaviano, o
Euclides
Rio – 1907

Acervo: Fundação Biblioteca


Nacional, Rio de Janeiro (RJ)
1.ª publicação (fac-símile): Euclides
da Cunha: uma poética do espaço
brasileiro. Rio de Janeiro: FBN,
2009. p.104.

Ao Dr. José Carlos Rodrigues


Homenagem do
Euclides da Cu[nha]
Rio – 1907

Acervo: Oliveira Lima Library,


The Catholic University of
America, Washington, D.C. (USA).
Inédita.

Ao meu distinto amigo e confrade, Oliveira Lima –


Euclides da Cunha
Rio – Dezembro – 1907
E u c l i d es v i ve : D e d ic at ó r i as   •  105

Acervo: Biblioteca Municipal


Mário de Andrade, São Paulo (SP)
1ª publicação (fac-símile): <http://
docvirt.no-ip.com/demo/bma/
bma.htm>

A Felix Pacheco,
o idealista da Morte e do Amor,16 ofe.
Euclides da Cunha
Dezembro de 1907

Acervo: Fundação Biblioteca


Nacional, Rio de Janeiro (RJ).
Inédita.

À Redação da “Tribuna”
ofe.
Euclides da Cunha
Dezembro 1907

16
O acadêmico Felix Pacheco (1879-1935), redator-chefe do Jornal do Commercio (RJ) é autor do livro de versos
Mors-Amor (1904).
106  •  Felipe Pereira Rissato

Acervo: Fundação Biblioteca


Nacional, Rio de Janeiro (RJ).
Inédita.

A Coelho Neto, do
Euclides
Rio – 1-1-908

Acervo: Coleção Felipe Pereira


Rissato, Belém (PA).
Inédita.

A Fernando Faria Fo., co[m o] abraço do


Euclides
Rio – 1908

Acervo: Coleção Pedro Corrêa


do Lago, São Paulo (SP).
Inédita.

Ao velho e bom amigo Francisco de Escobar,


com as saudades do
Euclides da Cunha
Rio – 1908
E u c l i d es v i ve : D e d ic at ó r i as   •  107

Acervo: Biblioteca Comunitária da


UFSCar – Universidade Federal de
São Carlos, São Carlos (SP).
Inédita.

Ao digno mestre Dr. Licínio Cardoso,


homenagem do
Euclides da Cunha
Rio – 1908

Acervo: Instituto Histórico e


Geográfico Brasileiro, Rio de
Janeiro (RJ).
Inédita.

Ao belo espírito de Afonso Celso,


homenagem do compatriota, amigo e admirador
Euclides da Cunha
Rio – Fevereiro – 1908
108  •  Felipe Pereira Rissato

Acervo: Biblioteca Lúcio de


Mendonça, Academia Brasileira de
Letras, Rio de Janeiro (RJ).
Inédita.

A Alberto de Oliveira, belo coração e alma gentilíssima,


esta17 pálida lembrança do
Euclides da Cunha
Rio – 1909

No tocante às dedicatórias inscritas por Euclides, abrimos o presente trabalho com uma
dedicatória sua, na juventude, em obra alheia. Curiosamente, encerramos as transcrições
de suas dedicatórias com outra, também deixada em obra alheia, já na maturidade. Trata-se
de Juicios sobre Martín García y la jurisdicción del Plata, de Agustín de Vedia, resenhado por
Euclides em duas edições do Jornal do Commercio (RJ).

Acervo: Coleção desconhecida


1ª publicação (fac-símile): <http://
www.antonioferreira.lel.br/peca.
asp?ID=178905>

Ao belo espírito de Miguel Calmon,


pequena lembrança do
Euclides da Cunha
Rio – 1908

17 Euclides iria escrever “oferece” e encerrar a dedicatória, mas mudou de ideia.


E u c l i d es v i ve : D e d ic at ó r i as   •  109

E
uclides da Cunha era um infatigável missivista e em suas inúmeras cartas não são pou-
cos os exemplos nos quais podemos notar a remessa de seus livros a diversos amigos.
O mesmo ocorre em sua correspondência passiva, com o agradecimento por parte
desses. Não é o propósito deste ensaio, porém, enumerar quais dessas referências são de-
dicatórias incógnitas, ainda por se descobrir o teor. No entanto, a existência de dedicatórias
com indicação anterior de acervo e cujo paradeiro hoje é desconhecido, vale registro:

Os Sertões (1.a edição)


Dedicatória incógnita a destinatário desconhecido inscrita em exemplar leiloado pelo jornal
O Estado de S. Paulo em novembro de 1932, com o fim de angariar fundos para os órfãos da
Revolução Constitucionalista, ocorrida naquele ano. É impossível saber se se trata de alguma
das seis dedicatórias aqui arroladas.

Castro Alves e seu tempo


Dedicatória incógnita a destinatário desconhecido inscrita em exemplar oriundo da Coleção
Carlos Noronha Santos, conforme catálogo no Jornal do Commercio (RJ) de 3 jun. 1956,
leiloado por Ernani (RJ). É impossível saber se se trata de alguma das onze dedicatórias aqui
arroladas.

Contrastes e confrontos (1.ª edição)


Dedicatória incógnita ao Acadêmico Medeiros e Albuquerque inscrita em exemplar leiloado
no 21.o leilão da Babel Livros (RJ) em abril de 2007.
110  •  Felipe Pereira Rissato

N
as páginas seguintes, damos amostra do que foi possível encontrar da biblioteca
pessoal de Euclides, conforme dissemos na abertura deste trabalho.

Euclides da Cunha no gabinete de sua residência, à rua Nossa Senhora de Copacabana, 23H, Rio de Janeiro (RJ).
A Illustração Brazileira, Rio de Janeiro, ano 1, n. 6, 15 ago. 1909, p.99. O armário situado atrás do escritor
pertence à Casa de Cultura Euclides da Cunha, São José do Rio Pardo (SP).
E u c l i d es v i ve : D e d ic at ó r i as   •  111

Acervo: Coleção Felipe Pereira Rissato, Belém (PA)


1ª publicação (fac-símile): Dutra Leilões: setembro de 2016. São Paulo: [s.n.], 2016. p.99.

Vai este seco livro de crítica18 procurar nas brenhas assombrosas do Alto Amazonas,
e levar-lhe um abraço fraternal e os votos de felicidades, ao poeta dos jagunços,
ao bom e grande Euclides da Cunha
José Veríssimo
Rio, 11 out. 905

18 Dedicatória inscrita em um exemplar de VERÍSSIMO, José. Estudos de Literatura Brasileira. 5 ª Série. Rio de Janeiro/
Paris: H. Garnier, 1905.
112  •  Felipe Pereira Rissato

Acervo: Coleção desconhecida


1.ª publicação: Jornal do Commercio
(RJ) e O Paiz (RJ), 21 ago. 1909,
p.3 (transcrição) e
< http://www.babelleiloes.com.br/peca.
asp?ID=88359 > (fac-símile).

Amo. Euclides
Envio-lhe esta nova edição popular19 do breviário que v. mais frequentemente manuseia.
Como a introdução é de Irving, e existem junto ao texto umas policromias de gosto, pensei
que lhe seria agradável possuir esse exemplar, portátil, e muito próprio para ser lido, em
dias estivais, no Mangrulho da arte.
Rio . 12.2.907.
Araripe Júnior

Acervo: Fundação Biblioteca Nacional,


Rio de Janeiro (RJ)
1.ª publicação (fac-símile): MENDONÇA,
Belarmino. Reconhecimento do Rio Juruá (1905).
São Paulo: Itatiaia, 1989. p.33.

Ao denodado explorador do Purus, distinto colega, notável escritor –


e ilustre acadêmico – Dr. Euclides da Cunha, oferece
Belarmino Mendonça.
Rio, 13.IX.0720

19 Dedicatória inscrita no volume das obras completas de Shakespeare (The complete works of William Shakespeare),
encontrado em um baú na casa de Dilermando de Assis quatro dias após a tragédia da Piedade, na qual Euclides
da Cunha foi morto. A página com a dedicatória, arrancada do livro, foi leiloada em agosto de 2013 a uma coleção
desconhecida. Na diligência policial, foi também encontrado e apreendido um exemplar de Como se cura um louco
(ou Cura de um louco), de Selma Lagerlöf (1858-1940), com o sinete de Euclides, conforme noticiaram os jornais de
20 de agosto de 1909.
20 Dedicatória inscrita em um exemplar de Memória da Comissão mista Brasileiro-Peruana de reconhecimento do Rio

Juruá e Relatório do comissário brasileiro (1904-1906). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1907.
E u c l i d es v i ve : D e d ic at ó r i as   •  113

Acervo: Fundação Biblioteca


Nacional, Rio de Janeiro (RJ).
Inédita.

Ao eminente homem de letras, o imortal burilador d’Os sertões


Cumprimenta e oferece o
Autor
S. Paulo, 22-11-1907.21

Acervo: Fundação Biblioteca Nacional,


Rio de Janeiro (RJ).
Inédita.

Ao eminente homem de letras, Dr. Euclides Cunha,


homenagem da grande admiração do
autor
Rio – 2-Dezbro-90722

21 Dedicatória inscrita em um exemplar de GOMES, Tapajós. Através do Vº Ano: (Bacharelandos de 1907). São Paulo:

[s. n.], 1907.


22 Dedicatória inscrita no exemplar n.o 36 de ABRANCHES, Dunshee de. Atas e Atos do Governo Provisório. Rio de

Janeiro: Imprensa Nacional, 1907.


114  •  Felipe Pereira Rissato

D
os cinco títulos aqui coligidos com Cecil H. Green Library, Stanford University (USA): Nan
Mehan
dedicatórias para Euclides, nenhum Fundação Casa de Rui Barbosa/RJ: Cláudio Vitena, Leonar-
faz parte da listagem de sua biblio- do Pereira da Cunha, Raquel Cristina da Silva Tiellet
Oliveira, Monique da Silva Cabral
teca feita para o seu inventário. Nessa lista, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro/RJ: Sônia N. de
foram arrolados “8 Vols. of Shakespeare Lima
Leopoldo M. Bernucci
(edição de luxo e bolso)”; não se tratando, Maciel Livros/MS: Samuel Duarte
Museu da Justiça/RJ: Isabela Motta de Aragão Maglione
portanto, do volume das obras completas
Oliveira Lima Library, The Catholic University of America
de Shakespeare, que continha a dedicató- (USA): Thomas M. Cohen, Joan R. Stahl
Pedro Corrêa do Lago
ria de Araripe Júnior e que estava de posse Real Gabinete Português de Leitura/RJ: Vera Lúcia de Al-
de Dilermando de Assis quando o escritor meida

foi morto. Apreendido pela polícia, acabou


não entrando no inventário, assim como Bibliografia
o já mencionado livro de Selma Lagerlöf, A Federação, Porto Alegre, 26 mar. 1907.
A Illustração Brazileira, Rio de Janeiro, ano 1, n. 6, 15 ago.
fazendo hoje parte do acervo da Casa de 1909.
Cultura Euclides da Cunha, São José do Rio ABRANCHES, Dunshee de. Atas e Atos do Governo Provisó-
rio. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1907.
Pardo (SP). ANDRADE, Juan Carlos Pires de. “A biblioteca de Euclides
da Cunha”. In: Revista Outros Sertões, Salvador, ano 3,
Esse último comentário define bem o
n. 3, Dez. 2009, p.105-126.
lastimável grau de dilapidação e desman- Antonio Ferreira. V Leilão Acervo de Livros. Disponível em:
<http://www.antonioferreira.lel.br/peca.asp?ID=
telamento de sua biblioteca quando foi in- 178905>. Acesso em: 31 out. 2018.
ventariada. Esperamos, contudo, que novos Babel Livros. 21º Leilão. Disponível em: <http://www.babel-
leiloes.com.br>. Acesso em: 13 abr. 2007.
achados possam complementar essa parte _____. 62.º Leilão. Disponível em: <http://www.babelleilo-
também interessante de sua bibliografia. es.com.br/peca.asp?ID=88359>. Acesso em: 13 ago.
2013.
Biblioteca Nacional. Euclides da Cunha: uma poética do es-
Agradecimentos paço brasileiro. Rio de Janeiro: FBN, 2009.
_____. Exposição comemorativa do centenário de nasci-
Academia Brasileira de Letras (Biblioteca Lúcio de Mendon-
mento de Euclides da Cunha 1866-1966. Rio de Ja-
ça)/RJ: Luiz Antonio de Souza
neiro: BN, 1966.
Acadêmico Antonio Carlos Secchin
BUENO, Alexei. Machado vive: dedicatórias. Rio de Janeiro:
Biblioteca Histórica do Itamaraty/RJ: Embaixador Eduardo
ABL, 2008.
Prisco Paraíso Ramos, Maria Simone de Oliveira Rosa,
Cadernos de literatura brasileira: Euclides da Cunha. São
Amanda Sá Cavalcanti Pessoa
Paulo: IMS, 2002.
Babel Livros/RJ: Ramon Rodrigues dos Santos
Câmara dos Deputados. Biblioteca Digital. Disponível em:
Biblioteca Acadêmico Luiz Viana Filho (Senado Federal)/DF:
Clarissa Leite A. Ribeiro <http://bd.camara.leg.br/bd/handle/bdcamara/18422>.
Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin/SP: Jeanne Lopez Acesso em: 30 jul. 2015.
Biblioteca Comunitária da UFSCar (DeCORE)/SP: Izabel da Catálogo de obras raras da Biblioteca da Câmara dos De-
Mota Franco putados. v.1. Brasília: Câmara dos Deputados, 2000.
Biblioteca da Marinha/RJ: 2° SG-RM1 Nery Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 3 dez. 1902.
Biblioteca da UnB/DF: Raphael D. Greenhalgh CUNHA, Euclides da. Castro Alves e seu tempo. Rio de Ja-
Biblioteca de Ciências Humanas (UFPR)/PR: M​ aria ​
Teresa neiro: Imprensa Nacional, 1907.
Alves Gonzati ­­­_____. Contrastes e confrontos. Porto: Empresa Literária e
Biblioteca do Superior Tribunal Federal/DF Tipográfica Editora, 1907.
Biblioteca Municipal Mário de Andrade/SP _____. _____. 2.ed. Porto: Empresa Literária e Tipográfica
Biblioteca Nacional/RJ: Ana Virgínia Pinheiro, Rutonio J. F. Editora, 1907.
de Sant’Anna, Eliane Perez _____. Os Sertões. Rio de Janeiro: Laemmert, 1902.
Biblioteca Pedro Aleixo (Câmara dos Deputados)/DF _____. _____. 2.ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1903.
Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa/MG: Eliani Gladyr _____. _____. 3.ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1905.
da Silva _____. Peru versus Bolívia. Rio de Janeiro: Tip. do “Jornal do
Casa de Cultura Euclides da Cunha/SP: Lúcia Helena Vit- Commercio”, de Rodrigues & C., 1907.
to, Ana Paula de Paulo Pereira de Lacerda, Alessandra _____. _____. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1907.
Aparecida Novaes Ferreira Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 25 fev. 1934.
E u c l i d es v i ve : D e d ic at ó r i as   •  115

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mista Brasileiro-Peruana de reconhecimento do Rio Ju- VEDIA, Agustín de. Juicios sobre Martín García y la jurisdic-
ruá e Relatório do comissário brasileiro (1904-1906). ción del plata. Buenos Aires: Imprenta y Casa editorial
Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1907. de Coni Hermanos, 1908.
_____. Relatório da Comissão mista Brasileiro-Peruana de VENÂNCIO FILHO, Francisco. A Glória de Euclydes da Cunha.
reconhecimento do Alto Purus. Notas complementares São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1940.
do comissário brasileiro (1904-1905). Rio de Janeiro: VERÍSSIMO, José. Estudos de Literatura Brasileira. 5.a Série.
Imprensa Nacional, 1906. Rio de Janeiro/Paris: H. Garnier, 1905.
O romance em Maura Lopes
Cançado

Gilberto Araújo
Professor adjunto de Literatura Brasileira (UFRJ) e autor de
Literatura brasileira: pontos de fuga (2014), dentre outros

“Pretendo mesmo escrever um livro. Talvez Envolveu-se (diz-se) com um terapeuta: lou-
já o esteja fazendo, não queria vivê-lo.” ca! Publicou um livro intitulado Hospício é
C ançado , 2015: 58 1 Deus: louca! Acreditava-se a maior escritora

C
não da literatura brasileira, mas da língua
riança, penava de tafofobia, medo
portuguesa: louca! Estrangulou uma inter-
de ser enterrada viva: louca! Aos
na de hospício, negra, grávida, de 19 anos:
12 anos, quis aprender alemão
louca! Permaneceu reclusa na Penitenciária
para ser espiã nazista: louca! Mãe e casa-
Lemos de Brito, infestada de ratos e inse-
da aos 14: louca! Divorciada aos 15 porque
tos: louca! Liberta, mudou-se mais de dez
se apaixonou pelo sogro: louca! Deixou o
vezes de residência por indispor-se com vi-
filho aos cuidados da avó a fim de continu-
zinhos e porteiros: louca! Exigiu que o filho
ar os estudos: louca! Recusada em colégio
lhe arranjasse carregador de compras, pois
religioso devido ao matrimônio desfeito:
dama de sua estirpe não poderia executar
louca! Única mulher matriculada em ae-
atividade tão subalterna: louca! Mesmo na
roclube para obter brevê de piloto: louca!
penúria, vestia-se e maquiava-se luxuosa-
Ainda sem habilitação, decolou e fez pou- mente, estourando o cartão de crédito do
so de emergência sobre uma casa: louca! filho: louca! Enfim, Maura Lopes Cançado:
Antes dos 20, internou-se voluntariamente louca! louca! louca!
em casa de tratamento psiquiátrico: louca! A breve retrospectiva da escritora minei-
Queimou rapidamente a herança familiar ra, nascida em 1929 na cidade interiorana de
com amantes, bebidas e hotéis de luxo: São Gonçalo do Abaeté, parece uma coleção
louca! Dos 30 aos 60, foi internada em di- de manchetes sensacionalistas. É inegável
versas clínicas para doentes mentais: louca! que uma biografia dessa irreverência desper-
Agrediu internas, guardas e médicos: louca! te curiosidade, mas a ênfase na trajetória
1 Doravante, as referências às obras de Maura Lopes extraordinária acabou desviando a atenção
Cançado dispensarão o sobrenome da autora: indicarei
apenas a data da edição consultada (2015), seguida da
daquilo que, a princípio, justifica a pre-
página de onde se extraiu a citação. sença de Maura Lopes Cançado em nossa
Conferência pronunciada na Academia Brasileira de Letras em 3 de maio de 2018.
118   • Gilberto Araújo

literatura: seus dois livros, Hospício é Deus Com efeito, em bocejo contagioso, exis-
(1965), de que tratarei aqui, e O sofredor tem certos chavões concernentes ao tema,
do ver (1968). Outros autores que também já que a crítica se debruça sobre os mesmos
excursionaram por essa seara permanece- autores e obras: longe de questionarmos o
ram reconhecidos como escritores (loucos), quilate de O alienista, de Machado de Assis,
não como loucos escritores. O caso mais e dos mencionados títulos de Lima Barreto,
lembrado é Lima Barreto, com Diário do convém indagar onde se encontram investi-
hospício e Cemitério dos vivos. Embora não gações sobre a loucura em No hospício, de
raro se recorde o alcoolismo que o levou a Rocha Pombo, em Signos, de Nestor Victor,
internações e ao óbito, o carioca, sobretudo ou na prosa de Antônio Austregésilo, Car-
nos últimos 50 anos, garantiu estabilidade men Dolores, Chrysanthème, Colatino Bar-
no cânone brasileiro, sem que necessaria- roso, Cruz e Sousa, Gonzaga Duque, Júlio
mente se lhe impinja a marca da enfermi- Perneta, apenas para citar alguns autores
dade. Mesmo quando se estuda a relação oitocentistas. No século XX, fala-se muito
entre Lima Barreto e as doenças mentais, a da loucura lírica em Guimarães Rosa ou da
exemplo do ensaio “Os fantasmas de um epifânica e dolorosa em Clarice Lispector,
certo Policarpo Quaresma: Édipo na ex-co- dando-se pouca atenção a Antonio Carlos
lônia”, de Friedrich Frosch, premiado pela Villaça, Carlos Süssekind, Cornélio Penna,
Biblioteca Nacional, mesmo nesses casos, a Dyonélio Machado, Octavio de Faria, Lúcio
análise literária reveste-se de apuro teórico, Cardoso, Romeu de Avellar, Rosário Fusco e
qualificador da obra e do artista, abrangen- tantos outros contemporâneos que se de-
do inclusive textos desligados da vivência votaram à prospecção da loucura em âmbi-
sanatorial de Lima Barreto. to individual e/ou coletivo.
Maura, entretanto, é constantemente Felizmente, a literatura contemporânea
devolvida à sua biografia, tomada como vem dando a lume outros escritores que
chave de leitura unívoca de sua obra. Prova vivenciaram isolamento manicomial, como
disso é a quase hegemonia de duas refe- Renato Pompeu, Rodrigo de Souza Leão
rências nos estudos a ela dedicados: Michel e Stela do Patrocínio, safra que, de algum
Foucault, com o seminal A história da lou- modo, tem levado a crítica a superar o bio-
cura, e O pacto autobiográfico, de Philippe grafismo em prol de abordagens semióticas
Lejeune, promovendo o conluio entre nar- capazes de sublinhar a potência criativa de
rativa de primeira pessoa, doença e escrita. textos pejorativamente designados de con-
Para além de possível preconceito de gêne- fissão, testemunho, diário, depoimento e
ro (antes dela, quais as diagnosticadas da li- falatório nonsense, como se tais gêneros,
teratura brasileira?), reponta a discrepância por não serem “elaborados”, não mereces-
entre uma insanidade sofisticada e literária, sem legitimidade literária. Nesse sentido,
representada em personagens e alguns al- são dignos de nota os estudos de Alexan-
teregos (Machado de Assis, por exemplo), dre Eulálio e Álvaro Cardoso Gomes, com
distinta da doença em estado bruto, geran- especial atenção à fatura simbolista, e, em
do hierarquia entre loucura literária e litera- se tratando de Maura, os de Louise Bastos
tura louca. Corrêa, Maria Luísa Scaramella, Mariana
O rom a nc e e m M au r a L o p es C a n ç a d o   •   119

Patrício Fernandes, Rosângela Lopes da Sil- 1970, Hiroito de Moraes Joanides, relançado
va, entre outros. em 2003, também levou ao prelo Boca do
Assiste-se, hoje em dia, ao esforço de Lixo, autobiografia do escritor drogado, cri-
reconhecimento da mineira como escrito- minoso, detido 170 vezes, cafetão e acusado
ra, tentando desvinculá-la do estigma de de matar o pai. Na emergência dessas narra-
louca, homicida e megalomaníaca. Daí sua tivas nas décadas de 1960 e 1970 talvez es-
mais recente edição, em 2015, pela editora teja uma das matrizes da emersão de vozes
Autêntica, abrigar os dois livros num estojo, minoritárias na literatura contemporânea,
que repuseram em circulação a totalidade da justificando o atual interesse por aqueles
obra, não o caso curioso e isolado do diá- autores e, nas artes plásticas, pelas obras de
rio de hospício. Além disso, o sóbrio projeto Arthur Bispo do Rosário, Emygdio de Barros
gráfico de Diogo Droschi, em capa com lo- e Raphael Domingues, por exemplo. Volte-
sangos de cores fechadas e letras em corpo mos a Maura.
pequeno, enfatiza o aspecto construtivo da Costuma-se atribuir a Hospício é Deus o
composição, distinguindo-se das empreita- estatuto de confissão, enquanto O sofredor
das anteriores, com frontispícios chamativos, do ver, coletânea de contos, materializaria
tipos grandes e coloração vibrante. A rara a criação literária2. Produzido no calor da
primeira edição de Hospício é Deus, tirada hora, o diário constituiria laboratório para
por José Alvaro em 1965, está esgotada há a contística, fornecendo perfis e episódios
muitos anos e hoje custa em média 450 reais posteriormente reelaborados em clave cria-
em sebos. Entre as décadas de 1970 e 1990, tiva. De fato, há forte intercâmbio entre
o Círculo do Livro e a Record encetaram ree- as obras: personagens do título de 1968
dições; desde então, o diário esteve fora de inspiraram-se em pacientes homônimos
catálogo. No século XXI, a primeira inicia- do hospício; além disso, Maura registra no
tiva de resgate editorial de Lopes Cançado diário a redação e a publicação de contos,
ocorreu em 2011, quando a Confraria dos enfatizando a similitude entre as realidades
Bibliófilos publicou O sofredor do ver, mais vivida e contada. Entretanto, causa espécie
de 40 anos após o lançamento; entretanto, a a sobriedade estilística de Hospício é Deus,
bela edição especial, numerada e em poucos quando comparada ao discurso eletrizado
exemplares, já nasceu rara e atualmente está de O sofredor do ver. Ambos os volumes
cotada a mais de 500 reais. Donde a impor- ostentam título ruidoso, mas o diário, es-
tância dos volumes de 2015, sintomáticos, crito in loco, não transpira formalmente a
inclusive, de louvável tendência contempo- tensão verificada nos contos, eivados de
rânea de recuperação da literatura íntima 2 Assis Brasil, em artigo publicado no Correio da Manhã,
de autoria feminina, conforme demonstram insistiria na dessemelhança entre confissão e criação:
“Sem dúvida, Maura Lopes Cançado já se conscienti-
as republicações de A imaginária (1959), zou de seu compromisso com a literatura – a substitui-
de Adalgisa Nery, ou de Quarto de despejo ção do ‘eu-confessor’ por narrativas em terceira pessoa
ou por uma poética em primeira pessoa que amplia o
(1960), de Carolina Maria de Jesus. Coinci- seu horizonte criativo e o escritor passa a não depender,
dentemente, esses dois livros são quase con- exclusivamente, de sua imediata experiência de vida”
(apud Meireles, 2015: 218). Não é equivocada a de-
temporâneos a Hospício é Deus, convergên- claração, embora acreditemos haver, já em Hospício é
cia que se amplia se considerarmos que, em Deus, marcas dessa ampliação poética.
120   • Gilberto Araújo

rupturas gráficas e espaços em branco. Do em “deus”). Espaço sem saída, já que sob
ponto de vista estrutural, o texto literário permanente vigilância, o hospício fagocita os
dos contos parece mais condizente com o internos, incrustando-os em “escadarias de
terror do sanatório. O diário sangra revolta mármore branco”, que, longe de conduzir
e dor, porém submete o páthos nosográ- a qualquer ascensão, ratificam a estagnação
fico ao tom ponderado da autoanálise. O dos pacientes, em cujas cabeças se colam
aparente descompasso entre forma e fundo flores frias, desprovidas de vida e beleza.
solicita atenção, pois, a nosso ver, rasura a Com esse título, abre-se no livro extensa ca-
repetida fronteira entre confissão e criação. deia analógica, desde logo suficiente para
Comecemos pelo título. Saído da pena requerer-lhe o atributo de criação.
de alguém que proferiu “Deus foi o demô- Além disso, deve-se considerar o arco
nio da minha infância” (2015: 17), Hospício temporal entre a escrita e a publicação da
é Deus sintetiza o trauma da menina de for- obra: Hospício é Deus abrange a virada de
mação católica, do interior de Minas Gerais, 1959 para 1960, mas só é editado cinco
assombrada de culpa e medo diante da fi- anos depois. Sem dúvida, o intervalo permi-
gura divina. Contudo, o alcance estético do tiu rearranjos, ajustes, cortes e acréscimos,
título é muito maior: problematizando a hipótese de ser o volume
E hospício é este branco sem fim, onde nos relato fidedigno, já que a experiência vivida
arrancam o coração a cada instante, trazem- se submeteu à edição da memória e dos de-
-no de volta, e o recebemos: trêmulo, exan- sejos da mutante Maura: “Seria verdadeira-
gue – e sempre outro. Hospício são as flores mente escandaloso meu diário íntimo – até
frias que se colam em nossas cabeças perdi- para mim mesma, porquanto sou multiva-
das em escadarias de mármore antigo, subita- lente, não me reconheço de uma página
mente futuro – como o que são se pode ainda
para a outra. Prefiro guardar minhas verda-
compreender. São mãos longas levando-nos
des, não pô-las no papel.” (2015: 132).
para não sei onde – paradas bruscas, corpos
sacudidos se elevando incomensuráveis: Hos-
Boa parte do diário foi escrito a lápis, no
pício é não se sabe o quê, porque Hospício é colo de Maura, incomodada com a má ilu-
deus. (2015: 26) minação do quarto e com as internas, aos
gritos, insones, perambulantes. As folhas no
A brancura hospitalar serve de fundo ao regaço e o lápis quase extinto simbolizam a
coração dos pacientes, em forte contraste intensidade da experiência, cuja escrita se
cromático, replicante da experiência doloro- torna extensão do corpo, ambos sob amea-
sa de ser diariamente tratado como nódoa ça: Maura perturbada pela penumbra, pelas
vermelha no brim branco. Vulnerável, o in- guardas e pelas internas; o grafite próximo
terno perde os atributos de sujeito e torna- ao fim. Sobressai a impressão do texto ur-
-se vítima da corporação asséptica, punitiva gente, quase fisiológico. Todavia, um episó-
e onipresente: por isso, “as mãos longas” do dio timbra o distanciamento analítico: qua-
deus manipulador. A divindade remete ao se na segunda metade do relato, um dos
desconhecido não pela sedução do misté- médicos e personagem fundamental do
rio, mas por figurar-se panóptico invasivo e livro, dr. A., presenteia a paciente com um
castrador (observe-se a minúscula detratora bureau e a incentiva a começar um curso de
O rom a nc e e m M au r a L o p es C a n ç a d o   •   121

datilografia, que, até a época de finalização exemplo, compila extensa rememoração


do livro, parece não ter sido concluído, uma da sua juventude: a quem se dirigem essas
vez que foi a amiga e também escritora informações? Supostamente, o diário equa-
Maria Alice Barroso quem datilografou os liza os papéis de escritor e leitor, servindo
manuscritos. A presença da escrivaninha e a para anotar acontecimentos importantes
iminência da máquina de escrever fraturam ou banais, impressões, sentimentos e lem-
o espelhamento entre texto e vida, pois se branças. O autoexame e o pendor memo-
lhes interpõem mediadores significativos. rialísticos são inerentes ao gênero, mas o
A interferência da máquina de escrever enunciador não precisa apresentar-se tão
corresponde a fato real na vida de Maura – protocolarmente a si mesmo, a menos que
Carlos Heitor Cony lhe deu uma Olivetti 22 haja a perspectiva da publicação, o que, em
portátil (cf. Meireles, 2015: 214) –, mas, den- certa medida, compromete o esperado pac-
tro do livro, o aparelho, fornecido pelo mé- to de intimidade.
dico, não pelo amigo, ganha relevância por Não afirmamos o disparate de ser Hos-
alterar o instrumento da escrita, tornando a pício é Deus um romance; no entanto, sem
atividade mais ponderada: a tinta das teclas perder a condição de diário, assume caracte-
reduz, por exemplo, as facilidades de edição rísticas romanescas, com um narrador hábil
permitidas pelo lápis, sempre disponível à no traquejo da disposição dos personagens,
borracha. A máquina exige maior elaboração da complexidade espaço-temporal e da se-
pré-textual, a fim de, entre outros aspectos, quência narrativa (por isso o título deste en-
evitar o desperdício de papel, sobretudo por- saio). Evidência cabal dessa organização é a
que Maura, sem muitos recursos, pegava-os epígrafe ao volume, pinçada em Jean-Paul
na redação do Jornal do Brasil, onde traba- Sartre: “Mas lá chegaria o momento em
lhava. Consecutivamente, o utensílio de- que o livro estivesse escrito e ficasse atrás de
manda o equilíbrio entre expressão subjetiva mim – um pouco de sua claridade cairia so-
e consciência textual, drenando o equívoco bre meu passado. Talvez então eu pudesse,
de que o relato é jorro inconsciente. Ade- através dele, recordar a minha vida sem re-
mais, a escrivaninha, ao servir de suporte à pugnância” (apud 2015: 5). A concretização
atividade literária, retira a resma do colo de do livro projeta-se para um “lá” impreciso,
Maura, assinalando, com maior ênfase, o fim sugestivo da impossibilidade da autobiogra-
da (in)felicidade clandestina do contato dire- fia plena, disposta em domínio distante do
to entre corpo e texto. enunciador. Bem a propósito, a declaração
Abundam em Hospício é Deus outros se ancora em marcadores de dúvida: “cai-
elementos solicitantes de seu estatuto li- ria”, “talvez”, “pudesse”. Permanecendo
terário, a julgar pelo fato de ser um diário atrás do criador, a obra encontraria nele o
público. A intimidade ali exposta pretende- obstáculo impeditivo de iluminar todo o pas-
-se compartilhada: “Não é, absolutamente, sado: por mais que se esforce em recuperar
um diário íntimo, mas tão apenas o diá- a experiência, ela passa pelo crivo subjetivo.
rio de uma hospiciada” (2015: 132). Ao Portanto, logo a abertura de Hospício é Deus
prever a divulgação do texto, Maura (re) coloca em xeque a fidedignidade do foco
modelou a escritura. O início do livro, por narrativo interno.
122   • Gilberto Araújo

De acordo com Lejeune, os gêneros da O distanciamento entre o empírico e o


literatura íntima caracterizam-se pela “iden- textual prefigura-se de modo sutil na abertu-
tidade de nome entre o autor (cujo nome ra do diário. Deitada na cama, Maura, crian-
está estampado na capa), o narrador e a ça, observa a mãe debruçada na janela à es-
pessoa de quem se fala” (Lejeune, 2014: pera do marido e da filha Didi, provenientes
27-8). Por esse critério, algo raso, estaria de Belo Horizonte. Conquanto ansiosa para
assegurado o pacto autobiográfico no livro rever a irmã, a menina adormece e só des-
em questão. Contudo, interessa-nos aqui perta na manhã seguinte, quando a parente
sondar as fronteiras desse concerto, as fím- recém-chegada a presenteia com um chapéu
brias onde confissão e ficção se entrelaçam. branco. A sobreposição de perspectivas –
Para tanto, mais valem as reflexões de Pierre Maura vê a mãe, que vê pela janela – afasta
Bourdieu acerca da onomástica em narrati- a pequena observadora da cena almejada (a
vas de primeira pessoa: chegada da irmã), como se ela não tivesse
“Designador rígido”, o nome próprio é a acesso ao real a não ser pelo discurso, no
forma por excelência da imposição arbitrária caso, o familiar: “– Judite chegou, diziam-
que operam os ritos de instituição: a nomi- -me” (2015: 8). Não à toa, Maura achava a
nação e a classificação introduzem divisões irmã “linda como uma estrangeira”, pois “só
nítidas, absolutas, indiferentes às particula- se parecia mesmo com as moças estrangei-
ridades circunstanciais e aos acidentes indi-
ras das revistas” (2015: 8). Nesse sentido, o
viduais, no fluxo das realidades biológicas e
local de onde ela vem – Belo Horizonte – não
sociais. Eis por que o nome próprio não pode
descrever propriedades nem veicular nenhu- é somente a capital cosmopolita aos olhos
ma informação sobre aquilo que nomeia: da interiorana São Gonçalo do Abaeté, mas
como o que ele designa não é senão uma também o signo da fissura entre fato concre-
rapsódia heterogênea e disparatada de pro- to e filtro individual, centrado na ilusão de
priedades biológicas e sociais em constante um belo horizonte.
mutação, todas as descrições seriam válidas Como o eu lírico juvenil do poema
somente nos limites de um estágio ou de um “Profundamente”, de Manuel Bandeira, a
espaço. Em outras palavras, ele só pode ates-
criança aqui desperta quando o que impor-
tar a identidade da personalidade, como in-
ta já passou, descambando precocemente
dividualidade socialmente constituída, à cus-
ta de uma formidável abstração. (Bourdieu,
em desilusão e incompletude, muitas vezes
1986: 187) convertidas em inveja, ressentimento ou
vingança. Ao fim dessa sequência inicial,
Por conseguinte, seja pelo arco viven- Maura declara ter preferido o chapéu ver-
cial que separa o eu empírico do narrador, melho oferecido a outra irmã, Selva, em vez
seja pela arbitrariedade inerente ao nome do seu, branco. Essa frustração deflagra o
próprio, a Maura Lopes Cançado do frontis- pendor imaginativo da escritora, que, ao
pício, articuladora geral dos fragmentos do sublinhá-lo, ratifica a problematização do
diário, está longe de ser a mesma das outras acordo autobiográfico: “Ainda o que me
Mauras espalhadas ao longo dos episódios davam parecia pouco. Formou-se no meu
do livro. Por isso, insistimos, a narradora fre- ser séria resistência às pessoas e coisas co-
quentemente se define proteiforme. nhecidas. Então inventei o brinquedo sério
O rom a nc e e m M au r a L o p es C a n ç a d o   •   123

do FAZ DE CONTA. E me elegi rainha.” de Pompéu nasceram oito filhas e um filho.


(2015: 13). Páginas à frente, Maura voltará Apenas este filho conservou de seu marido,
ao assunto, recorrendo, porém, ao discurso Oliveira Campos. As oito filhas casaram-se em
diferentes famílias, como Álvares da Silva, Ma-
poético, talvez porque o poema se lhe afi-
ciel, Ribeiro Valadares, Vasconcelos Costa – e
gure mais disponível à imaginação criadora.
outras. Daí sermos parentes das principais fa-
No poemeto, um calçado (índice do trans- mílias mineiras. Já se escreveu mesmo um livro
porte metafórico?) segue em direção ao sol, sobre isto, Os gregos de Minas Gerais. Somos
enquanto a caminhante estagna: descendentes de nobres belgas, parece-me.
Meus sapatos amarelos O detalhamento genealógico desmente
um passo adiante da minha solidão.
a alegada desinformação e desvia o pará-
Eu os vi mil vezes através de lágrimas,
grafo do objetivo de apresentar a mãe, res-
na sua ingenuidade gasta, resignada,
conduzindo os pés que fizeram dança. trita a parcas linhas iniciais, economia que
Ó, meus sapatos – amarelo-girassol. (2015: 37) se choca com os seis extensos parágrafos
antes dedicados ao pai, retratado heroica-
Na sondagem do ficcional em Hospício
mente, como homem forte, bravo e sensí-
é Deus, convém analisar a nomeação das
vel (tal a filha se retrata). Acresce ainda o
pessoas/personagens, na esteira do que an-
curioso registro do nome materno, Santa,
tes mencionei acerca de Bourdieu. Internas,
em verdade apelido de Affonsina Lopes
guardas e médicos, a quase totalidade do
Cançado. Todos esses aspectos insinuam
hospício é nomeada, às vezes com o requinte
que certas pessoas – como os pais – desem-
do sobrenome. Especificam-se, fora dele, co-
penham, na escrita, papéis arquetípicos, en-
legas do Jornal do Brasil e do convívio literário,
trando no diário menos como entes referen-
repertoriando o cenário das letras cariocas em
ciais do que como personagens simbólicos
1950-60. Dentre os familiares, Maura designa
na aventura existencial da protagonista, ao
algumas irmãs (especialmente, Judite e Selva),
mesmo passo em que se desloca a infância
o padrinho Antônio e o filho Cesarion. Obser-
para domínio quase mítico: “Naquele tem-
vemos como descreve “Mamãe”:
po meu mundo me parecia indestrutível.”
Seu nome é Santa. É modesta, generosa
(2015: 10). Nesse aspecto, vale destacar a
e quieta. Talvez a mais modesta pessoa que
conheço. Jamais em minha vida ouvi mamãe relevância da paciente Auda. No Hospício,
julgar alguém. É Álvares da Silva, família aris- Maura escreve: “Dona Auda me parece um
tocrata, de sangue e espírito (ainda se pode símbolo – sempre existido.” (2015: 26). A
falar sem constrangimento em aristocracia?). senhora inspiraria famoso conto de O so-
Descende de barões e coisas engraçadas. fredor do ver: “Introdução a Alda”. A troca
Possuo pouco conhecimento de nossa árvo- da letra “u” pela “l” preserva o fonema (ao
re genealógica. Sei que sou descendente de
menos na maioria do português falado no
Joaquina de Pompéu, mulher extraordinária
Brasil), mas opera ligeira alteração gráfica, o
– que durante o Império manteve o poder po-
lítico em Minas, entretendo com Dom Pedro que, estruturalmente, sublinha tanto as dis-
II relações políticas e amistosas. Conta-se que crepâncias quanto os ecos entre confissão e
mandou-lhe uma vez, de presente, um ca- criação. Ou seja, Auda e Alda são e não são
cho de bananas feitas de ouro. De Joaquina o mesmo ente.
124   • Gilberto Araújo

Tudo coopera para a imagem que Mau- em briga pelo repasto. Animaliza-as, o que
ra cria para si: a hipertrofia paterna antecipa é intensificado pela localização da sala de
o perpétuo desejo de proteção, bem como refeições, situada abaixo do andar de Mau-
a postura altiva, enquanto o vazio materno ra, espécie de Hades do hospício. Para as
delineia a inadequação ao estereótipo femi- pacientes cultas ou sensíveis, a narradora
nino de moça religiosa, serena e maternal, sumariza-lhes a vida para depois, qual te-
sintetizada na alcunha “Santa”. Páginas rapeuta, analisando-lhes a conduta. Sobre
antes, lembremos, ela declarou preferir o a doce dona Marina, com quem divide o
chapéu vermelho ao branco... A ênfase na quarto, declara: “Me parece calma, conver-
estirpe gloriosa, remontando a gregos e sa com lucidez, só se deixa trair pelos papéis
belgas, forja o perfil nobre de Lopes Cança- que carrega na cabeça, presos por grampos
do, cuja irreverência se espelha em Joaqui- e com anotações, as mais diversas, algumas
na de Pompéu. escritas em alemão, francês ou inglês, além
No âmbito profissional, impera referen- das muito bizarras em português mesmo.”
cialidade mais objetiva, o que tanto refor- (2015: 51). Mesmo o comportamento atípi-
ça a imagem de autora bem relacionada co da senhora não incita a impaciência ou o
quanto empresta tonalidade mais ramerrã à deboche de Maura, solidariedade que atin-
redação de jornal, reduto da escrita menos ge ápice com dona Georgiana:
visceral do que a do diário, justificando a Italiana, cantora lírica, eu a achava lindís-
sima, apesar de não ser jovem. Possuía olhos
presença corrosiva de humor e (des)amor.
azuis brilhantes, todo o rosto bonito e expres-
Sobre Gullar, por exemplo, afirma: “acho-o
sivo, aquele rosto surpreendente de louca.
[Gullar] frio, esquizoide, distante. Creio não Estava sempre em grandes crises de agitação,
gostar dele. Mas gosto.” (2015: 59). Carlos andando desvairada pelo pátio, incomunicá-
Heitor Cony, Fernando Fortes, Maria Alice vel, os pés descalços, geralmente suja de lama
Barroso, Reynaldo Jardim são mencionados – seminua. Eu não frequentava obrigatoria-
com bastante frequência, às vezes como mente o pátio. À tarde, quando ia lá, pedia-
piedosos amigos que a socorrem em mo- -lhe para cantar a ária da Bohème, “Valsa
de Musetta”. Dona Georgiana, recortada no
mentos mais graves, outras como súditos
meio do pátio, cantava – e era de doer o co-
ingratos da rainha do Engenho de Dentro.
ração. As dementes, descalças e rasgadas, pa-
Dentro do hospício, o grupo mais cons- ravam em surpresa, rindo bonito em silêncio,
tantemente nomeado é o das pacientes, os rostos transformados. Outras, sentadas no
como se Maura lhes resgatasse a huma- chão úmido, avançavam as faces inundadas
nidade perdida no sanatório aviltante, in- de presença – elas que eram tão distantes. Os
clusive daquelas a quem não era afeita (e rostos fulgiam por instantes, irisados e indes-
não foram poucas). Entretanto, a mineira trutíveis. Me deixava imóvel, as lágrimas ce-
gando-me. Dona Georgiana cantava: cheia de
também hierarquiza as loucas, e nessa ta-
graça, os olhos azuis sorrindo, aquele passado
xonomia manicomial, revela muito da más-
tão presente, ela que fora, ela que era, se ele-
cara que deseja exibir. Seu discurso torna-se vando na limpidez das notas, minhas lágrimas
ofensivo, quase abjeto, quando alude, por descendo caladas, o pátio das mulheres exis-
exemplo, às doentes no refeitório: sujas, tindo em dor e beleza. A beleza terrífica que
malcheirosas, comida escorrendo da boca, Puccini não alcançou: uma mulher descalça,
O rom a nc e e m M au r a L o p es C a n ç a d o   •   125

suja, gasta, louca, e as notas saindo-lhe em de 1965 Maura apôs o subtítulo “diário I”.
tragicidade difícil e bela demais – para existir No “Perfil biográfico” elaborado para edi-
fora de um hospício. (61-2) tora Autêntica, Maurício Meireles (2015-6)
Apesar de bela e estrangeira, Georgiana informa que, em 1968, Maura anunciava o
é inicialmente diluída na lama das loucas no segundo tomo do Hospício, no qual “da-
pátio, do qual é “recortada” após entoar tre- ria nomes aos bois” (Meireles, 2015: 226),
cho da ópera de Puccini, pois a beleza do motivo por que José Alvaro não o teria sido
canto a sublimiza e atrai as outras internas. publicado. O editor elogiaria o material na
A peça selecionada – La bohème – abriga Tribuna da Imprensa, mas conta-se que ele
enredo romântico centrado na florista Mimi, teria perdido os originais em um táxi. Já em
morta pela tuberculose e assim impedida de 1977, quando entrevistada por Margarida
gozar o amor do poeta Rodolfo. O desfecho Autran, Maura declarou que o texto teria
trágico condiria com o ambiente hostil da desaparecido na Penitenciária Lemos Brito.
casa de saúde; entretanto, a ária cantada por Segundo Meireles, os possíveis leitores da
dona Georgiana, “Valsa de Musetta”, refe- obra são reticentes sobre a existência dela.
re-se à jovem bela, saudável e namoradeira, Ficção ou verdade, o segundo tomo poderia
quase oposta à frágil e tísica Mimi. Na valsa, ser mesmo mais agressivo do que o primei-
a imodesta Musetta deseja provocar o ama- ro, no tocante à delação nomeada, mas, in-
do Marcello e exibe a uma salivante plateia sisto, o procedimento já ocorria no livro de
masculina quanto sua beleza é, da cabeça 1965, e a opção por designar explicitamen-
aos pés, admirada quando desfila pelas ruas te ou não as pessoas atende a quesito mais
de Paris. Se a vivacidade de Musetta é anta- textual do que denunciatório. Retornemos
gônica à decrepitude de Georgiana, o canto aos dois médicos antes mencionados.
vai, pouco a pouco, exumando da interna a A opção pela letra única A. e J. não pa-
beleza remotamente adormecida – “ela que rece mesmo ter motivação prática, antes
fora, ela que era” –, de modo a contagiar as estilística. A. e J. encarnam, respectivamen-
outras pacientes, magnetizadas pela cantora te, o máximo de amor (por isso a inicial?)
como os homens por Musetta, no original e de ódio sentidos por Lopes Cançado no
de Puccini. Banhada de sublime e trágico, a hospício. O segundo encara o interno como
cena soa grandiosa demais “para existir fora inimigo a ser punido com eletrochoques e
de um hospício” ou de uma ópera. quartos-fortes, tornando-se a letra-síntese
A maioria dos guardas e médicos é cita- dos aspectos negativos do hospital, panóp-
da nominalmente. Excetuam-se os doutores tico, juiz. Na direção inversa, há o afeto
A. e J.. Pode-se alegar que Maura, temendo crescente entre a paciente e dr. A.: inicial-
confisco do diário, optasse pela linguagem mente, ela julga-o incapaz de alcançar seu
cifrada. Contudo, dr. Paim, diretor do hospi- nível de inteligência, rejeição a que se acres-
tal, é abertamente ironizado, sobrando far- centa certo racismo ao médico negro. Che-
pas inclusive para sua filha, a escritora Alina ga a ironizar sua capacidade terapêutica:
Paim. Nesse sentido, é ainda mais curioso o Qualquer reação, se estamos diante de um
mistério em torno do possível segundo vo- analista (ou com pretensões a), é sintomáti-
lume de Hospício é Deus, já que à brochura ca, reveladora de conflitos íntimos, ponto de
126   • Gilberto Araújo

partida para as mais variadas interpretações. patriarcal do início do século XX, a moça teria
Em se tratando de simbologia, somos traídos atingido o auge do amor, mas, casada com
a cada instante (...). Em relação ao sexo a coisa o pai do filho, apaixona-se pelo sogro, logo
é um desastre: lápis, caneta, dedo, nariz são
se separando do marido. Depois, dinheiro e
símbolos fálicos. É irritante: tenho o inocente
amantes conjugam-se em fase boêmia até a
hábito de estar sempre com um dedo ou lápis
na boca. Não compreendo como um simples primeira internação em hospital psiquiátrico.
lápis -------. Mas o tal do analista compreende. Sucedem-se, portanto, diferentes faces de
E julga flagrar-nos quando fazemos observa- amor incompleto antes do surgimento de
ções puras e autênticas. Ah, ele sabe que não A., que, sem usurpar nem desmerecer o fí-
são autênticas. O tal de analista sabe. Uhhhh- sico de Maura, despertará nela compreensão
hhhhhh!” (2015: 37-8).3 mais abrangente do sentimento, para além
(Maura ironiza o analista de pacientes da carne. Assim, Hospício é Deus é uma nar-
e, por extensão, o de obras literárias como rativa de descoberta do amor (também por
Hospício é Deus: ao condenar a semiologia isso chamei o estudo de “romance”): não
cifrada em falas e gestos, paralisa, em efeito por acaso, finaliza, melancolicamente, com
colateral, a perquirição de sutilezas estilísti- as férias do médico, o que, causando grande
cas, justo o que aqui intento realizar...). sofrimento em Maura, lhe deixa o legado da
Aos poucos, todavia, dr. A amacia a in- epifania. Não há enlace concreto entre eles,
terlocutora, oferece-lhe respeito, ternura e pois A. não é amante, mas agente revelador
diálogo, horizontalizando a relação que des- de potência ainda desconhecida no interior
perta o amor de Maura por A., a quem, antes de Maura ou, se quisermos designativo mais
da declaração explícita, ela esbanja seus atri- frio, seu terapeuta... Não parece gratuito o
butos físicos. A insinuação erótica ao médico presente que ela oferece ao amado: o ro-
constitui etapa importante na transformação mance A peste, de Albert Camus, que tam-
do sentimento amoroso em Hospício é Deus. bém encena a solidão dos doentes de uma
Na regressão estampada nas páginas iniciais cidade infestada pela peste bubônica, em-
do diário, Maura conta a iniciação sexual aos penhados em esforço coletivo de salvação
5 anos, observando animais e jovens no inte- (simetricamente, as doentes do Engenho de
rior de Minas. De observadora passa a vítima, Dentro trabalham juntas no centro terapêuti-
quando, mais tarde, é estuprada por funcio- co concebido por Nise da Silveira).
nários do pai. A incursão deliberada no sexo Aliás, as referências literárias e artísticas
ocorre com amigas da escola até, aos 14 anos, de Hospício é Deus, presentes em epígrafes,
engravidar de um companheiro do aeroclu- alusões e citações, destacam seu componen-
be, com quem se casa. O erotismo desperta te ficcional, confirmado pela sequenciação
bruto e doloroso (animais e abuso), seguido dos fatos narrados. O texto inclui diversos
da experimentação provisória da homosse- flashbacks, ativados pelas semelhanças com
xualidade até a vivência voluntária e social- o presente da enunciação. Examinemos al-
mente aceita do matrimônio. No horizonte guns exemplos. Em certo momento (2015:
132), Maura reflete sobre a publicação do
3 Em oposição, ela mesma dirá: “como se pode intelec-
tualizar a afetividade? É o que tento fazer” (2015: 74),
diário. Após desbancar a veracidade impu-
assinalando outra ambiguidade de Hospício é Deus. tada ao gênero, presenteia a filha de uma
O rom a nc e e m M au r a L o p es C a n ç a d o   •   127

interna com O diário de Anne Frank, atestan- Bem à moda de Shakespeare, Maura
do que, como o europeu, Hospício é Deus é interpreta uma peça dentro da outra e, me-
também um conjunto de palavras, um objeto lhor, altera o desfecho original.
escrito. Depois, ela dirá que Anne Frank não Outros aspectos tornam a autora perso-
ficou louca porque amava, intensificando co- nagem do próprio diário: ao roubar um livro
nexões entre a alemã e a mineira, também de dr. A. sobre a loucura ou ao procurar seu
apaixonada. Noutra ocasião, ao confessar o nome nos registros de ocorrência do hospí-
fascínio que sua inteligência causava sobre cio, deseja também se ler no discurso alheio.
as internas, Lopes Cançado tem em mãos Ver-se como outra acusa a forte inclinação
Retrato do artista quando jovem, de James teatral de Hospício, a qual, sim, pode se
Joyce, do qual transcreve passagem elo- vincular ao quadro clínico da paciente, sem,
quente acerca do gênio artístico (que, claro, todavia, diminuir a rentabilidade estética do
borbulha nela...): “Além do indômito desejo dispositivo: Maura finge amnésia, ataques,
dele de realizar as enormidades que o ten- suicídio, grita como Tarzan, ensaia peças de
tavam, nada mais era sagrado.” (2015: 53). teatro, sempre à busca de efeito cênico.
Sem falar no Puccini de Georgiana, caso A datação do relato também projeta
mais interessante da imbricação entre vida e ramificações simbólicas: o primeiro bloco
arte ocorreu quando Maura era paciente no da obra, recompondo a infância, não vem
Alto da Boa Vista. Um hóspede da Casa de datada, como em domínio mítico, fora do
Saúde sugeriu a alguns pacientes montarem tempo e do diário. Embora a cronologia seja
Hamlet, de Shakespeare. Não é difícil saber rigorosa, abarcando a virada do ano para
quem ficou no papel de Ofélia, que, mal- 1960, chama à atenção o fato de Mau-
grado os louros do papel principal, sentia-se ra falar do Natal e do Carnaval, sem nada
entediada: comentar acerca do Ano Novo. A omissão
durante um ensaio do Hamlet, senti-me es-
sugere o tempo circular e claustrofóbico do
tranha, aborrecida e desconfiada, todos pa-
hospício, onde nada se transforma (leia-se
reciam conspirar contra mim. Apanhei o livro
da pela, encaminhei-me para uma cachoeira, “No quadrado de Joana”, de O sofredor do
perto do sanatório (...). Nesta cachoeira de- ver). Ironicamente, a festa natalina celebra
sempenhei um dos maiores papéis de minha a solidão e a infelicidade das pacientes. O
vida, ameaçando atirar-me de grande altura, Carnaval, todavia, resgata o ludismo dra-
ficando nua, achando-me muito bonita, e ter- mático, representado pelo cabelo de Dona
minei laçada e arrastada por uma corda de- Auda, tingido com água oxigenada.
pois de três horas de rogos para que eu saísse
Os espaços não escapam à arquitetura
de lá. Assim, Ofélia foi salva, nua, das águas
metafórica: a primeira internação de Maura
da cachoeira. (2015: 108-9)4
no Rio de Janeiro ocorre em luxuoso sanató-
4 Há outras ocorrências desse intercâmbio entre inter- rio particular do Alto da Boa Vista, migrando
textualidade e vida, teatro e realidade. Certo dia, Maura
abandona Proust (porque estava calor...) para ler A cida-
de sitiada, de Clarice Lispector, justo quando é informa- artistas ali, em papéis diferentes. À Rainha cabia a parte
da por Heitor Saldanha de que a escritora lida também bufa. A nós, papéis de bandidas.” (2015: 120). Ainda
esteve internada em sanatórios de doenças mentais, outra: Maura rouba um livro de dona Dalmatie e o lança
verdadeiras cidades sitiadas (2015: 117). Mais uma: na à moradora próxima do hospício. A presença ostensiva
ocasião da fuga da interna Desdêmona (2015: 119) do livro em Hospício é Deus, como objeto ou índice de
auxiliada pela guarda Mercedes Rainha: “Éramos todas intertextualidade, merece estudo detalhado.
128   • Gilberto Araújo

depois para o precário hospício do Engenho texto dela distante no tempo e no espaço;
de Dentro. Do pomposo estabelecimento ini- refiro-me à peça do livro O poeta de Pondi-
cial o segundo guarda apenas certa glória de chéry (1986), da escritora portuguesa Adília
“engenho”, cuja especificação “de Dentro” Lopes, com quem encerro:
assinala a crescente pesquisa interior da pa-
Deixei crescer muito a minha unha do
ciente. Do alto ao baixo, do privado ao pú- indicador direito
blico, do luxo ao lixo, de fora para dentro, os para poder escrever os meus poemas nas
dois espaços pontuam a experiência radical paredes da cela
esboçada no diário. porque no asilo onde me fecharam
Se é válida esta interpretação, resta sa- não me dão tinta nem papel para escrever
ber por que a autora não optou pelo gênero escrevo durante a noite
porque durante o dia os asilados
romanesco. Responde ela mesma: “Incapa-
que estão na cela comigo
cidade quase total de escrever. Lapsos. Te-
estão sempre a espiar-me
rei resistência para escrever um romance? e quando os outros se põem a olhar para mim
Há longos vazios em minha mente que me deixo de saber como me chamo
tornam difícil formular uma história. Se me tenho saudades do meu quarto
fosse possível escrever mais rápido, e sem as no alto da torre de marfim
interrupções. Estou sempre cansada, dispos- que mandei construir em Pondichéry
ta a deixar tudo para começar depois. Quan- chamava o meu criado
com um sistema complicado de campainhas
do? Me pergunto.” (134). O diário constitui,
porque a torre tinha mil e sete degraus
portanto, o melhor caminho para “romance-
pensava que se Diderot fosse a Pondichéry
ar” a vida instável, já que é gênero intrinse- não podia deixar de me visitar
camente descompromissado com unidade, mas Diderot foi a Pondichéry
clímax e desfecho, podendo sempre parar e não me visitou
ou recomeçar. Daí talvez a perspectiva de agora quando batem à porta da cela
continuidade assinalada pelo subtítulo de penso primeiro que é Diderot
Hospício é Deus: “Diário I”. que vem me visitar
mas lembro-me de que Diderot morreu
A menina que não viu a irmã chegar, a
e fico com medo de que seja alguém
jovem que não viveu o amor com o sogro e
para me cortar as unhas
que não fez carreira na aviação, a mãe que (Lopes, 2002: 54-5)
não esteve com o filho, a paciente que não
seduziu o médico amado, a escritora que pa- Referências
rou de escrever, o segundo diário que não BOURDIEU, Pierre. “A ilusão biográfica”. In: FERREIRA, Ma-
rieta de Moraes; AMADO, Janaína. Usos e abusos da
veio, a escrita suspensa. No final de Hospício história oral. 6.ª ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.
CANÇADO, Maura Lopes. Hospício é deus: diário I. 5.ª ed.
é Deus, a mineira retorna ao hospital e toma Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.
conhecimento de que seu antigo quarto es- LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rosseau a
internet. Tradução DE Jovita Maria Gerheim Noronha,
tava ocupado e que seus pertences foram Maria Inês Coimbra Guedes. 2.ª ed. Belo Horizonte:
amassados, inclusive o diário, texto massa- Editora da UFMG, 2014.
LOPES, Adília. Antologia. Rio de Janeiro: 7Letras; São Paulo:
crado pela vida. A biografia e obra de Mau- Cosac&Naify, 2002.
MEIRELES, Maurício. “Perfil biográfico”. In: CANÇADO,
ra, sob a constante iminência do perigo e do
Maura Lopes. Hospício é deus: diário I. 5.ª ed. Belo
aniquilamento, ressoam com perfeição em Horizonte: Autêntica Editora, 2015, pp. 203-27.
POES I A

Dante Milano

D
ante Milano nasceu no Rio de Janei- Três Cantos do Inferno, de Dante Alighieri,
ro, filho do maestro Nicolino Mila- e em 1988, Poemas Traduzidos de Baude-
no e de Corina Milano. Trabalhou laire e Mallarmé. No mesmo ano recebeu o
como conferente de textos na Gazeta de Prêmio Machado de Assis, concedido pela
Notícias (Rio de Janeiro) a partir de 1913. Academia Brasileira de Letras.
Foi também funcionário do Juizado de Me- É um dos poetas representativos da ter-
nores, no Ministério da Justiça. ceira geração do Modernismo. Para o crítico
Em 1935 organizou a Antologia dos David Arrigucci Jr., Milano, “como o ami-
Poetas Modernos, primeira antologia de go Bandeira, refletiu muito sobre a morte,
poetas dessa fase. Seu primeiro livro, Poe- casando o pensamento à forma enxuta de
sias, foi publicado em 1948, e recebeu o seus versos – lírica seca e meditativa, avessa
Prêmio Felipe d’Oliveira de melhor livro de ao fácil artifício, onde o ritmo interior perse-
poesia do ano. Nos anos seguintes traba- gue em poemas curtos, com justeza e sem
lhou como tradutor, lançando, em 1953, alarde, o sentido”.
130  •  D ante Milano

A cidade
Ao ver os altos castelos
Do Alhambra, dos Alijares,
Lavrados à maravilha,
El-rei Don Juan dizia:
“Se tu quisesses, Granada,
Contigo me casaria
E te daria como arras
Córdova e Sevilha!”
Dante Milano   •  131

Composição
Duas mulheres juntas
Formam desenhos dúbios.

Se numa só há tantas,
As duas serão quantas?

Uma na outra transformo


E, misturando as formas,

No mesmo luar as banho,


Metamorfoses sonho.

Todas parecem uma


A quem a todas ama.
132  •  D ante Milano

Paisagem
Talvez um fauno de expressão selvagem
Atormentado de uma dor lasciva
Por um aroma que passou na aragem,
Uma ninfa cor de água, fugitiva.
Mais do que na memória evocativa,
Esses seres existem na paisagem.
Algum fauno de outrora ainda se esgueira
Entre sombras e troncos, à procura
De uma nudez, e olha, tateia, cheira
Um vestígio de carne, sonho e alma...
Que desejos cruéis, quanta tortura
Nesta paisagem luminosa e calma.

“Não sou solteira nem viúva,


Sou casada, rei Don Juan,
Com Abenámar, o Mouro,
Senhor que muito me quer.”

Maior felicidade
Que amar uma mulher,
Amor de longo olhar
E presente saudade,
Amor muito maior
É amar uma cidade!
Dante Milano   •  133

Reconciliação
Que o rosto da mulher seja suave
Como o seu ventre
E eu encoste meu rosto
Em seu rosto tão suave quanto o ventre,
E que, nesse momento,
Ela entrefeche os olhos,
Sente-se em meus joelhos,
Finja um pouco de sono, encurve o dorso,
Com os cabelos encubra nossos rostos
E se enrosque com força em meu pescoço.
134  •  D ante Milano

Divertimento
Acariciar a água de um rio
E sentir-lhe o estremecimento
Da pele, o fundo calafrio.
Eu distraído, mas atento,
Pensando... em quê? Sério, sorrio...
Oh secreto divertimento.

A mão desenhando um afago,


Traçando arabescos que invento,
Carícias no ventre do lago,
Círculos... círculos... em lento
Gesto, na água onde escrevo e apago...
Oh absorto divertimento.

Seus cabelos com seus segredos


Em minhas mãos; e os acalento,
Alisando os crespos folhedos,
O que torna o olhar sonolento.
Seus cabelos entre meus dedos...
Oh sombrio divertimento.
Dante Milano   •  135

À amiga
Amiga sempre respeitada,
Amizade nunca manchada

Por algum intento banal,


Amor alvar, paixão sensual,

Nós dois vigiando, fiéis amigos,


As palavras e seus perigos,

Os gestos e seus entusiasmos,


As emoções e seus espasmos,

Pondo bem alto a nossa estima


E a gentileza que a sublima.

Quando alguém me chamar, dizendo:


“A tua amiga está morrendo!”,

Eu irei postar-me a teu lado


E, ao ver teu rosto inanimado,

No instante em que nada direi,


Eu, que não rezo, hei de rezar,

Eu, que não choro, vou chorar,


Eu, que não amo, te amarei!
136  •  D ante Milano

Furtivo
Passeando num jardim inexistente,
Encontrarás uma mulher ausente...

Segue-a. Fala-lhe. Espera que ela te olhe,


Beija-lhe a mão antes que se desfolhe,

Depois, no ouvido, dize-lhe o que sentes,


Expressa-lhe, em palavras balbuciantes,

Com voz arfante e comoção sincera,


A paixão que te faz tremer os dentes...
Dante Milano   •  137

A bailarina e o cantor
Um tremor, um tremor
Percorre a sala... uma algazarra
Ou música de guitarra
E a bailarina desgrenhada,
As coxas abertas
Mostrando a folha de parra,
O ventre vertendo o fel
Do desejo, o suado mel
Do amor banal e cruel...

Cessa, música estridente!


Calma, coração! Descansa.
Escuta agora a voz gemente
Do enternecido cantor.
Cada nota é um pingo de dor.
Chora, violão sonhador,
O falso amor
Do trovador.
138  •  D ante Milano

Poema do falso amor


O falso amor imita o verdadeiro
Com tanta perfeição que a diferença
Existente entre o falso e o verdadeiro

É nula. O falso amor é verdadeiro


E o verdadeiro, falso. A diferença
Onde está? Qual dos dois é o verdadeiro?

Se o verdadeiro amor pode ser falso,


E o falso, ser o verdadeiro amor,
Isto faz crer que todo amor é falso

Ou crer que é verdadeiro todo amor.


Ó verdadeiro Amor, pensam que és falso!
Pensam que és verdadeiro, ó falso Amor!
Dante Milano   •  139

Reza
Há em toda tristeza a expressão de uma reza.
Por leve que pareça, a nossa alma nos pesa.

Àquela que o universo em si resume,


Àquele corpo humano
Que tem algo de sobre-humano,

Alguém que apenas deixa que eu a veja,


A que apenas sorri, a que não beija,

É quem me pousa na alma e levemente pesa,


É quem me causa esta tristeza que é uma reza.
140  •  D ante Milano

Antiga jovem
Para sempre esquecida, antiga jovem.
Sobre a sua lembrança caem folhas
Secas no chão e há muito tempo chove...
Já não consigo mais rever o rosto
Sem traços nem o olhar da minha amiga
Há tanto tempo desaparecida,
Aquela que, ao morrer, tornou-se antiga.
Dante Milano   •  141

Pietà
Essa Mulher causa piedade
Com o filho morto no regaço
Como se ainda o embalasse.
Não ergue os olhos para o céu
À espera de algum milagre,
Mas baixa as pálpebras pesadas
Sobre o adorado cadáver.
Ressuscitá-lo ela não pode,
Ressuscitá-lo ela não sabe.
Curva-se toda sobre o filho
Para no seio guardá-lo,
Apertando-o contra o ventre
Com dor maior que a do parto.
Mãe, de Dor te vejo grávida,
Oh, mãe do filho morto!
142  •  D ante Milano

Cenário
Tudo é só, a montanha é só, o mar é só,
A lua ainda é mais só.
Se encontrares alguém,
Ele está só também.

Que fazes a estas horas nesta rua?


Que solidão é a tua
Que te faz procurar
O cenário maior,
O de uma solidão maior que a tua?!
Dante Milano   •  143

Duplo olhar
A visão interior pode ir mais longe
Que a exterior. Isto disse São Tomás.
E há a visão interior de olhos abertos,
A de quando desvio o olhar do livro
Para um lugar mais livre, mais distante,
E me parece uma visão divina
A paisagem que vejo todo dia.
144  •  D ante Milano

Rastro
Uma saudade sem memória
Do passado, sem nenhuma história,
Saudade, sim, mas
De tempo nenhum, de nenhum
Lugar. Nem mesmo de mim.
Não da infância, da mocidade,
De mulher nenhuma... Saudade
Que lembra um antigo fantasma
Com seu rosto irreconhecível,
Apenas um rastro. Saudade
Que vem de longe e só se sente
Olhando, olhando atentamente,
Então aumenta, então aumenta
Mais desértica, mais poeirenta...
Dante Milano   •  145

Tocata e fuga
É tudo aquilo que só existe no ar,
O que de nós, além de nós, se expande.
É a vertigem para o alto, igual à grande
Tocata e fuga em ré menor de Bach.
É o delírio de um bêbedo num bar...
É um não sair do chão por mais que se ande...

Tudo que em mim, somente em mim existe


Me transporta, me absorve, me suspende,
Me faz sorrir, embora eu esteja triste,
Triste naquele universal sentido
Que a música interpreta e se compreende,
Sem que em palavras seja traduzido.
146  •  D ante Milano

Lição de música
A tela representa uma figura
Absorta, ao piano. Luz azul sombria.
A janela clareia a sala escura.
De onde vêm essa música e esse dia?
E quem na tela reconheceria
Aquela face atenta, abstrata e pura?

O que há de oculto em nós e que é só nosso,


Embora atual, parece o sonho antigo
De uma pedra no fundo de remanso.
Sobre mim passa esta água sem descanso.
Mal consigo espirar isto que digo,
Estou submerso e dizer mais não posso.
C ONTO

Gente boa

Renard Perez
Escritor

R
enard Quintas Perez (Macaíba, Rio (1911-1982), integra o grupo Café da Ma-
Grande do Norte, 1928). Contista, nhã, do qual participam também os escri-
romancista, ensaísta e jornalista. Fi- tores Fausto Cunha (1923-2004), Samuel
lho do comerciante espanhol Jaime Quin- Rawet (1929-1984), entre outros. Colabora
tas Perez e de Joana Geralda Perez, ainda em vários periódicos, entre eles o Correio da
criança, transfere-se com a família para For- Manhã, Última Hora, e na Revista Branca, do
taleza, onde conclui os estudos primários, escritor e político Saldanha Coelho (1926),
no Colégio dos Irmãos Maristas. Muda-se cuja editora publica, em 1952, o primeiro
para o Rio de Janeiro em 1943 e cursa o livro de Perez, O Beco. Sua coletânea Escri-
científico no Colégio Andrews. Começa tores Brasileiros Contemporâneos é lançada
a trabalhar como técnico na Secretaria de em 1960 – com várias edições posteriores.
Cultura e Educação do Estado do Rio de Ja- Trabalha durante muitos anos como redator
neiro. Forma-se em advocacia na Faculdade literário na Rádio Roquette Pinto, emissora
de Direito do Rio de Janeiro, em 1951. Com oficial do estado do Rio de Janeiro. É mem-
a coordenação de Dinah Silveira de Queiroz bro da União Brasileira de Escritores – UBE.
148  •  Renard Perez

A
inda tem café aí, companheiro? – Você caiu do céu, meu amigo. – E de-
Confirmou – opa!, e adiantou- positou o copinho na ponta do degrau ao
-se sorridente. seu lado.
Até engraçado. Depois de tudo, ele é – Eu vou até querer outro – disse o lou-
que tinha sido visto. Também a escadaria- rinho.
zinha ficava meio escondida pela saliência Acabaram os quatro querendo. Serviu
daquela parte do prédio e o pedaço do jar- nova rodada. Não escondia a própria alegria.
dim – ali com vegetação abundante. E ain- O pessoal estava mesmo a fim. E pensou, com
da havia a sombra que o pinheirinho fazia. o sorriso, que eles é que tinham caído do céu.
– Vão ser quantos? Oito cafés em menos de cinco minutos. E
Eram quatro, na pequena escadaria. Qua- tinha até perdido a esperança. Duas da ma-
tro rapazes. Não tinha pinta de bacana, mas nhã, e a cafeteira ainda pelo ladrão. O único
também não pareciam nenhum pé-rapado. café que saíra fora bebido por ele próprio,
Aliás, com essas roupas de hoje, só blue-jeans, sentado no banco de praia. E voltar com
camisas desenhadas, jaquetas, qualquer um aquele bagulho pesando igual? Sem levar ne-
pode ser qualquer um. Eram brancos. Podiam nhuma mixaria de comissão? Devia ser pelo
ser estudantes. Podiam também ser garçons. frio, que espantava a turma da rua. E é logo
Até operários de obra, já acostumados no Rio. no frio que mais vontade dá de um café – cis-
Também, não é preciso ser nenhum bacana mava, enquanto batia perna pelas calçadas
para ter o do café. Se fossem todos querer, de pedrinhas. E refletia que alguma coisa es-
bem que iam ajudar a quebrar o galho. tava errada naquele negócio. De repente, na
– Isso está bom mesmo? – o que chama- escadariazinha do teatro, a rapaziada.
ra perguntou. Rapaziada era modo de dizer. O lourinho
– Está joia. podia ter seus dezenove anos, mas o de bi-
– Bem, em vou querer. E vocês, turma? gode já tinha quase os seus trinta. Os outros
Vamos sair num café? – o cara perguntava dois, mais ou menos na dele. Mas tudo gen-
mas parecia até convidando. te boa, divertida, igual. Deviam estar vindo
O grupo concordou. O porta-voz (era o de algum bar ou de uma festinha ali perto.
de bigode) levantou o queixo: O destino é gozado mesmo. Correra a
– Bota quatro aí. Nossa Senhora do Posto Dois ao Posto Cinco
– Falou – disse, animado. umas quatro vezes, virara para a praia pelo
Abriu a torneirinha, o café foi escorren- menos umas seis. E não tinha encontrado o
do nos copinhos. Saía até fumaça. Foi en- raio de um freguês. Nem porteiro de edifício.
tregando um a um. Nem mesmo um PM desgarrado. Um par de
Os quatro de copinho na mão. Depois garis. É possível que continuasse a noite toda
do primeiro gole, um disse: na mesma batida. Com aquela lataria no estô-
– Pola, isto está mesmo legal. mago. E o frio nos ouvidos. De repente, pare-
Outro: cia uma coisa puxando, dobra numa transver-
– Do cacete! sal na direção da Barata Ribeiro. Chega à rua,
Sorri, satisfeito. Bebiam devagar. Sabo- logo na altura da praça. Atravessa o asfalto,
reando. Sentia o prazer nas fisionomias. O se intromete pelo escurinho, na cata de um
primeiro a terminar, o de gorrinho azul, ex- casal. De algum cara extraviado. Os bancos va-
clamou: zios, igual aos da Serzedelo. Nem vagabundo
Gente b oa   •  149

dormindo. Retoma a calçada, mais nenhuma Balançou a cabeça. Essa turma da noite.
esperança. E lá está o grupinho na escadaria, Era o frio, aquilo. O cafezinho esquentava.
no lado de lá do prédio branco. Escola ou tea- O difícil, mesmo, era descobrir o freguês, riu
tro. Parecia até posto ali para ele. por dentro.
Quatro cafezinhos, assim – quando não Abriu mais uma vez a torneirinha, foi
esperava mais nada. E quando achava que enchendo os dedais de plástico. Três roda-
aquilo era a salvação da lavoura, mais qua- das. Doze cafezinhos em menos de quinze
tro, para rebater. Já não era vexame voltar e minutos. E ainda fazia economia do copinho.
entregar a lataria. E pelo menos pegava uns A·irmã ia poder fazer uma feirinha boa, no
trocados. Sempre era alguma coisa. sábado.
Porque a barra estava mesmo braba. Apoiou-se na parede e ficou fumando,
Estava ruça. Não era só aquela noite não. esperando que o pessoal acabasse.
Cada dia que saía para o batente, aquela De vez em quando um carro chispava –
mesma pergunta. Ia fazer o do dia seguin- bem a uns cento e vinte – na pista escura.
te? Às vezes tinha sorte. Trinta cafés. Qua- O sinal, na esquina, mudava – verde, ver-
renta cafés. Outro dia, nem pra passagem. melho – pra coisa nenhuma. Um ônibus
E tudo pela hora da morte. O do ragu, o da passou semivazio – iluminado e ruidoso.
condução. E o seu sempre contado. Ainda Olhou o grande cartaz na parede ao lado.
bem que morava no quarto do cunhado, Maria Minhoca, de Maria Clara Machado,
ajudava com uns trocados para a feira. E às conseguiu ler. Gozado, nunca tinha entra-
vezes nem tinha para isso. Emprego de cão. do num teatro. Devia ser um negócio joia.
Mas fora o único que conseguira, depois Sentia frio, agora que retirara a máquina de
que foi dispensado da obra. cima do peito. Pegou-a de novo, colocou
A turma bebia sem pressa. Aproveitou as alças, cobriu-se. Seriam quase umas duas
para retirar a máquina, colocando-a na e meia da matina. Fez as contas dos cafés
parte vazia do último degrau. Então massa- bebidos, davam dezoito cruzeiros. Para fim
geou os ombros doídos. Depois a espinha, de noite, uma nota regular. Só esperava é
enquanto se curvava pra frente, compen- que não fossem bagunçar no momento da
sando o jeito de andar, com a máquina no conta.
peito. Retirou o maço do bolso, acendeu o O lourinho foi o primeiro a acabar. De-
penúltimo cigarro. pois o do gorro. O terceiro foi o de bigode
O lourinho bebia fazendo barulho. De – que fez o arremesso. Tinha calculado o
onda. O de gorro exclamou “seu porco”, rin- poste como alvo. O copinho bateu no cano
do. O de bigode jogava o copo longe, no meio de ferro com um pequeno estalo. No inter-
do asfalto. O magricela bebia bem devagar. valo, o magricela acabara também o seu.
– É, esse café está mesmo joia. Sabe, Aguardou um pouco. Ninguém falou
turma, eu acho até que vou beber mais um. nada. Então disse:
– Era o lourinho. – São dezoito cruzeiros, gente boa, esta-
– Taí, eu vou também – decidiu o do va meio chateado por tomar a iniciativa. Mas
gorro. procurou dar à voz a maior naturalidade.
– E eu – o de bigode. Ninguém pareceu ter escutado.
– Então bota logo outra rodada – era o – Como é, gente boa? – insistiu, um tan-
magricela. E aproximou o copo da torneirinha. to ressabiado.
150  •  Renard Perez

– Que que é? – disse o de bigode de brincando com ele. O melhor era não mos-
repente, voltando o rosto para ele. Voz de trar desconfiança, Bancar o desentendido.
surpresa, parecia baixado de outro mundo. Afinal, não era tanto dinheiro assim, para
– O café – explicou. Foram doze copi- quatro. Por que é que iam sacanear?
nhos. São dezoito cruzeiros. Serviu o café. Só que um pouco mais
O olhar do outro, a expressão de surpresa: vagaroso. E já não achava tanta graça nas
– E acabou, meu irmão? O café acabou? piadas do grupo.
Ficou sem saber o que responder. Um Foram depondo os copinhos no chão. Des-
dos rapazes riu. Então riu também. Mas sa vez, o de bigode não arremessou o seu. Co-
mudou um pouco o tom, quando falou. locou-o também no degrau, a seu lado. Como
Agora sem a antiga familiaridade: da outra vez, o vendedor ficou esperando que
– Eu pensei que os senhores já estavam alguém se pronunciasse. Ninguém falava.
servidos. – Como é, gente boa?
– Pois eu não estou – o de bigode disse, O grupo continuava em silêncio. Os vul-
sorrindo. – Vocês estão, pessoal? tos imóveis, fitando a distância. As fachadas
Os três apenas sorriram. Meio enviezan- dos edifícios do outro lado. A transversal
do a cabeça E ficaram olhando o vendedor. mais para a direita, em subida, calçada de
Ficou quieto, um esboço de sorriso. Co- paralelepípedos. As luzes dos sinais, verdes
çava a nuca, abaixo do bonezinho. na Barata, vermelhas na transversal do lado
– Não vai dizer que você está descon- de cá, coloriam seus vultos imóveis.
fiando da gente... – o de bigode, um ar ma- Começou a ficar inquieto. Tamborilou
licioso, o tom de indagação. na lataria com o nó dos dedos. Em ritmo,
– Que é isso! – disse, rápido. – Os se- chamando discretamente a atenção. O si-
nhores são gente fina. Não iam sacanear lêncio ainda se manteve um pouco.
um vendedor de café. – Como é, meus irmãos? – disse, devagar,
– Taí. Gostei. – O de bigode balançava a num tom que procurava disfarçar a impaciên-
cabeça a cada palavra. cia. – Tá na hora do crioulo ir se chegando.
– Isso é falar legal. – E apontando a lata Os quatro, fitando o vago. O sinal em
com o dedo: – Então vamos fazer um ne- frente passou a vermelho, coloriu-lhes as
gócio, companheiro. Bota outra rodada aí. feições. Um carro veio vindo, diminuiu ligei-
E olhou-o com um sorriso: ramente a velocidade diante da faixa, reto-
– A saideira. Não é, pessoal? – e voltou- mou a marcha, desabalado.
-se para o grupo. Sem olhá-lo direto, o de bigode indagou:
Sem mudar a vista, o lourinho respon- – Quanto é que é mesmo?
deu concordando. Os outros continuaram – Foram dezesseis copinhos – respon-
calados. Mas fizeram o assentimento com a deu, aliviado. – São vinte e quatro cruzei-
cabeça. Com a maior gravidade. ros. – E animado: – Para os senhores, isso é
Olhou para o cara de bigode. Olhou uma mixaria.
para o grupo. Estavam gozando ele.· Só po- – Vinte e quatro cruzeiros? Vê isso aí,
diam estar gozando. Ninguém toma qua- pessoal. – E o de bigode passou o olhar pelo
tro cafezinhos assim de enfiada, sem mais grupo.
nem menos. Mas o que é que podia fazer? O lourinho, que estava ao lado, deu pan-
Engrossar com a turma? Eram quatro, ali. cadinhas nos bolsos dianteiros do blue-jeans.
É possível até que estivessem apenas Depois apresentou as palmas estendidas.
Gente b oa   •  151

– Tá ruço. – Bota pra fora o que tiver.


Os outros praticamente repetiram o ges- – Só tenho o da condução, patrão. É como
to. Batiam nos bolsos das calças – da frente, eu lhe disse. Tenho só três cruzeiros. Só essa
de trás – levantavam os ombros. Ou balan- mixaria. É o dinheiro para ir pra Gramacho.
çavam a cabeça. Na negativa. Depois de entregar a máquina no depósito.
O de bigode: – Pois passe pra cá a mixaria.
– Vai desculpar, mano. Mas parece que Olhou a rua. Não vinha ninguém. Não vi-
estamos na pior. E balançou a cabeça, repe- nha nada. Uma infeliz de uma radiopatrulha
tidamente, devagar. Ou um miserável polícia. Também, de que
Sentiu um frio. Riu nervoso: adiantava polícia? Pensou em correr. Se abra-
– Vocês estão brincando com o crioulo. çar com a cafeteira e correr. Mas correr pra
A voz tentava disfarçar a preocupação que quê? Por causa de três cruzeiros? Ainda es-
estava sentindo. tava se arriscando a levar um tiro nas pernas.
– Brincando nada, meu chapa. Estamos – Passe o que tiver.
a zerão. Na pior, mesmo. E olhando-o: – Enfiou os dedos na algibeira, devagar.
Você ... Você é que deve estar com uma boa A cédula apareceu, dobradinha, cheinha.
nota. Não é, turma? Enrolava duas moedas. Entregou.
O grupo continuava em silêncio. Parecia – Agora se mande. Antes que a gente
ausente. estoure a merda dessa lata.
E até que podia passar essa nota pra cá, Ajustou a máquina no peito, foi se afas-
– era ainda o bigode. – Ajudar seus irmãos. tando apressado. Pegou a faixa da rua pa-
– Que é isso, gente boa? – disse, apa- ralela, foi seguindo.
rentando calma – Vamos acabar com essa Um vazio por dentro, uma coisa doendo.
brincadeira boba – e simulava o riso. – Só Roendo. Vontade não sabia exatamente de
tenho o dinheiro da condução. quê. Apertava com os punhos fechados a la-
– Pois então passe o dinheiro da con- taria brilhante. Ainda ouviu uma voz, atrás.
dução. Parece que do lourinho. Um comentário, que
Era o lourinho. Mas parecia a voz de ou- não chegou a entender. E risos. Depois, um
tra pessoa. Olhou na sua direção. barulhinho de coisa jogada. Um tinir de me-
– Passe a porra dessa féria pra cá. O ga- tais. E risos, novamente. Desconfiou de que
roto outra vez. era o seu dinheiro arremessado longe.
Foi aí que ele viu o revólver. Na mão do Foi andando. Não acreditava que aquilo
lourinho. Disfarçado por dentro da jaqueta tinha acontecido com ele. A rua compri-
semiaberta Apontado para ele. da. À direita, a visão do largo da Travessa
– Passe a féria pra cá. Inhangá. Na sua calçada, as portas arrea-
Sentiu o corpo gelado. Começou a ga- das das lojas comerciais. Noite mais filha da
guejar: mãe. Postes, árvores, pontos de ônibus a se
– Tem féria não, patrãozinho. como eu perderem de vista. As calçadas vazias. Os
lhe falei. Vocês foram os primeiros fregue- carros passando.
ses que eu peguei hoje. Tinha de rodar até encontrar fregueses e
O revólver continuava apontado dentro pagar todo aquele café. Pelo menos levan-
da jaqueta do lourinho: tar o dinheiro da condução pra Gramacho.
Petit Trianon – Doado pelo governo francês em 1923.
Sede da Academia Brasileira de Letras,
Av. Presidente Wilson, 203
Castelo – Rio de Janeiro – RJ
PATRONOS, FUNDADORES E MEMBROS EFETIVOS
DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS
(Fundada em 20 de julho de 1897)
As sessões preparatórias para a criação da Academia Brasileira de Letras realizaram-se na sala de redação da
Revista Brasileira, fase III (1895-1899), sob a direção de José Veríssimo. Na primeira sessão, em 15 de dezembro
de 1896, foi aclamado presidente Machado de Assis. Outras sessões realizaram-se na redação da Revista, na
Travessa do Ouvidor, n.o 31, Rio de Janeiro. A primeira sessão plenária da Instituição realizou-se numa sala do
Pedagogium, na Rua do Passeio, em 20 de julho de 1897.

C a d e i r a P at r o n o s Fundadores Membros Efetivos


01 Adelino Fontoura Luís Murat Ana Maria Machado
02 Álvares de Azevedo Coelho Neto Tarcísio Padilha
03 Artur de Oliveira Filinto de Almeida Joaquim Falcão
04 Basílio da Gama Aluísio Azevedo Carlos Nejar
05 Bernardo Guimarães Raimundo Correia José Murilo de Carvalho
06 Casimiro de Abreu Teixeira de Melo Cicero Sandroni
07 Castro Alves Valentim Magalhães Cacá Diegues
08 Cláudio Manuel da Costa Alberto de Oliveira Cleonice Serôa da Motta Berardinelli
09 Domingos Gonçalves de Magalhães Magalhães de Azeredo Alberto da Costa e Silva
10 Evaristo da Veiga Rui Barbosa Rosiska Darcy de Oliveira
11 Fagundes Varela Lúcio de Mendonça Helio Jaguaribe
12 França Júnior Urbano Duarte Alfredo Bosi
13 Francisco Otaviano Visconde de Taunay Sergio Paulo Rouanet
14 Franklin Távora Clóvis Beviláqua Celso Lafer
15 Gonçalves Dias Olavo Bilac Marco Lucchesi
16 Gregório de Matos Araripe Júnior Lygia Fagundes Telles
17 Hipólito da Costa Sílvio Romero Affonso Arinos de Mello Franco
18 João Francisco Lisboa José Veríssimo Arnaldo Niskier
19 Joaquim Caetano Alcindo Guanabara Antonio Carlos Secchin
20 Joaquim Manuel de Macedo Salvador de Mendonça Murilo Melo Filho
21 Joaquim Serra José do Patrocínio Paulo Coelho
22 José Bonifácio, o Moço Medeiros e Albuquerque João Almino
23 José de Alencar Machado de Assis Antônio Torres
24 Júlio Ribeiro Garcia Redondo Geraldo Carneiro
25 Junqueira Freire Barão de Loreto Alberto Venancio Filho
26 Laurindo Rabelo Guimarães Passos Marcos Vinicios Vilaça
27 Maciel Monteiro Joaquim Nabuco Antonio Cicero
28 Manuel Antônio de Almeida Inglês de Sousa Domício Proença Filho
29 Martins Pena Artur Azevedo Geraldo Holanda Cavalcanti
30 Pardal Mallet Pedro Rabelo Nélida Piñon
31 Pedro Luís Luís Guimarães Júnior Merval Pereira
32 Araújo Porto-Alegre Carlos de Laet Zuenir Ventura
33 Raul Pompeia Domício da Gama Evanildo Bechara
34 Sousa Caldas J.M. Pereira da Silva Evaldo Cabral de Mello
35 Tavares Bastos Rodrigo Octavio Candido Mendes de Almeida
36 Teófilo Dias Afonso Celso Fernando Henrique Cardoso
37 Tomás Antônio Gonzaga Silva Ramos Arno Wehling
38 Tobias Barreto Graça Aranha José Sarney
39 F.A. de Varnhagen Oliveira Lima Marco Maciel
40 Visconde do Rio Branco Eduardo Prado Edmar Lisboa Bacha
C o mp o s t o em Frutiger Light 9,5/13,5 pt; C i ta ç õ e s , 9 / 1 2 pt

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