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Brasileira fa s e i x
• J A N EI R O - FE V E R EI R O - M A R Ç O 2 0 1 9 •
a no i I • n . ° 9 8
A c a d e m i a B ra s i l e i ra R e v i s ta B ra s i l e i ra
d e L e t ra s 2 0 1 9
Diretoria Diretor
Presidente: Marco Lucchesi Cícero Sandroni
Secretário-Geral: Alberto da Costa e Silva
Conselho Editorial
Primeira-Secretária: Ana Maria Machado
Arnaldo Niskier
Segundo-Secretário: Merval Pereira
Merval Pereira
Tesoureiro: José Murilo de Carvalho
João Almino
Comissão de Publicações
Membros Efetivos Alfredo Bosi
Affonso Arinos de Mello Franco, Antonio Carlos Secchin
Alberto da Costa e Silva, Alberto Evaldo Cabral de Mello
Venancio Filho, Alfredo Bosi,
Produção Editorial
Ana Maria Machado, Antonio Carlos
Secchin, Antonio Cicero, Antônio Torres, Monique Cordeiro Figueiredo Mendes
Arnaldo Niskier, Arno Wehling, Cacá Revisão
Diegues, Candido Mendes de Almeida, Vania Maria da Cunha Martins Santos
Carlos Nejar, Celso Lafer, Cicero Sandroni, Projeto Gráfico
Cleonice Serôa da Motta Berardinelli, Victor Burton
Domício Proença Filho, Edmar Lisboa Bacha,
Editoração Eletrônica
Evaldo Cabral de Mello, Evanildo Cavalcante
Estúdio Castellani
Bechara, Fernando Henrique Cardoso,
Geraldo Carneiro, Geraldo Holanda Academia Brasileira de Letras
Cavalcanti, Helio Jaguaribe, João Almino, Av. Presidente Wilson, 203 – 4.o andar
Joaquim Falcão, José Murilo de Carvalho, Rio de Janeiro – RJ – CEP 20030-021
José Sarney, Lygia Fagundes Telles, Marco Telefones: Geral: (0xx21) 3974-2500
Lucchesi, Marco Maciel, Marcos Vinicios Setor de Publicações: (0xx21) 3974-2525
Vilaça, Merval Pereira, Murilo Melo Filho, Fax: (0xx21) 2220-6695
Nélida Piñon, Paulo Coelho, Rosiska Darcy E-mail: publicacoes@academia.org.br
de Oliveira, Sergio Paulo Rouanet, Tarcísio site: http://www.academia.org.br
Padilha, Zuenir Ventura. ISSN 0103707-2
Os artigos refletem exclusivamente a opinião dos autores, sendo eles também responsáveis
pelas exatidão das citações e referências bibliográficas de seus textos.
Transcrições feitas pela Secretaria Geral da ABL.
ENSAIO
Arno Wehling Ramón Menéndez Pidal 49
Antônio Torres Memória reverenciada – Afonso Arinos 55
Arnaldo Niskier O orgulho de ser professor 61
Ronaldo Cagiano Autor captura a realidade do migrante num país em transe 71
Felipe Pereira Rissato Euclides vive: Dedicatórias 75
Gilberto Araújo O romance em Maura Lopes Cançado 113
POESIA
Dante Milano 125
CONTO
Renard Perez Gente boa 143
Esta a glória que fica, eleva, honra e consola.
Machado de Assis
Apresentação
Cicero Sandroni
Ocupante da Cadeira 6 na Academia Brasileira de Letras
A
presentamos um número novo nes- Outros artigos como o de Arno Wehling,
se ano de 2019, bastante diversifica- Antônio Torres, Arnaldo Niskier, Ronaldo
do, iniciando-se com colaborações Cagiano, Felipe Pereira Rissato e Gilberto
expressivas de dois acadêmicos da Casa, Zue- Araújo enriquecem este número, e para
nir Ventura e Domício Proença Filho, além do eles estamos certos de que se voltarão às
professor Muniz Sodré. Os temas das pales- atenções dos leitores. E o conto do escritor
tras giraram em torno do “Ciclo cultura em Renard Perez, nome importante, mas pouco
processo”, apresentado na ABL, notáveis pelo lembrado, da Literatura Brasileira.
seu conteúdo e pelo despertar de interesse Faço minhas as palavras do nosso sau-
para os estudiosos da cultura moderna. doso e também editor da RB, João de Scan-
Destacamos uma homenagem dupla, ao timburgo, “Temos certeza de que estamos
Acadêmico Ivan Junqueira e ao poeta Dante cumprindo o nosso dever, ao publicar, tri-
Milano. Ivan nos apresenta com texto puro e mestralmente, com o refinado bom gosto
sincero sobre o amigo Dante, quando ressalta de que a Revista Brasileira é exemplo, uma
que ele era um poeta que preferia adotar as publicação do mais alto nível literário, digno
formas fixas, em especial o soneto, e recupe- das tradições da Academia. Estamos satis-
rar temas universais tais como o amor, a mor- feitos que assim venha ocorrendo, segundo
te e o sonho – o tripé temático de sua obra. testemunhos variadíssimos.”
C I C L O C U L T U R A E M PRO C ESSO
Cultura e adversidade
Zuenir Ventura
Ocupante da Cadeira 32 na Academia Brasileira de Letras
E
m dezembro de 1964, uma moça da voraz lá do sertão, o carcará, que não mor-
Zona Sul do Rio, um negro carioca e re de fome porque, com seu bico volteado
outro nordestino subiam ao tablado que nem gavião, “pega, mata e come”. A
do inacabado Teatro de Arena, em Copa- mensagem estava nas entrelinhas, nas me-
cabana, para um show surpreendente, a táforas e segundas intenções.
começar pelo título, Opinião, algo que já Opinião foi assim a primeira aula dada
então experimentava a intensa procura dos ao público sobre como reaprender a ler cer-
tempos de escassez. Para o público, tan- tas obras de arte – uma lição indispensável
to quanto para os intérpretes e os autores para os anos que se seguiram. O clima na
(Oduvaldo Vianna Filho, Armando Costa e plateia compacta, ensopada de suor, era de
Paulo Pontes), tratava-se de uma resposta, catarse e sublimação. Vivia-se a sensação de
com nove meses de atraso, ao golpe militar. uma vitória que tinha sido impossível lá fora.
A cantora Nara Leão, musa da Bos- No período pré-64, o cinema e a canção
sa Nova, o sambista Zé Kéti e o cantador ocupavam um plano destacado no movimen-
João do Vale, ambos desconhecidos, pro- to cultural. Em 1962, Cinco vezes favela,
punham-se aparentemente a apenas contar filme de episódios, apresentava os favelados
suas vidas. Duas músicas em especial em- como protagonistas de dramas amargos. Em
polgavam a plateia que superlotava o teatro 1963, Vidas Secas, de Nelson Pereira dos
todas as noites. Na primeira, que dava título Santos, baseado no romance de Graciliano
ao show, Opinião. Zé Kéti, a pretexto de Ramos, evidenciava a clara escolha dos cami-
exaltar sua fidelidade à favela, da qual não nhos sociais para o cinema. Ganga Zumba,
queria sair, cantava: “Podem me prender/ de Cacá Diegues, Garrincha, alegria do
Podem me bater. Que eu não mudo de opi- povo, de Joaquim Pedro de Andrade, Maio-
nião/Daqui do morro eu não saio não.” ria absoluta, de Leon Hirszman, e o filme-
Na segunda canção, pela voz de Nara e -marco Deus e o diabo na terra do sol, de
depois de Maria Bethânia, João do Vale nar- Glauber Rocha, confirmavam a presença não
rava a aventura de um pássaro malvado e de alguns novos cineastas, mas de toda uma
Conferência pronunciada na Academia Brasileira de Letras em 7 de junho de 2018.
10 • Zuenir Ventura
Muniz Sodré
Professor Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, escritor
M
uito tempo atrás eu registrava Cultura não é, portanto, o mesmo que
num escrito o comentário irôni- conhecimento. Imagine-se o conhecimen-
co de Nietzsche no sentido de to como um mar em que se deve navegar:
que as classes dirigentes adoram inventar a cultura é um mapa, uma carta de nave-
palavras, em que terminam acreditando. gação, com balizas e faróis. Antes mesmo
Na realidade, por trás de cada uma dessas que apareça o conhecimento, ela já se faz
invenções há uma ideia ou ideias que ser- presente como uma matriz de orientação
vem a funcionamentos estratégicos dentro para fazer diferenças e estabelecer critérios,
das relações sociais. A palavra cultura é um mas também como um mapa da memória
exemplo privilegiado. Desde o final do sé- do saber pertinente à reprodução da cons-
culo XVIII, essa palavra-ideia tem estado no ciência moderna. Essa matriz ou conjunto
de formas simbólicas publicamente dispo-
centro de projetos, obras, ciências, tal é o
níveis sempre pressupôs uma elite moral ou
poder de crença que nela se deposita.
ético-política, que efetivamente representa
De fato, a ideia de cultura como um
a classe dirigente e exerce um poder de ne-
campo autônomo é um fenômeno mo-
gatividade, isto é, o poder de criticar (inclu-
derno, uma forma alinhada com outras (a
sive a sua própria classe) aliado ao poder de
democracia, a escola, a mercadoria etc.)
universalizar o seu discurso.
constitutivas da sociedade burguesa. Mais
Mas o pano de fundo religioso é bem vi-
precisamente, é a forma assumida pelo co- sível. Há na ideia grandiosa de cultura uma
nhecimento que se assenta no comum bur- inclinação, ao mesmo tempo historicista e
guês. Mas a sua singularidade está no fato teológica, para responder pela totalidade
de ser uma forma que passa transversal- no momento em que a hipótese religio-
mente por todas as outras ao modo de uma sa deixa de cumprir esta função. Por mais
“trans-forma”, isto é, de algo que modifica problemática que se apresente, essa noção
a percepção, mais do que é reconhecido e entra no espaço deixado em aberto pela
absorvido pela percepção. moderna crise dos fundamentos. Não falta
Conferência pronunciada na Academia Brasileira de Letras em 14 de junho de 2018.
16 • Muniz Sodré
quem pense nesta direção, sugerindo que a no transcender”, como observa George
cultura seja “uma resposta ambígua à frag- Steiner, duas décadas e pouco mais tarde,
mentação da experiência tradicional mítica em sua crítica ao texto de Eliot. Steiner, fi-
e teologicamente orientada”.1 lósofo, crítico literário, romancista, poeta,
As teorias da cultura seriam, assim, professor em Oxford e em Harvard é uma
“coniventes com o desejo de restauração das mentes mais brilhantes do pensamento
da unidade que se terá perdido com a ins- social entre os séculos XX e XXI. É também
titucionalização da modernidade: quer seja um grande analista do Holocausto: chama
voltada para o passado, insistindo na comu- Eliot de irresponsável por passar ao largo do
nidade, na tradição, no retorno às origens fato de que a cultura europeia estava asso-
etc. (que caracteriza os romantismos); ou ciada às duas guerras mundiais e ao Holo-
voltada para o futuro, o que caracteriza o causto. Desconstruindo a ilusão clássica de
projetualismo moderno que anseia por re- que as humanidades possam humanizar,
compor a experiência com base em progra- Steiner frisa que a religião cristã é o moti-
mas fortes ou ideias absolutas, como as de vo pelo qual o antissemitismo impregna a
progresso, de emancipação da humanidade fundo a cultura ocidental, culminando as-
etc. (é isso que aparenta entre si os diversos sim nos fornos crematórios dos nazistas,
iluminismos)”.2 no Gulag soviético e anunciando a era da
A idealização da cultura europeia per- “pós-cultura”.
sistiu até a primeira metade do século Pós-cultura, portanto, seria uma espé-
passado, como comprova a leitura de um cie de conceito depauperado para a era em
texto polêmico de T.S. Eliot, em que ele ten- que já ingressamos. É a era em que essa
ta definir o conceito de cultura como um entidade cada vez mais ambígua chamada
transcender.3 A transcendência implícita na “cultura” define-se como o conjunto dos
posição de Eliot é ainda mais intensa do que processos sociais de significação e articula-
aquela que preside aos iluminismos na con- -se com a sociedade, portanto, com a eco-
cepção de cultura, porque Eliot explicita o nomia, a produção e o Estado. É a cultura
cordão umbilical que une religião e cultura, que se afirma como imprescindível à forma-
e não qualquer religião, mas o cristianismo, ção do capital humano no movimento da
que zelou pela expansão do pensamento financeirização do mundo. É a cultura que
europeu: “Só uma cultura cristã poderia perde a clássica potência de negatividade
ter produzido Voltaire ou Nietzsche. Eu não crítica em benefício da integração pelo en-
creio que a cultura da Europa sobreviveria tretenimento e pela informação. Insepará-
vel da mídia – que atua em interação com
ao desaparecimento da fé cristã.”4
fatores econômicos e tecnológicos, mas
Este aspecto religioso da cultura é “uma
não diretamente políticos –, essa cultura
aspiração à transcendência, é uma aposta
concorre indiretamente para a manutenção
1 MIRANDA, José A. Bragança. Teoria da Cultura, Ed.
o substrato real do fenômeno pode ser de- Na verdade, não se trata da máquina em
signado como inteligência artificial. Inteli- si mesma, mas do refinamento cognitivo de-
gência entende-se normalmente como a corrente de processamento e armazenamen-
capacidade global de correlação de dados. to de dados, canalizado para a aplicação de
O adjetivo “artificial” serve para caracteri- técnicas neurais, a exemplo do neuromarke-
zar o que alguns designam como “a quarta ting, o marketing com foco neurológico. O
revolução industrial”5, definida pela com- nome corrente para todo esse processo é Big
binação da inteligência de robôs com seres Data, isto é, os dados brutos analisados por
humanos. Para a adequada compreensão algoritmos para a detecção de regularida-
dessa interface homem-máquina, dois ter- des, por exemplo, nas máquinas, nos índices
mos impõem-se: algoritmo e conectividade. econômicos ou no comportamento dos con-
Algoritmo é um conjunto de regras lógi- sumidores. Dessas regularidades se inferem
cas, destinado à resolução de problemas e automaticamente regras preditivas: o futu-
à execução de tarefas. Conectividade é o ro prolonga o passado, abrindo fascinantes
acesso instantâneo tanto a pessoas quanto perspectivas técnicas.
a objetos. O nome cinematográfico para essa in-
São termos de uma nova utopia, que tensificação dos dispositivos de tratamento
se manifesta no discurso dos especialistas de dados e de amplificação das correlações
em computação como a de “um mundo técnicas foi matrix, uma clara fantasia ao
inteligente, conectado e seguro”. Não se estilo da science fiction apoiada na ideia de
trata, portanto, de progresso técnico stricto uma realidade paralela em que a corporei-
sensu, mas de tecnologia em sentido amplo dade se constitui eletronicamente. Mas já
como possibilidade de transformação de in- no primeiro terço do século XX, podiam-se
dústrias, de produção de novos modelos de
registrar experiências estéticas (por exem-
negócios e, mesmo, de subjetividades.
plo, no cinema de Sergei Eisenstein) em que
Essa escala torna o funcionamento dos
o discurso audiovisual visava à corporeida-
mercados progressivamente dependentes
de, procurando intervir no sensório. Isso foi
de inteligência artificial, com possibilida-
largamente amplificado pela publicidade
des de impactar direta e individualmente os
comercial posterior.
consumidores, prévia e secretamente iden-
A publicidade continua por trás de
tificados por perfis computacionais. É lugar
tudo, mas agora é ainda maior o escopo:
comum entre os estrategistas de mercado
uma ambiência paralela, constituída pela
a noção de que o computador pode saber
presença inteligente e invisível das novas
mais de um indivíduo do que ele próprio
tecnologias (em resumo, a inteligência ar-
sobre si mesmo. E o fato é que, dentro de
tificial) se superporia às coordenadas clás-
uma década, a capacidade cognitiva da má-
sicas de espaço-tempo. De fato, nenhuma
quina inteligente será equivalente, senão
coordenada espaçotemporal fixa pode ser
superior à capacidade do cérebro humano.
atribuída a essa forma de experiência do
5 A primeira revolução industrial foi a das máquinas de
real, cujas especificidades são o nomadismo
tear e a vapor; a segunda, a da eletricidade; a terceira,
a da tecnologia eletrônica ou computacional. e a interatividade.
18 • Muniz Sodré
artificial. Sim, a cultura tradicional não era democracia das emoções e da cultura como
antitética à empregabilidade humana. A in- mapa existencial para a pós-cultura da dis-
teligência artificial, produto direto do neo- tribuição de pílulas de informação, dirigida
capitalismo, por outro lado, tende a tornar à distância pelas máquinas inteligentes da
obsoleta a maioria das funções exercidas quarta revolução tecnológica, associadas à
por homens. financeirização, centro gravitacional das di-
Mas para a colunista, isso tudo “é per- ferentes órbitas econômicas. Aquilo que a
feitamente sensato, lógico, racional”. E cultura tradicional tentava cingir aos limites
acrescenta: “Infelizmente, o mundo de hoje de um “humano” pensado pela metafísica
não é movido pela sobriedade da reflexão, é agora atravessado por inteiro pela lógica
mas pelos instintos mais primitivos do cére- do capital, “capital humano”. Ora, capital
bro – pela intuição, tantas vezes equivoca- não gosta de gente. Mas a pós-cultura, ai
da, e pelas emoções, que servem para mui- de nós, é medida por seu valor de mercado.
ta coisa, mas raramente ajudam a encontrar
Referências bibliográficas
caminhos razoáveis para solucionar grandes
DE BOLLE, Monica. O liberalismo econômico em xeque. In
problemas”.10 revista Época, 30/4/2018.
O problema é que já saímos da velha de- DELEZOIDE, Bertrand. Le deep learning à l`ére industrielle. In
Clefs (les voix de la recherche). CEA, no. 64, juin 2017.
mocracia argumentativa das opiniões para a ELIOT, T.S. Notes towards the definition of culture. Faber
and Faber, 1948.
10DE BOLLE, Monica. O liberalismo econômico em xe- MIRANDA, José A. Bragança. Teoria da Cultura, Ed. Século
que. In revista Época, 30/4/2018. XXI, Lisboa, 2002.
Língua, cultura e identidade nacional
N
ão costumo, por princípio, incluir- enfoques distintos e variados. E mais ainda:
-me entre os conferencistas dos ci- das últimas décadas do século passado até
clos que, eventualmente, coordeno. a atualidade, as mudanças inerentes à di-
Moveu-me, no presente caso, a proximida- nâmica do processo histórico-cultural têm
de com o tema, na condição de estudioso envolvido, na nossa contemporaneidade,
de língua portuguesa e de literatura brasi- “uma caminhada para a ditadura do relati-
leira, intrinsecamente vinculadas à cultura vismo, que não reconhece nada como defi-
em que se inserem. nitivo”. O juízo não é meu: são palavras do
O tema envolve, necessariamente, as- Papa Bento XVI.
pectos históricos e sociais. Não sou historia- Questionamentos e relatividade à parte,
dor nem sociólogo. Perpasso-os nas trilhas situo-me entre os que entendem que a ex-
abertas pelos especialistas da área. Viver é pressão se refere a um conjunto de modos
compartilhar discursos. de pensar, de sentir e de agir que conferem
Mas o tempo é curto, a matéria com- a um indivíduo a sensação de pertencimen-
plexa. to a uma nação.
Começo pelo conceito de identidade Este entendimento implica, de imediato,
nacional. a descodificação deste último termo.
Trata-se de terminologia que divide os Nação é um vocábulo polissêmico, com
estudiosos. Como ficou evidenciado num atesta o Dicionário Houaiss, para não ir
ciclo inteiro realizado nesta Academia em mais longe. Lembro algumas significações,
2016, proposto pelo saudoso Acadêmico acrescidas de exemplos ilustrativos:
Eduardo Portella. Notadamente no texto de
Vamireh Chacon. 1. “Agrupamento político autônomo que
E mais: reveste-se de fluidez e de esgar- ocupa território com limites definidos
çamento. Conceitos, por sua natureza, são e cujos membros, ainda que não ne-
passíveis de simplificações, distorções e in- cessariamente, têm a mesma origem,
terpretações, estas, como tal, vinculadas a língua, religião, respeitam instituições
Conferência pronunciada na Academia Brasileira de Letras em 28 de junho de 2018.
24 • Domício Proença Filho
oficial: São Gabriel da Cachoeira, no interior A legislação régia não impede os rumos
da Amazônia, fronteira com a Colômbia e a da mistura e das influências, que seguem
Venezuela, que é ó único município brasilei- seu fluxo.
ro oficialmente quadrilíngue: além do por- Quem faz a língua é o povo. E o povo
tuguês, são línguas oficiais o nheengatu, segue mesclando assumidamente na sua
o tucano, o baníua; Pomerode, em Santa comunicação português e línguas índias,
Catarina, oficializou, ao lado do português, africanas e, em menor escala, imigrantes.
a língua alemã; Tacuru, no Mato Grosso do Com a Independência e o Império, a na-
Sul, onde ao português se junta o guarani. ção converte-se numa comunidade para si.
Ao fundo, razões históricas e culturais. Presentifica-se a oposição à memória colo-
Até meados do século XVIII, a comuni- nizadora e, consequentemente, a constru-
cação no Brasil se fazia em língua geral. E ção no discurso, sobretudo escrito, da his-
foram várias: a Língua Geral de base tupi, tória e da memória da nação emergente: o
ou Tupi Missionário; a Língua Geral Paulista; Império do Brasil.
Caracteriza-se a busca de uma nacio-
a Língua Geral Amazônica, depois nheen-
nalidade brasileira. Começa a corporificar-
gatu; a língua Geral Cariri; a língua Geral
-se um imaginário nacional. Seu espaço de
Guarani. O português era língua da comu-
construção: a língua portuguesa, já mati-
nicação escrita e da comunicação oficial.
zada de influências indígenas e africanas.
A partir de então, a Coroa torna obriga-
Como acontece com a nossa cultura. É a
tório o uso oficial da língua portuguesa no
juventude do português brasileiro, que logo
Brasil. Primeiro, no Diretório de 3 de maio
se converterá numa norma paritária em re-
de 1757, no Maranhão e no Pará. Depois,
lação ao sistema língua portuguesa.
em 1758, ao convertê-lo num Alvará Régio,
Configura-se, a propósito, desde os pri-
estendido a todo o espaço da Colônia. Ao
meiros tempos do Brasil independente, a
fundo, o Marquês de Pombal, Brasil Colô-
preocupação de estudiosos com a especifi-
nia: uma comunidade nascente, para a ou- cidade do português brasileiro, que se avo-
tra, a do colonizador luso. luma a partir da segunda metade do século
O texto leva a questão ao extremo: proí XIX.
be terminantemente o uso de quaisquer Pouco a pouco, ganha vulto a nossa lite-
outras línguas, principalmente das que cha- ratura, uma arte que tem uma língua como
mam “geral” “invenção abominável e dia- suporte. No caso, a língua portuguesa. Bra-
bólica”, na letra do texto. sileiramente. E se constrói, no discurso, uma
O Alvará, na verdade, consolida o que mitologia fundadora. E nosso céu passou a
estabelece a Carta Régia de 1727, que de- ter mais estrelas, nossa várzea, mais flores,
termina o ensino da língua portuguesa no nossos bosques, mais vida, nossa vida, mais
Brasil e mais, torna oficial em todo o terri- amores. Mitifica-se o espaço geográfico. De
tório da Colônia a expressão língua portu- tal forma, que os versos de Gonçalves Dias
guesa como denominação do instrumento passam a integrar nada menos do que o
linguístico se queria unificado. hino nacional.
30 • Domício Proença Filho
Ivan Junqueira
Sexto ocupante da Cadeira 37 na Academia Brasileira de Letras
D
ante Milano é, como amiúde já se em 1979 reeditar-lhe toda a poesia, além
disse, a maior “vocação póstuma” de boa parte das traduções e da prosa pu-
de toda a literatura brasileira. Mas blicada em jornais. Finalmente, em 1994,
por que assim o consideram? Em certo sen- pela Firmo, de Petrópolis, foi lançada a úl-
tido, porque ele próprio assim o pretendeu, tima edição, já póstuma, de suas Poesias.
já que nunca cogitou em vida de publicar Apesar dessas reedições, Dante Milano foi
seus poemas, o que, afinal, acabou por o poeta de um livro único, um livro que, se
acontecer em 1948, quando o poeta já bei- dependesse dele, jamais seria publicado. É
rava os cinquenta anos, mas à sua inteira em parte nesse sentido que seus pares o
revelia: um amigo, Queirós Lima, pediu-lhe entendem como uma “vocação póstuma”.
emprestado os originais e levou-os para a Mas cabe aqui outra interpretação: Dan-
Imprensa Nacional. Cerca de dois meses de- te Milano foi “póstumo”, também, no sen-
pois reapareceu com as provas e solicitou tido de que jamais frequentou com assidui-
ao poeta que fizesse as emendas. Mas es- dade as rodas literárias e, mais ainda, porque
tas foram tantas que a Imprensa Nacional sempre lhe repugnou quaisquer formas de
se recusou a publicar o volume. Nesse mes- popularidade ou mesmo de glória. Em en-
mo ano, entretanto, o livro foi editado pela trevista que concedeu à TVE, João Cabral de
José Olympio, tornando-se, como na época Melo Neto diz que, de todos os poetas que
se comentou, o maior acontecimento literá- conheceu, Dante Milano era “o que menos
rio do ano, tendo a obra recebido o Prêmio fazia vida literária, o mais retirado, aquele
Felipe de Oliveira, láurea que hoje se pode- que fazia uma poesia mais independente
ria comparar ao Prêmio Jabuti. Seguiram-se, de qualquer modismo”. E acrescenta pouco
a longos intervalos, duas outras reedições, adiante: “Ele vivia para a poesia no sentido
In: Dante Milano, Obra reunida. Coleção Austregésilo de Athayde, v. 21. Organização e estabelecimento de texto,
Sérgio Martagão Gesteira. Apresentação e biobibliografia de Ivan Junqueira, xix-liv.
32 • I van Junqueira
de viver em poesia, e não no sentido de se jamais se filiou nem durante nem depois da
dar a conhecer como poeta. Ele era sob certo festiva e turbulenta década de 1920. Não
ponto de vista, vamos dizer, moral, o poeta há dúvida de que apoiou o movimento, pois
puro por excelência.” Tudo isso está confir- nele via, como todos os artistas da época,
mado na última entrevista que Carlos Drum- um caminho de libertação estética. A rigor,
mond de Andrade deu ao Jornal do Brasil, entretanto, o Modernismo pouco ou nada
na qual observa: “Temos um poeta de quase teria a oferecer-lhe em termos de subsídio
noventa anos que mora em Petrópolis e nin- literário ou de plataforma estética. E mais: à
guém o conhece. Ele é da geração moder- época da agitação modernista, o poeta Dan-
nista, um grandessíssimo poeta. Chama-se te Milano já estava pronto, infenso, portan-
Dante Milano.” E se recorrêssemos ao pró- to, a quaisquer aquisições mais profundas e
prio poeta, o que vamos encontrar é sempre radicais do ponto de vista formal, ainda que
o mesmo, talvez até de forma mais enfáti- aberto e sensível às conquistas expressionais
ca, como se lê em entrevista que ele próprio do movimento. Por outro lado, dizer-se que,
concedeu àquele mesmo jornal em agos- entre 1920 e 1948 – quando saiu a primeira
to de 1987. Indagado sobre sua aversão à edição das Poesias –, haja ele se conservado
fama, respondeu Dante Milano: “A fama tira na condição de bissexto não procede: Dan-
a sua privacidade. Não gosto de ser aponta- te escrevia muito – e muitíssimo destruiu do
do na rua, não gosto que ninguém me re- que escreveu –, conquanto nada publicas-
se em livro até aquela data. A que se deve,
conheça. Quanto à glória, é uma ilusão, é
então, esse altivo silêncio, essa monástica
algo que muda como mudam as folhas de
reclusão, esse obsessivo mutismo editorial
uma árvore. Um dia você é famoso, daqui
– cúmplice, talvez, daquela “vocação póstu-
a pouco não é mais.” Foi a ameaça dessa
ma” a que já aludimos? É o que tentaremos
mundanidade, aliás, que o levou a escrever
decifrar, leitor, se possível com o teu benévo-
num de seus poemas:
lo e empático beneplácito.
Parece-nos que há, pelo menos, dois
Tanto rumor de falsa glória,
Só o silêncio é musical, indícios capazes de nos levar à compreen-
Só o silêncio, são parcial desse procedimento, que não
A grave solidão individual, pode ser aceito como fortuito. Primeiro,
O exílio em si mesmo, o que estaria associado ao próprio tem-
O sonho que não está em parte alguma. peramento do poeta, sempre esquivo aos
círculos literários oficiais. Embora conhe-
Daí esse conceito de “vocação póstuma”, cido e celebrado por quase todos os seus
que não pode ser descartado quando se contemporâneos, além de assíduo habitué
examinam a gênese e a evolução da poesia dos grupos boêmios da antiga Lapa, Dan-
de Dante Milano. te Milano nunca se sentiu inteiramente
Embora egresso do Modernismo de à vontade enquanto descendente desse
1922, Dante Milano é, na verdade, anterior ruidoso e noctâmbulo habitat. E jamais
ao movimento modernista, do qual parti- dele se valeu, como alguns outros nessa
cipou a distância e ao qual, efetivamente, época, para angariar, como ele mesmo o
Dante Milano: o p e n sa m e n to e m oc i o n a d o • 33
Para melhor compreendermos as raízes de Dante Alighieri (de quem verteu mode-
de todo esse instigante complexo estético- larmente três dos cantos do Inferno), Horá-
-literário, entretanto, impõe-se dissecar um cio, Virgílio e Leopardi (sobre quem escre-
pouco as vísceras do próprio corpus poeti- veu um memorável estudo), bem como de
cum milaniano no âmbito de uma análise outros autores italianos do Trecento e do
que se pretenderá, daqui em diante, estri- Cinquecento, dos pré-rafaelitas ingleses, de
tamente textual. Para tanto, consideraremos Camões e daqueles que, como Baudelaire e
aqui os seguintes elementos incidentais ou Rimbaud, já antecipavam a poesia moderna
já declaradamente estilísticos: 1) o próprio na segunda metade do século XIX, Dante
texto do legado poético em pauta; 2) a con- Milano formou-se, enquanto modernista, a
vicção, por parte do autor, de que a poe- partir de uma herança acima de tudo classi-
sia é produto do pensamento emocionado cizante. Sua poética é, por isso mesmo, um
ou, como insinua Fernando Pessoa, de um tecido de cruezas expressionais e significa-
pensamento que se “emocionaliza”; 3) o ções objetivas, um voto de fidelidade à clar-
predomínio do símile sobre a metáfora; 4) té cartesiana, um exercício raisonnant de
o “ritmo semântico”, já denunciado por “imaginação irônica”, em tudo oposta à di-
Sérgio Buarque de Holanda em seu lumi- fusa deliquescência da “ironia romântica”.
noso ensaio sobre a poesia do autor; 5) a E reside aqui, sem dúvida, o segredo de sua
prevalência das formas ditas fixas ou regu- unidade estilística e formal, essa unidade
lares sobre o verso livre; 6) os esquemas rí- que, como ensina Buffon, nada mais é que
micos e a flutuação métrica; 7) os campos um reflexo da unidade do próprio espírito.
semântico-vocabulares; 8) o aproveitamento Nada disso, entretanto, nos autoriza a
plástico-visual da estrutura poemática; 9) o arriscar uma definição precisa a que obe-
“antilirismo sinistro” da linguagem do au- dece a gestalt poética de Dante Milano ou
tor, que preferiremos aqui chamar de lirismo da matéria que lhe informa e sustenta a
“fantasmagórico” ou “visionário”; 10) o tessitura verbal. De um ponto de vista es-
substrato temático; e 11) classicismo e mo- tritamente conceitual, ficaremos aqui, ainda
dernidade. É claro que tais elementos serão uma vez, com Sérgio Buarque de Holanda,
sempre considerados ou referidos de forma que recorre à antiga noção de “realismo
assistemática e mobilizados apenas na me- estético”, entendendo-se realismo como a
dida em que, cumulativamente ou não, fo- concepção medieval que se opunha ao no-
rem capazes de oferecer subsídios concretos minalismo e ao conceptismo, ou seja, como
ao melhor esclarecimento do texto. atitude filosófica que afirmava possuírem as
O que chama logo a atenção de quem ideias uma existência independente das coi-
se imponha uma leitura mais atenta dos 141 sas concretas, o que vale dizer, ante res. E
poemas em que se resume todo o cânon isso porque, como admite o autor de Cobra
milaniano é sua irrepreensível unidade – de vidro, tudo nos leva a crer que “a poesia
unidade de forma, de estilo, de linguagem, tem uma realidade independente da maté-
de abordagem temática, de ritmo e até de ria que serviu para sua criação, é por assim
vocabulário. Acostumado à seleta e austera dizer exterior a essa matéria, participando
companhia dos antigos e leitor contumaz muito mais do espírito de seu criador, ou
Dante Milano: o p e n sa m e n to e m oc i o n a d o • 35
Assim percorro uma existência incerta Assim também em “Noite”, em que sus-
Como quem sonha, noutro mundo acorda, tenta que
E em sua treva um ser de luz desperta.
E sinto, como o céu visto do inferno, Todos os sonhos são verdadeiros.
Na vida que contenho, mas transborda,
Qualquer coisa de agora, mas de eterno. E o mesmo em “Sombra no ar”, ao ad-
mitir ser
Como poucos, este soneto justificaria
aquele juízo de Manuel Bandeira, segundo Este mundo a que vim, de pedra e sono.
o qual Dante Milano parece escrever “seus
versos naquele inefável momento em que o E também o mesmo, ainda, em “O ho-
pensamento se faz emoção”. mem e sua paisagem”, cujo primeiro verso
Para Dante Milano, a realidade da vida nos ensina que
somente se realiza, enquanto floração fe-
nomênica, na medida em que se irrealiza. Toda paisagem tem um ar de sonho.
sono, ou seja, com o “sono de quem dor- o papel desempenhado pelo sonho no pro-
me”. Para Dante Milano, o expediente oní- cesso do conhecimento amoroso, como se o
rico não se destina a alienar o ser da realida- poeta recorresse a uma gnosiologia fantas-
de que o cerca. Quem sonha o faz sempre magórica que lhe permitisse ver “de olhos
de olhos abertos. Quem sonha não dorme: abertos” a suprarrealidade da vida. São
acorda para uma visão interior, passando esses assombros e fabulações surrealistas,
assim a comportar-se segundo as premissas aliás, que lhe caracterizam aquele fulgurante
de um pensamento mágico e, necessaria- lirismo visionário, talvez o mesmo que levou
mente, metalógico. Eis por que a realidade Rimbaud a exclamar, perplexo: “Et j’ai vu
se irrealiza. Em “Duplo olhar”, essa pers- quelquefois ce que l’ homme a cru voir!”,
pectiva visionária da realidade interior ma- tal como o lemos em “Le bateau ivre”. E foi
nifesta-se particularmente nítida e aguda: isto, sem dúvida, o que viu Dante Milano no
Soneto VII, quando na “noite cor de sono,
E há a visão interior de olhos abertos, cor de sonho”, uma mulher aparece
A de quando desvio o olhar do livro
Para um lugar mais livre, mais distante, E em meus braços se atira. Então, absorto,
E me parece uma visão divina Vi que o corpo, quando ama, desfalece,
A paisagem que vejo todo dia. Vi que o rosto, ao beijar, parece morto,
Como se o beijo os lábios lhe torcesse,
Já em outros poemas, a faculdade de ver A boca toma a forma de um sorriso
Que se contrai, como se o beijo doesse.
o invisível para além da episodiação lógica
Visões do amor, possuídas mas incertas,
opera no sentido de subsidiar a compreen-
O corpo se entregou, mas indeciso,
são do amor, que só pode ser entendido em E deixou-se cair de mãos abertas!
sua totalidade através de uma visão, como
ocorre em “Corpo”: “Visões do amor...” Não muito diferem
destas as que o poeta volta a ver em “Me-
Absorvi a existência,
tamorfoses”, no qual nos assegura que, ao
Vi todas as coisas numa coisa só.
sonhar um
Compreendi tudo desde o princípio do Mundo.
Sonho maior que o sonho de quem dorme,
Ou em “Cântico”, em que o poeta sonha Eu vi, de olhos despertos, fabulosas
Metamorfoses, conexões monstruosas
a carne
Entre o olhar e a aparência multiforme.
E seu mistério,
O que ela tem de intangível,
E, como lá, também aqui essas “visões”
Inatingível
Como uma visão! são “incertas”, contempladas em meio à
mais insólita perplexidade:
Mas será em dois sonetos, dois sonetos
E num leito de amor já vi perplexo
gêmeos e soberbos – o de número VII, de Seios com olhos! e mudar-se a dura
“Sonetos e fragmentos”, e “Metamorfo- Nuca em anca, o ombro em joelho, a axila
ses”, pertencente às “Variantes de temas an- em sexo,
tigos”, que mais agudamente se perceberá O dorso em coxa, o ventre em fronte pura.
Dante Milano: o p e n sa m e n to e m oc i o n a d o • 39
Conquanto seja temerário afirmar, é Tempo, vais para trás ou para diante?
possível que a escolha dessa tríplice temá- O passado carrega a minha vida
tica (na verdade, ela é inumerável) guarde Para trás e eu de mim fiquei distante,
algum parentesco com a galáxia de recursos
Ou existir é uma contínua ida
técnicos, formais e estilísticos mobilizados E eu me persigo nunca me alcançando?
pelo autor ao longo desses 141 poemas. É A hora da despedida é a da partida
que a poesia de Dante Milano envolve um
contínuo esforço ascensional em busca da A um tempo aproximando e distanciando...
Sem saber de onde vens e aonde irás,
transcendência, do absoluto, do eterno. O
Andando andando andando andando
chamado lirismo cotidiano, tão explorado
andando
pelos modernistas, ou o humor pedestre
do poema-piada praticamente inexiste nos Tempo, vais para diante ou para trás?
versos do autor, que jamais atua no nível
do tempo presente ou do imediatismo his- Mas foi por coexistir com esse ir-e-vir que
tórico. Para ele, assim como para Eliot em pôde o poeta realizar sua extraordinária sín-
Burnt Norton, o primeiro dos Four Quartets, tese entre passado e futuro, entre classicis-
mo e contemporaneidade. Assim, embora
O meu passado é todo o meu presente fiel à herança clássica, Dante Milano revela
E todo o meu futuro é já passado..., uma dicção e uma expressão genuinamente
modernas, mas que, na maioria das vezes,
pois o que conta é o tempo interior, ou seja, só encontram sua plena realização quan-
a durée metalógica de um tempo que, con- do desenvolvidas dentro dos “limites” das
forme o pressupunha Bergson, se distende chamadas formas fixas ou regulares, muito
para além do próprio tempo que, como tal, embora o poeta só o faça, ortodoxamen-
jamais poderia estar incluso na transitorie- te, com relação ao soneto. Por outro lado,
dade de um lirismo do dia a dia. Por isso Dante Milano adota amiúde esquemas de
nos diz ele que estrofação (dísticos, tercetos, quartetos,
pentásticos) e de isocronia rímica inteira-
O tempo eterno é para mim esta hora, mente avessos à iconoclastia modernista,
chegando mesmo a reviver – com inexce-
acrescentando: dível mestria, aliás –, a terza rima dantes-
ca. E o surpreendente é que, quanto mais
Bem no fundo de meu ser obscuro atenta a essa rígida ossatura formal, mais
Lembro-me antigamente do futuro. fluida e espontânea se torna a sua poesia,
assim como ocorre no caso de Odylo Costa,
Pode-se mesmo dizer que o poeta se filho, cuja poesia – como ele próprio escre-
move numa espécie de pantempo, submer- veu – só era “livre porque cativa”. Observe-
so na correnteza dos momentos passados e -se, por exemplo, a fluidez absoluta dos
futuros que, simultaneamente, se entrecru- admiráveis dísticos (no caso, arrímicos) nos
zam e se invertem, como se pode ver em quais se apoia o poema “Imagem”, em que
“Ao tempo”: aflora, aliás, a obsidiante volúpia do autor
40 • I van Junqueira
pelo branco e pelas formas radiantes da luz, hierático da imutabilidade das inatingíveis
dessa luz que – como dirá ele depois –, por formas eternas que, desde o início, haverão
“mais que resplandeça”, é sempre cega: de seduzir o poeta. É a essa “pedra” que,
pelo resto da vida, ele se abraçará em vão,
Uma coisa branca, pois que vão é todo afã de imobilizar o flu-
Eis o meu desejo. xo do tempo:
mendigo”), estes dois últimos, aliás, de far- magistral “Baixo-relevo funerário”, escrito
ta incidência na poesia do autor. O velho e o sem dúvida muitos anos antes (já constava,
mendigo, com efeito, estão presentes des- com efeito, da primeira edição das Poesias)
de os primeiros poemas, como, por exem- e cujos versos nos induzem antes a ver a
plo, em “Mendigo”, o mesmo ocorrendo cena ali gravada do que a ler o texto gra-
com a obsessão do poeta relativamente à fado. Repare o leitor que a pontuação em
brancura da nudez feminina, cujo paradig- stacatto ao fim de cada verso nada tem de
ma estaria, como aqui já insinuamos, na- gratuita; ao contrário, ela nos sugere, sem
queles esplêndidos dísticos de “Imagem”. dúvida, não o término convencional da li-
Mas o velho mendigo desses derradeiros nha, mas o entalhe, pelo cinzel do artista,
poemas, é bom que se advirta, não é mais de abruptos e sucessivos sulcos na pedra:
aquele que, resignadamente, agradece a
Deus a “esmola de mais um dia”. Esse ve- Os guerreiros avançam em gestos ritmados.
Os escravos vão de rastros, acorrentados
lho é agora, como o “Gerontion” de Eliot,
pelos pulsos.
alguém que
Servas carregam vasos com essências.
O esquife transpõe o infinito.
Já sem ideias O carro voa para o sol.
No crânio oco Os cavalos entram na glória.
Reduz todo o vocabulário
A secas palavras. Perceba ainda o leitor que a descrição
dos segmentos cênicos evolui gradualmen-
Ora, a persistência ou o retorno desses te do plano concreto (sensível) ao plano
temas e subtemas confirmam à saciedade abstrato (inteligível). Com isso, o poeta nos
o que aqui já se afirmou quanto à unidade mobiliza a dois níveis distintos de visualiza-
conteudística da poesia de Dante Milano, ção: vê-se com os olhos o que descrevem
que, à semelhança daquele carvalho heide- (ou entalham) os três primeiros versos, mas,
ggeriano, permanece idêntica a si mesma, a partir do quarto, quando o “esquife trans-
do primeiro ao último verso, na aparente põe o infinito”, a cena só poderá ser vista
imutabilidade de seu devir. se mentalizada, se concebida ou intuída
Incluem também esses “Últimos poe- em instância transcendente àquela em que
mas” diversos exemplos do afã milaniano se organizam “les données immédiates de
de imobilizar, amiúde sob forma estatuá- la conscience”, ou seja, como o pretendia
ria, seres e paisagens de seu mundo inte- Bergson, para além do que nos transmite a
rior, como ocorre em “A vaga”, “Objeto caducidade da informação fenomênica. O
de arte”, “O corpo de Vênus”, “Paisa- quinto verso introduz uma pausa no proces-
gem”, “Pietá”, “Pietá II” e “Lição de músi- so de rarefação sensorial, ainda que, fantas-
ca”. Essa preocupação, aliás, também não ticamente, um carro esteja voando para o
é nova na poesia do autor, que a manifesta sol. O último verso, entretanto, desencadeia
de modo obsessivo (não fora ele o escul- uma tempestade catártica: os cavalos, que
tor bissexto que foi) desde seus primeiros simbolizam aqui a transcrição visual do ím-
textos, como é o caso, entre outros, desse peto cósmico rumo ao Absoluto, “entram
Dante Milano: o p e n sa m e n to e m oc i o n a d o • 43
Ivan Junqueira
Sexto ocupante da Cadeira 37 na Academia Brasileira de Letras
O organizador da presente edição optou por acrescentar à visão do crítico Ivan Junqueira, tal como nos revela o texto
que abre esta Obra reunida, a do poeta Ivan Junqueira sobre a figura, a presença e o legado de Dante Milano. As
“Terzinas a Dante Milano”, originalmente publicadas em A sagração dos ossos (1994), bem atestam, por sua notável
força expressiva, o quanto aquele que aí se diz discípulo de Dante Milano logra alçar-se, na crispada homenagem
que rende a seu mestre, às mais altas dimensões da poesia deste.
50 • Terzinas para Dante Milano
Arno Wehling
Ocupante da Cadeira 37 na Academia Brasileira de Letras
“D
on Ramón Menéndez Pidal, como especialista em literatura medieval,
gloria de España...” particularmente por seus estudos sobre o
Era assim que as orelhas Poema de Mio Cid e os infantes de Lara.
dos livros da Editora Espasa Calpe referiam- Membro da Real Academia de la Len-
-se ao autor da obra que apresentavam. Por gua, em 1901 e depois da de História, teve
diferentes razões não era um exagero e o intensa atividade como professor visitante
cinquentenário de sua morte, por pouco em universidades europeias, dos Estados
mais de um ano coincidindo com o sesqui- Unidos e da América espanhola, a par de
centenário, merece ser lembrado. uma constante atuação na pesquisa filo-
Ramón Menéndez Pidal foi sócio corres- lógica e histórica até ultrapassar os no-
pondente da Academia Brasileira de Letras, venta anos. Fundou a Revista de Filologia
ocupando a Cadeira 14 de 1951 a 1969. Española e dirigiu por muitos anos a Real
O patrono, o franciscano Frei Francisco de Academia de la Lengua. Atuou na diplo-
Mont’Alverne, era o mais distinguido da úl- macia em 1904, mediando em nome da
tima grande safra de oradores sacros que Espanha a questão de limites entre Peru e
dominaram o púlpito entre o Brasil joanino Equador, mas manteve-se fora da vida pú-
e meados do século XIX. A Cadeira seria blica – exceto por sua atividade acadêmica.
inaugurada em 1898 por ninguém menos Nos momentos difíceis da segunda repú-
que Herbert Spencer, e seu atual ocupante blica espanhola e na guerra civil afastou-se
é Daisaku Ikeda. por algum tempo do país. Após o retorno
Menéndez Pidal era de La Coruña, mas ocupou pela segunda vez a presidência da
cedo castelhanizou-se, como dizia, sem es- Real Academia de 1947 até sua morte, em
quecer os vínculos galegos. Após os estudos 1968, recusando-se a substituir os acadêmi-
nas Universidades de Madrid e Toulouse, cos exilados pelo regime franquista.
tornou-se, em 1899, catedrático de Filolo- Discípulo preferido de Menéndez y Pe-
gia Românica da Universidade Compluten- layo, fazia questão de identificar-se com a
se, quando já havia alcançado nomeada “geração de 98”. Com Ortega y Gasset e
54 • A rno Wehling
absolutismo, antes realizava o ideal de go- singular das bulas alexandrinas segundo
verno limitado que vinha das lições tomis- a qual a presença espanhola justificava-se
tas e se renovaria na escola de Salamanca. apenas pela predicação evangélica às suas
Pelo menos é o que demonstra em seus tra- expensas. Vitória, por outro lado, não era
balhos sobre os Reis Católicos, Carlos V e jurista, mas teólogo e para o filólogo-histo-
Maquiavel. De qualquer modo, a unidade riador era um homem aberto do Renasci-
espanhola era uma concepção política for- mento, capaz de entender as circunstâncias
te na época dos Reis Católicos e Menéndez diversas, culturais, políticas e materiais dos
Pidal evoca o testemunho do gramático Ne- indígenas, ao mesmo tempo que defendia a
brija dirigindo-se à rainha Isabel: “pela in- missão evangelizadora do Rei e a existência
dústria e trabalho de Vossa Real Majestade, de áreas baldias, res nullius, utilizáveis pe-
os membros e pedaços da Espanha se re- los colonizadores espanhóis. Várias de suas
duziram em um corpo e unidade de reino... ideias consubstanciariam, antes de Grotius,
que muitos séculos, injúria e tempos não a os pilares do direito internacional público. A
poderão romper nem desatar.” extensa polêmica entre os religiosos do sé-
O tema da unidade espanhola era caro culo XVI foi estudada por Menéndez Pidal,
ao autor e foi uma tônica de sua obra, com- recorrendo entre outros ao Inca Garcilaso de
patibilizando-se no plano internacional com la Vega, para concluir decididamente a fa-
a ideia da paz cristã, paz universal que Car- vor dos argumentos de Francisco de Vitória,
los V representou. Menéndez Pidal via estes atribuindo a Las Casas uma anti-hispanidade
dois temas numa leitura contemporânea: quase patológica.
a unidade possível e desejável da Espanha No primeiro volume da História da Espa-
franquista e pós-franquista por cima das nha que dirigiu até morrer, Menéndez Pidal
cisões da guerra civil e o ideal pacifista e publicou em 1947 o ensaio “Os espanhóis
democrático do segundo pós-guerra. na história e na literatura”. Refez o tex-
Entranhadamente espanhol, este profes- to e em 1959 publicou a versão definitiva
sor universitário treinado no método e na em outro livro, apenas retirando do título
confrontação de teses revelava-se apaixona- a menção à literatura. A primeira frase da
do em várias circunstâncias. Uma delas foi obra é incisiva: “os fatos históricos não se
a maneira como opôs Las Casas e Francisco repetem, mas o homem que realiza a Histó-
de Vitoria, em estudos polêmicos a propó- ria é sempre o mesmo.” Em consequência,
sito do indígena americano e da coloniza- é a este homem – espanhol, no caso – que o
ção espanhola da América. Para Menéndez autor procura. Avançando numa ideia de Fi-
Pidal o sevilhano Bartolomeu de Las Casas delino de Figueiredo a propósito das “duas
era um canonista de mente medieval, aferra- Espanhas”, constata que o país sistematica-
do a fórmulas jurídicas tradicionais, incapaz mente se dividiu entre tradição e inovação,
de entender a realidade concreta e preso a numa disputa quase sempre ferrenha, ao
dois princípios legais, o direito de proprieda- contrário de outros povos, nos quais a dico-
de dos reis e caciques indígenas sobre todas tomia só apareceria em momentos críticos.
as terras americanas e o direito limitado dos O livro prossegue na bipolaridade, com ou-
Reis Católicos, a partir de uma interpretação tras categorias como Europa versus África,
R a m ó n M e n é n d ez P i da l • 57
Antônio Torres
Ocupante da Cadeira 23 na Academia Brasileira de Letras
A
ntes dele não havia Arinos algum. primeiras balizas que fizeram do regionalis-
Ou, para parodiar o início de um mo “um gênero literário típico e brasileiro
conto magistral, A hora e a vez de por excelência”, no dizer de Otto Maria
Augusto Matraga, Arinos não era Arinos Carpeaux.
nem nada. Daí poder-se inferir que o pré-modernis-
Pois é assim que começa a sua história: ta Pelo Sertão foi o abridor da estrada em
com um apelido que um pai deu a um fi- que trilharam José Lins do Rego, Graciliano
lho chamado Afonso. E este o adotou como Ramos e Guimarães Rosa. O que não é pou-
sobrenome, com o qual viria a se distinguir co. O seu autor, que naquele mesmo ano
nas nossas letras entre o final do Império e de 1898, com o pseudônimo de Olívio de
os inícios da República, sobretudo a partir Barros, publicou em folhetim o romance Os
da publicação do seu livro de contos Pelo Jagunços, teve imediato reconhecimento
Sertão, subintitulado Histórias e Paisagens, não só pelo pioneirismo de suas imersões
escrito de 1888 a 1895, e publicado em num mundo de vaqueiros, capangas, assas-
1898. (O Acadêmico, poeta, ensaísta e bi- sinos, escravos fugidos, vinganças políticas,
bliófilo Antonio Carlos Secchin guarda em amores trágicos, acontecimentos singelos -
sua biblioteca um exemplar da primeira edi- tudo permeado pelo conservadorismo rural,
ção desse livro, pela editora Laemert, em sua rudeza, crenças e mitos -, mas também
cuja capa o autor escreveu: “O título que pelo seu apurado senso estético, expressa-
constava do contrato com a casa editora era do na simplicidade e limpidez da sua fatura
simplesmente Sertão”. E assina embaixo). literária. Tais qualidades o fariam chegar à
Pelo visto história afora, acabou preva- Academia Brasileira de Letras e ao Institu-
lecendo o acréscimo do editor para o tí- to Histórico e Geográfico Brasileiro quase
tulo que antecedeu em quatro anos o de instantaneamente, pois foi eleito para estas
Euclides da Cunha, e mais de meio século duas instituições em 1901, apenas três anos
o Grande Sertão: Veredas. A posteridade depois da sua estreia em livro, e no pleno
o consagraria como o estabelecedor das vigor dos seus 33 anos.
60 • A ntônio Torres
Ele tomou posse na ABL em 18 de se- praça, como um monumento às gerações ex-
tembro de 1903, para ocupar a Cadeira 40 tintas, uma página sempre aberta de um poe-
– hoje pertencente ao economista Edmar ma que não foi escrito, mas que referve na
mente de cada um dos filhos desta terra.”
Bacha – tendo sido recebido por Olavo Bi-
lac, que definiu a sua literatura como “uma Esse trecho do conto Buriti Perdido pode
larga ponte batida de sol, lançada entre o até ser lido hoje como uma profecia de Bra-
passado e o futuro”, e da qual o príncipe sília, cidade que, não por acaso, fez do bu-
dos poetas brasileiros destacava o estilo riti a sua árvore símbolo, plantada na Praça
“temperado pela suavidade que a língua do Buriti, em frente ao palácio de mesmo
dos nossos maiores adquiriu ao passar da nome, projetado pelo arquiteto Nauro Jor-
velha para a nova pátria”. ge Esteves em 1969 para a sede do governo
Autor de um célebre poema sobre a lín- do Distrito Federal.
gua portuguesa, Olavo Bilac exaltou a con- Abundante no Cerrado, o buriti é uma
tribuição de Arinos ao progresso da “última das palmeiras mais singulares do Brasil,
flor do Lácio” – então inculta, ainda que também chamada de coqueiro-buriti, ca-
bela –, mas sem tornar-se subserviente à sua radu-guaçu, caradaí-guaçu, palmeira-dos-
pureza primitiva. E nisso Bilac vislumbrava o -brejos. O seu fruto é fonte de alimentação
destino do português do Brasil, que, a seu privilegiada. Rico em vitamina A, B e C, ain-
ver, na pena de Arinos passava da garganta da fornece cálcio, ferro e proteínas. Consu-
do pardal para a do sabiá, num abranda- mido tradicionalmente ao natural, também
mento de escala com um quebro langoroso pode ser transformado em doces, sucos e
que lhe veio a redobrar o encanto. licores. E mais: suas substâncias dão cor e
E dá como exemplo disso uma página aroma a diversos produtos de beleza (cre-
de Pelo Sertão em que Arinos glorifica um mes, xampus, filtros solares, sabonetes). O
velho buriti, “venerável epônimo dos cam- óleo extraído dessa fruta tem valor medici-
pos”, mais idoso do que a nossa raça, perdi-
nal, sendo utilizado como vermífugo, cica-
do no meio de uma planície verde:
trizante e energético.
“Se algum dia a civilização ganhar essa pa-
O Arinos contista via nele o símbolo de
ragem longínqua, talvez uma grande cidade
se levante na campina extensa que te serve uma raça quase extinta, como a canção
de soco, velho Buriti Perdido. Então, como os dolorosa do sofrimento das tribos, como
hoplitas atenienses cativos em Siracusa, que o hino glorioso dos seus feitos, a narração
conquistaram a liberdade enternecendo os comovida das pugnas contra os homens de
duros senhores à narração das próprias des- além.
graças nos versos sublimes de Eurípides, tu E perguntava:
impedirás, poeta dos desertos, a própria des- “Por que ficaste de pé, quando os teus co-
truição, comprando teu direito à vida com a evos já tombaram?
poesia selvagem e dolorida que sabes tão bem
comunicar. Então, talvez, uma alma amante Nem os rapsodistas antigos, nem a lenda
das lendas primevas, uma alma que tenhas cheia de poesia do cantor cego da Ilíada co-
movido ao amor e à poesia, não permitindo a movem mais do que tu, vegetal ancião, cantor
tua destruição, fará com que figures em larga mudo da vida primitiva dos sertões”.
M e mó r i a r e ve r e n c i a da – A f o ns o A r i n os • 61
Sim, era assim que escrevia o primeiro o que lhe moldaria profundamente a perso-
Afonso Arinos de Melo Franco, tio do seu nalidade, levando-o a se tornar um dos mais
homônimo jurista, político, memorialista, significativos intérpretes de tipos populares
biógrafo e historiador, autor de, só para regionais, tendo como cenário a geografia
lembrar dois de seus títulos, O Índio Brasi- do Brasil Central, numa extensa área entre
leiro e a Revolução Francesa, e A Alma do Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás.
Tempo, este voltando às livrarias esta sema- Os primeiros registros sobre ele não dei-
na, pela Topbooks, num volume de 1.780 xam de ser uma biografia sentimental, es-
páginas, o mais alentado deste ano. Esta- crita pelo seu pai, o juiz de direito Virgílio
mos falando de outro Arinos membro desta de Melo Franco, num caderno de anotações
casa - na qual ocupou a Cadeira 25, hoje particulares:
ocupada pelo igualmente jurista Alberto “Nasceu meu filho Afonso, o primogênito,
Venâncio Filho, o coordenador deste Ciclo no dia 1.o de maio de 1868, sexta-feira, às 10
de Memórias Reverenciadas. horas da manhã, estando eu pousado no Pe-
Ainda e sempre bem lembrado pela lei dro Pereira, em viagem para Ouro Preto, como
contra a discriminação racial, o segundo deputado provincial. Foi batizado na igreja
matriz desta cidade (Paracatu), servindo-lhe
Afonso Arinos vem a ser pai do terceiro aca-
de padrinho o seu avô materno, coronel João
dêmico de mesmo nome, este diplomata e
Crisóstomo Pinto da Fonseca, meu sogro, e de
escritor, que aqui ocupa a Cadeira 17, su- madrinha minha mãe, Dona Antônia de Melo
cedendo ao filólogo Antônio Houaiss. É ele Franco. O sacerdote que o batizou foi o cô-
quem conta: seu pai também não fora bati- nego vigário Miguel Arcanjo Torres, o mesmo
zado Arinos. Adotou o nome do tio quando que casou meu sogro, batizou-lhe a primeira
este faleceu, a instâncias da avó paterna, filha, casou-a comigo, e tem batizado os nos-
mãe do primeiro Arinos, que nele, aos 10 sos filhos.”
anos, divisava inclinação literária.
Vinculado a antecedentes ilustres, o pri- Biografia que segue
meiro Afonso Arinos nasceu em uma famí-
lia fundadora da cidade mineira de Paracatu Aos 9 anos, Afonso viajou com os pais
– os Caldeira Brant e os Melo Franco -, cujos para o interior de Goiás, onde conheceu o
remotos parentes lá chegaram no apogeu sertão e estudou em Vila Boa de Anhangue-
do extrativismo dos metais preciosos na re- ra, ou Vila Boa de Goiás, capital daquele es-
gião, para se destacarem, além da minera- tado até 1937, hoje a cidade histórica de
ção, na política, na literatura e na ciência. Goiás Velho. Aos 13, ingressou no colégio
Desse berço de ouro emergiria um ho- do Cônego Antônio José da Costa Macha-
mem de porte helênico, extraordinária sim- do, de São João del Rei. Cursou humanida-
patia, maneiras fidalgas, a contrastar com o des no Ateneu Fluminense, do Rio de Janei-
outro e mesmo Arinos que, desde os seus ro, e Direito em São Paulo.
anos mais juvenis, costumava vagar descal- Em 1889 mudou-se para Ouro Preto,
ço pelos campos, embrenhando-se nas ma- então capital de Minas Gerais. Concorreu
tas ao lado de caipiras, dos quais gostava a uma vaga de professor de História do
de ouvir as histórias e os ponteios de viola, Brasil no Liceu Mineiro e ajudou a fundar a
62 • A ntônio Torres
Faculdade Livre de Direito que, em 1892, se das grandes cidades cosmopolitas do lito-
mudaria para Belo Horizonte, sob a direção ral; até aqui, toda a atenção dos governos e
de Afonso Pena. grande parte dos recursos dos cofres públi-
Afonso Arinos foi secretário e regente cos eram empregados na imigração ou no
da cadeira de Direito Criminal, ao lado de tolo intuito de querer arremedar instituições
professores como Augusto de Lima, Silviano ou costumes exóticos. O Brasil central era
Brandão, Davi Campista e o poeta Raimun- ignorado; se nos sertões existe uma popu-
do Correia. lação, dela nada se conhece, dela não cura
Durante a Revolta da Armada, entre o governo; e eis que ela surge, numa es-
1893 e 1894, abrigou em sua casa os escri- tranha e trágica demonstração de energia,
tores Olavo Bilac, Carlos de Laet, Magalhães afirmando sua existência, e lavrando com o
de Azeredo e Coelho Neto que, suspeitos sangue um veementíssimo protesto contra
de participação naquele movimento, refu- o desprezo e o olvido a que fora relegada.
giaram-se no interior de Minas. E essa força, que assim apareceu, há de
Em 1896, partiu para a Europa, itinerá- ser incorporada à nossa nacionalidade (...)
rio que repetiria várias vezes, até o fim da Esses que foram mortos ou subjugados pe-
vida, sem deixar de escrever sobre essas via- las armas nacionais fazem parte do grande
gens. Ao regressar da primeira delas aceitou conjunto de homens (...) que vivem igno-
um convite de Eduardo Prado para assumir rados e esquecidos” - e por aí ele ia, como
a redação do seu diário O Comércio de São um dos primeiros, senão o primeiro – como
Paulo, que veio a ser empastelado na onda lembrou Alceu Amoroso Lima – a ver na
de violência antimonarquista que irrompeu Guerra de Canudos o marco para uma polí-
com a morte em combate do coronel Mo- tica de integração nacional.
reira César, comandante da segunda expe- Naquele mesmo ano de 1897, ele se ca-
dição militar derrotada pelos sertanejos de sou com Antonieta Prado, filha do conse-
Canudos. lheiro Antônio Prado, sobrinha de Eduardo
Num prefácio de Afonso Arinos, filho, a Prado, irmã de Paulo Prado, seu ex-colega
uma edição de Pelo Sertão, publicada em de faculdade, e Antônio Prado Júnior, e que
2005 na Coleção Afrânio Peixoto da Aca- passou a se assinar Antonieta Arinos. Do
demia Brasileira de Letras, vemos que em seu casamento – que teve como padrinho
outubro de 1897 o seu tio-avô publicou o visconde de Ouro Preto, último chefe do
um artigo memorável sobre a guerra que governo imperial – nasceria uma filha, Ma-
arruinava o sertão da Bahia, no qual con- ria Catarina, morta na primeira infância.
clama que “essa luta deveria merecer a Em 1901 morre Eduardo Prado, dei-
atenção dos publicistas, para ser estudada, xando duas vagas, uma nesta Academia e
não simplesmente na trágica irrupção e no a outra no Instituto Histórico e Geográfico.
desenvolvimento, mas em suas origens pro- Afonso Arinos se candidata a ambas, com
fundas, como um fenômeno social impor- sucesso, como já vimos no começo desta
tantíssimo para a investigação psicológica memória. Volta ao Rio, e à advocacia. Pu-
e o conhecimento do caráter brasileiro (...) blica na imprensa Atalaia Bandeirante e Tro-
Até aqui, só eram brasileiros os habitantes pas e Tropeiros.
M e mó r i a r e ve r e n c i a da – A f o ns o A r i n os • 63
Afonso Arinos, na qual elege três de seus O tempo, porém, não lhe tem sido tão
contos como obras-primas: Assombramen- justo quanto o foram tantos críticos e es-
to, Joaquim Mironga e Pedro Barqueiro. No critores importantes do passado, a exemplo
discurso pronunciado quando da sua posse, do Doutor Alceu – Lúcia Miguel Pereira, Au-
em 14 de dezembro de 1935, ao reveren- gusto de Lima, Olegário Mariano, sem es-
ciar o seu biografado, Alceu Amoroso Lima quecermos o próprio Guimarães Rosa, que
destacou que nos poucos, mas imortais con- não lhe negava a filiação, pelo menos em
tos que deixou, Arinos fez do sertanejo e do conversas particulares, tendo confessado a
sertão não apenas um tema literário, mas Afonso Arinos, filho, que acrescentara Vere-
uma advertência a toda a nacionalidade, e das ao seu Grande Sertão para que ele não
muito particularmente aos responsáveis pelo fosse confundido com Pelo Sertão.
seu futuro. Para o pensador que, ao chegar à Lá se vai meio século da publicação
Academia Brasileira de Letras já havia escrito da sua obra reunida num único volume
sobre quase tudo, da economia à literatu- de 903 páginas, pela editora Nova Agui
ra, da pedagogia à política, Afonso Arinos lar, sob a organização do grande mestre
dedicou-se, de corpo e alma, à defesa dos Afrânio Coutinho. Passou-se isto em 1968,
que encarnam, na sua humildade, no seu ano do centenário de Pelo Sertão e Os
anonimato, na sua indigência, o próprio co- Jagunços.
ração da pátria, preservado no misterioso e Fica aqui, portanto, em nome desta
violento sertão. O que ele queria, enfatizou Casa que lhe pertenceu, esta reverência de
Alceu, era defender a sua terra e a sua gente um sertanejo que o leu ainda no sertão da
contra a invasão do pedantismo que já vinha Bahia – pois o sertão está em toda parte – e
rondando traiçoeiramente os horizontes. muito lhe deve.
O orgulho de ser professor
Arnaldo Niskier
Ocupante da Cadeira 18 na Academia Brasileira de Letras
S
empre que entro numa universidade, Analítica nos cursos de Matemática, Física e
emociono-me ao pensar que meu Química. Depois, já na década de 60, passei
filho Celso é o mais jovem reitor do a dar aulas de Administração Escolar e Edu-
nosso país, comandante, ao lado da sua cação Comparada, cadeira na qual fiz os
Andrea, da vitoriosa Unicarioca, hoje com concursos de Livre Docente e professor titu-
quase 15 mil alunos. Mas minha memória lar. Ganhei o título de Doutor em Educação.
afetiva é igualmente invadida pela lembran- Anos mais tarde, num concurso de títu-
ça de todas as Paulinas, Irmas e Rosas do los, fixei-me na cadeira de História e Filoso-
meu caminho, professoras das primeiras fia da Educação do curso de Pedagogia, até
letras, heroínas de uma profissão eterna, a aposentadoria em 1997. Lecionei na UERJ
cuja força reside exatamente na sua imen- nada menos de 37 anos, incluindo o tem-
sa capacidade de resistir, com coragem, a po em que servi ao Colégio de Aplicação,
todas as vicissitudes, conduzindo as novas como um dos seus fundadores, ocupando a
gerações pelos caminhos do nosso desen- cadeira de Desenho Geométrico.
volvimento. Em todos esses anos fiz um extraordi-
Graças à iniciativa do reitor San Gil Jutu- nário esforço para entender o fenômeno
ca, recebi o título de Doutor Honoris Causa da educação, procurando trabalhar pelo
da UniRio, concedido a quem pode se or- seu constante aperfeiçoamento. Como pro-
gulhar de uma longa vida de magistério, na fessor dedicado e homem público, sempre
verdade mais de 60 anos de carreira. busquei separar o que era ensino do que
Minha primeira formação em nível supe- representava educação. Sem confundir as
rior foi em Matemática, na antiga Faculda- responsabilidades de cada um.
de de Filosofia, Ciências e Letras da então Servi ao governo do Rio de Janeiro, por
Universidade do Distrito Federal, na década quatro vezes, como Secretário de Estado.
de 50. Depois, a licenciatura em Pedagogia Primeiro, como Secretário de Ciência e Tec-
na Universidade do Estado do Rio de Janei- nologia da Guanabara. Depois, durante
ro. Na UERJ, comecei a lecionar Geometria quatro anos, de 1979 a 1983, quando fui
66 • A rnaldo Niskier
país, mas com os atuais recursos isso é muito inovador trabalho, abrangendo o período
difícil. Por que esconder essa realidade? de 1980-1983. Partimos da frase do escri-
Volto a falar nos meus grandes professo- tor Machado de Assis: “Afinal, somos todos
res. A primeira delas foi Dona Paulina, no Ins- fluminenses.”
tituto de Educação. Por coincidência, minha O PAEC viveu alguns princípios essen-
amada sogra, mãe da querida Ruth, a quem ciais, como a vocação energética, a cons-
devo lições por toda a vida. Em São Paulo, no trução naval, a mentalidade turística, a re-
Grupo Escolar Rodrigues Alves, onde estudei ativação do setor agrícola, a distribuição de
dois anos, tive as professoras Rosa e Irma. riqueza e o novo tônus representado pela
No Colégio Vera Cruz, no Rio, lembro do população estudantil que ultrapassava 1
professor José Pacheco, especialista em Ma- milhão de estudantes e um corpo docente
temática. Na Faculdade de Filosofia, Ciências que era superior a 70 mil professores no Rio
e Letras, os professores Ney Cidade Palmei- de Janeiro.
ro, Francisco Alcântara Gomes, Felipe Santos A qualidade do ensino foi alcançada
Reis, Haroldo Lisboa da Cunha, Luiz Caetano pelo nítido aperfeiçoamento do sistema,
de Oliveira e Faria Goes Sobrinho. De todos graças a aumentos consideráveis nos salá-
guardo uma inesquecível recordação. rios dos professores. Foi pensada uma eco-
nomia de guerra, para a superação dos pro-
blemas, a fim de viabilizar o projeto que era
A direção de escolas a nossa empresa: o Rio de Janeiro.
Além dessas lembranças dos meus tem- Propusemos uma política de educação e
pos de UDF, UEG e UERJ, devo assinalar as cultura, com atendimento a todos os níveis
três escolas médias de que fui diretor, a par de ensino, o que se fez de forma compe-
tir da década de 70. Primeiro foi o Colégio tente e cuidadosa. A melhoria do ensino
Brasileiro de Almeida, recebido das mãos da estava estritamente relacionada ao preparo
educadora Edília Coelho Garcia; depois o do professor, tanto no que se refere aos co-
Colégio Anglo-Americano e, por fim, o Insti- nhecimentos relativos a sua especialização,
tuto Souza Leão, transferido pelo educador como aos das técnicas a serem utilizadas
Roberto Leão Veloso Ebert, com as caracte- para motivar e dinamizar o processo ensino-
rísticas de escola experimental. Em cada um -aprendizagem.
desses estabelecimentos vivi a experiência O sucesso do PAEC vinculou-se aos re-
do que representava o processo educacio- cursos financeiros disponibilizados pelo go-
nal, com uma soma notável de alunos. Uma verno. Num dado momento, chegamos a
vivência bastante expressiva. aplicar 33% do orçamento, bem mais do
que os 25% determinados em lei. Essa foi
uma das razões do planejamento bem-su-
A inovação do PAEC cedido, o que marcou historicamente esse
Uma experiência notável vivida por mim, período, graças ao empenho do governa-
na SEEC-Rio, foi a elaboração do Plano de dor Chagas Freitas.
Ação de Educação e Cultura (PAEC), no O reconhecimento do sucesso che-
Estado do Rio de Janeiro. Foi um bonito e gou no governo seguinte. Quando Leonel
68 • A rnaldo Niskier
Brizola venceu a eleição (contra a situação), têm obtido bons resultados no processo
para surpresa geral, fez-me o convite para ensino-aprendizagem.
ser membro do Conselho Estadual de Edu- A Base Nacional Comum Curricular
cação. Situando-me acima dos interesses (BNCC) abre uma nova fase na educação
político-partidários, aceitei o oferecimento brasileira. Resultado de intensa participação
e integrei o CEE, até que precisasse optar da sociedade, a primeira versão, lançada
pelo Conselho Federal de Educação. em 2015, recebeu 12 milhões de contribui-
Estamos vivendo tempos difíceis. As mu- ções e deu origem à segunda, em maio de
danças de grande amplitude que caracteri- 2016. A versão final incorpora sugestões de
zam a sociedade contemporânea vêm cau- 9 mil professores e especialistas e estabele-
sando um impacto de proporções inéditas ce, entre outros pontos, que toda criança
no campo educacional, particularmente no deve estar plenamente alfabetizada até o
que concerne à juventude. O aumento cres- fim do segundo ano, entre 6 e 7 anos de
cente da demanda por mais escolaridade, a idade – um ano antes do prazo previsto pela
versão anterior. O documento, que servirá
busca por novas formações, a necessidade
como referência para o currículo de todas
de percursos curriculares mais flexíveis, a
as escolas do país, foi entregue ao Conselho
existência de recursos pedagógicos tecno-
Nacional de Educação (CNE) para avaliação
logicamente avançados, o advento da in-
e, até o final do ano, deve ser homologado
ternet e das redes sociais e a comprovada
pelo MEC.
limitação das metodologias mais ortodoxas
As escolas terão dois anos para se ade-
tornam evidente que a escola, como é hoje,
quar às novas diretrizes. Entre outros pon-
não atende às expectativas e necessidades
tos, o documento exclui o ensino religioso e
da juventude brasileira. Espera-se a imple-
indica a Língua Inglesa como idioma estran-
mentação da nova Base Nacional Comum
geiro a ser ensinado. Outros pontos cha-
Curricular, com um revolucionário ensino
maram atenção da nova versão da BNCC:
médio, como pretendia o ministro Mendon-
o texto traz dez competências para a edu-
ça Filho. Já era tempo dessa mudança, que, cação básica. A Base determina o que é es-
na verdade, melhor seria se abrangesse sencial, quais habilidades e conhecimentos
todo o sistema, com uma nova lei de diretri- serão exigidos dos estudantes ao final de
zes e bases da educação nacional. Estamos cada ano letivo da educação básica. O pas-
na expectativa de novos dias. so mais difícil, sem dúvida, será tirar o novo
A escola tem sido pressionada a inte- currículo do papel. A Base não é currículo.
grar a educação com tecnologias eletrôni- Não estabelece método de ensino, proje-
cas, mas nem todos os espaços físicos estão to pedagógico nem formas de avaliação.
adaptados para receber os equipamentos, e Apenas determina o ponto aonde se quer
muitos docentes ainda não dispõem de co- chegar.
nhecimentos teóricos e práticos para o uso Ao definir conhecimentos essenciais e
dos novos recursos didáticos. Os ambientes competências que todo aluno deve desen-
que conseguiram reunir as condições ma- volver, a Base estabelece direitos iguais de
teriais e os recursos humanos qualificados aprendizagem, organizando a progressão
O o r g u l h o d e s e r p ro f e sso r • 69
comprometido. Segundo especialistas, co- devem ter fluência na leitura e nas opera-
nhecer o funcionamento do cérebro contri- ções matemáticas. Português e matemática
bui para o rendimento dos estudantes. são duas disciplinas estruturantes, que per-
Pesquisas recentes revelam que a neu- mitirão progredir nas outras. Isso permite
rociência potencializa a inteligência dos alu- aos alunos libertar a mente para as outras
nos. O professor precisa trabalhar a mesma atividades de ordem cognitiva. É impossí-
informação de modos diferentes, buscando vel aplicar criativamente conceitos se não
as individualidades e tornando as aulas atra- se conhecem esses conceitos. Não se pode
entes. Para prestar atenção em algo, o cére- saltar etapas.
bro está sempre lutando contra pensamen- As escolas não são máquinas de ensino.
tos e elementos visuais que se dispersam. O papel de liderança do professor é funda-
É preciso buscar melhores caminhos para a mental para reverter a situação mecanicista
assimilação de informações, reforçando a que ainda predomina em nossas salas de
necessidade de se combater um modelo de aula. Mas para isso é necessária a mudança
ensino que reduz a aprendizagem à memo- na cultura organizacional, criando-se um cli-
rização de conteúdos. ma motivador à participação e à criatividade.
Não por acaso, vemos professores inves-
tindo em práticas ligadas à música e à drama-
UNIRIO
tização em suas aulas. Os ritmos e sons abrem
muitas conexões para a memória de longo Homenagear, em qualquer situação,
prazo, que é a que fixa a aprendizagem. os professores é uma questão de justiça.
O professor é o agente educacional bási- Devemos ser gratos a esses heróis que
co. É ele quem interage com o aluno quase transformam vidas e são dominados por
o tempo todo. Por paradoxo, o magistério, belíssimos sonhos. Homens e mulheres,
em geral, não recebe a consideração mere- assim envolvidos, merecem o nosso mais
cida e, por frustração, reage inconsciente- profundo respeito.
mente, adotando atitudes incompatíveis às Hoje, a homenagem que presto aos pro-
suas funções. fessores se volta para a figura do reitor des-
Por mais controvérsias que existam so- ta Universidade, Luiz Pedro San Gil Jutuca.
bre métodos de ensino, um conjunto de Com 827 docentes, a UNIRIO originou-
ideias virou praticamente consenso entre -se da Federação das Escolas Isoladas do Es-
educadores nas últimas décadas. Algumas tado da Guanabara (FEFIEG), criada no dia
delas: o aluno deve gostar do que apren- 20 de agosto de 1969. Com a fusão dos
de; decorar informações é negativo; e de- Estados da Guanabara e do Rio de Janeiro,
senvolver competências como pensamento em 1975, a FEFIEG passou a denominar-
crítico, mais do que ensinar o conteúdo cur- -se Federação das Escolas Federais Isola-
ricular, é o verdadeiro papel da escola do das do Estado do Rio de Janeiro (FEFIERJ).
século XXI. Dois anos mais tarde, foram incorporados à
A verdadeira pedagogia moderna, ba- FEFIERJ o Curso Permanente de Arquivo (do
seada nas ciências cognitivas do século XXI, Arquivo Nacional) e o Curso de Museus (do
mostra que não basta saber ler. Os jovens Museu Histórico Nacional).
O o r g u l h o d e s e r p ro f e sso r • 73
Em 5 de junho de 1979, a FEFIERJ foi ins- agruras de baixos salários, o que vem de
titucionalizada com o nome de Universidade longe. A escritora Clarice Lispector falava
do Rio de Janeiro (UNIRIO). E, em 24 de outu- de alegrias e agonias na profissão que ela
bro de 2003, alterou o nome da Universidade também respeitava muito. Gostaria de en-
para Universidade Federal do Estado do Rio contrar no mestre a figura do orientador ou
de Janeiro, mas a sigla UNIRIO foi mantida. facilitador de aprendizagem, para atribuir-
Oferece atualmente 48 cursos de gra- -lhe a devida importância, fazendo do amor
duação e 79 de pós-graduação. Alguns a sua maior arma.
cursos lecionados na UNIRIO são bastante Dos que concluem o ensino médio, hoje
tradicionais e prestigiados, – vários deles no Brasil, somente 2% se voltam para o
pioneiros em suas respectivas áreas – mui- magistério como profissão. Os sacrifícios
tos datando do início do século XX, como impostos aos professores brasileiros nem
os de Medicina – que completou 100 anos sempre têm o devido reconhecimento da
em abril de 2012. sociedade. Mas existe a convicção de que
Temos hoje no Brasil mais de 2,5 mi- eles são fundamentais para o nosso futuro
lhões de professores. Muitos felizes por e como são importantes para a educação
sua inequívoca vocação, mas sofrendo as brasileira, hoje e sempre.
Autor captura a realidade do
migrante num país em transe
Ronaldo Cagiano
Poeta e escritor
F
inalmente chega a Portugal um dos onde o sonho de triunfar na grande cidade
mais importantes escritores brasileiros, se transforma em grande fracasso”. E a fi-
cuja obra é um marco na bibliografia gura de Totonhim, o narrador-testemunha
brasileira por fazer um recorte da realida- da transição por que passam os persona-
de de um país em transformação a partir gens e o País, é um elo entre o presente
da realidade de seus personagens, particu- e o passado, território físico e afetivo onde
larmente o migrante nordestino, que, em deambulam os sonhos, esperanças, frus-
grande marcha desde os anos cinquenta do trações, fracassos e fantasmas de cada um
século passado, deixou o interior agreste e nesse percurso entre as suas origens e o
sem perspectivas para tentar a vida e a sorte mundo idealizado da metrópole.
nas grandes metrópoles. Essa terra – um dos mais emblemáticos
Já tendo vivido alguns anos em Lisboa na e aclamados romances do autor – panora-
década de 60, Antônio Torres é (re)descober- miza a família pobre e sem horizontes, ao
to em Portugal em dose tripla, com a publi- deslindar a figura de Nelo, que mudou para
cação pela Editora Teodolito, de três de seus São Paulo à procura de emprego e melhores
principais romances: Essa terra, O cachorro condições de vida e depois retorna a Junco,
e o lobo e Pelo fundo da agulha, trilogia seu torrão natal, sem outra sorte, senão o
que tematiza esse deslocamento geográfico, próprio fracasso e as marcas psicológicas
temporal e psicológico de seus protagonis- e materiais dos impactos em sua vida. Ao
tas, cujo lançamento aconteceu recente- voltar, sem eira nem beira, depois de sua
mente na Livraria Ferin, com apresentação mulher tê-lo largado para viver com um pri-
da escritora Teolinda Gersão e presença do mo, tendo sofrido o diabo nas mãos da po-
seu editor Carlos da Veiga Ferreira. lícia, suicida-se após uma bebedeira com o
76 • R onaldo Cagiano
irmão Totonhim, vergado pelo peso de seu mundo com as lentes ou o farol de sua ex-
próprio destino que lhe torceu a corda ao periência. Aqui reside a grande metáfora
pescoço. do livro, pois pelo pequeno orifício ela con-
Em O cachorro e o lobo, concebido vinte segue passar o seu fio existencial e resga-
anos após Essa terra, Torres dá sequência à tar pela memória os tantos tempos de uma
crônica existencial dessa geografia permeada vida, sem perder a direção ao remendar o
de dissabores e diligenciado por contrastes tecido das lembranças. O filho mergulha
que se alternam na saga de uma família de nessa sombra em que os diversos tempos
migrantes. Aqui, quem toma as rédeas é An- e nuances da caminhada se interpenetram
tão (Totonhim), cuja experiência igualmente numa relação simbiótica, em que os para-
dilacerante tece no seu inconsciente uma doxos e possibilidades da trajetória indivi-
aguda e cáustica observação sobre um des- dual (ou coletiva) constituem parte de um
tino comum. Preparando-se para regressar, discurso narrativo cáustico, mas profunda-
após o suicídio do irmão Nelo e para come- mente humano e poético, em que emer-
morar os oitenta anos do pai, encontra um ge uma (in)tensa e densa reflexão sobre
ambiente transformado, que lhe apresenta o nosso destino, a identidade perdida, a
um cenário de melancolia e puro desalento: procura de nossas raízes e ancestralidade,
“E assim se passaram vinte anos, pensarei, quando já se aproxima o inevitável crepús-
ao chegar lá. Assim se passaram vinte anos culo, estação de que não se pode fugir.
sem eu ver estes rostos, sem ouvir estas vozes,
Ao chegar a Portugal, a obra de Antônio
sem sentir o cheiro do alecrim e das flores do
Torres celebra não apenas a vitalidade da
mês de maio.”
ficção brasileira contemporânea, na voz de
Então, depara-se com um Junco diferen- um de seus mais virtuosos escritores, mas
te, inclusive o progresso sulcando mudanças acima de tudo apresenta um caleidoscópio
na cidade, no rosto e na alma das pessoas, sem distorções de um cenário tão pouco
como em seu pai, que já não o reconhe- explorado pela literatura em nosso País.
ce, e nesse diapasão de interdições, vão se Aborda esse drama tão antigo e que se re-
desenrolando, entre memórias e espantos, nova cada vez que a sociedade e o Estado
recordações da infância, as cicatrizes da entram em crise, obrigando seus filhos a (i)
ausência, a marca inexorável do tempo em migrarem, seja dentro da própria terra ou
suas vidas e corações. atravessando oceanos, para escapar à cruel-
Pelo fundo da agulha fecha com chave dade que lhes é imposta pela condição po-
de ouro a trilogia desse sutil mapeamento lítica, econômica ou social, como é o ciclo
geográfico, existencial e afetivo, focando que hoje estamos experimentando.
em Totonho, já aposentado, mas solitário A bibliografia de Antônio Torres home-
na cidade grande, tendo perdido a mu- nageia o que há de melhor na prosa lusó-
lher, os filhos para a separação, e o me- fona e também atualiza essa percepção
lhor amigo. Nessa viagem de retorno, dez de um país em transição, cujas metamor-
anos depois, para rever a mãe, já velha, foses têm alterado vidas e separado famí-
mas profundamente lúcida e com visão lias, em busca de uma sorte imponderável
privilegiada que ainda lhe permite olhar o e imprevisível noutros sítios. A exemplo de
A u to r c a pt u r a a r e a l i da d e d o m i g r a n t e n u m pa í s e m t r a ns e • 77
Faulkner, Gabriel García Márquez, Juan Car- Torres é caudatário de uma exígua famí-
los Onetti e Juan Rulfo, que em suas míticas lia de escritores – nas quais podemos incluir
Yoknapatawpha, Macondo, Santa María e Amando Fontes, Roniwalter Jatobá e Luiz
Komala reverberaram os conflitos e dilemas Ruffato – que, peculiarmente, realizam uma
próprios do ser, as situações e vivências de imersão literária por meio de seus romances
sua universal e tolstoiana Junco são encon- em nosso Brasil profundo, incursionando
tradiças em qualquer sertão do mundo, por nossas diásporas internas, numa fiel e
pois as histórias desse baiano cosmopolita autêntica cartografia dos deserdados, insu-
de Sátiro Dias são especulares dos temas ou larizados, deslocados e proletários de todos
tormentos que atravessam a humanidade os tempos e lugares que habitam nossa his-
em qualquer tempo e lugar. tória como povo e nação.
Euclides vive: Dedicatórias
P
edindo a devida licença a Alexei Bueno, foi orçada em 520.300 (quinhentos e vinte
cometemos a ousadia de tomar em- mil e trezentos réis), com cerca de 500 itens.
prestado o título de sua bela obra Ma- Da biblioteca de Euclides, sabemos do
chado vive: dedicatórias, editada em 2008 e seu teor por conta do inventário detalha-
cujo nome também intitulou a exposição que do; da de Machado, o inventário informa
a Academia Brasileira de Letras preparou na- apenas a quantidade, numa contagem pro-
quele mesmo ano em homenagem ao cente- vavelmente feita por estimativa. Sua catalo-
nário de morte de seu presidente perpétuo. gação somente surgiu nos anos 60 do sé-
Se no livro organizado por Alexei é possível culo XX, levantada por Jean-Michel Massa;
apreciar nada menos que 164 (cento e sessen- contudo, àquela altura mais da metade da
ta e quatro) dedicatórias escritas por diversos biblioteca havia se perdido.
amigos em livros oferecidos a Machado de Em seu registro, Massa listou pouco mais
Assis, o mesmo, infelizmente, não podemos de 700 itens (todos encadernados), guarda-
falar de Euclides da Cunha. A vantagem que a dos na casa da única herdeira do escritor:
preservação da biblioteca de Machado possui d. Laura Costa Leitão de Carvalho, sobrinha
perante a de Euclides é incomparável. Ambas de Carolina. Aquela primeira avaliação, por-
as bibliotecas sofreram duros desfalques, po- tanto, ignorou cerca de 300 volumes enca-
rém, a daquele possui uma unidade, enquan- dernados, o que elevaria o número de itens
to a deste foi desmantelada, encontrando-se para mais de 1.700. E a biblioteca poderia
parcos exemplares aqui e ali. ser ainda maior, pois cerca de 200 volumes
Reunindo cerca de 1.400 itens entre vo- foram doados a destinatário ignorado ainda
lumes encadernados (400), brochuras (600) antes de se lavrar o inventário. Massa não
e fascículos de revistas (400), a biblioteca encontrou as brochuras e fascículos por-
de Machado foi avaliada em 1:020.000 (um que foram destruídos nos anos 40 do sé-
conto e vinte mil-réis) cerca de 40 dias após culo passado pelas intempéries do tempo,
a sua morte; a de Euclides, por sua vez, de enquanto estavam mal armazenados numa
acordo com o seu inventário, somente le- garagem. Dos pouco mais de 700 volumes
vantado seis meses após seu falecimento, por ele catalogados, cerca de 640 fazem
80 • Felipe Pereira Rissato
hoje parte do acervo da Biblioteca Lúcio de Castro Alves e seu tempo (1907): 11 [onze]
Mendonça, da ABL, além de outros recebi-
Essa foi a disposição que optamos para a
dos pela Instituição por outras mãos.
exibição das dedicatórias neste trabalho: or-
Herdada por Euclides da Cunha Filho, o
dem de publicação de cada título e/ou edição.
Quidinho, e por este deixada com o seu tutor,
As dedicatórias podem revelar o estado
José Carlos Rodrigues, proprietário do Jornal
de espírito do autor ao transpô-las no papel.
do Commercio (RJ), o que sobrou da biblioteca
No caso de Euclides, o escritor frequente-
de Euclides foi doada por Rodrigues à Bibliote-
mente reclama em sua correspondência da
ca Nacional em 1916, após a morte de Quidi-
falta de tempo que tem para conversar (por
nho. Não é possível, porém, quantificar e tam-
carta) com seus interlocutores, sobrecarrega-
pouco qualificar o que foi doado. No catálogo
do pelos trabalhos de engenharia; e isto se
da BN é possível encontrar alguns volumes
reflete na maioria de suas dedicatórias, algu-
que pertenceram ao escritor, com assinatura
mas extremamente breves. Noutras, porém,
de posse na página de rosto, mas é certo que
seu característico tom autoirônico transpare-
muito do que consta no inventário não teve
ce, mesmo que sutilmente. Seria, portanto,
como destino aquela Instituição; assim como
um desperdício deixá-las encerradas apenas
também é possível encontrar exemplares que
nos livros onde se encontram. Reuni-las aqui
lhe pertenceram e sequer foram inventariados.
não somente franqueia ao público o acesso
Fazendo o caminho inverso da mencio-
a esses microtextos do autor (sobretudo iné-
nada obra de Alexei Bueno, este ensaio tem
ditos e, por isso, pouco estudados), escritos
por objetivo a reunião das dedicatórias que
sem intenção de publicidade, como também
o próprio Euclides inscreveu nos livros en-
permite imaginá-lo numa singular noite de
viados a amigos, parentes e admiradores,
autógrafos, assinando toda a sua obra.
dada a dificuldade de encontrar quantidade
O primeiro exemplo de dedicatória de
satisfatória de exemplares a ele ofertados,
Euclides, porém, é curioso, visto que não se
devido à dispersão sofrida por sua biblio-
trata de uma de suas próprias obras e, por
teca após a sua morte e mesmo em vida,
isso, não está inserida na contagem acima.
como veremos mais adiante. Tivemos sorte,
Ainda jovem, aos 20 anos, ele ofertou um
contudo, de encontrar cinco desses exem-
exemplar de Éloquence et improvisation, de
plares, aqui também arrolados.
Eugène Paignon, a um amigo. O livro lhe
Voltando às dedicatórias euclidianas, fo-
pertencia, visto conter sua assinatura e ca-
ram estas coligidas num total de 66 (sessen-
rimbo de posse, e no verso da página 475
ta e seis), assim distribuídas:
ter ele escrito algumas notas de leitura da-
Os Sertões (1902): 6 [seis] tadas de 6 de agosto de 1883 e transcritas
Os Sertões (1903, 2.a ed.): 3 [três] pela primeira vez na 4.a página do Jornal do
Os Sertões (1905, 3.a ed.): 4 [quatro] Commercio (RJ) em sua edição de 25 de se-
Relatório da Comissão mista Brasileiro-Pe- tembro de 1923, quando o volume foi doa-
ruana de reconhecimento do Alto Purus do pelo diplomata Mário de Lima Barbosa,
(1906): 4 [quatro] que o encontrou numa casa de “alfarrabis-
Contrastes e confrontos (1907): 10 [dez] tas”, à Academia Brasileira de Letras por
Peru versus Bolívia (1907): 23 [vinte e três] intermédio do Acadêmico Felix Pacheco.
Contrastes e confrontos (1907, 2.a ed.): 5 [cinco] A dedicatória, até hoje inédita, é a seguinte:
E u c l i d es v i ve : D e d ic at ó r i as • 81
Os sertões (1902)
Acervo: Casa de Cultura
Euclides da Cunha, São
José do Rio Pardo (SP)
1.ª publicação
(fac-símile): Os Sertões:
80 anos de publicação.
São Paulo: Imprensa
Oficial, 1982.
1 Essa data, inscrita no exemplar de Os Sertões que Euclides entregou ao cunhado Otaviano Vieira, casado com sua
irmã Adélia, é considerada pela tradição como a do lançamento do livro, visto ser anterior à primeira crítica apare-
cida na imprensa, publicada no dia seguinte no Correio da Manhã (RJ) e assinada pelo Acadêmico José Veríssimo.
Contudo, é plausível considerar que a obra-prima de Euclides tenha sido lançada alguns dias antes, pois, se lançada
no dia 2, não haveria tempo hábil para o crítico redigir sua resenha.
82 • Felipe Pereira Rissato
A dedicatória como hoje infelizmente se encontra: cortada devido a uma nova reenca-
dernação e consequente refilamento das margens. Ao longo deste trabalho veremos outros
exemplos, com os trechos cortados entre colchetes.
A Júlio de Mesquita
e Aos bons companheiros do “Estado de S. Paulo”
8-12-902
Euclides da Cunha
E u c l i d es v i ve : D e d ic at ó r i as • 83
A Luiz Murat.
Euclides da Cun[ha]
Rio – 30-12-902
[A Alberto Rangel,]
este poema de heroísmo e de brutalidade.2
2 Dedicatória não localizada em manuscrito, publicada em VENÂNCIO FILHO, Francisco. A Glória de Euclydes da
Cunha. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1940. p.68. Não há referências de que tenha sido inscrita em algum
exemplar da primeira edição; assim inferimos por Rangel e Euclides serem amigos de longa data, colegas na Escola
Militar da Praia Vermelha (RJ).
84 • Felipe Pereira Rissato
Ao Exmo. Sr. Dr. Rui Barbosa – este pequeno sinal da minha profunda veneração.
Lorena – 7-7-903.
Euclides da Cunha
3 Dedicatória não localizada em manuscrito, proferida por Firmo Dutra na conferência “O Euclides que eu conheci”,
na Semana Euclidiana de 1951 em São José do Rio Pardo (SP). Publicada no Jornal de Notícias (SP), 21 out. 1951, p.2.
Anteriormente, Firmo apenas a mencionou, sem citar-lhe o conteúdo, no artigo “Euclides da Cunha: um capítulo da
sua vida”, estampado no Diário de Notícias (RJ), 25 fev. 1934, p.7.
E u c l i d es v i ve : D e d ic at ó r i as • 85
4 A julgar pela data da dedicatória, certamente o político e jurista James Darcy (1876-1952) levou o exemplar para
que Euclides o autografasse. É muito pouco provável que o escritor ainda possuísse exemplares da 2.a edição para
distribuir cinco anos depois de editada, mesmo porque a 3.a também já havia sido lançada.
86 • Felipe Pereira Rissato
5 De todas as dedicatórias aqui arroladas, esta é a única na qual Euclides se assina simplesmente “Autor”.
88 • Felipe Pereira Rissato
A Olavo Bilac,
ofe. o admor. e confrade
Euclides da Cunha
Rio – 6-3-907
E u c l i d es v i ve : D e d ic at ó r i as • 91
8 Dedicatória não localizada em manuscrito, publicada em A Federação, Porto Alegre, 26 mar. 1907, p.1. João
Francisco Pereira de Souza (1866-1953), alcunhado como a “Hiena do Cati” e membro da Guarda Nacional atuante
na repressão à Revolução Federalista (1893-1895), recebeu a dedicatória por intermédio de Coelho Neto, que teria
desfeito em Euclides o conceito que este fazia do coronel gaúcho.
9 “Ainda agora o Aparício oriental tem uma larva, o João Francisco rio-grandense: acorrentai o primeiro num posto
sedentário, e tereis o molosso ferocíssimo da fronteira; arremessai o segundo pelo revesso das coxilhas, e vereis o
caudilho...” (“Heróis e Bandidos”). Apesar da ressalva de Euclides na presente carta-dedicatória, na 2.ª edição de
Contrastes e confrontos publicada ainda em 1907, nada foi alterado, permanecendo a redação da edição anterior,
sucedendo-se nas demais.
E u c l i d es v i ve : D e d ic at ó r i as • 93
10 Segundo o artigo “Euclides da Cunha visto através [de] Gastão da Cunha”, de Rodrigo M. F. Andrade, publicado
em O Jornal (RJ), 6 jan. 1925, p.5, um exemplar de Contrastes e confrontos trazia a seguinte dedicatória: “À ironia
triunfal e vingadora de Gastão da Cunha”. Teria Euclides entregue outro volume ao amigo quando foi lançada a
segunda edição? Improvável. Acreditamos que o articulista tenha se enganado, sendo a dedicatória pertencente a
um dos outros dois títulos possíveis: Os Sertões ou Castro Alves e seu tempo, visto que as dedicatórias no Relatório
e em Peru versus Bolívia, aqui transcritas, são também diferentes daquela divulgada no referido artigo. Dada essa
dúvida, a dedicatória não entrou no cômputo do presente trabalho.
94 • Felipe Pereira Rissato
11 Curiosamente existem duas primeiras edições de Peru versus Bolívia, ambas de 1907. Fruto de oito artigos publi-
cados no Jornal do Commercio (RJ) entre julho e agosto daquele ano, ainda em agosto saía o volume publicado pela
tipografia desse mesmo periódico. A outra edição, simultânea, traz como editora a Livraria Francisco Alves. Das 23
dedicatórias aqui arroladas, apenas duas foram inscritas em exemplares publicados pela Francisco Alves: os ofertados
a João do Rio e Rui Barbosa.
E u c l i d es v i ve : D e d ic at ó r i as • 95
A Coelho Neto,
Euclides
Rio – Set. 1907
96 • Felipe Pereira Rissato
A Plínio Barreto, o
Euclides
Set – 1907
Ao Otaviano, o
Euclides
Rio – Seto. 1907
Set – 190712
A Gastão da Cunh[a], do
Euclides
Set – 1907
12 Triste vandalismo. A dedicatória, irremediavelmente perdida, foi arrancada com fita adesiva! Só restou a data com
a letra de Euclides.
98 • Felipe Pereira Rissato
A Francisco Guimarães,
do admirador... da sua admiração,
Euclides da Cunha
Set. 1907
A João do Rio,
Cordialmte.
Euclides
Set – 1907
Ao
Instituto Histórico e Geográfico [Brasileiro]
A Otaviano, o
Euclides
Rio – 1907
A Felix Pacheco,
o idealista da Morte e do Amor,16 ofe.
Euclides da Cunha
Dezembro de 1907
À Redação da “Tribuna”
ofe.
Euclides da Cunha
Dezembro 1907
16
O acadêmico Felix Pacheco (1879-1935), redator-chefe do Jornal do Commercio (RJ) é autor do livro de versos
Mors-Amor (1904).
106 • Felipe Pereira Rissato
A Coelho Neto, do
Euclides
Rio – 1-1-908
No tocante às dedicatórias inscritas por Euclides, abrimos o presente trabalho com uma
dedicatória sua, na juventude, em obra alheia. Curiosamente, encerramos as transcrições
de suas dedicatórias com outra, também deixada em obra alheia, já na maturidade. Trata-se
de Juicios sobre Martín García y la jurisdicción del Plata, de Agustín de Vedia, resenhado por
Euclides em duas edições do Jornal do Commercio (RJ).
E
uclides da Cunha era um infatigável missivista e em suas inúmeras cartas não são pou-
cos os exemplos nos quais podemos notar a remessa de seus livros a diversos amigos.
O mesmo ocorre em sua correspondência passiva, com o agradecimento por parte
desses. Não é o propósito deste ensaio, porém, enumerar quais dessas referências são de-
dicatórias incógnitas, ainda por se descobrir o teor. No entanto, a existência de dedicatórias
com indicação anterior de acervo e cujo paradeiro hoje é desconhecido, vale registro:
N
as páginas seguintes, damos amostra do que foi possível encontrar da biblioteca
pessoal de Euclides, conforme dissemos na abertura deste trabalho.
Euclides da Cunha no gabinete de sua residência, à rua Nossa Senhora de Copacabana, 23H, Rio de Janeiro (RJ).
A Illustração Brazileira, Rio de Janeiro, ano 1, n. 6, 15 ago. 1909, p.99. O armário situado atrás do escritor
pertence à Casa de Cultura Euclides da Cunha, São José do Rio Pardo (SP).
E u c l i d es v i ve : D e d ic at ó r i as • 111
Vai este seco livro de crítica18 procurar nas brenhas assombrosas do Alto Amazonas,
e levar-lhe um abraço fraternal e os votos de felicidades, ao poeta dos jagunços,
ao bom e grande Euclides da Cunha
José Veríssimo
Rio, 11 out. 905
18 Dedicatória inscrita em um exemplar de VERÍSSIMO, José. Estudos de Literatura Brasileira. 5 ª Série. Rio de Janeiro/
Paris: H. Garnier, 1905.
112 • Felipe Pereira Rissato
Amo. Euclides
Envio-lhe esta nova edição popular19 do breviário que v. mais frequentemente manuseia.
Como a introdução é de Irving, e existem junto ao texto umas policromias de gosto, pensei
que lhe seria agradável possuir esse exemplar, portátil, e muito próprio para ser lido, em
dias estivais, no Mangrulho da arte.
Rio . 12.2.907.
Araripe Júnior
19 Dedicatória inscrita no volume das obras completas de Shakespeare (The complete works of William Shakespeare),
encontrado em um baú na casa de Dilermando de Assis quatro dias após a tragédia da Piedade, na qual Euclides
da Cunha foi morto. A página com a dedicatória, arrancada do livro, foi leiloada em agosto de 2013 a uma coleção
desconhecida. Na diligência policial, foi também encontrado e apreendido um exemplar de Como se cura um louco
(ou Cura de um louco), de Selma Lagerlöf (1858-1940), com o sinete de Euclides, conforme noticiaram os jornais de
20 de agosto de 1909.
20 Dedicatória inscrita em um exemplar de Memória da Comissão mista Brasileiro-Peruana de reconhecimento do Rio
Juruá e Relatório do comissário brasileiro (1904-1906). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1907.
E u c l i d es v i ve : D e d ic at ó r i as • 113
21 Dedicatória inscrita em um exemplar de GOMES, Tapajós. Através do Vº Ano: (Bacharelandos de 1907). São Paulo:
D
os cinco títulos aqui coligidos com Cecil H. Green Library, Stanford University (USA): Nan
Mehan
dedicatórias para Euclides, nenhum Fundação Casa de Rui Barbosa/RJ: Cláudio Vitena, Leonar-
faz parte da listagem de sua biblio- do Pereira da Cunha, Raquel Cristina da Silva Tiellet
Oliveira, Monique da Silva Cabral
teca feita para o seu inventário. Nessa lista, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro/RJ: Sônia N. de
foram arrolados “8 Vols. of Shakespeare Lima
Leopoldo M. Bernucci
(edição de luxo e bolso)”; não se tratando, Maciel Livros/MS: Samuel Duarte
Museu da Justiça/RJ: Isabela Motta de Aragão Maglione
portanto, do volume das obras completas
Oliveira Lima Library, The Catholic University of America
de Shakespeare, que continha a dedicató- (USA): Thomas M. Cohen, Joan R. Stahl
Pedro Corrêa do Lago
ria de Araripe Júnior e que estava de posse Real Gabinete Português de Leitura/RJ: Vera Lúcia de Al-
de Dilermando de Assis quando o escritor meida
DOYLE, Plínio. “O inventário de Machado de Assis”. In: Re- O Estado de S. Paulo, São Paulo, 11 nov. 1932.
vista da Sociedade dos amigos de Machado de Assis, O Jornal, Rio de Janeiro, 6 jan. 1925.
Rio de Janeiro, n. 2, 21 jun. 1959, p.12-13. O Paiz, Rio de Janeiro, 20 ago. 1909; 21 ago. 1909.
GALOTTI, Oswaldo et al. Os Sertões: 80 anos de publica- PAIGNON, Eugène. Éloquence et improvisation: art de la
ção. São Paulo: Imprensa Oficial, 1982. parole oratoire au barreau, a la tribune, a la chaire.
GOMES, Tapajós. Através do V.º Ano: (Bacharelandos de Paris: Auguste Durand, Libraire-éditeur, [s.d.].
1907). São Paulo: [s.n.], 1907. PIRES, Rogério; ROSENBAUM, Paulo. 3.o Leilão de livros ra-
JOBIM, José Luís. A biblioteca de Machado de Assis. Rio de ros e papéis antigos. São Paulo: Fólio Livraria, 2005.
Janeiro: Topbooks/ABL, 2001. PIZA, Daniel. Academia Brasileira de Letras: histórias e reve-
Jornal de Notícias, São Paulo, 21 out. 1951. lações. São Paulo: Dezembro Editorial, 2003.
Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 20 ago. 1909; 21 Prefeitura de São Paulo. Biblioteca Municipal Mário de An-
ago. 1909; 25 set. 1923; 3 jun. 1956. drade. Disponível em: <http://docvirt.no-ip.com/demo/
Juízo de Direito da 1.a Vara de órfãos e ausentes. Inventário bma/bma.htm>. Acesso em: 4 set. 2013.
– Euclides da Cunha. 1909. (Manuscrito) REIS, Antonio Simões dos. Bibliografia da crítica literária em
LAGO, Pedro Corrêa de. Documentos & autógrafos brasilei- 1907 através dos jornais cariocas. Rio de Janeiro: Casa
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_____. Brasiliana IHGB. Rio de Janeiro: Capivara, 2014. Revista do Gremio Euclydes da Cunha, Rio de Janeiro, 15
MACHADO, Ubiratan. Dicionário de Machado de Assis. Rio ago. 1933.
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MENDONÇA, Belarmino. Reconhecimento do Rio Juruá em: <http://www.stf.jus.br/bibliotecadigital/Dominio-
(1905). São Paulo: Itatiaia, 1989. Publico/18620/pdf/18620.pdf>. Acesso em: 26 ago.
Ministério das Relações Exteriores. Memória da Comissão 2014.
mista Brasileiro-Peruana de reconhecimento do Rio Ju- VEDIA, Agustín de. Juicios sobre Martín García y la jurisdic-
ruá e Relatório do comissário brasileiro (1904-1906). ción del plata. Buenos Aires: Imprenta y Casa editorial
Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1907. de Coni Hermanos, 1908.
_____. Relatório da Comissão mista Brasileiro-Peruana de VENÂNCIO FILHO, Francisco. A Glória de Euclydes da Cunha.
reconhecimento do Alto Purus. Notas complementares São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1940.
do comissário brasileiro (1904-1905). Rio de Janeiro: VERÍSSIMO, José. Estudos de Literatura Brasileira. 5.a Série.
Imprensa Nacional, 1906. Rio de Janeiro/Paris: H. Garnier, 1905.
O romance em Maura Lopes
Cançado
Gilberto Araújo
Professor adjunto de Literatura Brasileira (UFRJ) e autor de
Literatura brasileira: pontos de fuga (2014), dentre outros
“Pretendo mesmo escrever um livro. Talvez Envolveu-se (diz-se) com um terapeuta: lou-
já o esteja fazendo, não queria vivê-lo.” ca! Publicou um livro intitulado Hospício é
C ançado , 2015: 58 1 Deus: louca! Acreditava-se a maior escritora
C
não da literatura brasileira, mas da língua
riança, penava de tafofobia, medo
portuguesa: louca! Estrangulou uma inter-
de ser enterrada viva: louca! Aos
na de hospício, negra, grávida, de 19 anos:
12 anos, quis aprender alemão
louca! Permaneceu reclusa na Penitenciária
para ser espiã nazista: louca! Mãe e casa-
Lemos de Brito, infestada de ratos e inse-
da aos 14: louca! Divorciada aos 15 porque
tos: louca! Liberta, mudou-se mais de dez
se apaixonou pelo sogro: louca! Deixou o
vezes de residência por indispor-se com vi-
filho aos cuidados da avó a fim de continu-
zinhos e porteiros: louca! Exigiu que o filho
ar os estudos: louca! Recusada em colégio
lhe arranjasse carregador de compras, pois
religioso devido ao matrimônio desfeito:
dama de sua estirpe não poderia executar
louca! Única mulher matriculada em ae-
atividade tão subalterna: louca! Mesmo na
roclube para obter brevê de piloto: louca!
penúria, vestia-se e maquiava-se luxuosa-
Ainda sem habilitação, decolou e fez pou- mente, estourando o cartão de crédito do
so de emergência sobre uma casa: louca! filho: louca! Enfim, Maura Lopes Cançado:
Antes dos 20, internou-se voluntariamente louca! louca! louca!
em casa de tratamento psiquiátrico: louca! A breve retrospectiva da escritora minei-
Queimou rapidamente a herança familiar ra, nascida em 1929 na cidade interiorana de
com amantes, bebidas e hotéis de luxo: São Gonçalo do Abaeté, parece uma coleção
louca! Dos 30 aos 60, foi internada em di- de manchetes sensacionalistas. É inegável
versas clínicas para doentes mentais: louca! que uma biografia dessa irreverência desper-
Agrediu internas, guardas e médicos: louca! te curiosidade, mas a ênfase na trajetória
1 Doravante, as referências às obras de Maura Lopes extraordinária acabou desviando a atenção
Cançado dispensarão o sobrenome da autora: indicarei
apenas a data da edição consultada (2015), seguida da
daquilo que, a princípio, justifica a pre-
página de onde se extraiu a citação. sença de Maura Lopes Cançado em nossa
Conferência pronunciada na Academia Brasileira de Letras em 3 de maio de 2018.
118 • Gilberto Araújo
literatura: seus dois livros, Hospício é Deus Com efeito, em bocejo contagioso, exis-
(1965), de que tratarei aqui, e O sofredor tem certos chavões concernentes ao tema,
do ver (1968). Outros autores que também já que a crítica se debruça sobre os mesmos
excursionaram por essa seara permanece- autores e obras: longe de questionarmos o
ram reconhecidos como escritores (loucos), quilate de O alienista, de Machado de Assis,
não como loucos escritores. O caso mais e dos mencionados títulos de Lima Barreto,
lembrado é Lima Barreto, com Diário do convém indagar onde se encontram investi-
hospício e Cemitério dos vivos. Embora não gações sobre a loucura em No hospício, de
raro se recorde o alcoolismo que o levou a Rocha Pombo, em Signos, de Nestor Victor,
internações e ao óbito, o carioca, sobretudo ou na prosa de Antônio Austregésilo, Car-
nos últimos 50 anos, garantiu estabilidade men Dolores, Chrysanthème, Colatino Bar-
no cânone brasileiro, sem que necessaria- roso, Cruz e Sousa, Gonzaga Duque, Júlio
mente se lhe impinja a marca da enfermi- Perneta, apenas para citar alguns autores
dade. Mesmo quando se estuda a relação oitocentistas. No século XX, fala-se muito
entre Lima Barreto e as doenças mentais, a da loucura lírica em Guimarães Rosa ou da
exemplo do ensaio “Os fantasmas de um epifânica e dolorosa em Clarice Lispector,
certo Policarpo Quaresma: Édipo na ex-co- dando-se pouca atenção a Antonio Carlos
lônia”, de Friedrich Frosch, premiado pela Villaça, Carlos Süssekind, Cornélio Penna,
Biblioteca Nacional, mesmo nesses casos, a Dyonélio Machado, Octavio de Faria, Lúcio
análise literária reveste-se de apuro teórico, Cardoso, Romeu de Avellar, Rosário Fusco e
qualificador da obra e do artista, abrangen- tantos outros contemporâneos que se de-
do inclusive textos desligados da vivência votaram à prospecção da loucura em âmbi-
sanatorial de Lima Barreto. to individual e/ou coletivo.
Maura, entretanto, é constantemente Felizmente, a literatura contemporânea
devolvida à sua biografia, tomada como vem dando a lume outros escritores que
chave de leitura unívoca de sua obra. Prova vivenciaram isolamento manicomial, como
disso é a quase hegemonia de duas refe- Renato Pompeu, Rodrigo de Souza Leão
rências nos estudos a ela dedicados: Michel e Stela do Patrocínio, safra que, de algum
Foucault, com o seminal A história da lou- modo, tem levado a crítica a superar o bio-
cura, e O pacto autobiográfico, de Philippe grafismo em prol de abordagens semióticas
Lejeune, promovendo o conluio entre nar- capazes de sublinhar a potência criativa de
rativa de primeira pessoa, doença e escrita. textos pejorativamente designados de con-
Para além de possível preconceito de gêne- fissão, testemunho, diário, depoimento e
ro (antes dela, quais as diagnosticadas da li- falatório nonsense, como se tais gêneros,
teratura brasileira?), reponta a discrepância por não serem “elaborados”, não mereces-
entre uma insanidade sofisticada e literária, sem legitimidade literária. Nesse sentido,
representada em personagens e alguns al- são dignos de nota os estudos de Alexan-
teregos (Machado de Assis, por exemplo), dre Eulálio e Álvaro Cardoso Gomes, com
distinta da doença em estado bruto, geran- especial atenção à fatura simbolista, e, em
do hierarquia entre loucura literária e litera- se tratando de Maura, os de Louise Bastos
tura louca. Corrêa, Maria Luísa Scaramella, Mariana
O rom a nc e e m M au r a L o p es C a n ç a d o • 119
Patrício Fernandes, Rosângela Lopes da Sil- 1970, Hiroito de Moraes Joanides, relançado
va, entre outros. em 2003, também levou ao prelo Boca do
Assiste-se, hoje em dia, ao esforço de Lixo, autobiografia do escritor drogado, cri-
reconhecimento da mineira como escrito- minoso, detido 170 vezes, cafetão e acusado
ra, tentando desvinculá-la do estigma de de matar o pai. Na emergência dessas narra-
louca, homicida e megalomaníaca. Daí sua tivas nas décadas de 1960 e 1970 talvez es-
mais recente edição, em 2015, pela editora teja uma das matrizes da emersão de vozes
Autêntica, abrigar os dois livros num estojo, minoritárias na literatura contemporânea,
que repuseram em circulação a totalidade da justificando o atual interesse por aqueles
obra, não o caso curioso e isolado do diá- autores e, nas artes plásticas, pelas obras de
rio de hospício. Além disso, o sóbrio projeto Arthur Bispo do Rosário, Emygdio de Barros
gráfico de Diogo Droschi, em capa com lo- e Raphael Domingues, por exemplo. Volte-
sangos de cores fechadas e letras em corpo mos a Maura.
pequeno, enfatiza o aspecto construtivo da Costuma-se atribuir a Hospício é Deus o
composição, distinguindo-se das empreita- estatuto de confissão, enquanto O sofredor
das anteriores, com frontispícios chamativos, do ver, coletânea de contos, materializaria
tipos grandes e coloração vibrante. A rara a criação literária2. Produzido no calor da
primeira edição de Hospício é Deus, tirada hora, o diário constituiria laboratório para
por José Alvaro em 1965, está esgotada há a contística, fornecendo perfis e episódios
muitos anos e hoje custa em média 450 reais posteriormente reelaborados em clave cria-
em sebos. Entre as décadas de 1970 e 1990, tiva. De fato, há forte intercâmbio entre
o Círculo do Livro e a Record encetaram ree- as obras: personagens do título de 1968
dições; desde então, o diário esteve fora de inspiraram-se em pacientes homônimos
catálogo. No século XXI, a primeira inicia- do hospício; além disso, Maura registra no
tiva de resgate editorial de Lopes Cançado diário a redação e a publicação de contos,
ocorreu em 2011, quando a Confraria dos enfatizando a similitude entre as realidades
Bibliófilos publicou O sofredor do ver, mais vivida e contada. Entretanto, causa espécie
de 40 anos após o lançamento; entretanto, a a sobriedade estilística de Hospício é Deus,
bela edição especial, numerada e em poucos quando comparada ao discurso eletrizado
exemplares, já nasceu rara e atualmente está de O sofredor do ver. Ambos os volumes
cotada a mais de 500 reais. Donde a impor- ostentam título ruidoso, mas o diário, es-
tância dos volumes de 2015, sintomáticos, crito in loco, não transpira formalmente a
inclusive, de louvável tendência contempo- tensão verificada nos contos, eivados de
rânea de recuperação da literatura íntima 2 Assis Brasil, em artigo publicado no Correio da Manhã,
de autoria feminina, conforme demonstram insistiria na dessemelhança entre confissão e criação:
“Sem dúvida, Maura Lopes Cançado já se conscienti-
as republicações de A imaginária (1959), zou de seu compromisso com a literatura – a substitui-
de Adalgisa Nery, ou de Quarto de despejo ção do ‘eu-confessor’ por narrativas em terceira pessoa
ou por uma poética em primeira pessoa que amplia o
(1960), de Carolina Maria de Jesus. Coinci- seu horizonte criativo e o escritor passa a não depender,
dentemente, esses dois livros são quase con- exclusivamente, de sua imediata experiência de vida”
(apud Meireles, 2015: 218). Não é equivocada a de-
temporâneos a Hospício é Deus, convergên- claração, embora acreditemos haver, já em Hospício é
cia que se amplia se considerarmos que, em Deus, marcas dessa ampliação poética.
120 • Gilberto Araújo
rupturas gráficas e espaços em branco. Do em “deus”). Espaço sem saída, já que sob
ponto de vista estrutural, o texto literário permanente vigilância, o hospício fagocita os
dos contos parece mais condizente com o internos, incrustando-os em “escadarias de
terror do sanatório. O diário sangra revolta mármore branco”, que, longe de conduzir
e dor, porém submete o páthos nosográ- a qualquer ascensão, ratificam a estagnação
fico ao tom ponderado da autoanálise. O dos pacientes, em cujas cabeças se colam
aparente descompasso entre forma e fundo flores frias, desprovidas de vida e beleza.
solicita atenção, pois, a nosso ver, rasura a Com esse título, abre-se no livro extensa ca-
repetida fronteira entre confissão e criação. deia analógica, desde logo suficiente para
Comecemos pelo título. Saído da pena requerer-lhe o atributo de criação.
de alguém que proferiu “Deus foi o demô- Além disso, deve-se considerar o arco
nio da minha infância” (2015: 17), Hospício temporal entre a escrita e a publicação da
é Deus sintetiza o trauma da menina de for- obra: Hospício é Deus abrange a virada de
mação católica, do interior de Minas Gerais, 1959 para 1960, mas só é editado cinco
assombrada de culpa e medo diante da fi- anos depois. Sem dúvida, o intervalo permi-
gura divina. Contudo, o alcance estético do tiu rearranjos, ajustes, cortes e acréscimos,
título é muito maior: problematizando a hipótese de ser o volume
E hospício é este branco sem fim, onde nos relato fidedigno, já que a experiência vivida
arrancam o coração a cada instante, trazem- se submeteu à edição da memória e dos de-
-no de volta, e o recebemos: trêmulo, exan- sejos da mutante Maura: “Seria verdadeira-
gue – e sempre outro. Hospício são as flores mente escandaloso meu diário íntimo – até
frias que se colam em nossas cabeças perdi- para mim mesma, porquanto sou multiva-
das em escadarias de mármore antigo, subita- lente, não me reconheço de uma página
mente futuro – como o que são se pode ainda
para a outra. Prefiro guardar minhas verda-
compreender. São mãos longas levando-nos
des, não pô-las no papel.” (2015: 132).
para não sei onde – paradas bruscas, corpos
sacudidos se elevando incomensuráveis: Hos-
Boa parte do diário foi escrito a lápis, no
pício é não se sabe o quê, porque Hospício é colo de Maura, incomodada com a má ilu-
deus. (2015: 26) minação do quarto e com as internas, aos
gritos, insones, perambulantes. As folhas no
A brancura hospitalar serve de fundo ao regaço e o lápis quase extinto simbolizam a
coração dos pacientes, em forte contraste intensidade da experiência, cuja escrita se
cromático, replicante da experiência doloro- torna extensão do corpo, ambos sob amea-
sa de ser diariamente tratado como nódoa ça: Maura perturbada pela penumbra, pelas
vermelha no brim branco. Vulnerável, o in- guardas e pelas internas; o grafite próximo
terno perde os atributos de sujeito e torna- ao fim. Sobressai a impressão do texto ur-
-se vítima da corporação asséptica, punitiva gente, quase fisiológico. Todavia, um episó-
e onipresente: por isso, “as mãos longas” do dio timbra o distanciamento analítico: qua-
deus manipulador. A divindade remete ao se na segunda metade do relato, um dos
desconhecido não pela sedução do misté- médicos e personagem fundamental do
rio, mas por figurar-se panóptico invasivo e livro, dr. A., presenteia a paciente com um
castrador (observe-se a minúscula detratora bureau e a incentiva a começar um curso de
O rom a nc e e m M au r a L o p es C a n ç a d o • 121
Tudo coopera para a imagem que Mau- em briga pelo repasto. Animaliza-as, o que
ra cria para si: a hipertrofia paterna antecipa é intensificado pela localização da sala de
o perpétuo desejo de proteção, bem como refeições, situada abaixo do andar de Mau-
a postura altiva, enquanto o vazio materno ra, espécie de Hades do hospício. Para as
delineia a inadequação ao estereótipo femi- pacientes cultas ou sensíveis, a narradora
nino de moça religiosa, serena e maternal, sumariza-lhes a vida para depois, qual te-
sintetizada na alcunha “Santa”. Páginas rapeuta, analisando-lhes a conduta. Sobre
antes, lembremos, ela declarou preferir o a doce dona Marina, com quem divide o
chapéu vermelho ao branco... A ênfase na quarto, declara: “Me parece calma, conver-
estirpe gloriosa, remontando a gregos e sa com lucidez, só se deixa trair pelos papéis
belgas, forja o perfil nobre de Lopes Cança- que carrega na cabeça, presos por grampos
do, cuja irreverência se espelha em Joaqui- e com anotações, as mais diversas, algumas
na de Pompéu. escritas em alemão, francês ou inglês, além
No âmbito profissional, impera referen- das muito bizarras em português mesmo.”
cialidade mais objetiva, o que tanto refor- (2015: 51). Mesmo o comportamento atípi-
ça a imagem de autora bem relacionada co da senhora não incita a impaciência ou o
quanto empresta tonalidade mais ramerrã à deboche de Maura, solidariedade que atin-
redação de jornal, reduto da escrita menos ge ápice com dona Georgiana:
visceral do que a do diário, justificando a Italiana, cantora lírica, eu a achava lindís-
sima, apesar de não ser jovem. Possuía olhos
presença corrosiva de humor e (des)amor.
azuis brilhantes, todo o rosto bonito e expres-
Sobre Gullar, por exemplo, afirma: “acho-o
sivo, aquele rosto surpreendente de louca.
[Gullar] frio, esquizoide, distante. Creio não Estava sempre em grandes crises de agitação,
gostar dele. Mas gosto.” (2015: 59). Carlos andando desvairada pelo pátio, incomunicá-
Heitor Cony, Fernando Fortes, Maria Alice vel, os pés descalços, geralmente suja de lama
Barroso, Reynaldo Jardim são mencionados – seminua. Eu não frequentava obrigatoria-
com bastante frequência, às vezes como mente o pátio. À tarde, quando ia lá, pedia-
piedosos amigos que a socorrem em mo- -lhe para cantar a ária da Bohème, “Valsa
de Musetta”. Dona Georgiana, recortada no
mentos mais graves, outras como súditos
meio do pátio, cantava – e era de doer o co-
ingratos da rainha do Engenho de Dentro.
ração. As dementes, descalças e rasgadas, pa-
Dentro do hospício, o grupo mais cons- ravam em surpresa, rindo bonito em silêncio,
tantemente nomeado é o das pacientes, os rostos transformados. Outras, sentadas no
como se Maura lhes resgatasse a huma- chão úmido, avançavam as faces inundadas
nidade perdida no sanatório aviltante, in- de presença – elas que eram tão distantes. Os
clusive daquelas a quem não era afeita (e rostos fulgiam por instantes, irisados e indes-
não foram poucas). Entretanto, a mineira trutíveis. Me deixava imóvel, as lágrimas ce-
gando-me. Dona Georgiana cantava: cheia de
também hierarquiza as loucas, e nessa ta-
graça, os olhos azuis sorrindo, aquele passado
xonomia manicomial, revela muito da más-
tão presente, ela que fora, ela que era, se ele-
cara que deseja exibir. Seu discurso torna-se vando na limpidez das notas, minhas lágrimas
ofensivo, quase abjeto, quando alude, por descendo caladas, o pátio das mulheres exis-
exemplo, às doentes no refeitório: sujas, tindo em dor e beleza. A beleza terrífica que
malcheirosas, comida escorrendo da boca, Puccini não alcançou: uma mulher descalça,
O rom a nc e e m M au r a L o p es C a n ç a d o • 125
suja, gasta, louca, e as notas saindo-lhe em de 1965 Maura apôs o subtítulo “diário I”.
tragicidade difícil e bela demais – para existir No “Perfil biográfico” elaborado para edi-
fora de um hospício. (61-2) tora Autêntica, Maurício Meireles (2015-6)
Apesar de bela e estrangeira, Georgiana informa que, em 1968, Maura anunciava o
é inicialmente diluída na lama das loucas no segundo tomo do Hospício, no qual “da-
pátio, do qual é “recortada” após entoar tre- ria nomes aos bois” (Meireles, 2015: 226),
cho da ópera de Puccini, pois a beleza do motivo por que José Alvaro não o teria sido
canto a sublimiza e atrai as outras internas. publicado. O editor elogiaria o material na
A peça selecionada – La bohème – abriga Tribuna da Imprensa, mas conta-se que ele
enredo romântico centrado na florista Mimi, teria perdido os originais em um táxi. Já em
morta pela tuberculose e assim impedida de 1977, quando entrevistada por Margarida
gozar o amor do poeta Rodolfo. O desfecho Autran, Maura declarou que o texto teria
trágico condiria com o ambiente hostil da desaparecido na Penitenciária Lemos Brito.
casa de saúde; entretanto, a ária cantada por Segundo Meireles, os possíveis leitores da
dona Georgiana, “Valsa de Musetta”, refe- obra são reticentes sobre a existência dela.
re-se à jovem bela, saudável e namoradeira, Ficção ou verdade, o segundo tomo poderia
quase oposta à frágil e tísica Mimi. Na valsa, ser mesmo mais agressivo do que o primei-
a imodesta Musetta deseja provocar o ama- ro, no tocante à delação nomeada, mas, in-
do Marcello e exibe a uma salivante plateia sisto, o procedimento já ocorria no livro de
masculina quanto sua beleza é, da cabeça 1965, e a opção por designar explicitamen-
aos pés, admirada quando desfila pelas ruas te ou não as pessoas atende a quesito mais
de Paris. Se a vivacidade de Musetta é anta- textual do que denunciatório. Retornemos
gônica à decrepitude de Georgiana, o canto aos dois médicos antes mencionados.
vai, pouco a pouco, exumando da interna a A opção pela letra única A. e J. não pa-
beleza remotamente adormecida – “ela que rece mesmo ter motivação prática, antes
fora, ela que era” –, de modo a contagiar as estilística. A. e J. encarnam, respectivamen-
outras pacientes, magnetizadas pela cantora te, o máximo de amor (por isso a inicial?)
como os homens por Musetta, no original e de ódio sentidos por Lopes Cançado no
de Puccini. Banhada de sublime e trágico, a hospício. O segundo encara o interno como
cena soa grandiosa demais “para existir fora inimigo a ser punido com eletrochoques e
de um hospício” ou de uma ópera. quartos-fortes, tornando-se a letra-síntese
A maioria dos guardas e médicos é cita- dos aspectos negativos do hospital, panóp-
da nominalmente. Excetuam-se os doutores tico, juiz. Na direção inversa, há o afeto
A. e J.. Pode-se alegar que Maura, temendo crescente entre a paciente e dr. A.: inicial-
confisco do diário, optasse pela linguagem mente, ela julga-o incapaz de alcançar seu
cifrada. Contudo, dr. Paim, diretor do hospi- nível de inteligência, rejeição a que se acres-
tal, é abertamente ironizado, sobrando far- centa certo racismo ao médico negro. Che-
pas inclusive para sua filha, a escritora Alina ga a ironizar sua capacidade terapêutica:
Paim. Nesse sentido, é ainda mais curioso o Qualquer reação, se estamos diante de um
mistério em torno do possível segundo vo- analista (ou com pretensões a), é sintomáti-
lume de Hospício é Deus, já que à brochura ca, reveladora de conflitos íntimos, ponto de
126 • Gilberto Araújo
partida para as mais variadas interpretações. patriarcal do início do século XX, a moça teria
Em se tratando de simbologia, somos traídos atingido o auge do amor, mas, casada com
a cada instante (...). Em relação ao sexo a coisa o pai do filho, apaixona-se pelo sogro, logo
é um desastre: lápis, caneta, dedo, nariz são
se separando do marido. Depois, dinheiro e
símbolos fálicos. É irritante: tenho o inocente
amantes conjugam-se em fase boêmia até a
hábito de estar sempre com um dedo ou lápis
na boca. Não compreendo como um simples primeira internação em hospital psiquiátrico.
lápis -------. Mas o tal do analista compreende. Sucedem-se, portanto, diferentes faces de
E julga flagrar-nos quando fazemos observa- amor incompleto antes do surgimento de
ções puras e autênticas. Ah, ele sabe que não A., que, sem usurpar nem desmerecer o fí-
são autênticas. O tal de analista sabe. Uhhhh- sico de Maura, despertará nela compreensão
hhhhhh!” (2015: 37-8).3 mais abrangente do sentimento, para além
(Maura ironiza o analista de pacientes da carne. Assim, Hospício é Deus é uma nar-
e, por extensão, o de obras literárias como rativa de descoberta do amor (também por
Hospício é Deus: ao condenar a semiologia isso chamei o estudo de “romance”): não
cifrada em falas e gestos, paralisa, em efeito por acaso, finaliza, melancolicamente, com
colateral, a perquirição de sutilezas estilísti- as férias do médico, o que, causando grande
cas, justo o que aqui intento realizar...). sofrimento em Maura, lhe deixa o legado da
Aos poucos, todavia, dr. A amacia a in- epifania. Não há enlace concreto entre eles,
terlocutora, oferece-lhe respeito, ternura e pois A. não é amante, mas agente revelador
diálogo, horizontalizando a relação que des- de potência ainda desconhecida no interior
perta o amor de Maura por A., a quem, antes de Maura ou, se quisermos designativo mais
da declaração explícita, ela esbanja seus atri- frio, seu terapeuta... Não parece gratuito o
butos físicos. A insinuação erótica ao médico presente que ela oferece ao amado: o ro-
constitui etapa importante na transformação mance A peste, de Albert Camus, que tam-
do sentimento amoroso em Hospício é Deus. bém encena a solidão dos doentes de uma
Na regressão estampada nas páginas iniciais cidade infestada pela peste bubônica, em-
do diário, Maura conta a iniciação sexual aos penhados em esforço coletivo de salvação
5 anos, observando animais e jovens no inte- (simetricamente, as doentes do Engenho de
rior de Minas. De observadora passa a vítima, Dentro trabalham juntas no centro terapêuti-
quando, mais tarde, é estuprada por funcio- co concebido por Nise da Silveira).
nários do pai. A incursão deliberada no sexo Aliás, as referências literárias e artísticas
ocorre com amigas da escola até, aos 14 anos, de Hospício é Deus, presentes em epígrafes,
engravidar de um companheiro do aeroclu- alusões e citações, destacam seu componen-
be, com quem se casa. O erotismo desperta te ficcional, confirmado pela sequenciação
bruto e doloroso (animais e abuso), seguido dos fatos narrados. O texto inclui diversos
da experimentação provisória da homosse- flashbacks, ativados pelas semelhanças com
xualidade até a vivência voluntária e social- o presente da enunciação. Examinemos al-
mente aceita do matrimônio. No horizonte guns exemplos. Em certo momento (2015:
132), Maura reflete sobre a publicação do
3 Em oposição, ela mesma dirá: “como se pode intelec-
tualizar a afetividade? É o que tento fazer” (2015: 74),
diário. Após desbancar a veracidade impu-
assinalando outra ambiguidade de Hospício é Deus. tada ao gênero, presenteia a filha de uma
O rom a nc e e m M au r a L o p es C a n ç a d o • 127
interna com O diário de Anne Frank, atestan- Bem à moda de Shakespeare, Maura
do que, como o europeu, Hospício é Deus é interpreta uma peça dentro da outra e, me-
também um conjunto de palavras, um objeto lhor, altera o desfecho original.
escrito. Depois, ela dirá que Anne Frank não Outros aspectos tornam a autora perso-
ficou louca porque amava, intensificando co- nagem do próprio diário: ao roubar um livro
nexões entre a alemã e a mineira, também de dr. A. sobre a loucura ou ao procurar seu
apaixonada. Noutra ocasião, ao confessar o nome nos registros de ocorrência do hospí-
fascínio que sua inteligência causava sobre cio, deseja também se ler no discurso alheio.
as internas, Lopes Cançado tem em mãos Ver-se como outra acusa a forte inclinação
Retrato do artista quando jovem, de James teatral de Hospício, a qual, sim, pode se
Joyce, do qual transcreve passagem elo- vincular ao quadro clínico da paciente, sem,
quente acerca do gênio artístico (que, claro, todavia, diminuir a rentabilidade estética do
borbulha nela...): “Além do indômito desejo dispositivo: Maura finge amnésia, ataques,
dele de realizar as enormidades que o ten- suicídio, grita como Tarzan, ensaia peças de
tavam, nada mais era sagrado.” (2015: 53). teatro, sempre à busca de efeito cênico.
Sem falar no Puccini de Georgiana, caso A datação do relato também projeta
mais interessante da imbricação entre vida e ramificações simbólicas: o primeiro bloco
arte ocorreu quando Maura era paciente no da obra, recompondo a infância, não vem
Alto da Boa Vista. Um hóspede da Casa de datada, como em domínio mítico, fora do
Saúde sugeriu a alguns pacientes montarem tempo e do diário. Embora a cronologia seja
Hamlet, de Shakespeare. Não é difícil saber rigorosa, abarcando a virada do ano para
quem ficou no papel de Ofélia, que, mal- 1960, chama à atenção o fato de Mau-
grado os louros do papel principal, sentia-se ra falar do Natal e do Carnaval, sem nada
entediada: comentar acerca do Ano Novo. A omissão
durante um ensaio do Hamlet, senti-me es-
sugere o tempo circular e claustrofóbico do
tranha, aborrecida e desconfiada, todos pa-
hospício, onde nada se transforma (leia-se
reciam conspirar contra mim. Apanhei o livro
da pela, encaminhei-me para uma cachoeira, “No quadrado de Joana”, de O sofredor do
perto do sanatório (...). Nesta cachoeira de- ver). Ironicamente, a festa natalina celebra
sempenhei um dos maiores papéis de minha a solidão e a infelicidade das pacientes. O
vida, ameaçando atirar-me de grande altura, Carnaval, todavia, resgata o ludismo dra-
ficando nua, achando-me muito bonita, e ter- mático, representado pelo cabelo de Dona
minei laçada e arrastada por uma corda de- Auda, tingido com água oxigenada.
pois de três horas de rogos para que eu saísse
Os espaços não escapam à arquitetura
de lá. Assim, Ofélia foi salva, nua, das águas
metafórica: a primeira internação de Maura
da cachoeira. (2015: 108-9)4
no Rio de Janeiro ocorre em luxuoso sanató-
4 Há outras ocorrências desse intercâmbio entre inter- rio particular do Alto da Boa Vista, migrando
textualidade e vida, teatro e realidade. Certo dia, Maura
abandona Proust (porque estava calor...) para ler A cida-
de sitiada, de Clarice Lispector, justo quando é informa- artistas ali, em papéis diferentes. À Rainha cabia a parte
da por Heitor Saldanha de que a escritora lida também bufa. A nós, papéis de bandidas.” (2015: 120). Ainda
esteve internada em sanatórios de doenças mentais, outra: Maura rouba um livro de dona Dalmatie e o lança
verdadeiras cidades sitiadas (2015: 117). Mais uma: na à moradora próxima do hospício. A presença ostensiva
ocasião da fuga da interna Desdêmona (2015: 119) do livro em Hospício é Deus, como objeto ou índice de
auxiliada pela guarda Mercedes Rainha: “Éramos todas intertextualidade, merece estudo detalhado.
128 • Gilberto Araújo
depois para o precário hospício do Engenho texto dela distante no tempo e no espaço;
de Dentro. Do pomposo estabelecimento ini- refiro-me à peça do livro O poeta de Pondi-
cial o segundo guarda apenas certa glória de chéry (1986), da escritora portuguesa Adília
“engenho”, cuja especificação “de Dentro” Lopes, com quem encerro:
assinala a crescente pesquisa interior da pa-
Deixei crescer muito a minha unha do
ciente. Do alto ao baixo, do privado ao pú- indicador direito
blico, do luxo ao lixo, de fora para dentro, os para poder escrever os meus poemas nas
dois espaços pontuam a experiência radical paredes da cela
esboçada no diário. porque no asilo onde me fecharam
Se é válida esta interpretação, resta sa- não me dão tinta nem papel para escrever
ber por que a autora não optou pelo gênero escrevo durante a noite
porque durante o dia os asilados
romanesco. Responde ela mesma: “Incapa-
que estão na cela comigo
cidade quase total de escrever. Lapsos. Te-
estão sempre a espiar-me
rei resistência para escrever um romance? e quando os outros se põem a olhar para mim
Há longos vazios em minha mente que me deixo de saber como me chamo
tornam difícil formular uma história. Se me tenho saudades do meu quarto
fosse possível escrever mais rápido, e sem as no alto da torre de marfim
interrupções. Estou sempre cansada, dispos- que mandei construir em Pondichéry
ta a deixar tudo para começar depois. Quan- chamava o meu criado
com um sistema complicado de campainhas
do? Me pergunto.” (134). O diário constitui,
porque a torre tinha mil e sete degraus
portanto, o melhor caminho para “romance-
pensava que se Diderot fosse a Pondichéry
ar” a vida instável, já que é gênero intrinse- não podia deixar de me visitar
camente descompromissado com unidade, mas Diderot foi a Pondichéry
clímax e desfecho, podendo sempre parar e não me visitou
ou recomeçar. Daí talvez a perspectiva de agora quando batem à porta da cela
continuidade assinalada pelo subtítulo de penso primeiro que é Diderot
Hospício é Deus: “Diário I”. que vem me visitar
mas lembro-me de que Diderot morreu
A menina que não viu a irmã chegar, a
e fico com medo de que seja alguém
jovem que não viveu o amor com o sogro e
para me cortar as unhas
que não fez carreira na aviação, a mãe que (Lopes, 2002: 54-5)
não esteve com o filho, a paciente que não
seduziu o médico amado, a escritora que pa- Referências
rou de escrever, o segundo diário que não BOURDIEU, Pierre. “A ilusão biográfica”. In: FERREIRA, Ma-
rieta de Moraes; AMADO, Janaína. Usos e abusos da
veio, a escrita suspensa. No final de Hospício história oral. 6.ª ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.
CANÇADO, Maura Lopes. Hospício é deus: diário I. 5.ª ed.
é Deus, a mineira retorna ao hospital e toma Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.
conhecimento de que seu antigo quarto es- LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rosseau a
internet. Tradução DE Jovita Maria Gerheim Noronha,
tava ocupado e que seus pertences foram Maria Inês Coimbra Guedes. 2.ª ed. Belo Horizonte:
amassados, inclusive o diário, texto massa- Editora da UFMG, 2014.
LOPES, Adília. Antologia. Rio de Janeiro: 7Letras; São Paulo:
crado pela vida. A biografia e obra de Mau- Cosac&Naify, 2002.
MEIRELES, Maurício. “Perfil biográfico”. In: CANÇADO,
ra, sob a constante iminência do perigo e do
Maura Lopes. Hospício é deus: diário I. 5.ª ed. Belo
aniquilamento, ressoam com perfeição em Horizonte: Autêntica Editora, 2015, pp. 203-27.
POES I A
Dante Milano
D
ante Milano nasceu no Rio de Janei- Três Cantos do Inferno, de Dante Alighieri,
ro, filho do maestro Nicolino Mila- e em 1988, Poemas Traduzidos de Baude-
no e de Corina Milano. Trabalhou laire e Mallarmé. No mesmo ano recebeu o
como conferente de textos na Gazeta de Prêmio Machado de Assis, concedido pela
Notícias (Rio de Janeiro) a partir de 1913. Academia Brasileira de Letras.
Foi também funcionário do Juizado de Me- É um dos poetas representativos da ter-
nores, no Ministério da Justiça. ceira geração do Modernismo. Para o crítico
Em 1935 organizou a Antologia dos David Arrigucci Jr., Milano, “como o ami-
Poetas Modernos, primeira antologia de go Bandeira, refletiu muito sobre a morte,
poetas dessa fase. Seu primeiro livro, Poe- casando o pensamento à forma enxuta de
sias, foi publicado em 1948, e recebeu o seus versos – lírica seca e meditativa, avessa
Prêmio Felipe d’Oliveira de melhor livro de ao fácil artifício, onde o ritmo interior perse-
poesia do ano. Nos anos seguintes traba- gue em poemas curtos, com justeza e sem
lhou como tradutor, lançando, em 1953, alarde, o sentido”.
130 • D ante Milano
A cidade
Ao ver os altos castelos
Do Alhambra, dos Alijares,
Lavrados à maravilha,
El-rei Don Juan dizia:
“Se tu quisesses, Granada,
Contigo me casaria
E te daria como arras
Córdova e Sevilha!”
Dante Milano • 131
Composição
Duas mulheres juntas
Formam desenhos dúbios.
Se numa só há tantas,
As duas serão quantas?
Paisagem
Talvez um fauno de expressão selvagem
Atormentado de uma dor lasciva
Por um aroma que passou na aragem,
Uma ninfa cor de água, fugitiva.
Mais do que na memória evocativa,
Esses seres existem na paisagem.
Algum fauno de outrora ainda se esgueira
Entre sombras e troncos, à procura
De uma nudez, e olha, tateia, cheira
Um vestígio de carne, sonho e alma...
Que desejos cruéis, quanta tortura
Nesta paisagem luminosa e calma.
Maior felicidade
Que amar uma mulher,
Amor de longo olhar
E presente saudade,
Amor muito maior
É amar uma cidade!
Dante Milano • 133
Reconciliação
Que o rosto da mulher seja suave
Como o seu ventre
E eu encoste meu rosto
Em seu rosto tão suave quanto o ventre,
E que, nesse momento,
Ela entrefeche os olhos,
Sente-se em meus joelhos,
Finja um pouco de sono, encurve o dorso,
Com os cabelos encubra nossos rostos
E se enrosque com força em meu pescoço.
134 • D ante Milano
Divertimento
Acariciar a água de um rio
E sentir-lhe o estremecimento
Da pele, o fundo calafrio.
Eu distraído, mas atento,
Pensando... em quê? Sério, sorrio...
Oh secreto divertimento.
À amiga
Amiga sempre respeitada,
Amizade nunca manchada
Furtivo
Passeando num jardim inexistente,
Encontrarás uma mulher ausente...
A bailarina e o cantor
Um tremor, um tremor
Percorre a sala... uma algazarra
Ou música de guitarra
E a bailarina desgrenhada,
As coxas abertas
Mostrando a folha de parra,
O ventre vertendo o fel
Do desejo, o suado mel
Do amor banal e cruel...
Reza
Há em toda tristeza a expressão de uma reza.
Por leve que pareça, a nossa alma nos pesa.
Antiga jovem
Para sempre esquecida, antiga jovem.
Sobre a sua lembrança caem folhas
Secas no chão e há muito tempo chove...
Já não consigo mais rever o rosto
Sem traços nem o olhar da minha amiga
Há tanto tempo desaparecida,
Aquela que, ao morrer, tornou-se antiga.
Dante Milano • 141
Pietà
Essa Mulher causa piedade
Com o filho morto no regaço
Como se ainda o embalasse.
Não ergue os olhos para o céu
À espera de algum milagre,
Mas baixa as pálpebras pesadas
Sobre o adorado cadáver.
Ressuscitá-lo ela não pode,
Ressuscitá-lo ela não sabe.
Curva-se toda sobre o filho
Para no seio guardá-lo,
Apertando-o contra o ventre
Com dor maior que a do parto.
Mãe, de Dor te vejo grávida,
Oh, mãe do filho morto!
142 • D ante Milano
Cenário
Tudo é só, a montanha é só, o mar é só,
A lua ainda é mais só.
Se encontrares alguém,
Ele está só também.
Duplo olhar
A visão interior pode ir mais longe
Que a exterior. Isto disse São Tomás.
E há a visão interior de olhos abertos,
A de quando desvio o olhar do livro
Para um lugar mais livre, mais distante,
E me parece uma visão divina
A paisagem que vejo todo dia.
144 • D ante Milano
Rastro
Uma saudade sem memória
Do passado, sem nenhuma história,
Saudade, sim, mas
De tempo nenhum, de nenhum
Lugar. Nem mesmo de mim.
Não da infância, da mocidade,
De mulher nenhuma... Saudade
Que lembra um antigo fantasma
Com seu rosto irreconhecível,
Apenas um rastro. Saudade
Que vem de longe e só se sente
Olhando, olhando atentamente,
Então aumenta, então aumenta
Mais desértica, mais poeirenta...
Dante Milano • 145
Tocata e fuga
É tudo aquilo que só existe no ar,
O que de nós, além de nós, se expande.
É a vertigem para o alto, igual à grande
Tocata e fuga em ré menor de Bach.
É o delírio de um bêbedo num bar...
É um não sair do chão por mais que se ande...
Lição de música
A tela representa uma figura
Absorta, ao piano. Luz azul sombria.
A janela clareia a sala escura.
De onde vêm essa música e esse dia?
E quem na tela reconheceria
Aquela face atenta, abstrata e pura?
Gente boa
Renard Perez
Escritor
R
enard Quintas Perez (Macaíba, Rio (1911-1982), integra o grupo Café da Ma-
Grande do Norte, 1928). Contista, nhã, do qual participam também os escri-
romancista, ensaísta e jornalista. Fi- tores Fausto Cunha (1923-2004), Samuel
lho do comerciante espanhol Jaime Quin- Rawet (1929-1984), entre outros. Colabora
tas Perez e de Joana Geralda Perez, ainda em vários periódicos, entre eles o Correio da
criança, transfere-se com a família para For- Manhã, Última Hora, e na Revista Branca, do
taleza, onde conclui os estudos primários, escritor e político Saldanha Coelho (1926),
no Colégio dos Irmãos Maristas. Muda-se cuja editora publica, em 1952, o primeiro
para o Rio de Janeiro em 1943 e cursa o livro de Perez, O Beco. Sua coletânea Escri-
científico no Colégio Andrews. Começa tores Brasileiros Contemporâneos é lançada
a trabalhar como técnico na Secretaria de em 1960 – com várias edições posteriores.
Cultura e Educação do Estado do Rio de Ja- Trabalha durante muitos anos como redator
neiro. Forma-se em advocacia na Faculdade literário na Rádio Roquette Pinto, emissora
de Direito do Rio de Janeiro, em 1951. Com oficial do estado do Rio de Janeiro. É mem-
a coordenação de Dinah Silveira de Queiroz bro da União Brasileira de Escritores – UBE.
148 • Renard Perez
A
inda tem café aí, companheiro? – Você caiu do céu, meu amigo. – E de-
Confirmou – opa!, e adiantou- positou o copinho na ponta do degrau ao
-se sorridente. seu lado.
Até engraçado. Depois de tudo, ele é – Eu vou até querer outro – disse o lou-
que tinha sido visto. Também a escadaria- rinho.
zinha ficava meio escondida pela saliência Acabaram os quatro querendo. Serviu
daquela parte do prédio e o pedaço do jar- nova rodada. Não escondia a própria alegria.
dim – ali com vegetação abundante. E ain- O pessoal estava mesmo a fim. E pensou, com
da havia a sombra que o pinheirinho fazia. o sorriso, que eles é que tinham caído do céu.
– Vão ser quantos? Oito cafés em menos de cinco minutos. E
Eram quatro, na pequena escadaria. Qua- tinha até perdido a esperança. Duas da ma-
tro rapazes. Não tinha pinta de bacana, mas nhã, e a cafeteira ainda pelo ladrão. O único
também não pareciam nenhum pé-rapado. café que saíra fora bebido por ele próprio,
Aliás, com essas roupas de hoje, só blue-jeans, sentado no banco de praia. E voltar com
camisas desenhadas, jaquetas, qualquer um aquele bagulho pesando igual? Sem levar ne-
pode ser qualquer um. Eram brancos. Podiam nhuma mixaria de comissão? Devia ser pelo
ser estudantes. Podiam também ser garçons. frio, que espantava a turma da rua. E é logo
Até operários de obra, já acostumados no Rio. no frio que mais vontade dá de um café – cis-
Também, não é preciso ser nenhum bacana mava, enquanto batia perna pelas calçadas
para ter o do café. Se fossem todos querer, de pedrinhas. E refletia que alguma coisa es-
bem que iam ajudar a quebrar o galho. tava errada naquele negócio. De repente, na
– Isso está bom mesmo? – o que chama- escadariazinha do teatro, a rapaziada.
ra perguntou. Rapaziada era modo de dizer. O lourinho
– Está joia. podia ter seus dezenove anos, mas o de bi-
– Bem, em vou querer. E vocês, turma? gode já tinha quase os seus trinta. Os outros
Vamos sair num café? – o cara perguntava dois, mais ou menos na dele. Mas tudo gen-
mas parecia até convidando. te boa, divertida, igual. Deviam estar vindo
O grupo concordou. O porta-voz (era o de algum bar ou de uma festinha ali perto.
de bigode) levantou o queixo: O destino é gozado mesmo. Correra a
– Bota quatro aí. Nossa Senhora do Posto Dois ao Posto Cinco
– Falou – disse, animado. umas quatro vezes, virara para a praia pelo
Abriu a torneirinha, o café foi escorren- menos umas seis. E não tinha encontrado o
do nos copinhos. Saía até fumaça. Foi en- raio de um freguês. Nem porteiro de edifício.
tregando um a um. Nem mesmo um PM desgarrado. Um par de
Os quatro de copinho na mão. Depois garis. É possível que continuasse a noite toda
do primeiro gole, um disse: na mesma batida. Com aquela lataria no estô-
– Pola, isto está mesmo legal. mago. E o frio nos ouvidos. De repente, pare-
Outro: cia uma coisa puxando, dobra numa transver-
– Do cacete! sal na direção da Barata Ribeiro. Chega à rua,
Sorri, satisfeito. Bebiam devagar. Sabo- logo na altura da praça. Atravessa o asfalto,
reando. Sentia o prazer nas fisionomias. O se intromete pelo escurinho, na cata de um
primeiro a terminar, o de gorrinho azul, ex- casal. De algum cara extraviado. Os bancos va-
clamou: zios, igual aos da Serzedelo. Nem vagabundo
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dormindo. Retoma a calçada, mais nenhuma Balançou a cabeça. Essa turma da noite.
esperança. E lá está o grupinho na escadaria, Era o frio, aquilo. O cafezinho esquentava.
no lado de lá do prédio branco. Escola ou tea- O difícil, mesmo, era descobrir o freguês, riu
tro. Parecia até posto ali para ele. por dentro.
Quatro cafezinhos, assim – quando não Abriu mais uma vez a torneirinha, foi
esperava mais nada. E quando achava que enchendo os dedais de plástico. Três roda-
aquilo era a salvação da lavoura, mais qua- das. Doze cafezinhos em menos de quinze
tro, para rebater. Já não era vexame voltar e minutos. E ainda fazia economia do copinho.
entregar a lataria. E pelo menos pegava uns A·irmã ia poder fazer uma feirinha boa, no
trocados. Sempre era alguma coisa. sábado.
Porque a barra estava mesmo braba. Apoiou-se na parede e ficou fumando,
Estava ruça. Não era só aquela noite não. esperando que o pessoal acabasse.
Cada dia que saía para o batente, aquela De vez em quando um carro chispava –
mesma pergunta. Ia fazer o do dia seguin- bem a uns cento e vinte – na pista escura.
te? Às vezes tinha sorte. Trinta cafés. Qua- O sinal, na esquina, mudava – verde, ver-
renta cafés. Outro dia, nem pra passagem. melho – pra coisa nenhuma. Um ônibus
E tudo pela hora da morte. O do ragu, o da passou semivazio – iluminado e ruidoso.
condução. E o seu sempre contado. Ainda Olhou o grande cartaz na parede ao lado.
bem que morava no quarto do cunhado, Maria Minhoca, de Maria Clara Machado,
ajudava com uns trocados para a feira. E às conseguiu ler. Gozado, nunca tinha entra-
vezes nem tinha para isso. Emprego de cão. do num teatro. Devia ser um negócio joia.
Mas fora o único que conseguira, depois Sentia frio, agora que retirara a máquina de
que foi dispensado da obra. cima do peito. Pegou-a de novo, colocou
A turma bebia sem pressa. Aproveitou as alças, cobriu-se. Seriam quase umas duas
para retirar a máquina, colocando-a na e meia da matina. Fez as contas dos cafés
parte vazia do último degrau. Então massa- bebidos, davam dezoito cruzeiros. Para fim
geou os ombros doídos. Depois a espinha, de noite, uma nota regular. Só esperava é
enquanto se curvava pra frente, compen- que não fossem bagunçar no momento da
sando o jeito de andar, com a máquina no conta.
peito. Retirou o maço do bolso, acendeu o O lourinho foi o primeiro a acabar. De-
penúltimo cigarro. pois o do gorro. O terceiro foi o de bigode
O lourinho bebia fazendo barulho. De – que fez o arremesso. Tinha calculado o
onda. O de gorro exclamou “seu porco”, rin- poste como alvo. O copinho bateu no cano
do. O de bigode jogava o copo longe, no meio de ferro com um pequeno estalo. No inter-
do asfalto. O magricela bebia bem devagar. valo, o magricela acabara também o seu.
– É, esse café está mesmo joia. Sabe, Aguardou um pouco. Ninguém falou
turma, eu acho até que vou beber mais um. nada. Então disse:
– Era o lourinho. – São dezoito cruzeiros, gente boa, esta-
– Taí, eu vou também – decidiu o do va meio chateado por tomar a iniciativa. Mas
gorro. procurou dar à voz a maior naturalidade.
– E eu – o de bigode. Ninguém pareceu ter escutado.
– Então bota logo outra rodada – era o – Como é, gente boa? – insistiu, um tan-
magricela. E aproximou o copo da torneirinha. to ressabiado.
150 • Renard Perez
– Que que é? – disse o de bigode de brincando com ele. O melhor era não mos-
repente, voltando o rosto para ele. Voz de trar desconfiança, Bancar o desentendido.
surpresa, parecia baixado de outro mundo. Afinal, não era tanto dinheiro assim, para
– O café – explicou. Foram doze copi- quatro. Por que é que iam sacanear?
nhos. São dezoito cruzeiros. Serviu o café. Só que um pouco mais
O olhar do outro, a expressão de surpresa: vagaroso. E já não achava tanta graça nas
– E acabou, meu irmão? O café acabou? piadas do grupo.
Ficou sem saber o que responder. Um Foram depondo os copinhos no chão. Des-
dos rapazes riu. Então riu também. Mas sa vez, o de bigode não arremessou o seu. Co-
mudou um pouco o tom, quando falou. locou-o também no degrau, a seu lado. Como
Agora sem a antiga familiaridade: da outra vez, o vendedor ficou esperando que
– Eu pensei que os senhores já estavam alguém se pronunciasse. Ninguém falava.
servidos. – Como é, gente boa?
– Pois eu não estou – o de bigode disse, O grupo continuava em silêncio. Os vul-
sorrindo. – Vocês estão, pessoal? tos imóveis, fitando a distância. As fachadas
Os três apenas sorriram. Meio enviezan- dos edifícios do outro lado. A transversal
do a cabeça E ficaram olhando o vendedor. mais para a direita, em subida, calçada de
Ficou quieto, um esboço de sorriso. Co- paralelepípedos. As luzes dos sinais, verdes
çava a nuca, abaixo do bonezinho. na Barata, vermelhas na transversal do lado
– Não vai dizer que você está descon- de cá, coloriam seus vultos imóveis.
fiando da gente... – o de bigode, um ar ma- Começou a ficar inquieto. Tamborilou
licioso, o tom de indagação. na lataria com o nó dos dedos. Em ritmo,
– Que é isso! – disse, rápido. – Os se- chamando discretamente a atenção. O si-
nhores são gente fina. Não iam sacanear lêncio ainda se manteve um pouco.
um vendedor de café. – Como é, meus irmãos? – disse, devagar,
– Taí. Gostei. – O de bigode balançava a num tom que procurava disfarçar a impaciên-
cabeça a cada palavra. cia. – Tá na hora do crioulo ir se chegando.
– Isso é falar legal. – E apontando a lata Os quatro, fitando o vago. O sinal em
com o dedo: – Então vamos fazer um ne- frente passou a vermelho, coloriu-lhes as
gócio, companheiro. Bota outra rodada aí. feições. Um carro veio vindo, diminuiu ligei-
E olhou-o com um sorriso: ramente a velocidade diante da faixa, reto-
– A saideira. Não é, pessoal? – e voltou- mou a marcha, desabalado.
-se para o grupo. Sem olhá-lo direto, o de bigode indagou:
Sem mudar a vista, o lourinho respon- – Quanto é que é mesmo?
deu concordando. Os outros continuaram – Foram dezesseis copinhos – respon-
calados. Mas fizeram o assentimento com a deu, aliviado. – São vinte e quatro cruzei-
cabeça. Com a maior gravidade. ros. – E animado: – Para os senhores, isso é
Olhou para o cara de bigode. Olhou uma mixaria.
para o grupo. Estavam gozando ele.· Só po- – Vinte e quatro cruzeiros? Vê isso aí,
diam estar gozando. Ninguém toma qua- pessoal. – E o de bigode passou o olhar pelo
tro cafezinhos assim de enfiada, sem mais grupo.
nem menos. Mas o que é que podia fazer? O lourinho, que estava ao lado, deu pan-
Engrossar com a turma? Eram quatro, ali. cadinhas nos bolsos dianteiros do blue-jeans.
É possível até que estivessem apenas Depois apresentou as palmas estendidas.
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