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3 de abril de 2024
Um dedo de prosa
Nosso e-mail de contato está aberto a críticas e sugestões, assim como para
receber a divulgação de concursos literários, lançamentos de livros, palestras etc,
que serão publicados na Seção CLIPS. Segue o primeiro: o 1º Concurso de Trovas
Cidade de Astolfo Dutra, Minas Gerais recebe até 31 de maio as deliciosas
quadrinhas de trovadores nacionais, com os temas: plateia, celular, cortina e dedo.
As trovas devem ser enviadas para jefersonbrito.pvh@gmail.com e para
jloures67@gmail.com.
Editores:
Emerson Teixeira Cardoso
Fernando Abritta
Helen Massote
José Vecchi de Carvalho
Vanderlei Pequeno Cardoso
Colaboradores:
Fernando Cesário
Joana D’Arc
José Tarcísio Lima
Vicente Costa Contato:
Luiz Lopez
ChicosKta@gmail.com
Editoração:
Capa: montagem de Fernando Abritta.
Segunda capa: foto de Vicente Costa.
Última capa: Poema de Marwan Makhoul (@marwan_makhoul), poeta
palestino, ilustrado e publicado por @intervozes - Coletivo
Brasil de Comunicação Social
Fotos sem créditos são de arquivos pessoais de editores e colaboradores.
Contato:
Chicoskta@gmail.com
Índice
Ronaldo Werneck
Foto: Pury
“Seja assim só um alô mais alongado, duas ou três coisas que sei dele, Ronaldo
Werneck, pelos seus cinquenta anos, com meses de atraso. (...) Escrever sobre pessoas é uma
barra, com o agravante, no caso de Ronaldo, de que ninguém fala dele melhor do que o
próprio. É que ele se fala, em tudo o que diz. O que inclui Cataguases, as cidades, as
mulheres, o cinema, o poema, o mot d´sprit, todos os que ama e os que por certo não detesta
— é pessoa elegante no trato, mesmo em se tratando da vida alheia”.
“(...) Um cara cheio de graça, na fala e na escrita. Muito tempo depois, no Cataguases,
sua anti-ode a si mesmo, desmerecendo-se por não se considerar o melhor poeta sequer de
sua rua, vizinhos, na cidade, ele e Francisco Marcelo Cabral. Sorte da cidade. Humor e dons
afins afloram texto afora, poesia de Ronaldo adentro.”.
Sim, escrever sobre pessoas é uma barra, com o agravante de ser meu amigo Antônio
Jaime um erudito preso em sua casca. Toda aquela erudição camuflada no ser arredio,
caladão, casmurro tal qual Machado: corte certo, a palavra pouca e precisa. Como nessa
pequena ode, nessa joia cataguasense:
Viva a diferença
De/repente
— Papai trabalha por e-mail, dizia minha filha Ulla. Seres jurássicos, homens do
século passado, Antônio Jaime Soares e eu nos comunicávamos por e-mail. Aqueles e-mails
em que ele me chamava de “Ron” e assinava “Totõe”. Pois é, meu amigo Totõe se foi no
último outubro — e para sempre. Ron perdeu seu companheiro de deliciosos papos
eletrônicos. Nunca mais cinema, nem música, nem poesia. Lembro de meu amigo dizendo,
num cantar de amigos, num poema-improviso enviado, naturalmente, por e-mail.
Na regência, maestral,
Francisco Marcelo Cabral.
O poeta Antônio Jaime fez este poema-improviso para um vídeo gravado num de
meus aniversários. Joaquim é o poeta Joaquim Branco; Carserg é o dramaturgo Carlos
Sérgio Bittencourt; Totem é o jornal literário que Joaquim e eu editávamos na Cataguases
dos anos 1970; Afonsin é o baterista Afonso Vieira; e paulomarteens é uma brincadeira com
o cineasta Paulo Martins, diretor do longa-metragem O Anunciador – O homem das Tormentas.
O poeta Francisco Marcelo Cabral é o próprio: mentor de toda a turminha.
Eis um poeta
Autodidata, ele sabia como poucos os meandros da língua pátria (aliás, “Língua
Pétrea” foi um dos títulos abandonados de seu inédito livro de poemas) e era um cuidadoso
revisor de praticamente todos os meus livros. Poeta, ele ganhou honrosa autenticação de
outro grande poeta, Francisco Marcelo Cabral: “Levei um susto e até perdi o sono. Porque
conheço Jaime Soares há cinquenta anos, curto muito suas crônicas, mas não sabia que
escreve poesia. E da boa. Entre outras grandes sacadas, ele conseguiu emular João Cabral
sem se tornar um deles. Isso é só um detalhe, há muitos mais. Eis um poeta”.
Cronista culto e bem-humorado, cultor de insights como “Valeu o pôr do sol,
indescritível, dura mais que um longa-metragem”. Assim eu o descrevia em 2011 no texto
para a contracapa de seu livro de crônicas Pedra que não quebra: “Antônio Jaime é um ser
tímido, de fala pouca, lição aprendida com o pai quando o filho tagarelava: ´Fala pouco e
acertado´. Fala pouco, mas o menino escreve acertado e muito bem, como poucos”.
Publicitário, trabalhou e (segundo ele) aprendeu muito com o também poeta e letrista
José Carlos Capinan numa agência de propaganda em seus tempos de Rio de Janeiro. E logo
seria o inventivo criador de peças publicitárias para inúmeros filmes brasileiros. Convocado
pelo jornalista e grande crítico musical Roberto M. Moura — chefe do setor de jornalismo e
propaganda da Embrafilme —, Antônio Jaime foi seu subchefe para os trabalhos de textos
no final dos anos 1970, tempos em que Celso Amorim, futuro ministro de Lula, era o
presidente da Empresa. O que resultaria mais tarde na criação dos vários e bem achados
poemas visuais — diria mesmo poemas-logomarcas, pois logopoemas são —, poemas-
hommage visuais para Pound, Tom Jobim, Paul Klee, cummings & etc., que formam o bloco
final de seu livro, que espero não fique mais inédito.
Letrista, ele sacava do bolso palavras endiabradas. Assim como quem não quer nada,
a exemplo de Chevrolet´s go home, a letra que fez para a canção de Francisco Condé, inscrita
no Festival Audiovisual de 1970, que organizei em Cataguases com o poeta Joaquim Branco:
“Som de plastibeijos a ferir/ A carne viva estremecer/No sul sem fim/ O sul sem cor/ Yeah!...
por tantas falas já se fez/ De mil cidades explosões/ E o que eu não vi/ E o que eu não sei//
Chevrolet´s go home/ No fim da noite/ No fim do mundo”.
Como diz seu grande amigo e companheiro de geração e movimentos culturais Carlos
Torres Moura — crítico, cinéfilo, ator e diretor de vídeos-documentários e melômano como
ele: “Destaco o fato de Antônio Jaime ter sido, no nosso grupo, o que sempre escreveu
melhor, disparado. Inclusive nas letras de canções. Ele chegou até a compor uma com letra
e música, sem saber tocar nenhum instrumento, feito um Lamartine Babo; é uma obra
belíssima — Corpo presente, veja a ironia do nome, agora com ele morto”: “A morte e seus
martírios/ Esquife, luz de círios/ O cheiro, a sala, o triste/ Teste final.”.
Fellini e Godard
no Cine Edgard, o bar
(it’s been a hard day’s night**),
Lampião, carcará, Corisco
el nombre del hombre muerto***,
canhões nas ruas do Rio,
Paris em chamas,
vietcídio,
homem na Lua,
paúra,
a bomba H,
na província,
cá,
uns poetavam (e continuam),
os “zangados”, teatro avesso,
filme (um longa puro lenga-lenga),
canções e nenhum artista, de ofício.
*Jornal do Brasil/1964
**Lennon-McCartney
*** Gil-Capinan
A Balada e Caetano
Uma noite qualquer dos anos 60 no Cine-Teatro Cataguases (hoje Cine-Teatro Edgard):
na tela, as cenas finais do filme soviético A Balada do Soldado. Ele, o soldado, está morto e a
câmera sobe em contra-plongée em direção às árvores, faz um rodopio alucinado e sobe
mais e mais em direção a um céu cinza de morte. Antes de os créditos subirem, a sala ainda
escura, ouve-se uma voz que grita: “Coisa de gênio! Temos que aplaudir de pé”. A luz
acende e agora vejo que quem grita é meu amigo, o então ator do CAC Antônio Jaime Soares,
que ficara de frente para a multidão na plateia, clamando por aplausos. Multidão que o olha
atônita. E logo ouve-se um aplauso, outro, outro e aplausos pipocaram, palavra certa
quando se trata de cinema. Nunca me esqueci da participação exemplar e complementar do
meu amigo naquele filme soviético, que na verdade não era lá essas coisas. Pelo menos o
que me lembro dele.
Já o mesmo não aconteceu com Caetano Veloso, que, ao contrário de Antônio Jaime,
não conseguiu vencer a “turba ignara”. A performance de Antônio Jaime no cinema de
Cataguases me leva a uma cena que assisti literalmente “bem de perto” no Cine Paissandu,
também nos anos 60. O filme em cartaz era Fellini 8 ½ e na entrada vi que chegavam Caetano
Veloso, Maria Bethânia e a cantora e compositora Tuca. Antes do filme de Fellini foi exibido
um documentário e só então saquei o porquê dos baianos estarem no cinema.
Era Bethânia Bem de Perto, de Julinho Bressane. Pois bem: o filme foi vaiado desde o
início, o que fez com que um exaltado Caetano se levantasse contra “a turba” no escurinho
do cinema e gritasse em altíssima voz: “Vocês não estão entendendo nada. Bethânia é a
maior cantora brasileira e esse filme faz jus a ela”. Mais vaias. Mas o baiano não se deu por
vencido e continuou sua catilinária até que o filme de Bressane terminasse e eles saíssem do
cinema antes de Fellini 8 ½ começar.
Ali, viu-se que Caetano já era Caetano antes mesmo de Caetano, daquele Caetano que
enfrentaria uma plateia enfurecida num dos Festivais da Canção logo à frente. Exatamente
com a expressão “Vocês não estão entendendo nada”. Que nem Antônio Jaime Soares para
a plateia do Cine Cataguases, que para ele não entendia nada, não sacava a beleza daquele
contra-plongée final da Balada do Soldado. Antônio Jaime e Caetano: só mesmo eles, sempre
veementes.
— Vai tomar no cu, Ronaldo. Você é o melhor de nós todos! A voz é de meu amigo
Antônio Jaime Soares e vem de muito longe, de uma noite altíssima em pleno Bar Gole, do
meu saudoso amigo Quim. O BoteQuim, como eu o chamava, era a salvação da madrugada
cataguasense, posto assumido mais tarde — e com todas as glórias — pelo Bar da minha
amiga Loura, “erigido” no mesmo local. Nenhum dos dois existe mais. Parece que em
Cataguases acabaram-se as madrugadas etílicas. Ou não?
Havia um cameraman naquela madrugada do BoteQuim e nós estávamos fazendo
algumas tomadas para um filme tendo como roteiro meu livro Pomba Poema. Foi quando
topei com Antônio Jaime sozinho numa das mesas. Quer dizer, ele e a tradicional companhia
de cigarros e garrafas de cerveja. Sentei-me com ele, comandei uma tônica com guaraná pro
Quim (eram tempos não etílicos) e Antônio logo começou a cantar aos berros a canção “Pra
quê mentir”— e completou de uma só vez: “Ronaldo, olha que coisa essa letra que o Noel
fez pra música do Vadico. Pra quê mentir se tu ainda não tens/ Esse dom de iludir. Era para sua
amante Ceci, a Dama do Cabaré, que ele conheceu na Lapa. Aquelas putas do Noel. Pra quê,
pra quê mentir/ Se não há necessidade de me trair. Pois é, se não há necessidade de me trair, pra
quê mentir? Só mesmo um cara com a genialidade do Noel pra fazer isso”.
Na verdade, Antônio não “completou de uma só vez”, pois ele não parava de cantar e
cantar só o refrão: “Pra quê mentir”, “Pra quê mentir”, “Pra quê mentir”. Eu tentava
conversar com ele, queria que ele lesse um trecho do meu livro para inserir no filme, como
estava fazendo com várias pessoas da cidade — até mesmo o prefeito Paulo Schelb já lera
— e inclusive algumas “damas do cabaré” do Quim haviam acabado de ler. Qual o quê!
Cada vez que ensaiava uma fala, ele voltava de lá com “Pra quê mentir”, uma obsessão. Só
deu uma pausa quando percebeu que estava sendo filmado e soltou de lá: “Ronaldo, se você
está fazendo um filme não pode esquecer do Carlim Moura. Moura é Moura, você sabe”.
“Sim”, eu disse: “Moura é um mouro. Mas o que você acha de ler esse trecho do livro?”
E li: “estava ali/ a poesia/ antes/ da poesia/ mas o mar mar/ telando as pedras/ no meio da
luz/ e dia e memória”. Pra minha surpresa, ouço uma saraivada de palmas vindas de todos
os bêbados e respectivas damas do cabaré do Quim. E, em meio ao estrépito — que estrépito
foi, mais que um alarido —ouço a voz tonitroante do Antônio Jaime: “Vai tomar no cu,
Ronaldo. Você é o melhor de todos nós”.
Não sou, não fui, não serei. Aliás, poesia não é prova de Fórmula 1, não tem
“melhores”, nem vencedores nem vencidos. Apenas luta com as palavras, às vezes vã, antes
que rompa aquela manhã do Drummond. Antônio Jaime, sim, foi o poeta “mais exportável”
de todos nós (segundo nosso guru, o grande Francisco/Chico Marcelo Cabral). Todos nós
que cá em Catá poetávamos (poetamos ainda?) em vão. Ou não?
Como nesses fragmentos dos originais que me mandou de Lirifluir, seu inédito livro
de poemas (que hoje parece ter outro título, Entre Folhas): “mais de ferro era o trem/ se
passava pontilhão/ um voar no precipício/ expressionismo alemão//...// e guardar num
vidro/ como pôr flor em jarra/ no vil infantil inútil afã/ de prender a poesia”.
Ou nesse poema pro rio Pomba: “nesse rio — trás-os-montes/ já dantes navegado/
pelos camões locais/ que os há – de toda sorte/ ouso — de minha parte/ lançar velhos anzóis//
e repescar lembranças:/ seu médio horizonte/ a ponte velha —lá/ como que flutuante/ ao pôr
do sol — além do/ além — montes caramonãs”.
Toques & retoques
Na epígrafe de seu livro (parece que o título que ficou por último é mesmo Entre
Folhas), Antônio Jaime transcreve o aforismo de Mallarmé: “Ceder a iniciativa às palavras”.
Palavras-referência, palavras que se fazem pedras de toque. Ao ler os originais, escreveu
surpreso o poeta Francisco Marcelo Cabral: “Não sei como descrever o impacto da leitura
de seus poemas, que me valeu uma noite de grande excitação intelectual. Juro: você me tirou
o sono. Lina (Tâmega Peixoto) costuma dizer que a leitura de um bom poema lhe dá um
formigamento nas mãos. É como ela reage à thing of beauty. Minha reação é a de ser
capturado, de querer provar desmedidamente do sumo poético instilado no texto, guardar
o poema na memória e remastigá-lo 50 vezes 5, numa devorruminação celebrante. Lite-
ralmente.
“Não digo que são poemas, nem me chamo de poeta”, diz você. Que isso? Deixa de
modéstia à parte... você é sem possibilidade de discussão o poeta mais “exportável” dessa
Cataguases versorrágica. Em matéria de “acabamento”, de maturidade, de economia de
meios, de domínio técnico, você nasce pronto. Irretocavelmente pronto”. E Cabral cita
insights como a mitificação não mais do rio Pomba, mas do córrego Lava-pés: Um certo corte
talha Cataguases/ num trecho: sua vaginavenida. A beleza de: Pai e mãe: dois girassóis/ arqueados.
Repetida em: Causa mortis: infarto/ ou nem isso, cansaço.
Festa do Imperial
Num das crônicas de seu ótimo livro Pedra que não quebra (Cataguases, 2011), um
surpreso Antônio Jaime registra: “No início dos anos 70 fui para o Rio e convivi muito com
a Maria Alcina, que também fora para lá, e chegou a gravar músicas com letras minhas.
Afora isso, a gente às vezes zoava pelas noites cariocas e, numa delas, fomos parar no
apartamento do Carlos Imperial, então no auge da fama, dando uma festa de arromba. E...
quem encontramos lá? Ronaldo Werneck, como se estivéssemos em plena Cataguases”.
Sim, a surpresa de Antônio Jaime era de se esperar. O que fazia eu lá? Na verdade,
naquela época minha primeira mulher, a jornalista (hoje psicóloga) Adriana Montheiro era
a ghostwriter da coluna do Imperial na Última Hora e eu, modestamente, o seu copydesk.
Imperial na verdade não escrevia e acredito sequer lia a “sua” coluna. Limitava-se apenas a
nos enviar fotos de moçoilas & vedetes, as suas “lebres”, para ilustrar a página.
Daí nossa presença na “festa de arromba” do Imperial: quem sabe não surgia dali
alguma notinha pra coluna? Surpresa também foi a nossa, ao encontrar na festa Alcina e
Antônio. Maria Alcina, tudo bem, era de se esperar. Mas, o que fazia ali nosso amigo
Antônio Jaime? Na época, as noites cariocas ainda tinham seus encantos. Um Rio de nunca
mais, como o próprio Antônio registra — preciso, enxuto — no poema Cio de Janeiro:
“Ipanema a 40 grills,/ Eros rola pela orla, / dentre tangas, sungas,/ no frigir das ondas,/ um
tico dos pentelhos/ da campeã de vôlei.”.
Serelepe, safada
Fanzine delicioso, Sapeca – enviada para amigos em pdf e naturalmente por e-mail —
era uma revista eletrônica da pá-virada, editada por Antônio Jaime, com saborosas notas
sobre cinema, teatro, música & gossips que iam de vedetes a vetustas atrizes, senhoras,
senhoritas & quejandos. Uma espécie mais sofisticada (nem tanto, nem tanto!) das ferinas
“revistas de piadas” do início do século passado, tipo “Careta”— e que, de certa forma,
lembrava muito o humor cáustico (e safado) do Pasquim dos anos 1960.
A exemplo, entre tantos, do nº 5, de maio de 2014, que — tomado agora por acaso —
ao falar dos 50 anos do golpe de 1964 e de eleições, menciona François Truffaut, pula para
uma seleta de marchinhas de carnaval (Antônio era expert no assunto), segue com fofocas
& amenidades de vedetes como Mara Rúbia (cujo filho — “Birunga”? — foi meu
contemporâneo no Colégio de Cataguases, mas acho que o Antônio não sabia disso), Luz
del Fuego, Virginia Lane, passa por Carmen Miranda e pela grande e altamente erótica
dançarina Eros Volúsia (nome artístico, que já diz tudo, de Heros Machado). Volúsia,
acrescento eu, fez sucesso nos EUA, com sua participação no filme Rio Rita (1942). Seus
voluptuosos movimentos influenciaram Carmen Miranda.
Eros Volúsia (Rio, 1914/2004) era filha da poeta simbolista Gilka Machado (Rio, 1893/
1980), conhecida como uma das primeiras mulheres a escrever poemas eróticos no Brasil.
Menção que escapou ao sempre atento editor de Sapeca, que ainda nessa edição compara
(fisicamente) Zé Wilker, que acabara de morrer, com o ator Yul Brynner: “Dia desses, vi fita
com Yul Brynner (ilustra com foto dele) e parecia estar vendo Wilker, dez vezes mais ator que
o de Hollywood, mas havia parecenças”.
E dali Sapeca sapecava notinha sobre meu querido amigo e grande poeta Sebastião
Nunes, com direito a um soneto, um pornopoema dele, Paródia antiquíssima nº 1 “(À moda
de Toms António Gonzag)”, que abre com essa quadra diabólica: “Tua burguesa bucet
quando lateja/ (como se ostra degustando pérolas)/ nem por isso, Marília, nem por iss,/
ouriça menos meu chouriç.”. E muito rapidamente Sapeca já salta para a folclórica Maria
Italiana, “a enigmática senhora loura que trazia arrumadinho o seu domicílio situado
debaixo da ponte nova. Um brinco”.
Premonições
Voltando ao poeta, que a ele é sempre preciso voltar. E ao seu exemplar livro de
poemas, especificamente a dois deles, onde Antônio Jaime parece prever — antena da raça,
como Pound — o que fatalmente iria acontecer, e como:
Óbito
O “corpo” vai chegar às dez,
notícia fria, sem revés.
Agora é só “o corpo”,
em definitivo, morto.
Cremação
Enterre-se o cemitério
e sua estatuária kitsch,
limite-se ao crematório,
no qual, rápido, se inexiste.
Abri meu texto com uma citação da letra que Antônio Jaime fez para sua própria
música, Corpo presente. Deixo agora que ele próprio fale da criação dessa música, como num
dos e-mails que me mandou — e aproveito para fechar este texto com a reprodução de sua
letra:
Há poucos dias, Carlos Moura me mandou cópia de Corpo presente, a bela composição
de Antônio Jaime (letra e música), que me deixou impressionado. Resposta de Moura: “Sim,
é impressionante. Sempre foi uma das grandes criações dele. Se quisesse, teria feito muito
mais. A vida o levou para a publicidade, matando o pau sem mostrar o cobra que ele era.”.
E Moura voltava a afirmar: “No nosso grupo, o que sempre escreveu melhor,
disparado. Inclusive nas letras de canções. Ele chegou até a compor uma com letra e música,
sem saber tocar nenhum instrumento, feito um Lamartine Babo; é uma obra belíssima —
"Corpo presente", veja a ironia do nome, agora com ele morto — que às vezes uso em meus
filmetes.
Corpo presente
Música e letra:
Antônio Jaime Soares
(Cataguases, 1969)
Ronaldo Werneck
Cataguases, 02.02 2024
Ronaldo Werneck
Cataguasense, jornalista e crítico, poeta, publicou Selva
Selvaggia (1976), pomba poema (1977), minas em mim e o mar esse trem
azul (1999), Ronaldo Werneck Revisita Selvaggia (2005), Noite
Americana/Doris Day by Night (2006), Minerar O
Branco (2008), cataminas pomba & outros rios (2012), o mar de outrora
& poemas de agora (2014). Em 2009 publicou Kiryrí Rendáua Toribóca
Opé – humberto MAURO revisto POR ronaldo WERNECK e os livros de
crônicas Há Controvérsias 1 (2009) e Há Controvérsias 2 (2011).
Videomaker, editou em 2009 os filmes sOLdade e mauro move O
mundo.
Zé
Luiz Lopez
Ao amigo Zé Antônio
após o cineclube
era comum eu acompanhar sua fala em tela viva
cobrindo maciamente os paralelepípedos da noite
transcendendo a pobre geografia
do Pomba e do Meia-Pataca
daquelas noites
carrego comigo sua estrela
que acordava a surdez
dos que teimavam em não enxergar
A FOLHA
Jorge Lenzi
Bebo meu vinho,
Busco inspiração.
A folha em branco
Me diz: não.
Descanso a caneta,
Clamo à paixão,
Mas a folha em branco
Repete: não.
Jorge Lenzi
é mineiro de Juiz de Fora. Formado em História pela Universidade Federal
de Juiz de Fora (UFJF), foi professor da Rede Municipal de Ensino. Primeiro
livro de Poemas foi “Entalhes”, de 2011. Lançou em 2017, “Pensamentos
Apócrifos”. Seu mais recente livro de poemas: Serurbano. Hoje coordena o
Sarau Presencial da Confraria dos Poetas de Juiz de Fora.
A Rela
quando os fecha
caem claves
no centro
um alvo
terno
Marcos Melo
E emocionou a tela;
(Luiz Lopez.multiply)
Que brilha e
Ilumina.
Marcos Melo
Marcos Melo
Doloridamente silenciosas,
As noites.
Tenho seguido.
Marcos Melo
E ia combinando-os
Daniela Alves
Embora tenham observado uma por uma com atenção, a escolha foi rápida. Gostaram da mais loira,
de olhos grandes e azulados. Estava enrolada em manta fofa e quente. A temperatura estava agradável,
abaixo do normal para a estação. Antônio abriu a porta para Camélia passar carregando Luci nos
braços. Decidiram chamá-la Lucília, em homenagem à mãe de Camélia, ou simplesmente Luci. Em
casa sentaram lado a lado. Camélia largou Luci ao lado deles. Antônio a segurou firme. “Não deixa
ela assim, rolando por aí”. “Bobeira, por que não?” Sem resposta, ele saiu da sala com Luci. Camélia
os observou pela janela passeando no quintal e pensou que seu marido estava certo, sempre esteve.
À tarde combinaram um passeio na cidade, levaram a sombrinha e abriram nos momentos em que o
sol castigava peles tão claras. “Não temos mais idade pra ficar batendo perna, mulher. Uai, Antônio,
nós temos saúde, até os calos tão quietos”. Sentaram em um banco onde a sombra os cobria. Camélia
tirou os chinelos e arrastou os pés pela grama, de um lado a outro. “Ela precisa de um carrinho. Não
seja boba mulher, precisa nada.” O assunto não se alongou. Ficaram por ali em silêncio até a tarde
começar a se despedir. “Vamos, Luci”. Os dois riram com a frase e se foram. Já estava na hora de
Camélia preparar a sopa da noite. Depois de arrumar a cozinha, Camélia vestiu a camisola e chamou
Antônio que estava nos fundos consertando um velho rádio de família. Antônio trocou de roupa e se
acomodou nas cobertas. Entre os dois, no meio da cama, estava a boneca, com seus lábios róseos
estáticos.
Daniela Alves
Nasceu em Alegrete, Rio Grande do Sul, em 1975 e atualmente vive em Viçosa, Minas
Gerais. Professora de Sociologia da Universidade Federal de Viçosa. Autora de Tempo
e trabalho: gestão, produção e experiência do tempo no teletrabalho, obra de não ficção.
Foi diretora da Editora UFV e membro da diretoria da Associação Brasileira de Editoras
Universitárias. Participa do coletivo Escreviventes e da Confraria F de escrita. Escreve
contos e crônicas.
A brava turma do Caec
Seguindo os passos do Cac — Centro de Arte de Cataguases, e ainda na década de 1960, mas sem
nenhuma intenção de repetir aquilo que fez o seu antecessor, pelo contrário, impelido por uma outra
energia que os jovens e mais novos sucessores agregavam (com certeza, menos preparados, mas
definitivamente, mais determinados), o Caec — Centro de Arte Experimental de Cataguases,
apresentou-se como nova e repaginada alternativa, pronta para movimento de ação cultural nestas
velhas barrancas do Rio Pomba, já acostumadas a essas expansões e efervescência; logo se afirmou
como legítima corrente de vanguarda, atuante em diversos segmentos da arte e da cultura.
Não valia a pena duvidar.
Mas quem eram os “Caquistas”? O que realmente pretendiam os inquietos rapazes? Em que
parâmetros se apoiavam? Estariam preparados para encetar seus objetivos? Possuíam de verdade
todas as qualidades para estes fins?
Talvez pensassem que a vontade de exercer, a coragem de querer tais objetivos, já seriam meia
caminhada. O que viria em seguida, mais tarde seria cogitado.
De fato, o Caec logo se afirmaria como uma legítima alternativa de vanguarda, atuando dessa
maneira em vários setores da cultura e da arte. O grupo que se formara, primeiramente, de
experimentações teatrais, nos domínios do Colégio Cataguases; caso tivesse havido sistematicamente
algum registro oficial, estaria sendo lembrado pela passagem de seu 57° aniversário de fundação, em
meados de junho próximo. Mas, efetivamente, poucos se lembrarão dele ou se preocuparão em
documentá-lo, garantindo desse modo a sua permanência por parte das gerações hodiernas. Se não
pelos seus méritos, pelo menos pela sinceridade de seus propósitos e pelo seu comprometimento na
procura de novas propostas e meios para novos caminhos e novas atitudes, no que entendiam chamar
de arte, apostando tudo no experimentalismo: Gravavam no estêncil coisas desconexas usando e
abusando da liberdade de linguagem. Adotaram de um modo muito empírico, o que os poetas
franceses já vinham preconizando há séculos, a escrita automática. Na falta de um produto original
apelavam (no bom e no mau sentido do termo), para os poderes do inconsciente. Desacreditados dos
valores da razão, apostavam na irracionalidade, na supra realidade.
Sabiam Rimbaud de cor: citar "Uma temporada no inferno" sempre fazia um bom efeito nas
conversas.
"... Às éclogas em tamancos rugindo no solar ..."
André Breton, Baudelaire, Allan Poe e outros desdenhadores do objetivismo. Carregavam
sacos de eruditismo.
Mas, nem só de livros se ocupavam os caquistas. Passeavam no tablado, intrometiam-se no
cinema, metiam-se com pintura, dança, música... bem entendido, desde que fossem de vanguarda.
Era o tempo dos festivais.
De cinema: alugavam filmes que vinham do Rio — desde que não tivessem sido exibidos nos
dois cinemas daqui que eram também alugados para suas próprias sessões. Ingressos antecipados.
Como os funcionários tiravam folga nesses dias, tinham que se revezar na bilheteria para atender o
público retardatário.
Os de música popular ainda demorariam um pouco a chegar por aqui ...
Pintura: um dos elementos do grupo resolveu expor seus trabalhos. Escolheu os subterrâneos
do prédio do cinema para a inusitada mostra que tinha um nome bem singular: "Mostra de Pintura
Fantástica.” Na recepção aos visitantes foi servido improvisado cocktail de batida de limão.
Até com o canto lírico se envolveram. O salão do clube mais chique da cidade, o Social, recebeu uma
sofisticada plateia para uma audição de canto lírico, com o afinadíssimo Lili Bolero desfilando
clássicos do nosso folclore.
Depois, como tudo que é bom acaba, o grupo foi se esvaziando até que se extinguiu.
.... Hoje a gente resolve e lança; pra ferir mesmo. Sem contemplação de qualquer ordem. Não
respeitarmos irmãos de sangue e outras baboseiras que servem pra incubar o medo tenebroide de
fazer as coisas de frente — todo mundo deve saber da existência do fenômeno.
Os ossos desse corpo que acaba de nascer são novos; todos na base de vinte anos. Mas desiludam,
vamos aceitar até esqueletos de piratas saxões, dentro do esquema de inquietações debilodais. É só
querer desarrumar, criar desmanchando, experimentar, que nós aceitamos de coração e peito aberto.
Seremos cobaias de plásticas revolucionárias ...
Assim ficou dito, brotou o CAEC — centro descentralizando experimentando a arte em Cataguases
— cabeça de ponte insofismável; rampa de lançamento da mais forte cuspada no marasmo
estagiário e contagiante.
Jorge Prata
Lá fora chove?
Não, pinga.
Aqui dentro,
Você em mim.
Encanto
Jorge Prata
Jorge Prata
Jorge Prata
Jorge Prata
Havia um ovo
Uma mão quente e úmida
O ovo virou voo
Desde então
Chamamos a isto de paz.
Questão de gosto
Jorge Prata
Gosto de boca
Buceta, lábios grossos
Como os de Sarah Vaughan
Cantando Jobim.
Jorge Prata
Nasceu em Cataguases, Minas Gerais, Brasil em 1955. Perfil: difícil de encontrá-lo de perfil, pois o poeta sempre
olha olho no olho, nunca de lado, embora aprecie os perfis de Picasso. Ele gosta mesmo é dos olhares incisivos dos
retirantes de Portinari, exceção à dubiedade “a lá Capitu”. Escreve pouco porque crê que poesia é puro pensamento.
Às vezes, ela toma corpo em palavras e as palavras são poucas. Metade delas é nada. Como desejo imperativo a
poesia necessita de um corpo pra sentir e calibrar o sentido das coisas que teimam em não sentir. Publicou na revista
“Totem” (Brasil) e na revista “Azor” (Espanha).
MEMÓRIAS
Num baldio ao lado de uma rampa próximo do lugar onde moro, costumava
passar os dias um cavalo de ciganos. Um cavalo velho, cansado, esquelético e
com o corpo coberto de chagas onde poisava, incansável, um enxame de
moscas.
O baldio estava sempre cheio de erva viçosa e de humildes florinhas de
todas as cores, mas o cavalo, alheio à beleza que o rodeava, ia tasquinhando,
indiferente, aqui e ali. “Estava cansado! Cansado da vida! Cansado de ser cavalo
de cigano!” — comentava consigo.
Desde potrinho que levara fraca vida. A ciganada miúda montava-o,
quando ele ainda mal se aguentava nas pernitas bambas. E gritava-lhe insultos
naquela algaraviada de ciganos que ele, mesmo agora, cavalo velho e
envelhecido na sua companhia, não compreendia. Também lhe batiam com
chibatas verdes de oliveira. Queriam que ele corresse, carregando por vezes com três ou quatro
ganapitos grudados na garupa. Era demais! Que o
deixassem, bolas! O que ele queria era deitar-se ao pé da mãe e chupar do leite
branco e morno que tanto lhe agradava. Mas que não! Que corresse! Os demoninhos!
Sempre exigiram dele mais do que podia dar. Já cavalo feito, bonito, pelo
luzidio, lá tinha de ir de feira em feira, carregando os sucessivos donos que às
vezes, para demonstrarem as suas capacidades de corredor, batiam-lhe com
chicote ou picavam-no com esporas.
Triste vida tinha sido a sua! Nunca lhe permitiram um momento de
sossego!
Mesmo agora, velho e doente, quantas vezes a ciganada o vinha buscar
ao prado, o arrastava até ao acampamento e o obrigava a trabalhar!
Indiferentes aos pensamentos do velho animal, as pessoas passavam,
rampa acima, rampa abaixo.
Eu reparava nele e doía-me o coração de o ver sempre ali, mesmo nos
dias gelados de inverno.
Um dia, mais frio e chuvoso que os outros, passei e vi o cavalo deitado, hirto, completamente
imóvel. Provavelmente tinham-no deixado ali de noite e o velho animal, mirrado de desgosto e
doença, não resistira.
No meu mais íntimo, alegrei-me. Aquele animal, ali, todos os dias, na hora
em que eu passava para a escola, era um espinho cravado no meu coração.
Agora, finalmente, ambos tínhamos parado de sofrer.
Os Malabaristas
Ronaldo Brito
Foi a menina que começou. Ela foi para uma avenida movimentada e, quando o sinal fechava, ela
entrava com seu aparato de malabares. Garrafas de plástico, bolas de tênis, argolas. Fazia, de fato,
uma apresentação notável, chegando a dominar sete argolas flutuando ao seu redor. Via-se que era
uma garota pobre, não se sabia onde aprendera aquilo. Os motoristas se emocionavam ou
simplesmente se apiedavam e davam um trocado para ela fazer um lanche. E o lanche era feito, de
manhã e de tarde. E o dinheiro nunca faltava, e a garota se sentia satisfeita como quem tivesse carteira
assinada.
Depois veio o rapaz. Ele apareceu sem mais nem menos. Quando ela entrava do lado direito, jogando
suas argolas, ele entrava do lado esquerdo, com garrafas ou pelotas. Ela não gostou nada daquilo. O
rapaz estava roubando parte do seu lanche. Com o tempo ele se apresentou, propôs que eles fizessem
uma manobra mais ousada, com argolas ou garrafas voando de um para outro. Ela não tinha gostado
do garoto, mas gostava de desafios. Passaram a chegar mais cedo para ensaiar a manobra conjunta.
Quando o sinal fechava, os dois primeiro agiam separados, depois subitamente uniam seus apetrechos
num voo comum. Isso causava sensação, e os trocados, que haviam minguado para ela, agora se
multiplicavam, e ela conseguia não só fazer um lanche, mas levar um para sua mãe.
O rapaz, cujo nome ela já não lembrava, quis introduzir um turno da noite. A noite, obviamente exigia
tochas, e a garota teve medo. Mas o rapaz a convenceu de que os movimentos eram os mesmos, e o
fogo das tochas não era forte o bastante para queimar. Tudo era feito com material adequado. Assim
as noites da avenida ficaram mais animadas, e os malabaristas, ou, o casal de malabaristas, como
agora eram chamados, chegou a merecer aplausos dos moradores dos prédios mais próximos.
“O casal de malabaristas”, essa expressão pegou para definir os dois jovens, e o jornal da cidade não
tardou a aparecer para registrar o acontecimento. Isso foi talvez, o começo do fim.
Na entrevista o rapaz revelou que os dois não eram casados, nem sequer namorados. A jornalista
insistiu, perguntando se ele não pretendia chamar sua amiga para um passeio na praia, conversar sobre
um futuro comum. A verdade, é que não, disse o rapaz. E, de fato, a garota magrinha, baixinha, com
uma bola de cabelo crespo na cabeça, não inspirava o menor desejo. A jornalista então voltou-se para
a moça e perguntou o que ela sentia pelo rapaz. Sem a menor diplomacia ela disse que ele era um
intruso. Ela fazia tudo sozinha, muito antes de ele chegar, e de repente ele apareceu, tentando tomar
o lugar dela, depois propondo manobras mais difíceis e arriscadas. Acrescentou que ele inventou um
turno noturno, que a deixava em dificuldade, porque ela ainda tinha que pegar um ônibus para os
confins da cidade, antes de chegar em casa. Sua mãe andava preocupada.
A jornalista não teve outra alternativa. Fez suas anotações. O título da reportagem foi “Jovens
malabaristas da Avenida José Caneca na verdade não são casados.” A manchete foi fotografada e
repassada para muitos celulares. Afinal, o que era aquilo? perguntavam-se os leitores. Se eles não
eram casados, eram mestres da propaganda enganosa. Nos fizeram acreditar que estavam juntos, fiéis
um ao outro, unidos no ganha-pão de cada dia, mas no fim das contas, não passam de impostores.
Os dois manobrando juntos, com precisão e talento, passavam a ideia de um casal leal e sincronizado,
contorcendo-se para se manter unidos frente às dificuldades do dia a dia. Agora a magia havia se
quebrado. Os dois não eram casados. Talvez nem fossem amigos. Estavam unidos apenas na
mesquinha atividade de arrancar alguns trocados dos motoristas. Aquilo era abuso da fé pública, um
golpe psicológico, forte como uma desilusão amorosa. Ninguém chegou a falar que os dois mereciam
cadeia, mas no fundo foi o que pensaram.
Alguns motoristas, mais sentimentais, pegavam outras ruas, para não passar por eles. Outros
simplesmente deixavam de dar os trocados. O pagamento foi minguando. A garota já não conseguia
fazer duas refeições ao dia, o que a deixava esgotada. Um dia simplesmente não apareceu. Talvez
tenha iniciado uma carreira de faxineira.
O rapaz era de família mais rica. Continuou o malabarismo pelo mero prazer, e um pouco pelo hábito.
Mas sentiu falta da garota. Às vezes ele pensa em pegar um ônibus para o subúrbio, andar a esmo
pelos confins da cidade, na esperança de encontrá-la.
Ronaldo Brito
Autor do livro Sala Privê (Editora Labrador).
CÉU DE QUALQUER LUGAR
E eu digo
Estou à procura de Eva
Sempre estive.
A Eva que saiu do catecismo
E pousou nos sonhos travessos de criança
Nossa Senhora Eva de todos
Grandiosa e assustadora Eva mãe
Se materializou em cartas juvenis
Se aproximando de outras culturas
Eva distante, inatingível
Não passou de arrepios e murmúrios
Nas danças de salão
Nos carnavais
Até que ressurgisse em faces guerrilheiras
Eva mulher, vulcão arrebentando muros
Eva puta, Eva mística, atriz
Eva de todas as caras
Transitando por nuvens densas
Achincalhando os imbecis
Eva brincalhona e triste
Flertando com as estrelas
Colorindo dias cinzentos
Eva das paixões
Sempre Eva!
Quem mais Eva?
Onde estás?
ONDE ESTIVER
virtual
Alunos presos, guerrilha,
corpos torturados em treva
jaziam abandono selvagem
e perdição na continência
das mentes subjugadas ao horror.
Marcelo Benini
Pelo menos teria me livrado das humilhações dos vazios literários, das perguntas implacáveis em
rodas de literatos.”
O desconforto do Zé e de seus amigos foi indisfarçável. Logo ele que sempre demostrara
simpatias literárias por meus rabiscos, que até usou um poeminha meu como epígrafe de um conto,
que, generoso como poucos, volta e meia publicava coisas minhas na Chicos. Como pude decepcionar
o Zé Antônio? O jeito foi desviar a conversa para coisas menos problemáticas como futebol e
imprecações ao prefeito.
Dois anos depois voltei a Cataguases para o lançamento de um livro. O Zé estava lá, claro.
Conversamos bastante. Notei que no seu rosto pairava um sorriso enigmático, um pouco sacana, que
a todo momento parecia me inquerir: “Tá, mas e aí, Proust ou Joyce? Àquela altura já tinha lido o
Joyce, mas faltava o Proust. Não ousei tocar no assunto.
Os vácuos literários não têm remédio. Mesmo que você venha a ler o tal livro ficará sempre a
marca indelével daquele momento em que foi perguntado e não tinha lido. No caso do Zé, saí do
nosso primeiro encontro no bar prometendo a mim mesmo que quando tivesse lido Proust e Joyce
voltaria triunfante a Cataguases para tomar uma cerveja em pé de igualdade com ele e seus amigos.
Zé e eu mantivemos a simpatia mútua, expressa em eventuais trocas de e-mails, mas ficou essa
conversa por acontecer.
Zé Antonio para mim será sempre essa pergunta: “Proust ou Joyce?”
Uma pergunta que, só depois de ler ambos, percebi que se tratava de uma das grandes questões
da Humanidade, quase comparável à pergunta pelo “ser”, de Heidegger, ou às inquietações de
Hamlet.
Então era um filósofo esse saudoso Zé Antonio!
Marcelo Benini
Poeta
Uma cosmovisão poética
Ronaldo Cagiano
As lentes do poeta fotografam os dilemas, tumultos, dicotomias e tensões do ser num mundo
calcificado por um rol de demandas, sondam as monolíticas faces de uma experiência existencial que
se constrói a partir de muitos passivos. No conjunto de poemas enfeixados em Jásper: esfinges,
moradas, estilhaços; Opala: cidades, manadas, máquinas; Quartzo: amores, despedidas, relógios;
Turmalina: construções, plantas, livros, Lanzillotti disseca os escombros da caminhada, a solidão e
a insularidade do rebanho humano nessa época de coisificação e etiqueta. Tudo amalgamado num
simbólico enquadramento que se nomeia sob uma relação metafórica com quatro pedras angulares e
de valor transcendental.
O poeta vasculha os ermos das impurezas do homem, essa pedra bruta com seus palimpsestos
em eterna oficina de lapidação, como ao constatar, em clave de inquirição, em Tecido mole: “Porque
será mais fácil adentrar/ as profundezas da Terra e do mar/ o que se achegar ao outro? /São muitas as
camadas/ que compõem um corpo:/ armadura complexa e feita/ de um tecido mole/ mas quase
impenetrável.”
Eis uma poesia cujo ceticismo também se contamina de um certo niilismo ao registrar os
infortúnios de um tempo acossado por injustiças sociais, como se colhe de Lições da contracorrente
e suas ressonâncias intertextuais: “Caminho ao lado/ de pessoas com fome/ sem casa ou título. /
Lutam/ pelo pão de cada dia/ pelo remédio caro da farmácia/ por um lugar no chão. /Nada sabem
sobre ti, Walt Whitman. /Nem de tuas armas e escravos, Arthur Rimbaud. / E atravessam a rua como
se houvesse/ algum tesouro/ ali na esquina.” No mesmo diapasão enuncia o poema “Quando foi?”
(Enquanto o ônibus se movimenta/ sinto-me como passageiro/ de futuro inerte/ desamparado/ tímido.
Passo e vou lendo Alberto Caeiro/ que transita entre outeiros/ fora das cidades. (…) O que se
assemelha à visão do inferno de Dante/ é apenas mais um dia/ no Rio de Janeiro/ e ao desembarcar/
carrego insistente pergunta:/ quando foi/ que nos tornaram isso?), que reflete sobre o nosso
desassossego, na mesma linhagem de Banco, que desfere: “A saúde/ a vida/ e os sonhos devassados/
mas a poesia/ íntegra e a plenos pulmões.
”
Ronaldo Cagiano
Nasceu em Cataguases MG, mora atualmente em Portugal. Publicou, entre
outros, Dezembro indigesto (Contos, Prêmio Brasília de Produção Literária
2001), O sol nas feridas (Poesia, Finalista do Prêmio Portugal Telecom 2012),
Eles não moram mais aqui (Contos, Prêmio Jabuti 2016), Todos os desertos:
e depois? (2021) e Horizonte de espantos (2022).
PE-ESIA II
Marco Fietto
Para
Preservar
Pulcra
Poesia
Pense
Positivo.
Parece
Pouco
Porque
Perdemos
Planos.
PARE:
Procrastinação,
Privatização,
Preconceito,
Plutocracia...
Pestíferas
Porcarias
Pintando
Pinturas
Poderosas
Para
Perturbar
Pobres
Povos.
MARCO FIETTO
Formado em Letras pela UFJF. Escreve poemas em sete línguas e em variados gêneros. Já
foi várias vezes jurado de Slams poéticos e é admirador da arte poética realizada nos Slams.
Participou de várias antologias e exposições literárias. Criador de A OPINIÃO DO POETA,
que ainda circula e do FESTIVAL DE LÍNGUAS, que aconteceu no passado em JF.
Aquarela
Na janela, estava só
E a casa era quase a cela
Onde purgava os sonhos
Dos tempos de Cinderela
Estava só e perdida
E da janela não vai
A destreza das mãos vadias
Que lhe resgatavam a vida
.
A obra
Palavras ditas, outras, escritas, partem de um centro difusor a torto e direito. Procuram fazer sentidos
como se fossem materiais para especial empreitada: terra, areia, pedra ou tijolos, transportados em
caminhões, chauffeurs contratados saberão de seus devidos fins. Cerebral artifício articulados
promoverão fenômeno estranhamente premeditado. Por sua natureza planejada será chamada,
provisoriamente, construção. Terreno novo será preparado para receber esses e outros materiais
necessários e também adquiridos e com atestado de comprovada garantia. Tempo também
comprovado por anos de tradição nesse ramo. Com tal e complexa estrutura a obra terá absoluta
excelência. Pensam que não? Esperem pra ver, ter à mão, possuir, ler. Apurados gostos satisfazer,
primorosas edições farão aparecer. Atravessaram décadas, lustres, talvez séculos. Palavras ditas,
ditadas, escritas em variados caracteres revelarão ideias magníficas, originalíssimas que sacralizarão
fantástico, formidabilíssimo, nervoso, tremido texto. Serão absurdas quaisquer ações comparativas,
desproporcionais, imprecisas. Que valor teriam a ela comparada? A graça, a pujança, a esperança nela
engendrada não deixará nenhuma chance de questionamento quanto a sua eficácia. Se tivesse que ser
definida por uma única palavra, está palavra seria mágica. Seu aparecimento num cenário atual de
miséria criativa deverá marcar um novo e longo período na história das coisas criadas para o deleite
de multidões ávidas, esperançosas. Haverá em torno dela interesse nacional, internacional, universal.
Palavras, novamente, ditas, outras, ditadas, urdidas nesse turbilhão de ideias sugeriram extremos
aonde ação imperiosa se dará. Leitor perceberá nuances para mentes comuns, realmente ininteligíveis,
mas reais, existirão. Interesse crescente abrangerá capítulos que extrapolarão as possibilidades de
números que são infinitos romanos ou não. Espaços impensáveis serão ocupados em volumes que
passarão de mil, milhões, trilhões, quem sabe?
O tempo que se perdeu lendo Proust será avaliado e descartado diante de um tempo exigido para
absorção de valores artísticos desproporcionais, inimagináveis, incontornáveis... não faltará um título,
"A obra, workshop in progress ..."
Gleison Dornelas
Tudo é escrito sem gosto de mel Assim foi meu primeiro amor
ou açúcar para sensibilizar; que amei sem saber amar.
para viver em mar de amar Eu era pensante menino
sem pensar em ser fiel. e uma menina amei sem pensar.
Gleison Dornelas
A lousa petrificada por sobre o túmulo, deixa na brisa fria um vulto atro
com o talhe memorável de um ser;
que se foi, por si só, a bel prazer.
Assomam o medo, o pavor e o frio em mim ... então vejo que vivo.
Quando não mais que de repente, algo turvo e errante resvala na ausência,
sentindo o toque sutil da inexistência.
(amor virtual)
Zé Tarcísio, 23/6/2020
José Tarcísio
Professor
Caminh A
Parte 3
nte
Fernando Abritta
2020DC _______________________________________________________________
Zacarias desceu da velha charrete ainda herança O vento balançou o milharal ao seu redor.
de Seu Zaca. O antigo paiol estava cheio da
safra do ano passado. O preço do milho havia — Vamos ter que entregar o milho pra liberar
subido como esperado, mas ainda não valia a os paióis, limpar os silos. Tem como não.
pena vender. Preço do adubo, do combustível
Esfregou a orelha da velha égua que negaceou
para as plantadeiras, as sementes, tudo estava
a cabeça, tirou debaixo do assento os ramos de
um roubo.
flor que trouxe para a santa.
— Será que vale a pena continuar nesta luta?
— Nos proteja, Senhora.
Estava cansado de horas na frente da tela do
Colocou os ramos aos pés da imagem da
computador negociando com gente do outro
Virgem Negra, dentro do pequeno oratório,
lado do mundo. O adubo vinha da Rússia;
suspenso num poste que elevava a antena do
calcário, da China; colhedeiras, da Holanda;
sistema de vigilância sanitária e de segurança
peças de reposição, Vietnam, Filipinas, Nova
da colheita.
Zelândia e de um monte de países. Defensivos
agrícolas vinham da Suíça e da Alemanha. Ele — Não podemos perder esta safra nem para as
organizava as compras do grupo de agricultores pragas nem para os ladrões.
a quem estava ligado. Gente boa, excelente no
trabalho de plantar, cuidar da lavoura, colher e Pensou o quanto dela, da safra, já estava
estocar. Porém, fazer negócios com comprometida com os larápios que forneciam
estrangeiros, para isso precisavam dele. as sementes.
2036 DC_________________________________________________________________
— Tem uma cachaceira aqui pra Dasdores. E E, mais uma vez, foi buscar a companheira no
todo domingo deixavam lá, Maria das Graças copo sujo do posto de gasolina na beira da
esparramada no chão, às vezes ainda suja, estrada.
usada. Mulher e cachaça sempre junta zoeira
briga violência estupro. E vinham no acostamento. Caminhões
graneleiros — 9 eixos de carretas carregados de
Dasdores cuidava, lavava, punha pra dormir. caroços de tremoço branco e os três do cavalo
Afinal o barraco era posto de saúde, farmácia, — atravessavam assoprando as duas pra fora da
hospital do povo. Esses recursos de verdade estrada. No copo sujo haviam falado de
ficavam muito longe, melhor resolver por aqui. comboios graneleiros conduzidos por um só
Fiquemos com o que temos, Maria das Dores, e motorista.
toquemos a vida. Dasgraças, nome mais usado
pela cachaceira, saia logo cedo sem acordar — Não acredito.
— Também já vi. — Essa estrada vai lotar deles passando por
aqui fugindo das balanças de outras rotas.
— Ora, ele, motorista vai na frente, no primeiro.
O segundo caminhão, só no computador, segue Noutro tropeção o caminhão de traz sugou as
reproduzindo o que ele faz. O terceiro também duas pra debaixo das carretas. Sobrou só uma
robô reproduz o segundo. Já vi três graneleiros, pasta de carne pisada por 36 rodas dos 9 eixos.
um atrás do outro, mesma velocidade, rodando
a noventa por hora. O jornal noticiou com manchete:
2036 DC_________________________________________________________________
2055 DC______________________________________________________________________
Nos últimos eventos as comunicações da Ordem — Seus pecados estão perdoados. Pode ir.
da Virgem Negra começaram a ser mais diretas
apesar de ainda cifradas. No enterro da Maria Abriu a portinhola do confessionário e saiu
alguém deixou com ele o convite: o chamado envolto no seu hábito, a touca cobrindo a cabeça.
para um encontro. Ele, este convite, o havia O diretor do Centro de Pesquisas da Imperial
trazido até ali. Se relacionar com a Virgem Negra Sementes ficou ainda lá um tempo de joelhos. Foi
era perigo principalmente para ele, diretor do buscar o envelope:
Hermes Ionã saiu do Palácio Episcopal e num manhã quando os soldados invadiram o
pulo já estava na avenida. Na mochila de livros Mosteiro. Havia matado as duas últimas aulas da
debaixo do braço levava cadernos, escova de manhã para finalizar um trabalho em casa e foi
dentes, duas cuecas e as cartas dos padres presos. entrando na correria de sempre. Ouviu a voz do
Na verdade, não eram cartas. Ninguém superior num tom e numa altura nunca percebida.
conseguiria tirar uma carta de dentro do cárcere
onde estavam. Eram pequenos bilhetes que — Hermes, o que você está fazendo aqui? Não
Hermes conseguia passar pelos guardas às vezes devia estar na universidade? Não é hora pra você
até dentro da boca embrulhados em plástico, uma estar em casa. Volte para os seus deveres.
bolinha debaixo da língua. No Mosteiro ele
Só então percebeu as botinas nos pés dos
desamassava com cuidado. Pegava uma folha
presentes. Abaixou a cabeça, deu meia volta e
formato ofício e colava a mensagem. Escrevia o
saiu: o trabalho foi feito na biblioteca da
nome do destinatário na forma abreviada. A do
universidade.
arcebispo ele deixou com o secretário vez que o
próprio não teve tempo para receber Voltou à tardinha quando encontrou os outros.
pessoalmente. Apesar de estar agendado. Hermes Ninguém fazia ideia do que havia acontecido.
Ionã perdeu duas horas afundado na poltrona da Levaram o padre superior, o padre despenseiro e
sala ao lado do secretário. Lamentou. Duas o seminarista mais velho, este já nas vésperas de
semanas de prisão e ninguém se mexia. Queria fazer votos.
saber do arcebispo por que a igreja não defendia
os padres presos. — Foi a repressão. Ligamos para os
companheiros que ligaram para outros
A avenida corria pra cima e pra baixo com suas companheiros que retornaram com a notícia.
muitas pernas e pés: as sandálias rasteiras das Estão os três em cana no DOPS.
moças, saltos altos das senhoras elegantes, os
chinelos gastos dos pedintes, pés sujos dos Hermes Ionã conferiu o relógio, atravessou a
meninos de rua, os sapatos gastos dos avenida correndo no meio dos carros deixando
trabalhadores de escritório, botinas puídas dos atônitos os olhos que vigiavam. Acelerou o
que trabalhavam nas obras do centro, coturnos passo. Hermes, você vai perder este ônibus. Você
lustrados dos policiais e as botas enceradas dos precisa voltar ao seminário com as mensagens.
milicos de cima de seus cavalos vigiando o corre Deixar com alguém a incumbência de entregar as
do povo, as grandes espadas em suas bainhas, da comunidade, as dos padres do Rio de Janeiro
pendentes dos arreios. No caminho da rodoviária, e a do Espírito Santo. E tudo tinha que ser rápido.
na pressa de não perder o ônibus, Hermes nem É sua missão agora.
percebeu os olhos que o seguiam. Lembrou a
— Quando aconteceu o milagre, o puto do Naquela época palavra era coisa muito perigosa.
general deveria ter solto eles.
Fernando Abritta
Poeta do livro umÁrvore (Funalfa, 2010), designer ilustrador de Uma Verde História (LAL,
Cataguases, 2011) e romancista ilustrador de O Caso da Menina que Perdeu a Voz (Funalfa, 2010),
participa das coletâneas Juiz de Fora ao Luar (JF: Gryphon, 2015) e Poesia na Pandemia (JF,
Paratexto, 2021), tem o romance Mula Sem Cabeça, a procura de editor.
ARRECIFE DOS NAVIEIROS
Wander Lourenço
Atraiçoado pelas rudes mãos do destino quando a esposa Mari’Ana e o reles amante
O escravo Damião da Costa de ofício-estivador que aportara em vil desembarcação
Que às cegas amarras s’embrenharam por porões labirínticos do coração navegante
Ah, quem diria que torpe aleivosia do escravo maledicente de fato adviria da paixão
Wander Lourenço
POBRES
José Pérez
Cada pobre
del mundo
me mira
como su gemelo
y mi mano
tiembla
mi ojo llora
mi boca calla
mi corazón
se hace tan pequeño
como estrella
o grano
Cada pobre
de mi calle
comparte mi sed
mi nombre
mi huella dactilar
y camina a mi lado
Cada pobre de mi casa
duerme en un rincón
oyendo la lluvia
como cohetes de guerras
esperando el sol
como plato tibio
servido en silencio
Cada pobre
de mi país
siquiera sabe
su destino
o la hora exacta
de dónde viene
para dónde va
porque su camino angosto
y empedrado
semejante a un túnel
a una cruz con espinas
a navaja en el hueso
a piedra de volcán
lacera
su estómago
30/12/2023
MUNDO
José Pérez
Yo no hice al mundo
en siete días siete
en siete noche ni en siete horas
desempleado y triste
vacío por dentro
como una manzana sin Adán ni Eva
sin pirámides ni burritos de Belén
sin cabras ni bastones de oro
para perforar la roca
sin caminar como mesías
el horizonte es ceniza
El mundo me hizo a mi
a su imagen y semejanza
y soy hijo del padre
salvador de los alcoholes
las bienamadas
bienaventurado entre los borrachos
y delirantes
hipertensos disfuncionales y solitarios
fumando a toda hora
las greñas alborotadas como los ángeles
adúltero y pecador como las abejas
casi resucitado
cada mañana de las resacas
y las tristezas
alguien amenaza
llevarse mis huesos
desde la cruz y las tempestades
porque mi padre me ha abandonado
pero el mundo
es el fondo de la nada
y desde ahí me levantaré a los cielos
y regresaré para salvar almas
como un degenerado rebelde
que se niega a desaparecer
en la suave piel de una hostia
01/01/2024
José Pérez
(El Tigre, 15 de mayo de 1966), es poeta, narrador y ensayista. Licenciado en
Letras (ULA, Mérida, 1991) y doctorado en Filología Hispánica por la
Universidad de Oviedo (España, 2011). Profesor jubilado de la Universidad de
Oriente (Venezuela) en el área de Lingüística. Autor de los poemarios Como
ojo de pez (2006), En canto de Guanipa (2006), Páginas de abordo (2008), A
palo mayor (2018) y La casa de los poetas (2021); los libros de cuentos Jardín
del tiempo (1991), Callejón con salida (1994), De par en par (1998), No lisis no
listesis (2000), Pájaro de mar por tierra (2003) y Cuentos de lejanía (2022); del
ensayo Cosmovisión del somari (2011) y la novela Fombona rugido de tigre
(2007), entre otras obras. Ha sido galardonado en la II Bienal Literaria de
Guayana Lucila Palacios (1993), II Bienal de Literatura Antonio Arráiz (1998),
Certamen Cada Día Un Libro (2005) y Gran Explosión Bicentenaria (2011),
entre otros concursos dentro y fuera del país. Escritor homenajeado en la Feria
Internacional del Libro de Venezuela, FILVEN, por el estado Anzoátegui,
febrero 2024.
O CAÇADOR
(Em: Pânico no Estúdio 49)
O carro dobrou a esquina a toda velocidade, desviando por pouco de outro veículo que vinha no
sentido contrário. A via era de mão única, mas isso não impediu o automóvel desgovernado, que
capotou em seguida.
Foi o bastante para Vinny Ace, o dublê, sorrir. Estava satisfeito com o resultado de sua
performance. A princípio, não acreditava que aquela coisa de dublê fosse dar certo, no entanto,
enganara-se. Queimara a língua, pois sentia que nascera para aquilo. A adrenalina, a tensão, a
necessidade constante de superação ... Os seis últimos meses haviam sido os melhores de sua vida.
Tudo graças a Tina, a sua namorada desde os tempos do colégio, que lhe arrumara a proposta
Já que Tina trabalhava como produtora-assistente da novela medieval O Trono de Pedra, que
era rodada justamente no estúdio ao lado, o de número 49, poderia muito bem levá-la para jantar. Não
era uma má ideia. Só teria de esperar as gravações do dia terminarem, o que não deveria demorar
Então, Vinícius foi até o seu trailer e rapidamente trocou de roupa, tirando o seu figurino. Em
seguida, rumou para o estúdio 49. Chegando lá, não demorou a perceber que havia algo errado.
Se ele não se enganara, Tina lhe dissera que seria filmada uma cena de batalha no local. No
Procurou uma forma de espiar. Subiu em alguns caixotes e conseguiu dar uma olhada pelo
basculante localizado na parte mais alta da parede do estúdio, que devia ter uns três metros de altura.
Alguns homens de terno tinham feito o elenco e a equipe de filmagem reféns. O líder do grupo
de bandidos era um indivíduo de altura mediana, que trajava um extravagante terno azul marinho com
Ele exibia um macabro sorriso em seu rosto, em grande parte por conta da cicatriz que deformava
“É o seguinte.” — disse ele. — “Eu quero a minha grana. Todos os duzentos e oitenta mil,
Vinícius sentia que tinha de fazer alguma coisa. Não dava tempo de chamar a polícia, pois
demorariam muito para chegar ao estúdio, muito afastado do centro da cidade de Alexandria.
O dublê teve de pensar rápido. Se fosse realmente agir, precisaria contar com o elemento
surpresa. Então, como a maioria das pessoas no local trajava um figurino de época, seria mais fácil
Para tanto, seguiu até os fundos do prédio, onde se localizava o vestiário. Pegou um uniforme
de soldado da guarda-real e o vestiu. Improvisou uma máscara estilo Zorro, caso tudo desse
extremamente errado. Assim, poderia preservar a sua dignidade (ou o que restasse dela).
Daí veio a procura por alguma arma, mas esta não durou muito, pois logo viu o arco e a aljava
com as flechas. Uma sorte inesperada, já que sabia manusear corretamente o artefato.
Praticava o esporte desde a adolescência, logo após ter abandonado a ginástica olímpica. Mas
Vinícius sabia que precisava estar completamente focado. Era essencial para a missão, na qual
qualquer erro poderia ser fatal. Para obter sucesso, primeiro tinha de adentrar o set de filmagens
despercebido.
Novamente, a sorte estava do seu lado. Nem precisava ter se disfarçado, mas agora era tarde
equipamentos, estavam desobstruídas. E o melhor: ninguém prestava a menor atenção a elas, seja por
Os bandidos estavam deveras concentrados em seus reféns e esses últimos não conseguiam
Tudo que Vinícius tinha de fazer era tomar cuidado para não ser visto. Não seria uma tarefa
fácil, pois além de não poder fazer nenhum ruído sequer, sob pena de chamar a atenção dos
criminosos, ainda tinha de prestar atenção nos mesmos, de modo a não ser pego desprevenido.
Lentamente, e com o máximo de cautela possível, ele começou a avançar pela passarela.
“Olha, acho que podemos chegar a um acordo.” — disse uma das reféns, levantando-se com
O dublê reconheceu a garota de cara. Era Lara Porto, a atriz adolescente do momento e estrela
“É isso que ouviu, guria. Você é o nosso passaporte em segurança para fora daqui, além de
garantir a grana que tenho direito. E se quiser mais detalhes, pergunte ao seu padrasto.” — concluiu
o líder da gangue, apontando o cano de sua arma para um homem de terno deitado perto de uma das
câmeras.
“O Jonas?! O que lelé tem a ver com isso?” — exclamou a jovem atriz de cabelos castanhos.
“Foi a dívida de jogo dele que nos trouxe aqui. Não é mesmo, Jonas?”
Vinícius decidiu que já ouvira o suficiente. Era hora de entrar em ação. Preparou duas flechas no
arco e disparou-as simultaneamente.
As setas voaram em direção opostas, formando uma trajetória em V no ar. Acertaram em cheio
nos seus alvos, fazendo com que os dois capangas do bicheiro largassem as suas armas, devido às
feridas causadas, em suas mãos, pelas flechas. O dublê achava que tinha aleijado os caras. Nada que
A reação de Santoro foi rápida. Ele começou a atirar na direção da qual vieram os disparos. Ao
mesmo tempo, Vinícius deu uma de Tarzan, saltando da passarela, agarrando uma corda presa por
uma roldana e utilizando a mesma para ganhar impulso e para se balançar até onde estava Santoro,
Por pouco a saraivada de balas, disparada pelo líder dos criminosos, não o acertara, mas a sorte
desmaiara com o impacto do chute. E, de repente, a atenção de todos se voltara para o misterioso
arqueiro, que sem saber como agir, disse uma besteira qualquer:
No dia seguinte, todas as manchetes dos jornais de Alexandria indagavam quem era o misterioso
“Caçador”.
Raquel Naveira
Minha paixão pelos livros vem da infância. Sempre gostei do objeto livro, mesmo antes de ler ou
escrever. Folheava as páginas e intuía que um livro aberto continha vozes e segredos desvendados.
Observava as capas, a textura do papel, o cheiro da tinta. À noite, no escuro do quarto, acendia uma
vela e passava a chama devagar pelas ilustrações coloridas, imaginando que ficariam animadas.
Na nossa casa, morou conosco durante muito tempo uma governanta e babá chamada Correntina,
que viera de Bela Vista, fronteira do Paraguai. Um dia, ao me ver debruçada sobre um livro perguntou:
Respondi, mentindo:
— Já.
— É a história de um pirata que atravessou o mar para encontrar um tesouro numa ilha cheia de
fantasmas. E comecei a inventar uma história. Enorme o prazer de vê-la surpresa, acompanhando
cada palavra. A descoberta de um estranho poder.
Logo compreendi que o livro era manifestação de algo mágico, recanto de palavras perdidas. Que
as letras se embaralhavam, depois se combinavam infinitamente e revelavam a totalidade de seres,
decretos e enigmas.
Um dia, saí andando pelo mundo e pelas cidades, à procura de livros. Dos livros de meus
escritores preferidos. Dos meus próprios livros. Saí em busca de mim mesma pelas ruas centrais,
pelos labirintos onde há sebos cheios de corujas e gatos ocultos entre as prateleiras.
Adoraria ter escrito como o poeta carioca Antônio Cícero um livro intitulado A Cidade e os
Livros. Começá-lo com um poema onde descreveria o centro do Rio, cidade proibida, entrando em
becos, travessas, avenidas, galerias, cinemas, livrarias com nomes exóticos como: Leonardo da Vinci,
Colombo, Alfândega, São José, Cosmos, Berinjela. Maravilha-se o poeta: “Eu só sentia algo
semelhante ao perceber que os livros dos adultos também me interessavam: que em princípio haviam
sido escritos para mim os livros todos.”
Em São Paulo, os sebos estão ao redor da praça da Sé. Vou sempre ao Messias, ao José de
Alencar, ao Nova Floresta. Esse nome, Nova Floresta, me faz lembrar livros que caem de árvores, no
meio de um bosque coberto de folhas de papel, que o vento leva e farfalha.
Para o argentino Jorge Luis Borges, os poetas, como os cegos, podem ver no escuro. Ele
imaginou em seu conto “Biblioteca de Babel”, uma biblioteca universal, com todos os livros do
mundo e, em “Livro de Areia”, um livro monstruoso, objeto de pesadelo, que prendia a atenção do
leitor para sempre.
E por falar em biblioteca, em templo do saber, veio à minha memória o Real Gabinete Português
de Leitura, na rua Luís de Camões, no centro do Rio. Que beleza arquitetônica, que acervo fantástico.
Uma instituição que dignifica Portugal no Brasil, desde 1837. Verdadeiro padrão da nacionalidade e
da língua portuguesa transformada em arte literária. Na sala de leitura, entre vitrais coloridos
representando a náutica dos descobrimentos, vários níveis de estantes repletas de livros. Enquanto
observava quase sem fôlego aquele espetáculo, uma mulher ao meu lado persignou-se, fazendo o
sinal da cruz. A sensação profunda de pisar um lugar sagrado.
A Bíblia, o grande livro de minha alma poética, menciona várias vezes a expressão “O Livro
da Vida”. Paulo disse que as pessoas que cooperam com ele no evangelho tinham seus nomes escritos
no Livro da Vida. E Jesus afirmou que os nomes dos vencedores que se mantêm puros não seriam
apagados desse livro.
Quero estar em paz, entre meus livros, enquanto me preparo para entrar numa cidade iluminada.
Numa biblioteca infinita. Será a glória.
O casarão, antes repleto de sons, gente e movimento, agora consumia-se no silêncio e no vazio
das horas mortas, todas as horas, todos os dias. O irmão mais velho de Otília não resistiu à leveza de
um carro em alta velocidade, puxou o manche, voou para o céu pouco antes de completar trinta anos.
Bebia demais, tudo demais, dizia a irmã, e juízo nenhum. Os pais, um atrás do outro, deixaram o
desassossego de todo o sempre (acordar, levantar, sair, voltar, receber visitas agora desagradáveis,
chorar a morte do filho) e foram para o abrigo perpétuo da família, um mausoléu bonito, diferente de
todos, do chão ao teto, dentro e fora. Só mesmo embaixo da terra era igual a tudo por ali.
Otília herdara dos pais a riqueza acumulada com esmero de unhas e dentes; também os medos,
a desconfiança, a sisudez. Sozinha no casarão e no mundo, fazia-se arredia, reclusa, não cultivara
amizades, amores e entretenimentos externos. Passava o dia envolta em folhas de papel, cadernos,
anotações, extratos, balanços, contratos e alguma dor de cabeça, alguma insônia: uma inadimplência
aqui, um lançamento incorreto ali, uma taxa bancária abusiva acolá. Nas raras aparições na calçada,
nas casas imobiliárias e nos bancos, mais parecia um fantasma, uma sombra esgueirando-se pelas
paredes, esquivando-se pelos cantos, óculos de sol bem escuros, casaco gola alta, botas de cano longo,
cabelos acortinando o rosto pálido entrevisto, unhas enormes em tom escuro: roxo, violeta ou bordô
fechado.
Noite, o casarão sempre assim: pouco se ilumina por fora com lâmpadas esmaecidas na
opacidade do jardim. Por dentro, enluta-se, aferrolha-se, apaga-se. Apenas uma réstia escapa pela
fresta de um janelão, acusando a presença residual, imóvel e fria de Otília. O insone escritório, em
seu serão diário, contabiliza os dias sem estornos. Nos balancetes, agigantam-se os dividendos,
amofina-se a vida. Resignado, o silêncio abre fendas para o cicio do vento e dos bichos noturnos. A
noite abraça a casa que abraça a solidão que abraça Otília.
Não por falta de oportunidade. Um ousado bancário tentou revolver os escombros, resgatá-la
com vida. Desistiu depois de algumas investidas inglórias. Um carteiro insinuou-se, talvez como
quem jogasse na loteria ou enviasse cartas alheias. Um entregador de pizza fazia-lhe constantes
agrados: um bombom, um refrigerante por conta, um frete grátis; o dono da loja de tecidos, um corte
de seda; o gerente da concessionária de automóveis, bilhetes açucarados e convites para test drive; a
ex-professora de inglês, um mimo, uma leve carícia; o dono do posto de gasolina, uma ígnea indireta;
um venerável, gestos e olhares lascivos; a gerente da seguradora, um presente em data especial; o
caixa da padaria, o toque nas mãos ao dar-lhe o troco; o diretor da faculdade, homenagens e convites
para palestras; um padre, o perdão.
Otília, mouca, fechava-se, cada vez mais soterrada sob os destroços de uma vida implodida.
Nunca se ergueu diante dos apelos e gestos lúbricos. Nunca se desmanchara de prazeres com homens
ou mulheres. Embrulhava-se na solidão e no silêncio. Em tudo via ardis e pretextos para lhe
dilapidarem o patrimônio. Debruçada na sisudez das contas do livro-razão, afastava o mais tênue
vestígio de sonho, de emoção, de alegria.
Um dia, porém, o grande espelho de sua penteadeira mostrou-lhe as marcas irreversíveis do
tempo. Incrédula, como se acordasse de um sono, correu pelos cômodos do velho casarão a abrir
portas e gavetas de todos os armários, vestiu-se com roupas leves, despojadas e claras. Abriu as
janelas, passou pelo jardim, ganhou o sol na calçada, caminhou pela praça, consumiu jornais e
chocolates, admirou crianças e casais, riu de um vendedor de loterias que fazia piadas com os palpites
do jogo para atrair os clientes. Chamou-o para comprar um bilhete. O bilheteiro, porém, não escutou.
Correu, tocou-o com as mãos, mas ele não lhe deu a menor confiança. Enfiou as mãos no bolso para
pegar dinheiro, não tinha dinheiro. Procurou a bolsa, não havia bolsa. Falou com o caixa da padaria,
mas este agia como se não houvesse ninguém à sua frente. Correu em casa para pegar uns trocados,
mas não conseguiu achar nada. O casarão, depois de tanto tempo, encontrava-se lotado de gente. Um
entra e sai confuso. Gente no quintal, pelos quartos, corredores, banheiros, salas, biblioteca, escritório.
Uma balbúrdia de pessoas sem consideração, passando apressadas, indo e vindo, nem se importando
com sua presença, onde nós estamos? Absurdo, na minha própria casa! Pilhagem? O que é isso, não
me respeitam?
Procurou pelo ousado bancário, pelo carteiro, o entregador de pizza, o dono da loja de tecidos,
o gerente da concessionária de automóveis, a ex-professora de inglês, o dono do posto de gasolina, o
venerável, a gerente da seguradora, o caixa da padaria, o diretor da faculdade. Nenhum deles ali.
Apressada, andou por várias ruas entre gente, bicicletas, motos, carros e ônibus sem dar conta disso.
Achou estranho o comportamento das pessoas, ninguém lhe dirigia olhares perscrutadores. Nenhuma
buzina, mesmo quando cruzava as ruas entre os carros, fora da faixa. Atônita e ofegante, entrou num
prédio como se conduzida por alguém, por mãos invisíveis. Um lugar estranho, mórbido, cheirando
a velas e flores, gente conversando, cochichando, rindo. Cânticos sacros e fúnebres. O padre, lá estava
ele, galanteador, gesticulando, rezando, perdigotando o corpo engalanado de flores dentro da urna
mortuária. O corpo pálido. Quem? Por quê? Ninguém respondia. E a família, cadê? Um velho
conhecido, sentado ao lado, parente distante, talvez, de outra cidade, recebendo condolências. Por
quem? Pairou sobre todos como se levitasse. Reconhecia-os. Representantes do comércio, da
indústria, do banco, da maçonaria, das igrejas. Caras indistintas, semblantes iguais, condoídos e
falsos. Quem, o corpo? Uma mulher? Esse padre, hein? Uma mulher bonita, uma beleza trazida de
um tempo distante, muito distante, como se guardada numa fotografia, uma beleza de um tempo que
não volta. Uma mulher bonita. Ela, Otília!?, não, não pode ser. Estava ali, no meio de todos, como
pode?, deitada, inerte, pálida, bonita! Dormindo, guardada no silêncio resignado das horas mortas,
todas as horas, dormindo. Sozinha. Silêncio. Dormindo, dormindo, todas as horas, todos os dias.
Velas se esvaindo, sussurros, choros.
A tarde avançou sobre tudo, o tempo arrastou a noite para o céu da cidade, fechou-se o esquife.
Nem uma réstia, uma vela, um sopro. Nada. Reinou a escuridão. A perpétua escuridão.
Hugo PONTES
Define-se neologismo como toda palavra ou expressão criada de maneira espontânea ou forçada.
Também se considera neologismo um novo significado atribuído a uma palavra já existente no
vocabulário. Como exemplo a palavra “Legal” que significa dentro da lei; e pode ser entendido,
também, com o sentido de algo bom.
O neologismo pode ser criado no próprio idioma ou importado de uma língua estrangeira, como
ocorre frequentemente na linguagem técnica. Há aqueles de caráter popular ou literário, restritos a
um determinado idioma, e outros, como os termos científicos, que são internacionais, e devem ser
adaptados morfologicamente a cada idioma.
As nomenclaturas científicas e técnica são quase todas baseadas nas línguas grega e latina.
Dessa forma os neologismos criados em inglês utilizam, em sua maioria, radicais gregos e latinos, o
que facilita a sua adaptação às línguas neolatinas como o Português.
Há neologismos que são formados com as letras iniciais da expressão designativa de uma
doença, como AIDS (Acquired Immune Deficiency Syndrome), É discutível, nesses casos, se as letras
devem estar dispostas na sequência das palavras do idioma de origem ou de sua tradução vernácula,
como é o caso de SIDA, em Portugal, pois a tradução é Síndrome da Imunodeficiência Adquirida.
O neologismo sintático importado do inglês constitui uma aberração que descaracteriza o nosso
idioma e decorre, quase sempre, de traduções literais e despreparo dos tradutores. O hábito da leitura
de textos médicos em inglês também contribui, inconscientemente, para a aceitação e utilização de
expressões e construções sintáticas próprias da língua inglesa, travestidas em roupagem vernácula,
caracterizando o denominado gerundismo (palavra que é um neologismo). Como exemplo, podemos
citar a tradução “tem sido mostrado” (má tradução do inglês para “it has been shown”) que pode ser
dito: foi mostrado, ou mostrou-se.
E assim o idioma é castigado, quer pelas traduções duvidosas ou pelo mau uso do idioma.
Hugo PONTES
Professor, poeta e jornalista.
A CHAVE
INÊS LOURENÇO
INÊS LOURENÇO
INÊS LOURENÇO
INÊS LOURENÇO
INÊS LOURENÇO
Nasceu no Porto, onde reside e se licenciou em LLM (Estudos Portugueses),
na FLUP. Publica desde 1980 cerca de 13 títulos de poesia e dois de
microficção, em editoras como Limiar, Asa, Companhia das Ilhas, entre
outras. Colaborou em inúmeros livros colectivos e revistas nacionais e de
outras línguas. Uma antologia, organizada e posfaciada pelo poeta
Ronaldo Cagiano, dedicada à sua poesia, saiu no Brasil em 2019, editado pela
Jaguatirica, Rio de Janeiro, sob o nome Os Pecados Predilectos. Fundou em
1987 os Cadernos de Poesia HÍFEN, onde durante 10 anos participaram com
inéditos poetas nacionais e de outros idiomas.
Haicais 1
Flor amarela
na ponta do galho
acenando para o abismo.
Dói ardido
(dentro do vaso)
pingos de lírio.
Árvore caída
verde vira amarelo
última cor de vida.
Coroa Imperial
veste delicada
sob o chão de finados.
escritor, pesquisador, poeta, ensaísta e pedagogo, de Presidente Prudente, São Paulo. Autor, entre outros, de
KamiQuase Haicais, Guaratinguetá, São Paulo, 2014. Sete livros lançados, entre os gêneros relatos de viagem,
crônica, ensaio, artigo e poesia. Seu poema “O reino do interno” foi interpretado duas vezes, no programa
Provocações de Antônio Abujamra, na TV Cultura, canal 2, São Paulo. Publicou quatro haicais na revista
literária virtual Arvoressências, da comunidade brasileira de Paris. Teve o artigo “Na ponta da língua dos
escritores” citado na tese de doutorado Comidas, prazeres, gozos e transgressões, de Angelina Bulcão
Nascimento, Editora Universidade Federal da Bahia (Edufba) 2007, Salvador, Bahia.
Massas humanas
atravessam terras
e oceanos em retirada
bíblica.
Corpos caminham
corajosamente
na trilha de um mesmo
deserto
imaginário.
12/08/2017
Joaquim Branco
Ao meu pai
Há quanto tempo
me perdi
abraçada enroscada
naquela cintura
grossa e de
barriguinha
nadando comigo
que não sabia
nadar nem ele
mas me levou
até a margem
Bons tempos!
tristeza é uma
falta que o
tempo não
desfaz
Mas a gente dá
uma colher
de chá
chamando apenas
de saudade
Novelo
Helen Massote
Ao Antônio Jaime
Sei de um livro
que todo mundo
conhece mas
que nunca
saiu depois
inda falam
que a gente
inventa conversa
mentira, que
às vezes é
difícil de
contar
Mas que é
verdade
há notícias
alguém já leu
e outro alguém gostou
um dia ele aparece
para além da
memória
com seus versos
suas prosas
e nossas manhas
Um dos pés do sol
se espraiando pelas ruas
e o luar amassado
por testemunha.
Mooca
Helen Massote
Helen Massote