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Cataguases - Foto: Vicente Costa

3 de abril de 2024
Um dedo de prosa

A Chicos bombou! Agradecemos ao nosso time de escritores, cujas contribuições


estão reunidas nessa edição. Chicos é uma revista literária digital gratuita, nascida
em Cataguases, Minas Gerais, e aberta ao mundo. Sua linha editorial, com temática
livre, é voltada a poemas, contos, crônicas, resenhas, anúncios de eventos e
concursos literários.

Nosso e-mail de contato está aberto a críticas e sugestões, assim como para
receber a divulgação de concursos literários, lançamentos de livros, palestras etc,
que serão publicados na Seção CLIPS. Segue o primeiro: o 1º Concurso de Trovas
Cidade de Astolfo Dutra, Minas Gerais recebe até 31 de maio as deliciosas
quadrinhas de trovadores nacionais, com os temas: plateia, celular, cortina e dedo.
As trovas devem ser enviadas para jefersonbrito.pvh@gmail.com e para
jloures67@gmail.com.

Neste número, o segundo sem o nosso eterno editor, Zé Antônio, trazemos um


texto de Ronaldo Werneck, dedicado a outro autor que nos deixou, um dos grandes
da Chicos, Antônio Jaime Soares, articulista e mestre da prosa, editor da
irreverente e deliciosa Sapeca.
Boa leitura.

Editores:
Emerson Teixeira Cardoso
Fernando Abritta
Helen Massote
José Vecchi de Carvalho
Vanderlei Pequeno Cardoso

Colaboradores:
Fernando Cesário
Joana D’Arc
José Tarcísio Lima
Vicente Costa Contato:
Luiz Lopez
ChicosKta@gmail.com
Editoração:
Capa: montagem de Fernando Abritta.
Segunda capa: foto de Vicente Costa.
Última capa: Poema de Marwan Makhoul (@marwan_makhoul), poeta
palestino, ilustrado e publicado por @intervozes - Coletivo
Brasil de Comunicação Social
Fotos sem créditos são de arquivos pessoais de editores e colaboradores.
Contato:
Chicoskta@gmail.com
Índice

Corpo Presente Ronaldo Werneck


Zé Luiz Lopez
A Folha Jorge Lenzi
A Rela Inez Andrade Paes
Canção para acender a tarde Marcos Melo
De tempos em tempos venho aqui. Marcos Melo
Um dia Marcos Melo
Colchas de pachtwork Marcos Melo
Luci Daniela Alves
A brava turma do Caec Emerson Teixeira Cardoso
Prelúdio n° 2 Jorge Prata
Encanto Jorge Prata
Cântico nº 1 Jorge Prata
Conjugações Jorge Prata
Hino Jorge Prata
Questão de gosto Jorge Prata
Memórias Maria Do Céu Nogueira
Os malabaristas Ronaldo Brito
Céu de qualquer lugar Jovino A. De Moura Filho
Por acaso, Eva Jovino A. De Moura Filho
Onde estiver Jovino A. De Moura Filho
Estadual Sueli De Melo Miranda
2023 Sueli DE Melo Miranda
Extermínio do futuro Sueli De Melo Miranda
Vácuos literários Marcelo Benini
Uma cosmovisão poética Ronaldo Cagiano
Pe-Esia II Marco Fietto
Aquarela Luiz Henrique Silva
A obra Emerson Teixeira Cardoso
O pensamento Gleison Dornelas
Lousa Gleison Dornelas
(Amor Virtual) Zé Tarcísio
Caminhante – Parte 3 Fernando Abritta
Arecife dos Navieiros Wander Lourenço
O consertador de palavras Wander Lourenço
Pobres José Pérez
Mundo José Pérez
O caçador em pânico no estúdio 49 Igor Castanheira dos Santos
Livros Raquel Naveira
Otília José Vecchi de Carvalho
A língua portuguesa e os neologismos Hugo Pontes
A chave Inês Lourenço
As idades da chuva Inês Lourenço
Another brick in the wall (Pink Floyd) Inês Lourenço
Décadas Inês Lourenço
Haicais 1 Rubens Shirassu Júnior
Para meu pai Rubens Shirassu Júnior
Exodus Joaquim Branco
Mooca Helen Massote
Refúgio Helen Massote
Novelo Helen Massote
ANTÔNIO JAIME:
CORPO AUSENTE

Ronaldo Werneck

Foto: Pury

O nada o nunca o não o núcleo


Este que parte em silêncio
Encerra um nome
Agora inerte
E banal

Antônio Jaime Soares


Corpo Presente
(Letra e Música)

Poeta. Letrista. Publicitário. Cronista. Ator/autor. Um intelectual por excelência:


grande leitor, conhecedor como poucos de música e cinema, meu amigo Antônio Jaime
Soares (Joaquim Vieira MG, 09.06.1946/ Cataguases, 22.10.2023) partiu de vez em outubro
passado, véspera de meus 80 anos. Não ficou para a festa, o apressado. Se ficasse, talvez
tivesse escrito como fez quando soube que eu fizera 50 anos. Texto (Te voglio bene assai)
publicado em janeiro de 1994 no jornal Cataguases — que me deixou surpreso e, por que não
dizer, lisonjeado:

“Seja assim só um alô mais alongado, duas ou três coisas que sei dele, Ronaldo
Werneck, pelos seus cinquenta anos, com meses de atraso. (...) Escrever sobre pessoas é uma
barra, com o agravante, no caso de Ronaldo, de que ninguém fala dele melhor do que o
próprio. É que ele se fala, em tudo o que diz. O que inclui Cataguases, as cidades, as
mulheres, o cinema, o poema, o mot d´sprit, todos os que ama e os que por certo não detesta
— é pessoa elegante no trato, mesmo em se tratando da vida alheia”.

“(...) Um cara cheio de graça, na fala e na escrita. Muito tempo depois, no Cataguases,
sua anti-ode a si mesmo, desmerecendo-se por não se considerar o melhor poeta sequer de
sua rua, vizinhos, na cidade, ele e Francisco Marcelo Cabral. Sorte da cidade. Humor e dons
afins afloram texto afora, poesia de Ronaldo adentro.”.

Sim, escrever sobre pessoas é uma barra, com o agravante de ser meu amigo Antônio
Jaime um erudito preso em sua casca. Toda aquela erudição camuflada no ser arredio,
caladão, casmurro tal qual Machado: corte certo, a palavra pouca e precisa. Como nessa
pequena ode, nessa joia cataguasense:

Viva a diferença

Cidade como outra qualquer.


Vista de dentro, descobre-se
não tão qualquer como outras,
pois há diferenças,
sem controvérsias:

um jeito de ser, em arte,


um jeito de fazer arte,
um jeito cataguarte.

Em seu possível último texto — um necrológio para o amigo Zé Antônio Pereira


(morto dois meses antes dele), editor da Revista Eletrônica Chicos — escrevia Antônio Jaime:
“Sinto-me melhor lembrando a pessoa viva. E assim vou me lembrar de Zé, já que a notícia
veio em cima da hora, precedida, dias antes, do aviso de que estava mal. Aquele momento
em que não tem mais jeito e o jeito é apelar à poesia, no caso, o verso/guilhotina de
Guilhermino Cesar: “O que é do abismo a ponte não doma”.
Casmurro sim, mas sempre bem-humorado, como ainda no mesmo texto para o Zé
Antônio: “Nos encontros, fialhávamos (vem do artista plástico Paulo Fialho, outro amigo, também
já morto) sobre artes e manhas locais, estaduais e federais, sendo ele, como eu, meio chegado
à galhofa, cientes de que sem um tico de humor a coisa desanda.”. E concluía: “Perdemos
um amigo e Cataguases, um guardião das letras. É o que digo: gente que faz falta, falta”. O
texto dele parece premonitória autorreferência. E acaba sendo. Faço agora de suas as minhas
palavras para ele: gente como Antônio Jaime faz falta, gente que falta.

De/repente

— Papai trabalha por e-mail, dizia minha filha Ulla. Seres jurássicos, homens do
século passado, Antônio Jaime Soares e eu nos comunicávamos por e-mail. Aqueles e-mails
em que ele me chamava de “Ron” e assinava “Totõe”. Pois é, meu amigo Totõe se foi no
último outubro — e para sempre. Ron perdeu seu companheiro de deliciosos papos
eletrônicos. Nunca mais cinema, nem música, nem poesia. Lembro de meu amigo dizendo,
num cantar de amigos, num poema-improviso enviado, naturalmente, por e-mail.

Repente para Ronaldo

Ronaldo, Joaquim, Carserg,


é bom conversar
versar
ver vocês.

Dia desses vi os três,


um de cada vez,
o que me refez
e fez pensar:
uma só banda,
uma ciranda,
o toque do Totem,
o jazz de Afonsin
e aqueles malucos,
os paulomarteens.

Na regência, maestral,
Francisco Marcelo Cabral.

O poeta Antônio Jaime fez este poema-improviso para um vídeo gravado num de
meus aniversários. Joaquim é o poeta Joaquim Branco; Carserg é o dramaturgo Carlos
Sérgio Bittencourt; Totem é o jornal literário que Joaquim e eu editávamos na Cataguases
dos anos 1970; Afonsin é o baterista Afonso Vieira; e paulomarteens é uma brincadeira com
o cineasta Paulo Martins, diretor do longa-metragem O Anunciador – O homem das Tormentas.
O poeta Francisco Marcelo Cabral é o próprio: mentor de toda a turminha.

Eis um poeta
Autodidata, ele sabia como poucos os meandros da língua pátria (aliás, “Língua
Pétrea” foi um dos títulos abandonados de seu inédito livro de poemas) e era um cuidadoso
revisor de praticamente todos os meus livros. Poeta, ele ganhou honrosa autenticação de
outro grande poeta, Francisco Marcelo Cabral: “Levei um susto e até perdi o sono. Porque
conheço Jaime Soares há cinquenta anos, curto muito suas crônicas, mas não sabia que
escreve poesia. E da boa. Entre outras grandes sacadas, ele conseguiu emular João Cabral
sem se tornar um deles. Isso é só um detalhe, há muitos mais. Eis um poeta”.
Cronista culto e bem-humorado, cultor de insights como “Valeu o pôr do sol,
indescritível, dura mais que um longa-metragem”. Assim eu o descrevia em 2011 no texto
para a contracapa de seu livro de crônicas Pedra que não quebra: “Antônio Jaime é um ser
tímido, de fala pouca, lição aprendida com o pai quando o filho tagarelava: ´Fala pouco e
acertado´. Fala pouco, mas o menino escreve acertado e muito bem, como poucos”.
Publicitário, trabalhou e (segundo ele) aprendeu muito com o também poeta e letrista
José Carlos Capinan numa agência de propaganda em seus tempos de Rio de Janeiro. E logo
seria o inventivo criador de peças publicitárias para inúmeros filmes brasileiros. Convocado
pelo jornalista e grande crítico musical Roberto M. Moura — chefe do setor de jornalismo e
propaganda da Embrafilme —, Antônio Jaime foi seu subchefe para os trabalhos de textos
no final dos anos 1970, tempos em que Celso Amorim, futuro ministro de Lula, era o
presidente da Empresa. O que resultaria mais tarde na criação dos vários e bem achados
poemas visuais — diria mesmo poemas-logomarcas, pois logopoemas são —, poemas-
hommage visuais para Pound, Tom Jobim, Paul Klee, cummings & etc., que formam o bloco
final de seu livro, que espero não fique mais inédito.
Letrista, ele sacava do bolso palavras endiabradas. Assim como quem não quer nada,
a exemplo de Chevrolet´s go home, a letra que fez para a canção de Francisco Condé, inscrita
no Festival Audiovisual de 1970, que organizei em Cataguases com o poeta Joaquim Branco:
“Som de plastibeijos a ferir/ A carne viva estremecer/No sul sem fim/ O sul sem cor/ Yeah!...
por tantas falas já se fez/ De mil cidades explosões/ E o que eu não vi/ E o que eu não sei//
Chevrolet´s go home/ No fim da noite/ No fim do mundo”.
Como diz seu grande amigo e companheiro de geração e movimentos culturais Carlos
Torres Moura — crítico, cinéfilo, ator e diretor de vídeos-documentários e melômano como
ele: “Destaco o fato de Antônio Jaime ter sido, no nosso grupo, o que sempre escreveu
melhor, disparado. Inclusive nas letras de canções. Ele chegou até a compor uma com letra
e música, sem saber tocar nenhum instrumento, feito um Lamartine Babo; é uma obra
belíssima — Corpo presente, veja a ironia do nome, agora com ele morto”: “A morte e seus
martírios/ Esquife, luz de círios/ O cheiro, a sala, o triste/ Teste final.”.

Os jovens zangados de Cataguases


Ao falar em “nosso grupo”, Moura remete aos tempos do CAC, o Centro de Artes de
Cataguases. E também às peças de teatro que eles encenaram (Antônio Jaime atuou em
quase todas) e ao filme O Anunciador, O Homem das Tormentas, dirigido por Paulo Martins
na Cataguases de meados dos anos 1960 – tendo o próprio Carlos Moura como protagonista
e com atuação destacada de Antônio Jaime. Mas deixemos o próprio Antônio contar partes
dessa história dos “jovens zangados de Cataguases”. Transcrevo trechos do texto que
escreveu a meu pedido, em 2020, para meu livro Cataguases Século XX / antes & depois:
“O Cineclube Sergei Eisenstein, fundado por Paulo Martins na Cataguases de 1963,
inaugurado com o filme Os Incompreendidos, de François Truffaut, durou dois anos e sei lá
quantos meses, quando a turma rompeu com o fundador e parou de projetar fitas. (...) Paulo
morava no Rio e frequentava a turma do Cinema Novo, tendo atuado em algumas
produções daquele movimento, como assistente de direção. Aqui, quem segurava a barra
era o mais jovem de todos, chamado Carlos Moura, secundado por este locutor que vos fala.
“(...) Em 1964, Paulo traduziu e montou a peça O Mestre, de Ionesco, incorporando o
Tablado Atômico, como ele chamou o segmento destinado ao teatro. Este, com o cineclube,
passou a formar o CAC (Centro de Arte de Cataguases), que previa também atividades em
música, pintura, prosa e verso. (...) Àquela altura, o grupo já era um tanto conhecido pela
imprensa mineira, paulista e carioca, sendo que o Jornal do Brasil, um dos mais importantes,
mandou cá repórter e fotógrafo, rendendo matéria de capa do caderno de cultura, com o
título “Os jovens zangados de Cataguases”. A zanga deles era contra tudo e todos, incluindo
o Cinema Novo. (...) Pra dizer a verdade, o CAC, no seu dadaísmo, era papeata pura. Mas
se levava a sério, e muito.
“(...) Logo, Paulo foi abandonado pela turma, que continuou nas peças de teatro de
autoria própria ou alheia. (...) E Paulo acabou arregimentando a patota um tempo depois,
realizando o longa-metragem O Anunciador — O Homem das Tormentas, lançado em 1970,
causando estranheza, até cadeiras quebradas pelos espectadores de um cinema, em Manaus.
Filme produzido pelo poeta Francisco Marcelo Cabral e, segundo o jornal Cataguases,
finalizado com dez por cento do custo total investido pela prefeitura”.
É um Antônio Jaime de língua ferina o deste artigo, fazendo pouco do movimento
realizado por sua jovem turma e também do filme do Paulo, onde foi ator importante. Filme
de que gosto até hoje (a cidade virou um só set e até eu mesmo participei, em cena filmada
no Rio, com direito a crédito nos letreiros), incensado pelo cineasta Carlos Frederico
Rodrigues (“o mais underground dos nossos filmes. um udigrudi autêntico, mesmo porque
realizado quase sem recursos”) e por Glauber Rocha, que gostava de Paulo a ponto de dar
o nome de “Paulo Martins” ao poeta interpretado por Jardel Filho em Terra em Transe.
Aliás, sobre isso, Antônio Jaime deixou um recado quando em 2008 revisou meu livro
sobre Humberto Mauro: “Checa isso com o Paulo Martins, pois Terra em Transe é de 1967 e
O Anunciador só ficou pronto em 1970”. Falei com o Paulo, e ele me enviou um depoimento
que publiquei num box na página 186 de meu livro: “O acontecido foi assim: em meados
dos anos 60, houve um encontro na Maison de France, não me lembro se de cinema ou teatro,
e na entrada e/ou saída, o Glauber me falou que estava escrevendo um roteiro e nele tinha
um personagem com meu nome, em minha homenagem. No momento, não levei muito a
sério, desconfiado, como um bom mineiro, e vindo de uma cabeça inquieta/inquietante
como a do Glauber. Esqueci o acontecido e quando fui assistir a Terra em Transe lá estava o
Jardel Filho com o meu nome”.
Como ator, Antônio Jaime protagonizou também a peça teatral Apaguem os Lampiões,
de Carlos Sérgio Bittencourt, levada à cena com grande sucesso durante os festejos do
centenário de Cataguases, em setembro de 1977. E, em 2002, atuou ao lado de Maria Júlia
Garcia na peça que escrevi e dirigi, O Mundo em Desconcerto: Camões a Florbela Espanca,
encenada em Cataguases e Leopoldina. Ele, Camões. Ela, Florbela.
Os jovens zangados de Cataguases é também título de um dos ótimos poemas de seu livro
inédito, que merece transcrição na íntegra:
Os jovens zangados
de Cataguases*

Fellini e Godard
no Cine Edgard, o bar
(it’s been a hard day’s night**),
Lampião, carcará, Corisco
el nombre del hombre muerto***,
canhões nas ruas do Rio,
Paris em chamas,
vietcídio,
homem na Lua,
paúra,
a bomba H,
na província,
cá,
uns poetavam (e continuam),
os “zangados”, teatro avesso,
filme (um longa puro lenga-lenga),
canções e nenhum artista, de ofício.
*Jornal do Brasil/1964
**Lennon-McCartney
*** Gil-Capinan
A Balada e Caetano

Uma noite qualquer dos anos 60 no Cine-Teatro Cataguases (hoje Cine-Teatro Edgard):
na tela, as cenas finais do filme soviético A Balada do Soldado. Ele, o soldado, está morto e a
câmera sobe em contra-plongée em direção às árvores, faz um rodopio alucinado e sobe
mais e mais em direção a um céu cinza de morte. Antes de os créditos subirem, a sala ainda
escura, ouve-se uma voz que grita: “Coisa de gênio! Temos que aplaudir de pé”. A luz
acende e agora vejo que quem grita é meu amigo, o então ator do CAC Antônio Jaime Soares,
que ficara de frente para a multidão na plateia, clamando por aplausos. Multidão que o olha
atônita. E logo ouve-se um aplauso, outro, outro e aplausos pipocaram, palavra certa
quando se trata de cinema. Nunca me esqueci da participação exemplar e complementar do
meu amigo naquele filme soviético, que na verdade não era lá essas coisas. Pelo menos o
que me lembro dele.

Já o mesmo não aconteceu com Caetano Veloso, que, ao contrário de Antônio Jaime,
não conseguiu vencer a “turba ignara”. A performance de Antônio Jaime no cinema de
Cataguases me leva a uma cena que assisti literalmente “bem de perto” no Cine Paissandu,
também nos anos 60. O filme em cartaz era Fellini 8 ½ e na entrada vi que chegavam Caetano
Veloso, Maria Bethânia e a cantora e compositora Tuca. Antes do filme de Fellini foi exibido
um documentário e só então saquei o porquê dos baianos estarem no cinema.

Era Bethânia Bem de Perto, de Julinho Bressane. Pois bem: o filme foi vaiado desde o
início, o que fez com que um exaltado Caetano se levantasse contra “a turba” no escurinho
do cinema e gritasse em altíssima voz: “Vocês não estão entendendo nada. Bethânia é a
maior cantora brasileira e esse filme faz jus a ela”. Mais vaias. Mas o baiano não se deu por
vencido e continuou sua catilinária até que o filme de Bressane terminasse e eles saíssem do
cinema antes de Fellini 8 ½ começar.

Ali, viu-se que Caetano já era Caetano antes mesmo de Caetano, daquele Caetano que
enfrentaria uma plateia enfurecida num dos Festivais da Canção logo à frente. Exatamente
com a expressão “Vocês não estão entendendo nada”. Que nem Antônio Jaime Soares para
a plateia do Cine Cataguases, que para ele não entendia nada, não sacava a beleza daquele
contra-plongée final da Balada do Soldado. Antônio Jaime e Caetano: só mesmo eles, sempre
veementes.

O poeta mais “exportável”

— Vai tomar no cu, Ronaldo. Você é o melhor de nós todos! A voz é de meu amigo
Antônio Jaime Soares e vem de muito longe, de uma noite altíssima em pleno Bar Gole, do
meu saudoso amigo Quim. O BoteQuim, como eu o chamava, era a salvação da madrugada
cataguasense, posto assumido mais tarde — e com todas as glórias — pelo Bar da minha
amiga Loura, “erigido” no mesmo local. Nenhum dos dois existe mais. Parece que em
Cataguases acabaram-se as madrugadas etílicas. Ou não?
Havia um cameraman naquela madrugada do BoteQuim e nós estávamos fazendo
algumas tomadas para um filme tendo como roteiro meu livro Pomba Poema. Foi quando
topei com Antônio Jaime sozinho numa das mesas. Quer dizer, ele e a tradicional companhia
de cigarros e garrafas de cerveja. Sentei-me com ele, comandei uma tônica com guaraná pro
Quim (eram tempos não etílicos) e Antônio logo começou a cantar aos berros a canção “Pra
quê mentir”— e completou de uma só vez: “Ronaldo, olha que coisa essa letra que o Noel
fez pra música do Vadico. Pra quê mentir se tu ainda não tens/ Esse dom de iludir. Era para sua
amante Ceci, a Dama do Cabaré, que ele conheceu na Lapa. Aquelas putas do Noel. Pra quê,
pra quê mentir/ Se não há necessidade de me trair. Pois é, se não há necessidade de me trair, pra
quê mentir? Só mesmo um cara com a genialidade do Noel pra fazer isso”.

Na verdade, Antônio não “completou de uma só vez”, pois ele não parava de cantar e
cantar só o refrão: “Pra quê mentir”, “Pra quê mentir”, “Pra quê mentir”. Eu tentava
conversar com ele, queria que ele lesse um trecho do meu livro para inserir no filme, como
estava fazendo com várias pessoas da cidade — até mesmo o prefeito Paulo Schelb já lera
— e inclusive algumas “damas do cabaré” do Quim haviam acabado de ler. Qual o quê!
Cada vez que ensaiava uma fala, ele voltava de lá com “Pra quê mentir”, uma obsessão. Só
deu uma pausa quando percebeu que estava sendo filmado e soltou de lá: “Ronaldo, se você
está fazendo um filme não pode esquecer do Carlim Moura. Moura é Moura, você sabe”.

“Sim”, eu disse: “Moura é um mouro. Mas o que você acha de ler esse trecho do livro?”
E li: “estava ali/ a poesia/ antes/ da poesia/ mas o mar mar/ telando as pedras/ no meio da
luz/ e dia e memória”. Pra minha surpresa, ouço uma saraivada de palmas vindas de todos
os bêbados e respectivas damas do cabaré do Quim. E, em meio ao estrépito — que estrépito
foi, mais que um alarido —ouço a voz tonitroante do Antônio Jaime: “Vai tomar no cu,
Ronaldo. Você é o melhor de todos nós”.

Não sou, não fui, não serei. Aliás, poesia não é prova de Fórmula 1, não tem
“melhores”, nem vencedores nem vencidos. Apenas luta com as palavras, às vezes vã, antes
que rompa aquela manhã do Drummond. Antônio Jaime, sim, foi o poeta “mais exportável”
de todos nós (segundo nosso guru, o grande Francisco/Chico Marcelo Cabral). Todos nós
que cá em Catá poetávamos (poetamos ainda?) em vão. Ou não?

Como nesses fragmentos dos originais que me mandou de Lirifluir, seu inédito livro
de poemas (que hoje parece ter outro título, Entre Folhas): “mais de ferro era o trem/ se
passava pontilhão/ um voar no precipício/ expressionismo alemão//...// e guardar num
vidro/ como pôr flor em jarra/ no vil infantil inútil afã/ de prender a poesia”.

Ou nesse poema pro rio Pomba: “nesse rio — trás-os-montes/ já dantes navegado/
pelos camões locais/ que os há – de toda sorte/ ouso — de minha parte/ lançar velhos anzóis//
e repescar lembranças:/ seu médio horizonte/ a ponte velha —lá/ como que flutuante/ ao pôr
do sol — além do/ além — montes caramonãs”.
Toques & retoques

Escrever, reescrever, trabalhar, retrabalhar os poemas à exaustão, à la João Cabral —


ofício por excelência do poeta Antônio Jaime como no poema de abertura de seu livro
inédito: “Meio século de toques/ e retoques neste livro,/ (...)/ daí dura procura,/ uma tese
numa frase,/ uma safra numa taça.// Busca que perduraria/ mais décadas e décadas,/ durasse
tanto a vida, / a fim do texto terso,/ verso-nervo, seu dizer/ exposto, de se ver”.

Na epígrafe de seu livro (parece que o título que ficou por último é mesmo Entre
Folhas), Antônio Jaime transcreve o aforismo de Mallarmé: “Ceder a iniciativa às palavras”.
Palavras-referência, palavras que se fazem pedras de toque. Ao ler os originais, escreveu
surpreso o poeta Francisco Marcelo Cabral: “Não sei como descrever o impacto da leitura
de seus poemas, que me valeu uma noite de grande excitação intelectual. Juro: você me tirou
o sono. Lina (Tâmega Peixoto) costuma dizer que a leitura de um bom poema lhe dá um
formigamento nas mãos. É como ela reage à thing of beauty. Minha reação é a de ser
capturado, de querer provar desmedidamente do sumo poético instilado no texto, guardar
o poema na memória e remastigá-lo 50 vezes 5, numa devorruminação celebrante. Lite-
ralmente.

“Não digo que são poemas, nem me chamo de poeta”, diz você. Que isso? Deixa de
modéstia à parte... você é sem possibilidade de discussão o poeta mais “exportável” dessa
Cataguases versorrágica. Em matéria de “acabamento”, de maturidade, de economia de
meios, de domínio técnico, você nasce pronto. Irretocavelmente pronto”. E Cabral cita
insights como a mitificação não mais do rio Pomba, mas do córrego Lava-pés: Um certo corte
talha Cataguases/ num trecho: sua vaginavenida. A beleza de: Pai e mãe: dois girassóis/ arqueados.
Repetida em: Causa mortis: infarto/ ou nem isso, cansaço.

Festa do Imperial

Num das crônicas de seu ótimo livro Pedra que não quebra (Cataguases, 2011), um
surpreso Antônio Jaime registra: “No início dos anos 70 fui para o Rio e convivi muito com
a Maria Alcina, que também fora para lá, e chegou a gravar músicas com letras minhas.
Afora isso, a gente às vezes zoava pelas noites cariocas e, numa delas, fomos parar no
apartamento do Carlos Imperial, então no auge da fama, dando uma festa de arromba. E...
quem encontramos lá? Ronaldo Werneck, como se estivéssemos em plena Cataguases”.

Sim, a surpresa de Antônio Jaime era de se esperar. O que fazia eu lá? Na verdade,
naquela época minha primeira mulher, a jornalista (hoje psicóloga) Adriana Montheiro era
a ghostwriter da coluna do Imperial na Última Hora e eu, modestamente, o seu copydesk.
Imperial na verdade não escrevia e acredito sequer lia a “sua” coluna. Limitava-se apenas a
nos enviar fotos de moçoilas & vedetes, as suas “lebres”, para ilustrar a página.

Daí nossa presença na “festa de arromba” do Imperial: quem sabe não surgia dali
alguma notinha pra coluna? Surpresa também foi a nossa, ao encontrar na festa Alcina e
Antônio. Maria Alcina, tudo bem, era de se esperar. Mas, o que fazia ali nosso amigo
Antônio Jaime? Na época, as noites cariocas ainda tinham seus encantos. Um Rio de nunca
mais, como o próprio Antônio registra — preciso, enxuto — no poema Cio de Janeiro:
“Ipanema a 40 grills,/ Eros rola pela orla, / dentre tangas, sungas,/ no frigir das ondas,/ um
tico dos pentelhos/ da campeã de vôlei.”.

Serelepe, safada

Fanzine delicioso, Sapeca – enviada para amigos em pdf e naturalmente por e-mail —
era uma revista eletrônica da pá-virada, editada por Antônio Jaime, com saborosas notas
sobre cinema, teatro, música & gossips que iam de vedetes a vetustas atrizes, senhoras,
senhoritas & quejandos. Uma espécie mais sofisticada (nem tanto, nem tanto!) das ferinas
“revistas de piadas” do início do século passado, tipo “Careta”— e que, de certa forma,
lembrava muito o humor cáustico (e safado) do Pasquim dos anos 1960.

A exemplo, entre tantos, do nº 5, de maio de 2014, que — tomado agora por acaso —
ao falar dos 50 anos do golpe de 1964 e de eleições, menciona François Truffaut, pula para
uma seleta de marchinhas de carnaval (Antônio era expert no assunto), segue com fofocas
& amenidades de vedetes como Mara Rúbia (cujo filho — “Birunga”? — foi meu
contemporâneo no Colégio de Cataguases, mas acho que o Antônio não sabia disso), Luz
del Fuego, Virginia Lane, passa por Carmen Miranda e pela grande e altamente erótica
dançarina Eros Volúsia (nome artístico, que já diz tudo, de Heros Machado). Volúsia,
acrescento eu, fez sucesso nos EUA, com sua participação no filme Rio Rita (1942). Seus
voluptuosos movimentos influenciaram Carmen Miranda.

Eros Volúsia (Rio, 1914/2004) era filha da poeta simbolista Gilka Machado (Rio, 1893/
1980), conhecida como uma das primeiras mulheres a escrever poemas eróticos no Brasil.
Menção que escapou ao sempre atento editor de Sapeca, que ainda nessa edição compara
(fisicamente) Zé Wilker, que acabara de morrer, com o ator Yul Brynner: “Dia desses, vi fita
com Yul Brynner (ilustra com foto dele) e parecia estar vendo Wilker, dez vezes mais ator que
o de Hollywood, mas havia parecenças”.

E dali Sapeca sapecava notinha sobre meu querido amigo e grande poeta Sebastião
Nunes, com direito a um soneto, um pornopoema dele, Paródia antiquíssima nº 1 “(À moda
de Toms António Gonzag)”, que abre com essa quadra diabólica: “Tua burguesa bucet
quando lateja/ (como se ostra degustando pérolas)/ nem por isso, Marília, nem por iss,/
ouriça menos meu chouriç.”. E muito rapidamente Sapeca já salta para a folclórica Maria
Italiana, “a enigmática senhora loura que trazia arrumadinho o seu domicílio situado
debaixo da ponte nova. Um brinco”.

E Antônio Jaime complementava com um poeminha “felliniano”, digno de nota:


Senhora da Boca da Ponte: “Mote// Eu encontrei a Maria em Lisboa,/ ai, que cachopa boa.//
Glosa// Eu encontrei a Maria italiana,/ ai, que mulher sacana/ — de cima da ponte a
molecada/ glosava Carlos Galhardo.// Pedras iradas eram a resposta,/ atiradas pela própria,/
lá de baix’onde ela vivia,/ ao pé da delegacia.// E ali (‘tô nem aí’) se prostituía/ com homens
e meninos/ — mutatis mutandis, a Saraghina/ de Oito e Meio: Fellini.”.
E por aí afora ia meu amigo Totõe sapecando suas sapecais & safadas notas. Sapeca
durou mais de 20 edições: o último número que tenho é de 2019. Uma curtição, imperdível.

Premonições

Voltando ao poeta, que a ele é sempre preciso voltar. E ao seu exemplar livro de
poemas, especificamente a dois deles, onde Antônio Jaime parece prever — antena da raça,
como Pound — o que fatalmente iria acontecer, e como:

Óbito
O “corpo” vai chegar às dez,
notícia fria, sem revés.

Agora é só “o corpo”,
em definitivo, morto.

Única certeza. O resto,


especulações sem nexo.

Cremação
Enterre-se o cemitério
e sua estatuária kitsch,
limite-se ao crematório,
no qual, rápido, se inexiste.

Encerre-se a vil angústia


de pensar no que ocorre
na sepultura, intramuros,
a face mais feia da morte.

Das opções, a menos pior


e direta ao objetivo:
tornar ao pó o que no pó
se crê ter sido o início.
Corpo presente

Abri meu texto com uma citação da letra que Antônio Jaime fez para sua própria
música, Corpo presente. Deixo agora que ele próprio fale da criação dessa música, como num
dos e-mails que me mandou — e aproveito para fechar este texto com a reprodução de sua
letra:

“Em 1969/70 aconteceram dois arretados festivais de música em Cataguases (ambos


organizados por mim e por Joaquim Branco), o que levou muita gente a dar uma de compositor,
eu, inclusive. Neste caso, brincava no piano de uma amiga, invertendo as notas de I read the
news today, oh boy..., dos Beatles, e saiu uma linha melódica interessante. Cantarolei para
Alfredo Condé, que a incluiu em seu repertório, e o resultado aí está. Não que eu seja
músico, não distingo um Dó de um Ré, feito Miguel Gustavo e Paulo Vanzolini, eles,
compositores de caixa de fósforo, eu, nem isso. É isso aí: cada Albinoni tem o Adagio per
Archi ed Organo que merece”.

Há poucos dias, Carlos Moura me mandou cópia de Corpo presente, a bela composição
de Antônio Jaime (letra e música), que me deixou impressionado. Resposta de Moura: “Sim,
é impressionante. Sempre foi uma das grandes criações dele. Se quisesse, teria feito muito
mais. A vida o levou para a publicidade, matando o pau sem mostrar o cobra que ele era.”.

E Moura voltava a afirmar: “No nosso grupo, o que sempre escreveu melhor,
disparado. Inclusive nas letras de canções. Ele chegou até a compor uma com letra e música,
sem saber tocar nenhum instrumento, feito um Lamartine Babo; é uma obra belíssima —
"Corpo presente", veja a ironia do nome, agora com ele morto — que às vezes uso em meus
filmetes.

Corpo presente

Música e letra:
Antônio Jaime Soares
(Cataguases, 1969)

A morte e seus martírios


Esquife, luz de círios
O cheiro, a sala, o triste
Teste final
Este que parte em silêncio
Encerra um nome
Agora inerte
E banal
E cai por terra
Um rosto vago
Senil
Os mares já cercados
Por muros já caídos
Ninguém em parte alguma

Deixar lugar vazio
Ficar nenhum resquício
De um tempo todo
À margem
Do que passou
E nem viveu um romance
O dia útil, o dia inútil
Letal
O nada, o nunca
O não, o núcleo
Jamais
Promessas não cumpridas
Quimeras de outras
Vidas
Um corpo morto apenas
Jaz.

Ronaldo Werneck
Cataguases, 02.02 2024

Ronaldo Werneck
Cataguasense, jornalista e crítico, poeta, publicou Selva
Selvaggia (1976), pomba poema (1977), minas em mim e o mar esse trem
azul (1999), Ronaldo Werneck Revisita Selvaggia (2005), Noite
Americana/Doris Day by Night (2006), Minerar O
Branco (2008), cataminas pomba & outros rios (2012), o mar de outrora
& poemas de agora (2014). Em 2009 publicou Kiryrí Rendáua Toribóca
Opé – humberto MAURO revisto POR ronaldo WERNECK e os livros de
crônicas Há Controvérsias 1 (2009) e Há Controvérsias 2 (2011).
Videomaker, editou em 2009 os filmes sOLdade e mauro move O
mundo.

Luiz Lopez
Ao amigo Zé Antônio
após o cineclube
era comum eu acompanhar sua fala em tela viva
cobrindo maciamente os paralelepípedos da noite
transcendendo a pobre geografia
do Pomba e do Meia-Pataca

sua conversa espraiava latitudes


para além dos morros mortos
para além dos seguidos desgovernos locais
da pobre cidade pobre
petrificada na mísera antevéspera do ontem

sua conversa alargava horizontes


carregada de fatos filmes leituras
retirados dos bolsos da memória

A acuidade de suas análises


flechava sempre o centro do alvo
e o céu de seu pensamento
ficava mais estrelado
com suas bandeiras de lutas e letras
suas críticas de vidro e mel
seu silêncio de cristal
seu sorriso medido a compasso
sua mansuetude de gente
que tem no coração a dimensão da vida e na voz
um canto honesto e profundo:
pura canção de despertar

daquelas noites
carrego comigo sua estrela
que acordava a surdez
dos que teimavam em não enxergar
A FOLHA

Jorge Lenzi
Bebo meu vinho,
Busco inspiração.
A folha em branco
Me diz: não.

Descanso a caneta,
Clamo à paixão,
Mas a folha em branco
Repete: não.

Calo meu poema,


Aborto a criação.
E a folha arrependida
Grita: vem, desvirgina
Essa imensidão!

Jorge Lenzi
é mineiro de Juiz de Fora. Formado em História pela Universidade Federal
de Juiz de Fora (UFJF), foi professor da Rede Municipal de Ensino. Primeiro
livro de Poemas foi “Entalhes”, de 2011. Lançou em 2017, “Pensamentos
Apócrifos”. Seu mais recente livro de poemas: Serurbano. Hoje coordena o
Sarau Presencial da Confraria dos Poetas de Juiz de Fora.
A Rela

Inez Andrade Paes

a rela tem música nos olhos

quando os fecha

caem claves

negras silhuetas de pássaros

no centro

um alvo

terno

como um barco em mansa água

Inez Andrade Paes


nasceu em Pemba, Moçambique em 1961. A natureza, a escrita, a arte são o
fundamento do seu universo – pintura, ilustração, poesia, prosa,
fotografia. Mantém o blog Contos de Fadas Não de Reis; é coordenadora
do Prémio Glória de Sant'Anna, desde a sua formação em 2012,
Canção para acender a tarde

Marcos Melo

Quero escrever uma canção

Que tenha o nome de sua tela.

Que tenha tranquilidade e emocione

Assim como me cativou

E emocionou a tela;

Mesmo vista apenas

Pelo computador no site

(Luiz Lopez.multiply)

Que você indicou.

Quero uma canção suave

Com ritmo e movimento

Com o sentimento de algo que inicia

Que brilha e

Ilumina.

Uma canção que acende,

Não sei se nas tardes, noites ou manhãs.


De tempos em tempos venho aqui.

Marcos Melo

Subo lentamente a rua.


Há um peso no ar, um silêncio,
No meu peito um temor.
As casas estão ainda alinhadas,
Na calçada nenhum movimento
As paredes tendem ao cinza
E mesmo à luz do dia
A rua aparenta morbidez.
Não é ainda uma rua morta,
Mortos estão os jardins à esquerda
De quem sobe a rua.
Uma bicicleta ali, uma bola lá adiante,
Lembra a presença de crianças,
Que podem trazer alguma vida à rua.
Porém a falta de cores,
(não usam mais o verde, o azul ou amarelo)
e de flores
Mata lentamente a rua,
e não é morte natural.
De tempo em tempo venho aqui.
Subo esse morro na mesma calçada.
Vou até a última casa,
Procuro a goiabeira no quintal,
O portal de ripas frágeis e amareladas
Enquanto espero o latido de um dos cachorros.
Não sei por que volto,
Não é a mesma rua.
Já por várias vezes não achei nada.
De tempo em tempo venho aqui.
Um dia

Marcos Melo

Um dia, qualquer que seja,

A sombra que nos encobre vai passar.

É tão certo isso

Que não me deixei abater,

Nem mesmo quando você se foi.

Meus dias se tornaram mais longos,

E mais frias e silenciosas,

Doloridamente silenciosas,

As noites.

Tenho seguido.

Não sei em que momento entristeci.

Embora saiba que um dia

Isso também passará.


Colchas de pachtwork

Marcos Melo

Minha tia as fazia

Como colchas de retalho.

Cortava-os em tamanhos diversos

E ia combinando-os

a partir dos tons das cores,

que eram enfim emendados

dando forma final à colcha.

As composições dela eram mais simples

Não tinha a sofisticação das estampas

Nem os tecidos utilizados hoje,

Mas eram altamente decorativas nas camas

E aconchegantes quando usadas para cobrir.

Fazia ela também belos tapetes felpudos

Usando sacos de aniagem e retalhos,

Mas esses são outros trabalhos.


Luci

Daniela Alves

Embora tenham observado uma por uma com atenção, a escolha foi rápida. Gostaram da mais loira,
de olhos grandes e azulados. Estava enrolada em manta fofa e quente. A temperatura estava agradável,
abaixo do normal para a estação. Antônio abriu a porta para Camélia passar carregando Luci nos
braços. Decidiram chamá-la Lucília, em homenagem à mãe de Camélia, ou simplesmente Luci. Em
casa sentaram lado a lado. Camélia largou Luci ao lado deles. Antônio a segurou firme. “Não deixa
ela assim, rolando por aí”. “Bobeira, por que não?” Sem resposta, ele saiu da sala com Luci. Camélia
os observou pela janela passeando no quintal e pensou que seu marido estava certo, sempre esteve.
À tarde combinaram um passeio na cidade, levaram a sombrinha e abriram nos momentos em que o
sol castigava peles tão claras. “Não temos mais idade pra ficar batendo perna, mulher. Uai, Antônio,
nós temos saúde, até os calos tão quietos”. Sentaram em um banco onde a sombra os cobria. Camélia
tirou os chinelos e arrastou os pés pela grama, de um lado a outro. “Ela precisa de um carrinho. Não
seja boba mulher, precisa nada.” O assunto não se alongou. Ficaram por ali em silêncio até a tarde
começar a se despedir. “Vamos, Luci”. Os dois riram com a frase e se foram. Já estava na hora de
Camélia preparar a sopa da noite. Depois de arrumar a cozinha, Camélia vestiu a camisola e chamou
Antônio que estava nos fundos consertando um velho rádio de família. Antônio trocou de roupa e se
acomodou nas cobertas. Entre os dois, no meio da cama, estava a boneca, com seus lábios róseos
estáticos.

Daniela Alves
Nasceu em Alegrete, Rio Grande do Sul, em 1975 e atualmente vive em Viçosa, Minas
Gerais. Professora de Sociologia da Universidade Federal de Viçosa. Autora de Tempo
e trabalho: gestão, produção e experiência do tempo no teletrabalho, obra de não ficção.
Foi diretora da Editora UFV e membro da diretoria da Associação Brasileira de Editoras
Universitárias. Participa do coletivo Escreviventes e da Confraria F de escrita. Escreve
contos e crônicas.
A brava turma do Caec

Emerson Teixeira Cardoso

Sugiro clarear o fundo e identificar as pessoas.

Seguindo os passos do Cac — Centro de Arte de Cataguases, e ainda na década de 1960, mas sem
nenhuma intenção de repetir aquilo que fez o seu antecessor, pelo contrário, impelido por uma outra
energia que os jovens e mais novos sucessores agregavam (com certeza, menos preparados, mas
definitivamente, mais determinados), o Caec — Centro de Arte Experimental de Cataguases,
apresentou-se como nova e repaginada alternativa, pronta para movimento de ação cultural nestas
velhas barrancas do Rio Pomba, já acostumadas a essas expansões e efervescência; logo se afirmou
como legítima corrente de vanguarda, atuante em diversos segmentos da arte e da cultura.
Não valia a pena duvidar.
Mas quem eram os “Caquistas”? O que realmente pretendiam os inquietos rapazes? Em que
parâmetros se apoiavam? Estariam preparados para encetar seus objetivos? Possuíam de verdade
todas as qualidades para estes fins?
Talvez pensassem que a vontade de exercer, a coragem de querer tais objetivos, já seriam meia
caminhada. O que viria em seguida, mais tarde seria cogitado.
De fato, o Caec logo se afirmaria como uma legítima alternativa de vanguarda, atuando dessa
maneira em vários setores da cultura e da arte. O grupo que se formara, primeiramente, de
experimentações teatrais, nos domínios do Colégio Cataguases; caso tivesse havido sistematicamente
algum registro oficial, estaria sendo lembrado pela passagem de seu 57° aniversário de fundação, em
meados de junho próximo. Mas, efetivamente, poucos se lembrarão dele ou se preocuparão em
documentá-lo, garantindo desse modo a sua permanência por parte das gerações hodiernas. Se não
pelos seus méritos, pelo menos pela sinceridade de seus propósitos e pelo seu comprometimento na
procura de novas propostas e meios para novos caminhos e novas atitudes, no que entendiam chamar
de arte, apostando tudo no experimentalismo: Gravavam no estêncil coisas desconexas usando e
abusando da liberdade de linguagem. Adotaram de um modo muito empírico, o que os poetas
franceses já vinham preconizando há séculos, a escrita automática. Na falta de um produto original
apelavam (no bom e no mau sentido do termo), para os poderes do inconsciente. Desacreditados dos
valores da razão, apostavam na irracionalidade, na supra realidade.
Sabiam Rimbaud de cor: citar "Uma temporada no inferno" sempre fazia um bom efeito nas
conversas.
"... Às éclogas em tamancos rugindo no solar ..."
André Breton, Baudelaire, Allan Poe e outros desdenhadores do objetivismo. Carregavam
sacos de eruditismo.
Mas, nem só de livros se ocupavam os caquistas. Passeavam no tablado, intrometiam-se no
cinema, metiam-se com pintura, dança, música... bem entendido, desde que fossem de vanguarda.
Era o tempo dos festivais.
De cinema: alugavam filmes que vinham do Rio — desde que não tivessem sido exibidos nos
dois cinemas daqui que eram também alugados para suas próprias sessões. Ingressos antecipados.
Como os funcionários tiravam folga nesses dias, tinham que se revezar na bilheteria para atender o
público retardatário.
Os de música popular ainda demorariam um pouco a chegar por aqui ...
Pintura: um dos elementos do grupo resolveu expor seus trabalhos. Escolheu os subterrâneos
do prédio do cinema para a inusitada mostra que tinha um nome bem singular: "Mostra de Pintura
Fantástica.” Na recepção aos visitantes foi servido improvisado cocktail de batida de limão.
Até com o canto lírico se envolveram. O salão do clube mais chique da cidade, o Social, recebeu uma
sofisticada plateia para uma audição de canto lírico, com o afinadíssimo Lili Bolero desfilando
clássicos do nosso folclore.

Depois, como tudo que é bom acaba, o grupo foi se esvaziando até que se extinguiu.

Durou pouco, mas foi divertido.


No mimeografado "Estilete" veicularam suas escrevinhações: artigos de crítica, notas sobre
livros, contos ilustrados com desenhos.
De 1966 até 1968, quando o grupo se espalhou, era composto com os seguintes redatores: St.
Ezequiel, E. T. Cardoso, Clérigo Benevenuto, A. C. Linhares, Eucília Santos; também colaboraram:
Antônio J. Soares, Carlos Moura e Paulo Martins.
Assinaram o Manifesto de inauguração pública do Caec, a dois de fevereiro de 1968, os
integrantes acima citados, os mesmos que escreviam matérias ou textos para "Estilete."

Alguns trechos do manifesto:

.... Hoje a gente resolve e lança; pra ferir mesmo. Sem contemplação de qualquer ordem. Não
respeitarmos irmãos de sangue e outras baboseiras que servem pra incubar o medo tenebroide de
fazer as coisas de frente — todo mundo deve saber da existência do fenômeno.

VAMOS FAZER GUERRA ABERTA AOS GÊNIOS DE GABINETE

Os ossos desse corpo que acaba de nascer são novos; todos na base de vinte anos. Mas desiludam,
vamos aceitar até esqueletos de piratas saxões, dentro do esquema de inquietações debilodais. É só
querer desarrumar, criar desmanchando, experimentar, que nós aceitamos de coração e peito aberto.
Seremos cobaias de plásticas revolucionárias ...

SEREMOSUM RADAR INCONTROLÁVEL NA EXPANSAO

Assim ficou dito, brotou o CAEC — centro descentralizando experimentando a arte em Cataguases
— cabeça de ponte insofismável; rampa de lançamento da mais forte cuspada no marasmo
estagiário e contagiante.

DE BRAÇOS ABERTOS AO FUTURO E AS DESCOBERTAS

Cataguases, 2 de fevereiro de 1968

P/ CAEC - Silvério Torres.

Emerson Teixeira Cardoso


Nasceu em Cataguases MG, é autor de Símiles (2001), poesia, coautor de A casa da
Rua Alferes e outras crônicas (2006). Traduziu O retorno do nativo, de Thomas Hardy.
Sempre ativo em publicações literárias. Iniciou-se em Estilete (1967), mimeografado,
editor/fundador do Delirium Tremens (1983) e Trem Azul (1997).
Prelúdio n. 2

Jorge Prata

Lá fora chove?
Não, pinga.
Aqui dentro,
Você em mim.
Encanto

Jorge Prata

Róseo fluxo de vida.


Tálamo de existência em flor.
Fixo beleza em ti.
Cântico n.º 1

Jorge Prata

“Dacar quando levantou a cabeça


percebeu aqueles olhos inteiros
como se nunca os tivesse visto.
Deixou flagrar todo o íntimo de seu ser.
Isto a incomodou muito, por sem graça
ambos baixaram os olhos, como quem
suspeita do que fora informado.
Tinham vistos um no outro
através de múltiplas claridades.”

Lembrei-me das mulheres árabes


que permitem a si
cobrir o corpo e assinalar
toda a volúpia do universo
contido em seus olhos.
Conjugações

Jorge Prata

Um homem cansa o corpo.


Explora-lhe as tensões.
Amplia-lhe os movimentos.
Alargando-lhe os sentidos e os gestos.
Sol, chuva e vento moldam-lhe uma existência.
E depois, antes que o silêncio absoluto o contemple,
uma mulher toca-o como se eternizasse um astro.
Hino

Jorge Prata

Havia um ovo
Uma mão quente e úmida
O ovo virou voo
Desde então
Chamamos a isto de paz.
Questão de gosto

Jorge Prata

Gosto de boca
Buceta, lábios grossos
Como os de Sarah Vaughan
Cantando Jobim.

Jorge Prata
Nasceu em Cataguases, Minas Gerais, Brasil em 1955. Perfil: difícil de encontrá-lo de perfil, pois o poeta sempre
olha olho no olho, nunca de lado, embora aprecie os perfis de Picasso. Ele gosta mesmo é dos olhares incisivos dos
retirantes de Portinari, exceção à dubiedade “a lá Capitu”. Escreve pouco porque crê que poesia é puro pensamento.
Às vezes, ela toma corpo em palavras e as palavras são poucas. Metade delas é nada. Como desejo imperativo a
poesia necessita de um corpo pra sentir e calibrar o sentido das coisas que teimam em não sentir. Publicou na revista
“Totem” (Brasil) e na revista “Azor” (Espanha).
MEMÓRIAS

Maria do Céu Nogueira

Num baldio ao lado de uma rampa próximo do lugar onde moro, costumava
passar os dias um cavalo de ciganos. Um cavalo velho, cansado, esquelético e
com o corpo coberto de chagas onde poisava, incansável, um enxame de
moscas.
O baldio estava sempre cheio de erva viçosa e de humildes florinhas de
todas as cores, mas o cavalo, alheio à beleza que o rodeava, ia tasquinhando,
indiferente, aqui e ali. “Estava cansado! Cansado da vida! Cansado de ser cavalo
de cigano!” — comentava consigo.
Desde potrinho que levara fraca vida. A ciganada miúda montava-o,
quando ele ainda mal se aguentava nas pernitas bambas. E gritava-lhe insultos
naquela algaraviada de ciganos que ele, mesmo agora, cavalo velho e
envelhecido na sua companhia, não compreendia. Também lhe batiam com
chibatas verdes de oliveira. Queriam que ele corresse, carregando por vezes com três ou quatro
ganapitos grudados na garupa. Era demais! Que o
deixassem, bolas! O que ele queria era deitar-se ao pé da mãe e chupar do leite
branco e morno que tanto lhe agradava. Mas que não! Que corresse! Os demoninhos!
Sempre exigiram dele mais do que podia dar. Já cavalo feito, bonito, pelo
luzidio, lá tinha de ir de feira em feira, carregando os sucessivos donos que às
vezes, para demonstrarem as suas capacidades de corredor, batiam-lhe com
chicote ou picavam-no com esporas.
Triste vida tinha sido a sua! Nunca lhe permitiram um momento de
sossego!
Mesmo agora, velho e doente, quantas vezes a ciganada o vinha buscar
ao prado, o arrastava até ao acampamento e o obrigava a trabalhar!
Indiferentes aos pensamentos do velho animal, as pessoas passavam,
rampa acima, rampa abaixo.
Eu reparava nele e doía-me o coração de o ver sempre ali, mesmo nos
dias gelados de inverno.
Um dia, mais frio e chuvoso que os outros, passei e vi o cavalo deitado, hirto, completamente
imóvel. Provavelmente tinham-no deixado ali de noite e o velho animal, mirrado de desgosto e
doença, não resistira.
No meu mais íntimo, alegrei-me. Aquele animal, ali, todos os dias, na hora
em que eu passava para a escola, era um espinho cravado no meu coração.
Agora, finalmente, ambos tínhamos parado de sofrer.
Os Malabaristas

Ronaldo Brito

Foi a menina que começou. Ela foi para uma avenida movimentada e, quando o sinal fechava, ela
entrava com seu aparato de malabares. Garrafas de plástico, bolas de tênis, argolas. Fazia, de fato,
uma apresentação notável, chegando a dominar sete argolas flutuando ao seu redor. Via-se que era
uma garota pobre, não se sabia onde aprendera aquilo. Os motoristas se emocionavam ou
simplesmente se apiedavam e davam um trocado para ela fazer um lanche. E o lanche era feito, de
manhã e de tarde. E o dinheiro nunca faltava, e a garota se sentia satisfeita como quem tivesse carteira
assinada.

Depois veio o rapaz. Ele apareceu sem mais nem menos. Quando ela entrava do lado direito, jogando
suas argolas, ele entrava do lado esquerdo, com garrafas ou pelotas. Ela não gostou nada daquilo. O
rapaz estava roubando parte do seu lanche. Com o tempo ele se apresentou, propôs que eles fizessem
uma manobra mais ousada, com argolas ou garrafas voando de um para outro. Ela não tinha gostado
do garoto, mas gostava de desafios. Passaram a chegar mais cedo para ensaiar a manobra conjunta.
Quando o sinal fechava, os dois primeiro agiam separados, depois subitamente uniam seus apetrechos
num voo comum. Isso causava sensação, e os trocados, que haviam minguado para ela, agora se
multiplicavam, e ela conseguia não só fazer um lanche, mas levar um para sua mãe.

O rapaz, cujo nome ela já não lembrava, quis introduzir um turno da noite. A noite, obviamente exigia
tochas, e a garota teve medo. Mas o rapaz a convenceu de que os movimentos eram os mesmos, e o
fogo das tochas não era forte o bastante para queimar. Tudo era feito com material adequado. Assim
as noites da avenida ficaram mais animadas, e os malabaristas, ou, o casal de malabaristas, como
agora eram chamados, chegou a merecer aplausos dos moradores dos prédios mais próximos.

“O casal de malabaristas”, essa expressão pegou para definir os dois jovens, e o jornal da cidade não
tardou a aparecer para registrar o acontecimento. Isso foi talvez, o começo do fim.

Na entrevista o rapaz revelou que os dois não eram casados, nem sequer namorados. A jornalista
insistiu, perguntando se ele não pretendia chamar sua amiga para um passeio na praia, conversar sobre
um futuro comum. A verdade, é que não, disse o rapaz. E, de fato, a garota magrinha, baixinha, com
uma bola de cabelo crespo na cabeça, não inspirava o menor desejo. A jornalista então voltou-se para
a moça e perguntou o que ela sentia pelo rapaz. Sem a menor diplomacia ela disse que ele era um
intruso. Ela fazia tudo sozinha, muito antes de ele chegar, e de repente ele apareceu, tentando tomar
o lugar dela, depois propondo manobras mais difíceis e arriscadas. Acrescentou que ele inventou um
turno noturno, que a deixava em dificuldade, porque ela ainda tinha que pegar um ônibus para os
confins da cidade, antes de chegar em casa. Sua mãe andava preocupada.

A jornalista não teve outra alternativa. Fez suas anotações. O título da reportagem foi “Jovens
malabaristas da Avenida José Caneca na verdade não são casados.” A manchete foi fotografada e
repassada para muitos celulares. Afinal, o que era aquilo? perguntavam-se os leitores. Se eles não
eram casados, eram mestres da propaganda enganosa. Nos fizeram acreditar que estavam juntos, fiéis
um ao outro, unidos no ganha-pão de cada dia, mas no fim das contas, não passam de impostores.

Os dois manobrando juntos, com precisão e talento, passavam a ideia de um casal leal e sincronizado,
contorcendo-se para se manter unidos frente às dificuldades do dia a dia. Agora a magia havia se
quebrado. Os dois não eram casados. Talvez nem fossem amigos. Estavam unidos apenas na
mesquinha atividade de arrancar alguns trocados dos motoristas. Aquilo era abuso da fé pública, um
golpe psicológico, forte como uma desilusão amorosa. Ninguém chegou a falar que os dois mereciam
cadeia, mas no fundo foi o que pensaram.

Alguns motoristas, mais sentimentais, pegavam outras ruas, para não passar por eles. Outros
simplesmente deixavam de dar os trocados. O pagamento foi minguando. A garota já não conseguia
fazer duas refeições ao dia, o que a deixava esgotada. Um dia simplesmente não apareceu. Talvez
tenha iniciado uma carreira de faxineira.

O rapaz era de família mais rica. Continuou o malabarismo pelo mero prazer, e um pouco pelo hábito.
Mas sentiu falta da garota. Às vezes ele pensa em pegar um ônibus para o subúrbio, andar a esmo
pelos confins da cidade, na esperança de encontrá-la.

Ronaldo Brito
Autor do livro Sala Privê (Editora Labrador).
CÉU DE QUALQUER LUGAR

Jovino A. de Moura Filho

Continuamos sob o céu


De qualquer lugar o céu
Não importa o quanto temos andado
O céu ainda está lá
Em qualquer lugar
Tanto faz, simplesmente.
O céu continua a nos abraçar
E insiste a nos mostrar
Que ainda está no mesmo lugar
O céu, o céu, o céu
Nosso aliado incondicional.
POR ACASO, EVA

Jovino A. de Moura Filho

E eu digo
Estou à procura de Eva
Sempre estive.
A Eva que saiu do catecismo
E pousou nos sonhos travessos de criança
Nossa Senhora Eva de todos
Grandiosa e assustadora Eva mãe
Se materializou em cartas juvenis
Se aproximando de outras culturas
Eva distante, inatingível
Não passou de arrepios e murmúrios
Nas danças de salão
Nos carnavais
Até que ressurgisse em faces guerrilheiras
Eva mulher, vulcão arrebentando muros
Eva puta, Eva mística, atriz
Eva de todas as caras
Transitando por nuvens densas
Achincalhando os imbecis
Eva brincalhona e triste
Flertando com as estrelas
Colorindo dias cinzentos
Eva das paixões
Sempre Eva!
Quem mais Eva?
Onde estás?
ONDE ESTIVER

Jovino A. de Moura Filho

Corte um pedacinho do vento


Uma nesga exuberante do nascer do sol
Aprisione no coração o canto de seu pássaro preferido
Apare com as mãos as gotas frescas da chuva
Fotografe na memória o esplendor da lua cheia
E tenha a Natureza como seiva de sua existência.
Estenda a mão a quem encontrar pelo caminho
Abrace fortemente a ternura das crianças
Caminhe ao lado dos mais experientes
Corra para enxugar as lágrimas dos sofridos
Esteja presente no furacão da história
E tenha o seu semelhante como bem maior.
ESTADUAL

Sueli de Melo Miranda

virtual
Alunos presos, guerrilha,
corpos torturados em treva
jaziam abandono selvagem
e perdição na continência
das mentes subjugadas ao horror.

Lágrimas de um tempo infame,


laços errantes,
enquanto a rampa escondia o caixote,
o abraço ao vento, meninos soltos por Dom Serafim.
(Na porta da escola, prisões não eram ígneas novelas).

Na resistência, princípio do ardor


submerso, o coração colegial impôs
o ávido eixo da liberdade:
recomeçar a cada dia contra a desdita,
sem a loucura, reconstruir a vida.
Possibilidade de futuro para nós.
2023

Sueli de Melo Miranda

Nada é essencialmente plano.


O que envolve a Terra é corpo,
fogo, plantio,
razão sem estupidez:
de volta ao amor
pelas gentes e cidades,
de volta à redondeza achatada da Terra
que, ternamente, nos embala.
EXTERMÍNIO DO FUTURO

Sueli de Melo Miranda

Sem vestes sobre a terra,


dormem as meninas palestinas
mortas estupradas antes
e depois de serem
assassinadas
pelo sionismo e indústria bélica.

O maior lucro da história


sobre os corpos destroçados
de meninos ultrajados
para que não existam mais
novas gerações.
_ Extermínio do futuro.

Sueli de Melo Miranda,


psicanalista, escritora, de Belo Horizonte, mestrado e doutorado na FALE, UFMG.
Publicou Lyra de Alfarrábio, na Coleção Poesia Orbital, 1997; O diário da Menina Marília,
Prêmio Formato de Literatura Infantojuvenil, 1998; Pedras Vivas, Páginas Editora, 2022.
Participação na Antologia Elas, o tempo, os rastros. Páginas Editora, 08/03/23, e na
Revista Chicos 73, Cataguases, 2023.
Vácuos literários.

Sugiro melhorar a colocação da foto e clareá-la.

Marcelo Benini

Com o Zé Antonio estive apenas um par de


vezes. A primeira foi em um festival literário em
Cataguases. Marcou comigo no bar onde se
encontrava sempre com amigos literatos. Uma
animada roda de conversa se estabeleceu,
ensombreada rapidamente por uma pergunta
implacável do Zé dirigida a mim:
— Então, prefere Proust ou Joyce?
Sabem todos que o mundo dos literatos é
dividido entre aqueles que leram tudo, que
passaram a vida nas bibliotecas e se tornaram
imunes à poeira dos livros, e aqueles, como eu, que apenas leram e ainda espirram quando abrem um
livro há tempos guardado. Os desse segundo tipo estão condenados eternamente à inanidade e ao azar.
Não há como fugir, nunca o que lemos será suficiente pois irá pairar sempre, ameaçador, o espaço
vazio, o vácuo, o nada absoluto do livro que não lemos, e sempre seremos perguntados por ele. Não
adianta ter lido Os Irmãos Karamázovi, Crime e Castigo, O Idiota, Os Demônios, Noites Brancas e
até O Sonho de Um Homem Ridículo, sempre alguém perguntará:
— Mas você leu Memórias do Subsolo, claro?!
E você não leu.
— Ah, então você não leu Dostoiévski!
Amuado, você relembrará aquela tarde que passou jogando bola, o papo vadio com os amigos até
tarde da noite, a manhã ensolarada em que beijou a primeira namorada e até aquela tarde chuvosa em
que dormiu com o livro sobre a barriga e pensará: “Por que não li, por que não passei a vida lendo?

Pelo menos teria me livrado das humilhações dos vazios literários, das perguntas implacáveis em
rodas de literatos.”
O desconforto do Zé e de seus amigos foi indisfarçável. Logo ele que sempre demostrara
simpatias literárias por meus rabiscos, que até usou um poeminha meu como epígrafe de um conto,
que, generoso como poucos, volta e meia publicava coisas minhas na Chicos. Como pude decepcionar
o Zé Antônio? O jeito foi desviar a conversa para coisas menos problemáticas como futebol e
imprecações ao prefeito.
Dois anos depois voltei a Cataguases para o lançamento de um livro. O Zé estava lá, claro.
Conversamos bastante. Notei que no seu rosto pairava um sorriso enigmático, um pouco sacana, que
a todo momento parecia me inquerir: “Tá, mas e aí, Proust ou Joyce? Àquela altura já tinha lido o
Joyce, mas faltava o Proust. Não ousei tocar no assunto.
Os vácuos literários não têm remédio. Mesmo que você venha a ler o tal livro ficará sempre a
marca indelével daquele momento em que foi perguntado e não tinha lido. No caso do Zé, saí do
nosso primeiro encontro no bar prometendo a mim mesmo que quando tivesse lido Proust e Joyce
voltaria triunfante a Cataguases para tomar uma cerveja em pé de igualdade com ele e seus amigos.
Zé e eu mantivemos a simpatia mútua, expressa em eventuais trocas de e-mails, mas ficou essa
conversa por acontecer.
Zé Antonio para mim será sempre essa pergunta: “Proust ou Joyce?”
Uma pergunta que, só depois de ler ambos, percebi que se tratava de uma das grandes questões
da Humanidade, quase comparável à pergunta pelo “ser”, de Heidegger, ou às inquietações de
Hamlet.
Então era um filósofo esse saudoso Zé Antonio!

Marcelo Benini
Poeta
Uma cosmovisão poética

Ronaldo Cagiano

Seccionado em quatro campos semânticos,


“Fotografia de um minério” (Ed. Folheando,
Belém, 2022), de Luciano Lanzillotti, rastreia,
como sugere o próprio título, a mineralidade
existencial, a partir de uma concepção metafórica
sobre a condição humana. A partir de um olhar
sobre os matizes e formas que compõem a
realidade e seu entorno, como também abrindo-se
a uma imersão no intangível ou no que está
submerso no aluviões do inconsciente, o autor
desvela as esfinges que espelham nossas dúvidas.

As lentes do poeta fotografam os dilemas, tumultos, dicotomias e tensões do ser num mundo
calcificado por um rol de demandas, sondam as monolíticas faces de uma experiência existencial que
se constrói a partir de muitos passivos. No conjunto de poemas enfeixados em Jásper: esfinges,
moradas, estilhaços; Opala: cidades, manadas, máquinas; Quartzo: amores, despedidas, relógios;
Turmalina: construções, plantas, livros, Lanzillotti disseca os escombros da caminhada, a solidão e
a insularidade do rebanho humano nessa época de coisificação e etiqueta. Tudo amalgamado num
simbólico enquadramento que se nomeia sob uma relação metafórica com quatro pedras angulares e
de valor transcendental.
O poeta vasculha os ermos das impurezas do homem, essa pedra bruta com seus palimpsestos
em eterna oficina de lapidação, como ao constatar, em clave de inquirição, em Tecido mole: “Porque
será mais fácil adentrar/ as profundezas da Terra e do mar/ o que se achegar ao outro? /São muitas as
camadas/ que compõem um corpo:/ armadura complexa e feita/ de um tecido mole/ mas quase
impenetrável.”

Em todo o livro o trabalho centra-se numa cosmovisão, na medida em que a frontalidade de


cada poema visita instâncias íntimas ou percorre territórios e geografias humanas, sociais e políticas,
mergulha na memória, transita pelos afetos, discorre sobre esses tempos de escuridão e barbárie,
especula sobre nossas dores & delícias ou indaga sobre a certeza da finitude na corrosão dos ponteiros:
“Quem conseguirá/ domar a soda cáustica/ do tempo?” No labirinto dos questionamentos que se
sucedem, essa safra poética atinge um expressivo grau de reflexão, numa leitura profunda que desvela
uma panóplia de inquietações. E à moda de Drummond, o poeta também perdeu o bonde e a
esperança, mas não se dá por vencido, oferecendo seu contraponto, seguindo-os “pelos trilhos. / Pé
ante pé/ cabeça baixa/ mas que/ certas vezes/ se levanta/ e observa o estranho margear.”

Eis uma poesia cujo ceticismo também se contamina de um certo niilismo ao registrar os
infortúnios de um tempo acossado por injustiças sociais, como se colhe de Lições da contracorrente
e suas ressonâncias intertextuais: “Caminho ao lado/ de pessoas com fome/ sem casa ou título. /
Lutam/ pelo pão de cada dia/ pelo remédio caro da farmácia/ por um lugar no chão. /Nada sabem
sobre ti, Walt Whitman. /Nem de tuas armas e escravos, Arthur Rimbaud. / E atravessam a rua como
se houvesse/ algum tesouro/ ali na esquina.” No mesmo diapasão enuncia o poema “Quando foi?”
(Enquanto o ônibus se movimenta/ sinto-me como passageiro/ de futuro inerte/ desamparado/ tímido.
Passo e vou lendo Alberto Caeiro/ que transita entre outeiros/ fora das cidades. (…) O que se
assemelha à visão do inferno de Dante/ é apenas mais um dia/ no Rio de Janeiro/ e ao desembarcar/
carrego insistente pergunta:/ quando foi/ que nos tornaram isso?), que reflete sobre o nosso
desassossego, na mesma linhagem de Banco, que desfere: “A saúde/ a vida/ e os sonhos devassados/
mas a poesia/ íntegra e a plenos pulmões.

Luciano Lanzillotti que em sua estreia


poética com “Geometria do acaso” (Ed.
Dialética, 2021) já prenunciava uma escritura
segura e versátil, numa perspectiva de
permanente burilamento do diamante
multifacetado da linguagem, obra que
consolida sua oficina criativa e aprofunda sua
preocupação com as questões que nos afetam
num cenário regido pela distopia e convulsões,
pois a poesia é sua fartura de luz para brigar nas trevas dessa Insuportável vida, em que “Uma fruta/
apodrece/ caída/ embaixo da mesa./ Revela-se/ tão somente/ quando cor e cheiro/ evocam/ o
insuportável/ da vida.”

Vamos encontrar na cartografia poética de Lanzillotti um sentido que corrobora a mesma


noção defendida por Nuno Júdice em seu ensaio “As regras da poesia”, para quem “a poesia nasce de
uma desilusão primitiva com o mundo, de que a rejeição da palavra como objeto-do-mundo é o passo
decisivo. Aquilo a que aspira o poema é a nomeação desse outro mundo para além da esfera real, que
só pode ser trazido à consciência através da palavra poética, mas que logo a transcende e a transfigura
no processo de sua atualização.” E se “do assombro nasce a poesia”, como asseverou Cabrera Infante,
é essa a inflexão dialética que inspira o poeta no seu polissêmico exercício.

Ronaldo Cagiano
Nasceu em Cataguases MG, mora atualmente em Portugal. Publicou, entre
outros, Dezembro indigesto (Contos, Prêmio Brasília de Produção Literária
2001), O sol nas feridas (Poesia, Finalista do Prêmio Portugal Telecom 2012),
Eles não moram mais aqui (Contos, Prêmio Jabuti 2016), Todos os desertos:
e depois? (2021) e Horizonte de espantos (2022).
PE-ESIA II

Marco Fietto

Para
Preservar
Pulcra
Poesia
Pense
Positivo.
Parece
Pouco
Porque
Perdemos
Planos.
PARE:
Procrastinação,
Privatização,
Preconceito,
Plutocracia...
Pestíferas
Porcarias
Pintando
Pinturas
Poderosas
Para
Perturbar
Pobres
Povos.

MARCO FIETTO

Formado em Letras pela UFJF. Escreve poemas em sete línguas e em variados gêneros. Já
foi várias vezes jurado de Slams poéticos e é admirador da arte poética realizada nos Slams.
Participou de várias antologias e exposições literárias. Criador de A OPINIÃO DO POETA,
que ainda circula e do FESTIVAL DE LÍNGUAS, que aconteceu no passado em JF.
Aquarela

Luiz Henrique Silva

Estava só, na janela


Imersa num mar de lembranças
Que remontava à criança
Que já não havia nela

Na janela, estava só
E a casa era quase a cela
Onde purgava os sonhos
Dos tempos de Cinderela

Estava só, na janela


Feito a Carolina do Chico
E nem percebia a vela
Que singrava, tardezinha
A preamar, amarela.

Estava só e perdida
E da janela não vai
A destreza das mãos vadias
Que lhe resgatavam a vida

E qual não foi seu espanto


Quando, mais tarde, um encanto
Soprou-lhe a fronte singela
Súbito, enxergou-se plena
E mais sublimemente bela
Habitava agora uma tela
Num quadro de galeria

E era pra sempre ela


Linda e só na janela
Ante um sol que se escondia

Luiz Henrique Silva


é natural de Sumidouro, na Região Serrana do RJ. Poeta, músico, compositor e
historiador com três livros publicados. Recentemente escreveu seu primeiro romance:
"Violande e o Andante", romance de época ambientado no Brasil Colônia, na
sociedade mineradora do século XVIII e que está em fase de revisão editorial.
Formado em História, com pós-graduação em Educação de Tempo Integral,
atualmente é diretor de escola e se dedica à escrita.

.
A obra

Emerson Teixeira Cardoso

Palavras ditas, outras, escritas, partem de um centro difusor a torto e direito. Procuram fazer sentidos
como se fossem materiais para especial empreitada: terra, areia, pedra ou tijolos, transportados em
caminhões, chauffeurs contratados saberão de seus devidos fins. Cerebral artifício articulados
promoverão fenômeno estranhamente premeditado. Por sua natureza planejada será chamada,
provisoriamente, construção. Terreno novo será preparado para receber esses e outros materiais
necessários e também adquiridos e com atestado de comprovada garantia. Tempo também
comprovado por anos de tradição nesse ramo. Com tal e complexa estrutura a obra terá absoluta
excelência. Pensam que não? Esperem pra ver, ter à mão, possuir, ler. Apurados gostos satisfazer,
primorosas edições farão aparecer. Atravessaram décadas, lustres, talvez séculos. Palavras ditas,
ditadas, escritas em variados caracteres revelarão ideias magníficas, originalíssimas que sacralizarão
fantástico, formidabilíssimo, nervoso, tremido texto. Serão absurdas quaisquer ações comparativas,
desproporcionais, imprecisas. Que valor teriam a ela comparada? A graça, a pujança, a esperança nela
engendrada não deixará nenhuma chance de questionamento quanto a sua eficácia. Se tivesse que ser
definida por uma única palavra, está palavra seria mágica. Seu aparecimento num cenário atual de
miséria criativa deverá marcar um novo e longo período na história das coisas criadas para o deleite
de multidões ávidas, esperançosas. Haverá em torno dela interesse nacional, internacional, universal.
Palavras, novamente, ditas, outras, ditadas, urdidas nesse turbilhão de ideias sugeriram extremos
aonde ação imperiosa se dará. Leitor perceberá nuances para mentes comuns, realmente ininteligíveis,
mas reais, existirão. Interesse crescente abrangerá capítulos que extrapolarão as possibilidades de
números que são infinitos romanos ou não. Espaços impensáveis serão ocupados em volumes que
passarão de mil, milhões, trilhões, quem sabe?
O tempo que se perdeu lendo Proust será avaliado e descartado diante de um tempo exigido para
absorção de valores artísticos desproporcionais, inimagináveis, incontornáveis... não faltará um título,
"A obra, workshop in progress ..."

Emerson Teixeira Cardoso

Nasceu em Cataguases MG, é autor de Símiles (2001) poesia, coautor de A casa da


Rua Alferes e outras crônicas (2006). Traduziu O retorno do nativo, de Thomas Hardy.
Sempre ativo em publicações literárias. Iniciou-se em Estilete (1967), mimeografado,
editor/fundador do Delirium Tremens (1983) e Trem Azul (1997).
O PENSAMENTO

Gleison Dornelas

Algo mais forte não há, Sinto minha alma trêmula


mas é lógico, não pode haver; nesse raro e exato momento.
pois somente pensei em te amar Desvio meus olhos sem
e já te amava sem saber. desviar meu pensamento.

Vem conversa como vento, Meu pensamento que não pensa,


repentina, inexoravelmente. que numa besteira de olhar
Não é poema, felizmente, deixo tudo a perder por
que não nos deixa um sentimento. não saber me controlar.

Tudo é escrito sem gosto de mel Assim foi meu primeiro amor
ou açúcar para sensibilizar; que amei sem saber amar.
para viver em mar de amar Eu era pensante menino
sem pensar em ser fiel. e uma menina amei sem pensar.

Enfim, torno-me um ser Contava segredos de mim,


que há muito deixei de ser: já pensando no que iria ganhar;
um moleque, um menino,
que escolhe o próprio destino.
esperando que a sorte mude
Sem pensar, falo segredos de mim, sem o mínimo de atitude.
que os guardo no baú do tempo.
Sei que me desabafo sem pensar, Isto é sede ou fome do momento.
mas tenho eu de agir assim. Ou eu faça isto talvez,
por culpa da cupidez
do meu faminto pensamento.
LOUSA

Gleison Dornelas

Passos, passos e passos, e não muito demora para que o odor


de uma cripta rude aberta na manhã de inverno
suje de terra o terso terno.

A lousa petrificada por sobre o túmulo, deixa na brisa fria um vulto atro
com o talhe memorável de um ser;
que se foi, por si só, a bel prazer.

Uma sobra vagarosa sibila tenebrosa na ruela à frente,


enquanto um murmúrio derradeiro aqui eu invento...
e de uma cova qualquer, emerge um ser poento.

No fundo de negro primor dos olhos alheios de meus entes queridos,


num brio instigado pelo rorejar da madrugada passada,
coexistem a esperança dita e a esperança calada.

Esvaecem no esquecimento memórias fúteis e medram com


fobias esses seres sem nome e alguns espectros paranoicos
e eis que místico, eu regresso ao reduto.

Algo tétrico acompanha esqueletos de ossadas fantasmagóricos!


Eu vejo, mas frio, nem esboço sequer meus pêsames
pro luto ao cortejo fúnebre que passa passivo.

Assomam o medo, o pavor e o frio em mim ... então vejo que vivo.
Quando não mais que de repente, algo turvo e errante resvala na ausência,
sentindo o toque sutil da inexistência.
(amor virtual)

Zé Tarcísio, 23/6/2020

Foi um casamento discreto


sem convidados ou festa
Nem lua de mel aconteceu
João foi para o Ceará e Maria voltou para Cuiabá
De suas distâncias transmitiam olhares e sussurros de amor
promessas e tesão
Conversavam várias vezes por dia se a internet permitisse
Tornaram-se fieis em revelarem seus segredos mais íntimos
sem trocarem cheiros, bocas, carícias
Mesmo que ela mostrasse suas roupas novas, seu cabelo, seu corpo nu
e ele retribuísse com contorções de prazeres
Também dividiam receitas e fotos de pratos saborosos de serem consumidos a dois
Sonhos e orações
João preferia tinto, Maria, rosé
E brindavam à distância
felizes até que o concreto os separasse.

José Tarcísio

Professor
Caminh A
Parte 3
nte

Fernando Abritta

2020DC _______________________________________________________________

Zacarias desceu da velha charrete ainda herança O vento balançou o milharal ao seu redor.
de Seu Zaca. O antigo paiol estava cheio da
safra do ano passado. O preço do milho havia — Vamos ter que entregar o milho pra liberar
subido como esperado, mas ainda não valia a os paióis, limpar os silos. Tem como não.
pena vender. Preço do adubo, do combustível
Esfregou a orelha da velha égua que negaceou
para as plantadeiras, as sementes, tudo estava
a cabeça, tirou debaixo do assento os ramos de
um roubo.
flor que trouxe para a santa.
— Será que vale a pena continuar nesta luta?
— Nos proteja, Senhora.
Estava cansado de horas na frente da tela do
Colocou os ramos aos pés da imagem da
computador negociando com gente do outro
Virgem Negra, dentro do pequeno oratório,
lado do mundo. O adubo vinha da Rússia;
suspenso num poste que elevava a antena do
calcário, da China; colhedeiras, da Holanda;
sistema de vigilância sanitária e de segurança
peças de reposição, Vietnam, Filipinas, Nova
da colheita.
Zelândia e de um monte de países. Defensivos
agrícolas vinham da Suíça e da Alemanha. Ele — Não podemos perder esta safra nem para as
organizava as compras do grupo de agricultores pragas nem para os ladrões.
a quem estava ligado. Gente boa, excelente no
trabalho de plantar, cuidar da lavoura, colher e Pensou o quanto dela, da safra, já estava
estocar. Porém, fazer negócios com comprometida com os larápios que forneciam
estrangeiros, para isso precisavam dele. as sementes.
2036 DC_________________________________________________________________

No assentamento as duas Marias se ninguém e, de manhã, nunca estava na cama


encontraram. Dasdores cuidava da saúde do onde havia desmaiado.
povo. De remédios sabia só as ervas e algumas
folhas, de dores sabia mais. Se assentava junto, Se encontraram mesmo, se conheceram de
ouvia sempre qualquer que fosse o problema. verdade quando Dasdores distribuía remédio
Muito atenta sacava logo o que seria coisa mais pra piolho indo de lote em lote. Trocaram
séria e encaminhava para o doutor na cidade. lembranças de acampadas: dez anos na beira de
Restante era dor de solidão. Naquele deserto, estrada, a meninada daquele tempo que agora,
terra quente abandonada, já no limite das zonas gente grande, estão dirigentes no movimento.
inabitáveis, maior parte dos males era Dificuldade de cozinhar só pra si, a solidão das
desespero e depressão. Dasdores Kaiwoá solteironas. Também pra carregar homem nas
Boanerges, filha da raizeira Tonica Kaiowá, costas e abrir as pernas na obrigação, melhor
falava pouco e com muito cuidado. Curava com não ter. E a cachaça? um silêncio vergonhoso
carinho a maior parte dos doentes do lugar, de resposta. Vou procurar saber: tem uma
menos a cachaceira Maria das Graças, essa não raizeira que sabe muito. Eu a conheço de outras
tinha jeito. Trabalhava muito no seu lote: horta, garrafadas.
galinheiro, umas frutas e a plantação da época.
Com o tempo e as garrafadas da raizeira e os
Milho e o feijão nas leiras pra crescer e se
carinhos, atenções, abraços de Dasdores,
esparramar no resto da palha depois do milho
Dasgraças foi se controlando.
colhido. E tinha o respeito dos companheiros na
lida comum na área da cooperativa. — Um dia ela para com isso.

— Tem uma cachaceira aqui pra Dasdores. E E, mais uma vez, foi buscar a companheira no
todo domingo deixavam lá, Maria das Graças copo sujo do posto de gasolina na beira da
esparramada no chão, às vezes ainda suja, estrada.
usada. Mulher e cachaça sempre junta zoeira
briga violência estupro. E vinham no acostamento. Caminhões
graneleiros — 9 eixos de carretas carregados de
Dasdores cuidava, lavava, punha pra dormir. caroços de tremoço branco e os três do cavalo
Afinal o barraco era posto de saúde, farmácia, — atravessavam assoprando as duas pra fora da
hospital do povo. Esses recursos de verdade estrada. No copo sujo haviam falado de
ficavam muito longe, melhor resolver por aqui. comboios graneleiros conduzidos por um só
Fiquemos com o que temos, Maria das Dores, e motorista.
toquemos a vida. Dasgraças, nome mais usado
pela cachaceira, saia logo cedo sem acordar — Não acredito.
— Também já vi. — Essa estrada vai lotar deles passando por
aqui fugindo das balanças de outras rotas.
— Ora, ele, motorista vai na frente, no primeiro.
O segundo caminhão, só no computador, segue Noutro tropeção o caminhão de traz sugou as
reproduzindo o que ele faz. O terceiro também duas pra debaixo das carretas. Sobrou só uma
robô reproduz o segundo. Já vi três graneleiros, pasta de carne pisada por 36 rodas dos 9 eixos.
um atrás do outro, mesma velocidade, rodando
a noventa por hora. O jornal noticiou com manchete:

Na beira da estrada as Marias se riam dos Mendigas atropeladas por carreta.


tropeções, aquela alegria besta de gente
Assentados fecham estrada.
apaixonada.

2036 DC_________________________________________________________________

Sensores do satélite meteorológico SAGO-146, Terra Prometida da Rede de Fazendas Árabes


Satélite Ambiental Geoestacionário Reunidas, alimentação do gado Nelore editado
Operacional, mediam mais de 60ºC no solo para ter os melhores genes de sua espécie,
naquele domingo. Humanos passavam se indispensáveis para aumento de massa
abanando e não percebiam a correição de muscular necessária ao retorno do capital
formigas carregando ovos e larvas brancas na aplicado por dezenas de investidores, agora em
mudança das panelas dentro da terra para o oco demandas judiciárias contra os administradores
no alto de um pau de uma velha árvore. O depois que tudo incluindo pastagens, cercas,
formigueiro buscava brisa menos quente na currais, mesmo a casa da administração e
tentativa desesperada de sobreviver. casebres de peões e os nelores incapacitados de
fugir pelo excesso de peso, as chamas
Molecada não saiu pra pelada nem de manhã ou queimaram.
pela tarde. Havia nenhuma chuteira pra
aguentar o calor da areia do campinho de A velha árvore estava muito antes dos bois. Por
futebol. Sim, as chuteiras estavam muito longe seu tronco retorcido, já furado por cupins que
do ideal. Solados gastos, dedos saltando por ao longo do tempo roeram seu interior, o cerne,
furos onde o couro sintético descolado formando o oco onde as formigas se alojaram.
explodia, obviamente não facilitavam. Não foi fácil. A árvore era alta e, subindo por
seu tronco o formigueiro foi enfrentando fortes
Ninguém viu a chama debaixo de um fundo de batalhas. Pequenas aves apareciam para se
garrafa que focou um raio de sol no capim seco alimentar. Desistiam ao sentir o cheiro ruim que
que se alastrou pra um touceira de capim formigas aterrorizadas exalavam. Por sua vez,
elefante versão 2035 semeada pela fazenda elas foram limpando o tronco devorando todos
os insetos que lá moravam. A velha árvore tinha alimentação enviando patrulhas para procurar e
uma copa fechada o que filtrava a luz do sol predar os insetos que se abrigaram no tronco,
impedindo crescer qualquer outro ser vegetal no fugidos do fogo. Poucas aves sobreviventes
seu entorno. Sim, suas raízes também superaram seu nojo e foram comidas algumas
funcionavam asfixiando a concorrência aos patrulhas. Outras se aventuraram no deserto de
minerais do solo, levando para si todo o cinzas, tições ainda fumegando. Uma voltou
nitrogênio, fósforo e potássio da redondeza. com um roteiro até capinzal de fazenda vizinha.
Este pequeno deserto de areia funcionou como
um aceiro defendendo árvore e hóspedes do Depois de sobreviver a todos os venenos, às
fogo. plantas desenvolvidas para matar insetos,
vencido o fogo, agora o formigueiro tinha de
O formigueiro esperou uma semana para descer descobrir material verde para o seu cultivo de
do oco do pau da árvore. fungos e larvas. Para continuarem vivas, as
formigas acreditaram naquele roteiro.
Durante a semana de calor e fumaça, recolhido
na proteção do oco, o formigueiro garantiu sua

2055 DC______________________________________________________________________

— Vá se confessar. as modificadas resultavam em safra melhor, mas


precisavam ser compradas todo ano aprisionando
A ordem foi curta e grossa. O convite dizia para os lavradores à Imperial Sementes. Problema das
falar com o sacristão que estaria na cripta para crioulas eram as transformações no clima. A
receber visitantes e informava o endereço da velocidade da mudança estava tão vertiginosa
igreja. que as plantas não conseguiam se adaptar ao
ponto de produzir sementes resistentes. Flávio,
Flávio Bumecq não se incomodou com a rispidez
diretor do Centro de Pesquisas, ouvia, respondia
da fala. Lembrou as conversas enviesadas em
o que lhe era permitido falar e seguia. Um
encontros públicos promovidos pelo laboratório
diálogo difícil inda mais que sempre era uma cara
para fazer propaganda da Imperial Sementes.
diferente falando pela Virgem Negra. Já em
Membros da Ordem da Virgem Negra se
2031, o Vaticano havia confiscado os bens da
insinuavam chamando atenção para o custo das
Ordem, declarando ser ela herética, oposta aos
sementes adaptadas ao novo clima. Falas que
dogmas, contrária aos preceitos estabelecidos
insinuavam que o preço delas estava enforcando
pala igreja. Porém isto teve pouco impacto no
os lavradores. Conversas que terminavam
meio dos fiéis, gente do campo, ligados pela
sempre na diferença de sementes crioulas e as
solidariedade que a Ordem construía. Em alguns
geneticamente modificadas. As crioulas ao serem
lugares ela fazia o papel de Estado, provendo
replantadas germinavam e resultavam em boa
alguma segurança abrindo suas igrejas nas
colheita garantindo a liberdade do agricultor. Já
tempestades cada vez mais fortes, nas ondas de maior laboratório de pesquisa e produção da
calor cada vez mais intensas, na distribuição de Imperial Sementes.
comida, garantindo alguma dignidade ao povo
que morava ao redor de seus templos. Acostumou o olho com a luz indireta da cripta e
viu o sacristão na bata branca iluminada por uma
Bumecq já vinha sentindo a angústia de ver sua fresta de luz, o símbolo da Virgem Negra no
ciência virar mercadoria cada vez cara, reservada bordado. Obedeceu. Os muitos confessionários
para os poucos e via com simpatia o trabalho da estavam vazios, as portinholas dos assentos para
Ordem. No Centro de Pesquisas o trabalho estava o confessor abertas. Uma única estava fechada.
ainda mais difícil para ele. Chegou, ajoelhou, se benzeu como fazia em sua
infância.
Com a morte de Maria ficou pior, sufocante.
Náuseas que já vinham incomodando estavam se — Você é o Doutor Flávio Bumecq.
tornando quase diárias.
Não era uma pergunta. Ele confirmou assim
Pensava no silo abandonado do IBC onde entrou mesmo e começou a falar do bilhete do padre
sem equipamento de segurança. Uma desastrosa Guina, de como o conheceu. Iria falar da saudade
vistoria feita na pressa de achar espaço para que sentia dos outros seminaristas quando foi
guardar a colheita de uma safra recorde e na interrompido. Deveria pegar um pacote que
contaminação com o puto do vírus sem nome. estava nos pés da Virgem Negra num dos altares
Até então ninguém fazia ideia do que seria este laterais. De imediato o padre iniciou o rito final
agente patológico alojado no seu fígado. do sacramento da reconciliação. Foi seco:

Nos últimos eventos as comunicações da Ordem — Seus pecados estão perdoados. Pode ir.
da Virgem Negra começaram a ser mais diretas
apesar de ainda cifradas. No enterro da Maria Abriu a portinhola do confessionário e saiu
alguém deixou com ele o convite: o chamado envolto no seu hábito, a touca cobrindo a cabeça.
para um encontro. Ele, este convite, o havia O diretor do Centro de Pesquisas da Imperial
trazido até ali. Se relacionar com a Virgem Negra Sementes ficou ainda lá um tempo de joelhos. Foi
era perigo principalmente para ele, diretor do buscar o envelope:

— Seus pecados! Que se foda!


1968 DC____________________________________________________________________

Hermes Ionã saiu do Palácio Episcopal e num manhã quando os soldados invadiram o
pulo já estava na avenida. Na mochila de livros Mosteiro. Havia matado as duas últimas aulas da
debaixo do braço levava cadernos, escova de manhã para finalizar um trabalho em casa e foi
dentes, duas cuecas e as cartas dos padres presos. entrando na correria de sempre. Ouviu a voz do
Na verdade, não eram cartas. Ninguém superior num tom e numa altura nunca percebida.
conseguiria tirar uma carta de dentro do cárcere
onde estavam. Eram pequenos bilhetes que — Hermes, o que você está fazendo aqui? Não
Hermes conseguia passar pelos guardas às vezes devia estar na universidade? Não é hora pra você
até dentro da boca embrulhados em plástico, uma estar em casa. Volte para os seus deveres.
bolinha debaixo da língua. No Mosteiro ele
Só então percebeu as botinas nos pés dos
desamassava com cuidado. Pegava uma folha
presentes. Abaixou a cabeça, deu meia volta e
formato ofício e colava a mensagem. Escrevia o
saiu: o trabalho foi feito na biblioteca da
nome do destinatário na forma abreviada. A do
universidade.
arcebispo ele deixou com o secretário vez que o
próprio não teve tempo para receber Voltou à tardinha quando encontrou os outros.
pessoalmente. Apesar de estar agendado. Hermes Ninguém fazia ideia do que havia acontecido.
Ionã perdeu duas horas afundado na poltrona da Levaram o padre superior, o padre despenseiro e
sala ao lado do secretário. Lamentou. Duas o seminarista mais velho, este já nas vésperas de
semanas de prisão e ninguém se mexia. Queria fazer votos.
saber do arcebispo por que a igreja não defendia
os padres presos. — Foi a repressão. Ligamos para os
companheiros que ligaram para outros
A avenida corria pra cima e pra baixo com suas companheiros que retornaram com a notícia.
muitas pernas e pés: as sandálias rasteiras das Estão os três em cana no DOPS.
moças, saltos altos das senhoras elegantes, os
chinelos gastos dos pedintes, pés sujos dos Hermes Ionã conferiu o relógio, atravessou a
meninos de rua, os sapatos gastos dos avenida correndo no meio dos carros deixando
trabalhadores de escritório, botinas puídas dos atônitos os olhos que vigiavam. Acelerou o
que trabalhavam nas obras do centro, coturnos passo. Hermes, você vai perder este ônibus. Você
lustrados dos policiais e as botas enceradas dos precisa voltar ao seminário com as mensagens.
milicos de cima de seus cavalos vigiando o corre Deixar com alguém a incumbência de entregar as
do povo, as grandes espadas em suas bainhas, da comunidade, as dos padres do Rio de Janeiro
pendentes dos arreios. No caminho da rodoviária, e a do Espírito Santo. E tudo tinha que ser rápido.
na pressa de não perder o ônibus, Hermes nem É sua missão agora.
percebeu os olhos que o seguiam. Lembrou a
— Quando aconteceu o milagre, o puto do Naquela época palavra era coisa muito perigosa.
general deveria ter solto eles.

Mas não. Requisitou os presos da carceragem do


DOPS e os prendeu na carceragem da escola
militar onde as torturas continuaram. Acontecia
até visita de alunos para ver os comunas na jaula.
Obviamente não podiam trocar palavra.

Fernando Abritta

Poeta do livro umÁrvore (Funalfa, 2010), designer ilustrador de Uma Verde História (LAL,
Cataguases, 2011) e romancista ilustrador de O Caso da Menina que Perdeu a Voz (Funalfa, 2010),
participa das coletâneas Juiz de Fora ao Luar (JF: Gryphon, 2015) e Poesia na Pandemia (JF,
Paratexto, 2021), tem o romance Mula Sem Cabeça, a procura de editor.
ARRECIFE DOS NAVIEIROS

(A história de amor entre dona Mari’Ana de Sá Albuquerque

e o negro Damião da Costa)

Wander Lourenço

Eis os manuscritos apócrifos d’assenzala para o além-mar do Foral de Olinda


Do que se houvera pelos chãos de pedra do ancoradouro Arrecifes dos Navieiros
Dos embarcadiços em cais de saudade onde ancoravam naus-caravelas infindas
De pau-brasil, fumo-d’angola, dos lotes d’ouro, das mercancias, dos marinheiros

Às margens canavieiras dos antigos engenhos que roçam as navegadoras aguarias


Do Capibaribe n’onde aportara o fadário negro do escravo de nomeada Damião
Que púrpura encantação pela sinhá-branca Mari’Ana de Sá Albuquerque da Capitania
De Pernambuco, consorte do fidalgo d. Fernão Albuquerque de Itamaracá, o Barão,

Atraiçoado pelas rudes mãos do destino quando a esposa Mari’Ana e o reles amante
O escravo Damião da Costa de ofício-estivador que aportara em vil desembarcação
Que às cegas amarras s’embrenharam por porões labirínticos do coração navegante
Ah, quem diria que torpe aleivosia do escravo maledicente de fato adviria da paixão

Em pelourinho d’engenho aferrou-se o negro Damião por cruéis correntes e açoites

Pel’a castigação d’assangrar couraça do cativo ladino em madeiro d’humilhação atroz


Por desagravo d’injúria de famí’a gorjeio do vergáio que rugia sobre silêncio da noite
A invadir casa-grande de Mari’Ana de Sá Albuquerque trancafiada feito bicho feroz
Não obstante, a dama s’apertencesse ao d. Fernão Albuquerque, o Barão de Itamaracá
Que co’ todo fervor não aperdoou ultraje do desabusado que fez abrolhar rebento
Bastardo em ventre proibido da sinhá-branca d’Engenho Bom-Amparo do Jequitibá
Salvo engano, querubim enegrecido fora ajogado à moenda por mando-contento
Do senhor de terra em desonra insultado por obsceno gesto do nego-chinfrim
Que ordenou que s’arretalhasse carne-viva co’as vis sangrentas chicotadas
Qual naváia de fio d’aço afiado a destroçar os mil pecados sobre terra-carmim
A pagar co’a vida pela safardânça d’raça contra siá-dona Mari’Ana violentada
Defronte d’assenzala d’Engenho Bom-Amparo Jequitibá corpo inerte-mutilado
Por chicoteio do Feitô Florenço como s’estalasse preito qual coice-cego vingança
Por ter desfeito co’a dona-siá Mari’Ana Albuquerque negro Damião for’é massacrado
Como afaz co’o fruto da cana-doce a s’azafamar lida em bem-vinda chegança
Aporém, diz que d’aviltamento d’escravo Damião a denegrir co’o defeito de cor
A que dona Mari’Ana Albuquerque dera luz ao coibido fruto por má-sina e sorte
Depós d’avinhorada ceia advém preto-manquejo co’o punhal em manejo a sobrepor
Ao vulto assombrado do Damião da Costa, d. Fernão Albuquerque alvejado de morte.
O CONSERTADOR DE PALAVRAS

Wander Lourenço

De feita, o Homem pregou à porta


De sua humilde morada
Uma placa de madeiro co’os seguintes dizeres:
“Consertam-se palavras.”
Um senhor de terno, gravata e sapato de couro,
Ao ler os manuscritos,
Indagou-lhe a razão de tal desatino vocabular.
–– Há quem conserte imagem de santo e até almas,
Eu, simplesmente, sou consertador de palavras,
Por ofício.
–– Então, se amanhã eu lhe trouxer uns vocábulos
Co’o defeito poético de nascença,
O senhor houvera de ser capaz de consertá-los,
Ó meu nobre mestre das gramáticas? –– ironizou-o.
–– Não, senhor, porque não existem palavras
Co’o tal defeito de nascença,
Mesmo as mais impronunciáveis ou intraduzíveis,
Porque é destas costelas líricas que há de abrolhar
A substância incorrigível por natureza,
Que se intenta do labor diante da escritura
Pelo formão rústico da inspiração
Até forjar-se Poesia.
DOS POEMAS INÉDITOS DE JOSÉ PÉREZ

Del libro Antidoctos y sentencias (2023-2024)

POBRES

José Pérez

Cada pobre
del mundo
me mira
como su gemelo
y mi mano
tiembla
mi ojo llora
mi boca calla
mi corazón
se hace tan pequeño
como estrella
o grano

Cada pobre
de mi calle
comparte mi sed
mi nombre
mi huella dactilar
y camina a mi lado
Cada pobre de mi casa
duerme en un rincón
oyendo la lluvia
como cohetes de guerras
esperando el sol
como plato tibio
servido en silencio

Cada pobre
de mi país
siquiera sabe
su destino
o la hora exacta
de dónde viene
para dónde va
porque su camino angosto
y empedrado
semejante a un túnel
a una cruz con espinas
a navaja en el hueso
a piedra de volcán
lacera
su estómago

30/12/2023
MUNDO

José Pérez

Yo no hice al mundo
en siete días siete
en siete noche ni en siete horas

desempleado y triste
vacío por dentro
como una manzana sin Adán ni Eva
sin pirámides ni burritos de Belén
sin cabras ni bastones de oro
para perforar la roca
sin caminar como mesías
el horizonte es ceniza

El mundo me hizo a mi
a su imagen y semejanza
y soy hijo del padre
salvador de los alcoholes
las bienamadas
bienaventurado entre los borrachos
y delirantes
hipertensos disfuncionales y solitarios
fumando a toda hora
las greñas alborotadas como los ángeles
adúltero y pecador como las abejas
casi resucitado
cada mañana de las resacas
y las tristezas
alguien amenaza
llevarse mis huesos
desde la cruz y las tempestades
porque mi padre me ha abandonado
pero el mundo
es el fondo de la nada
y desde ahí me levantaré a los cielos
y regresaré para salvar almas
como un degenerado rebelde
que se niega a desaparecer
en la suave piel de una hostia

01/01/2024

José Pérez
(El Tigre, 15 de mayo de 1966), es poeta, narrador y ensayista. Licenciado en
Letras (ULA, Mérida, 1991) y doctorado en Filología Hispánica por la
Universidad de Oviedo (España, 2011). Profesor jubilado de la Universidad de
Oriente (Venezuela) en el área de Lingüística. Autor de los poemarios Como
ojo de pez (2006), En canto de Guanipa (2006), Páginas de abordo (2008), A
palo mayor (2018) y La casa de los poetas (2021); los libros de cuentos Jardín
del tiempo (1991), Callejón con salida (1994), De par en par (1998), No lisis no
listesis (2000), Pájaro de mar por tierra (2003) y Cuentos de lejanía (2022); del
ensayo Cosmovisión del somari (2011) y la novela Fombona rugido de tigre
(2007), entre otras obras. Ha sido galardonado en la II Bienal Literaria de
Guayana Lucila Palacios (1993), II Bienal de Literatura Antonio Arráiz (1998),
Certamen Cada Día Un Libro (2005) y Gran Explosión Bicentenaria (2011),
entre otros concursos dentro y fuera del país. Escritor homenajeado en la Feria
Internacional del Libro de Venezuela, FILVEN, por el estado Anzoátegui,
febrero 2024.
O CAÇADOR
(Em: Pânico no Estúdio 49)

Igor Castanheira dos Santos

O carro dobrou a esquina a toda velocidade, desviando por pouco de outro veículo que vinha no

sentido contrário. A via era de mão única, mas isso não impediu o automóvel desgovernado, que

capotou em seguida.

Só então o diretor gritou corta. Assim, o dublê saiu do sedan danificado.

“Valeu?” — perguntou ele, referindo-se à cena.

“Sim.” — confirmou o diretor-assistente. — “Encerramos por hoje.”

Foi o bastante para Vinny Ace, o dublê, sorrir. Estava satisfeito com o resultado de sua

performance. A princípio, não acreditava que aquela coisa de dublê fosse dar certo, no entanto,

enganara-se. Queimara a língua, pois sentia que nascera para aquilo. A adrenalina, a tensão, a

necessidade constante de superação ... Os seis últimos meses haviam sido os melhores de sua vida.

Tudo graças a Tina, a sua namorada desde os tempos do colégio, que lhe arrumara a proposta

de trabalho. Tinha de fazer algo para agradecer a ela.

Já que Tina trabalhava como produtora-assistente da novela medieval O Trono de Pedra, que

era rodada justamente no estúdio ao lado, o de número 49, poderia muito bem levá-la para jantar. Não

era uma má ideia. Só teria de esperar as gravações do dia terminarem, o que não deveria demorar

muito. Com sorte, até mesmo já teriam acabado.

Então, Vinícius foi até o seu trailer e rapidamente trocou de roupa, tirando o seu figurino. Em

seguida, rumou para o estúdio 49. Chegando lá, não demorou a perceber que havia algo errado.
Se ele não se enganara, Tina lhe dissera que seria filmada uma cena de batalha no local. No

entanto, tudo estava muito quieto.


Foi quando soaram os tiros. O fato confirmou as suas suspeitas. Definitivamente, algo estava

muito errado, pois não existiam revólveres na Idade Média.

Procurou uma forma de espiar. Subiu em alguns caixotes e conseguiu dar uma olhada pelo

basculante localizado na parte mais alta da parede do estúdio, que devia ter uns três metros de altura.

Alguns homens de terno tinham feito o elenco e a equipe de filmagem reféns. O líder do grupo

de bandidos era um indivíduo de altura mediana, que trajava um extravagante terno azul marinho com

finas listras douradas.

Ele exibia um macabro sorriso em seu rosto, em grande parte por conta da cicatriz que deformava

o lado direito de sua boca.

O sujeito estava enfurecido.

“É o seguinte.” — disse ele. — “Eu quero a minha grana. Todos os duzentos e oitenta mil,

senão geral vai tomar pipoco.”

Os dois capangas eram ainda menos amistosos que o chefe.

Vinícius sentia que tinha de fazer alguma coisa. Não dava tempo de chamar a polícia, pois

demorariam muito para chegar ao estúdio, muito afastado do centro da cidade de Alexandria.

O dublê teve de pensar rápido. Se fosse realmente agir, precisaria contar com o elemento

surpresa. Então, como a maioria das pessoas no local trajava um figurino de época, seria mais fácil

se camuflar em meio aos figurantes se estivesse do mesmo jeito.

Para tanto, seguiu até os fundos do prédio, onde se localizava o vestiário. Pegou um uniforme

de soldado da guarda-real e o vestiu. Improvisou uma máscara estilo Zorro, caso tudo desse

extremamente errado. Assim, poderia preservar a sua dignidade (ou o que restasse dela).

Daí veio a procura por alguma arma, mas esta não durou muito, pois logo viu o arco e a aljava

com as flechas. Uma sorte inesperada, já que sabia manusear corretamente o artefato.

Praticava o esporte desde a adolescência, logo após ter abandonado a ginástica olímpica. Mas

aquela não era a hora para divagar.

Vinícius sabia que precisava estar completamente focado. Era essencial para a missão, na qual

qualquer erro poderia ser fatal. Para obter sucesso, primeiro tinha de adentrar o set de filmagens

despercebido.
Novamente, a sorte estava do seu lado. Nem precisava ter se disfarçado, mas agora era tarde

para retirar a fantasia.


As passarelas suspensas, localizadas nas laterais do estúdio e utilizadas para o transporte de

equipamentos, estavam desobstruídas. E o melhor: ninguém prestava a menor atenção a elas, seja por

que motivo fosse.

Os bandidos estavam deveras concentrados em seus reféns e esses últimos não conseguiam

desviar o olhar das armas que lhes eram apontadas.

Tudo que Vinícius tinha de fazer era tomar cuidado para não ser visto. Não seria uma tarefa

fácil, pois além de não poder fazer nenhum ruído sequer, sob pena de chamar a atenção dos

criminosos, ainda tinha de prestar atenção nos mesmos, de modo a não ser pego desprevenido.

Lentamente, e com o máximo de cautela possível, ele começou a avançar pela passarela.

Foi então que o inesperado aconteceu.

“Olha, acho que podemos chegar a um acordo.” — disse uma das reféns, levantando-se com

as mãos erguidas. — “O que vocês querem?”

O dublê reconheceu a garota de cara. Era Lara Porto, a atriz adolescente do momento e estrela

da novela Trono de Pedra.

A moça tinha coragem.

“O que eu quero? Você!” — respondeu o chefe dos meliantes.

Aquilo era ainda mais inesperado.

“Como?!” — indagou a jovem completamente surpresa.

“É isso que ouviu, guria. Você é o nosso passaporte em segurança para fora daqui, além de

garantir a grana que tenho direito. E se quiser mais detalhes, pergunte ao seu padrasto.” — concluiu

o líder da gangue, apontando o cano de sua arma para um homem de terno deitado perto de uma das

câmeras.

“O Jonas?! O que lelé tem a ver com isso?” — exclamou a jovem atriz de cabelos castanhos.

“Foi a dívida de jogo dele que nos trouxe aqui. Não é mesmo, Jonas?”

“Quê?! Não acredito nisso!” — Lara outra vez exclamou.

“Pode acreditar, palavra de Roberto Santoro.”

Fora isso que acontecera.

Vinícius decidiu que já ouvira o suficiente. Era hora de entrar em ação. Preparou duas flechas no
arco e disparou-as simultaneamente.
As setas voaram em direção opostas, formando uma trajetória em V no ar. Acertaram em cheio

nos seus alvos, fazendo com que os dois capangas do bicheiro largassem as suas armas, devido às

feridas causadas, em suas mãos, pelas flechas. O dublê achava que tinha aleijado os caras. Nada que

eles não merecessem.

A reação de Santoro foi rápida. Ele começou a atirar na direção da qual vieram os disparos. Ao

mesmo tempo, Vinícius deu uma de Tarzan, saltando da passarela, agarrando uma corda presa por

uma roldana e utilizando a mesma para ganhar impulso e para se balançar até onde estava Santoro,

acertando um chute bem no meio de seu peito.

Por pouco a saraivada de balas, disparada pelo líder dos criminosos, não o acertara, mas a sorte

parecia estar do seu lado. E Lara também.

A moça pegara as armas derrubadas pelos capangas de Santoro, rendendo-os. Já o bicheiro

desmaiara com o impacto do chute. E, de repente, a atenção de todos se voltara para o misterioso

arqueiro, que sem saber como agir, disse uma besteira qualquer:

“Um dia da caça, outro do Caçador”.

E saiu correndo como se a sua vida dependesse disso.

No dia seguinte, todas as manchetes dos jornais de Alexandria indagavam quem era o misterioso

“Caçador”.

E o resto era história.

Igor Castanheira dos Santos,


publico meu trabalho sob o pseudônimo de Francisco Dorotheu. Estou enviando um conto que desenvolvi sobre uma
espécie de Robin Hood moderno, um dublê que se vê forçado a lidar com uma situação com reféns no estúdio ao lado
do que trabalhava. Espero que gostem.
LIVROS

Raquel Naveira

Minha paixão pelos livros vem da infância. Sempre gostei do objeto livro, mesmo antes de ler ou
escrever. Folheava as páginas e intuía que um livro aberto continha vozes e segredos desvendados.
Observava as capas, a textura do papel, o cheiro da tinta. À noite, no escuro do quarto, acendia uma
vela e passava a chama devagar pelas ilustrações coloridas, imaginando que ficariam animadas.

Na nossa casa, morou conosco durante muito tempo uma governanta e babá chamada Correntina,
que viera de Bela Vista, fronteira do Paraguai. Um dia, ao me ver debruçada sobre um livro perguntou:

— Você já aprendeu a ler?

Respondi, mentindo:

— Já.

E ela, um pouco irônica:

— E o que está escrito nesse livro?

— É a história de um pirata que atravessou o mar para encontrar um tesouro numa ilha cheia de
fantasmas. E comecei a inventar uma história. Enorme o prazer de vê-la surpresa, acompanhando
cada palavra. A descoberta de um estranho poder.

E assim os livros sempre me acompanharam. Achei especialmente linda a cartilha “Caminho


Suave”, aquela estrada entre lírios alaranjados, que levava a menina à Escola, porta da ciência, do
conhecimento, da sabedoria. Os contos de fadas de Andersen: lombada cor-de-rosa. A coleção
completa de Monteiro Lobato: lombada verde com losangos dourados. As lendas árabes de Malba
Tahan: cor-de-vinho, com desenhos de palmeiras brancas. E o Tesouro da Juventude, capa cinza,
onde li em voz alta os primeiros versos, os primeiros poemas. A forma e o ritmo, minha expressão de
amor.

Logo compreendi que o livro era manifestação de algo mágico, recanto de palavras perdidas. Que
as letras se embaralhavam, depois se combinavam infinitamente e revelavam a totalidade de seres,
decretos e enigmas.

Um dia, saí andando pelo mundo e pelas cidades, à procura de livros. Dos livros de meus
escritores preferidos. Dos meus próprios livros. Saí em busca de mim mesma pelas ruas centrais,
pelos labirintos onde há sebos cheios de corujas e gatos ocultos entre as prateleiras.

Adoraria ter escrito como o poeta carioca Antônio Cícero um livro intitulado A Cidade e os
Livros. Começá-lo com um poema onde descreveria o centro do Rio, cidade proibida, entrando em
becos, travessas, avenidas, galerias, cinemas, livrarias com nomes exóticos como: Leonardo da Vinci,
Colombo, Alfândega, São José, Cosmos, Berinjela. Maravilha-se o poeta: “Eu só sentia algo
semelhante ao perceber que os livros dos adultos também me interessavam: que em princípio haviam
sido escritos para mim os livros todos.”

Em São Paulo, os sebos estão ao redor da praça da Sé. Vou sempre ao Messias, ao José de
Alencar, ao Nova Floresta. Esse nome, Nova Floresta, me faz lembrar livros que caem de árvores, no
meio de um bosque coberto de folhas de papel, que o vento leva e farfalha.

Para o argentino Jorge Luis Borges, os poetas, como os cegos, podem ver no escuro. Ele
imaginou em seu conto “Biblioteca de Babel”, uma biblioteca universal, com todos os livros do
mundo e, em “Livro de Areia”, um livro monstruoso, objeto de pesadelo, que prendia a atenção do
leitor para sempre.

E por falar em biblioteca, em templo do saber, veio à minha memória o Real Gabinete Português
de Leitura, na rua Luís de Camões, no centro do Rio. Que beleza arquitetônica, que acervo fantástico.
Uma instituição que dignifica Portugal no Brasil, desde 1837. Verdadeiro padrão da nacionalidade e
da língua portuguesa transformada em arte literária. Na sala de leitura, entre vitrais coloridos
representando a náutica dos descobrimentos, vários níveis de estantes repletas de livros. Enquanto
observava quase sem fôlego aquele espetáculo, uma mulher ao meu lado persignou-se, fazendo o
sinal da cruz. A sensação profunda de pisar um lugar sagrado.

A Bíblia, o grande livro de minha alma poética, menciona várias vezes a expressão “O Livro
da Vida”. Paulo disse que as pessoas que cooperam com ele no evangelho tinham seus nomes escritos
no Livro da Vida. E Jesus afirmou que os nomes dos vencedores que se mantêm puros não seriam
apagados desse livro.

Quero estar em paz, entre meus livros, enquanto me preparo para entrar numa cidade iluminada.
Numa biblioteca infinita. Será a glória.

RAQUEL Maria Carvalho NAVEIRA


Nasceu em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, no dia 23 de setembro de 1957.
Formou-se em Direito e em Letras pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB).
Mestre em Comunicação e Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie de São
Paulo. Deu aulas de Literaturas Brasileira, Latina e Portuguesa na Universidade
Católica Dom Bosco (UCDB), onde se aposentou. Residiu no Rio de Janeiro e em São
Paulo onde deu aulas na Universidade Santa Úrsula (RJ) e na Faculdade Anchieta (SP).
Deu também aulas de Pós-Graduação na Universidade Nove de Julho (UNINOVE) e
na ANHEMBI-MORUMBI de São Paulo. Palestras e cursos em vários aparelhos
culturais como: Casa das Rosas, Casa Guilherme de Almeida, Casa Mário de Andrade.
Publicou mais de trinta livros de poesia, ensaios, crônicas, romance e infantojuvenis.
Os mais recentes são os livros de crônicas poéticas LEQUE ABERTO
(Guaratinguetá/SP: Penalux) e MANACÁ, da mesma editora. Escreve para várias
revistas e jornais como Correio do Estado (MS), Jornal de Letras (RJ), Jornal
Linguagem Viva (SP), Jornal da ANE (Brasília/DF), Jornal "O TREM" (MG)...
Pertence à Academia Sul-Mato-Grossense de Letras, à Academia Cristã de Letras de
São Paulo, à Academia de Letras do Brasil (de Brasília), à Academia de Ciências e
Letras de Lisboa e ao PEN Clube do Brasil. Recebeu o Grau Comendador da Ordem
Guaicurus do Mérito Judiciário do Trabalho do Tribunal Regional do Trabalho da 24ª
Região- Mato Grosso do Sul.
Otília

José Vecchi de Carvalho

O casarão, antes repleto de sons, gente e movimento, agora consumia-se no silêncio e no vazio
das horas mortas, todas as horas, todos os dias. O irmão mais velho de Otília não resistiu à leveza de
um carro em alta velocidade, puxou o manche, voou para o céu pouco antes de completar trinta anos.
Bebia demais, tudo demais, dizia a irmã, e juízo nenhum. Os pais, um atrás do outro, deixaram o
desassossego de todo o sempre (acordar, levantar, sair, voltar, receber visitas agora desagradáveis,
chorar a morte do filho) e foram para o abrigo perpétuo da família, um mausoléu bonito, diferente de
todos, do chão ao teto, dentro e fora. Só mesmo embaixo da terra era igual a tudo por ali.
Otília herdara dos pais a riqueza acumulada com esmero de unhas e dentes; também os medos,
a desconfiança, a sisudez. Sozinha no casarão e no mundo, fazia-se arredia, reclusa, não cultivara
amizades, amores e entretenimentos externos. Passava o dia envolta em folhas de papel, cadernos,
anotações, extratos, balanços, contratos e alguma dor de cabeça, alguma insônia: uma inadimplência
aqui, um lançamento incorreto ali, uma taxa bancária abusiva acolá. Nas raras aparições na calçada,
nas casas imobiliárias e nos bancos, mais parecia um fantasma, uma sombra esgueirando-se pelas
paredes, esquivando-se pelos cantos, óculos de sol bem escuros, casaco gola alta, botas de cano longo,
cabelos acortinando o rosto pálido entrevisto, unhas enormes em tom escuro: roxo, violeta ou bordô
fechado.
Noite, o casarão sempre assim: pouco se ilumina por fora com lâmpadas esmaecidas na
opacidade do jardim. Por dentro, enluta-se, aferrolha-se, apaga-se. Apenas uma réstia escapa pela
fresta de um janelão, acusando a presença residual, imóvel e fria de Otília. O insone escritório, em
seu serão diário, contabiliza os dias sem estornos. Nos balancetes, agigantam-se os dividendos,
amofina-se a vida. Resignado, o silêncio abre fendas para o cicio do vento e dos bichos noturnos. A
noite abraça a casa que abraça a solidão que abraça Otília.
Não por falta de oportunidade. Um ousado bancário tentou revolver os escombros, resgatá-la
com vida. Desistiu depois de algumas investidas inglórias. Um carteiro insinuou-se, talvez como
quem jogasse na loteria ou enviasse cartas alheias. Um entregador de pizza fazia-lhe constantes
agrados: um bombom, um refrigerante por conta, um frete grátis; o dono da loja de tecidos, um corte
de seda; o gerente da concessionária de automóveis, bilhetes açucarados e convites para test drive; a
ex-professora de inglês, um mimo, uma leve carícia; o dono do posto de gasolina, uma ígnea indireta;
um venerável, gestos e olhares lascivos; a gerente da seguradora, um presente em data especial; o

caixa da padaria, o toque nas mãos ao dar-lhe o troco; o diretor da faculdade, homenagens e convites
para palestras; um padre, o perdão.
Otília, mouca, fechava-se, cada vez mais soterrada sob os destroços de uma vida implodida.
Nunca se ergueu diante dos apelos e gestos lúbricos. Nunca se desmanchara de prazeres com homens
ou mulheres. Embrulhava-se na solidão e no silêncio. Em tudo via ardis e pretextos para lhe
dilapidarem o patrimônio. Debruçada na sisudez das contas do livro-razão, afastava o mais tênue
vestígio de sonho, de emoção, de alegria.
Um dia, porém, o grande espelho de sua penteadeira mostrou-lhe as marcas irreversíveis do
tempo. Incrédula, como se acordasse de um sono, correu pelos cômodos do velho casarão a abrir
portas e gavetas de todos os armários, vestiu-se com roupas leves, despojadas e claras. Abriu as
janelas, passou pelo jardim, ganhou o sol na calçada, caminhou pela praça, consumiu jornais e
chocolates, admirou crianças e casais, riu de um vendedor de loterias que fazia piadas com os palpites
do jogo para atrair os clientes. Chamou-o para comprar um bilhete. O bilheteiro, porém, não escutou.
Correu, tocou-o com as mãos, mas ele não lhe deu a menor confiança. Enfiou as mãos no bolso para
pegar dinheiro, não tinha dinheiro. Procurou a bolsa, não havia bolsa. Falou com o caixa da padaria,
mas este agia como se não houvesse ninguém à sua frente. Correu em casa para pegar uns trocados,
mas não conseguiu achar nada. O casarão, depois de tanto tempo, encontrava-se lotado de gente. Um
entra e sai confuso. Gente no quintal, pelos quartos, corredores, banheiros, salas, biblioteca, escritório.
Uma balbúrdia de pessoas sem consideração, passando apressadas, indo e vindo, nem se importando
com sua presença, onde nós estamos? Absurdo, na minha própria casa! Pilhagem? O que é isso, não
me respeitam?
Procurou pelo ousado bancário, pelo carteiro, o entregador de pizza, o dono da loja de tecidos,
o gerente da concessionária de automóveis, a ex-professora de inglês, o dono do posto de gasolina, o
venerável, a gerente da seguradora, o caixa da padaria, o diretor da faculdade. Nenhum deles ali.
Apressada, andou por várias ruas entre gente, bicicletas, motos, carros e ônibus sem dar conta disso.
Achou estranho o comportamento das pessoas, ninguém lhe dirigia olhares perscrutadores. Nenhuma
buzina, mesmo quando cruzava as ruas entre os carros, fora da faixa. Atônita e ofegante, entrou num
prédio como se conduzida por alguém, por mãos invisíveis. Um lugar estranho, mórbido, cheirando
a velas e flores, gente conversando, cochichando, rindo. Cânticos sacros e fúnebres. O padre, lá estava
ele, galanteador, gesticulando, rezando, perdigotando o corpo engalanado de flores dentro da urna
mortuária. O corpo pálido. Quem? Por quê? Ninguém respondia. E a família, cadê? Um velho
conhecido, sentado ao lado, parente distante, talvez, de outra cidade, recebendo condolências. Por
quem? Pairou sobre todos como se levitasse. Reconhecia-os. Representantes do comércio, da
indústria, do banco, da maçonaria, das igrejas. Caras indistintas, semblantes iguais, condoídos e
falsos. Quem, o corpo? Uma mulher? Esse padre, hein? Uma mulher bonita, uma beleza trazida de
um tempo distante, muito distante, como se guardada numa fotografia, uma beleza de um tempo que
não volta. Uma mulher bonita. Ela, Otília!?, não, não pode ser. Estava ali, no meio de todos, como
pode?, deitada, inerte, pálida, bonita! Dormindo, guardada no silêncio resignado das horas mortas,
todas as horas, dormindo. Sozinha. Silêncio. Dormindo, dormindo, todas as horas, todos os dias.
Velas se esvaindo, sussurros, choros.
A tarde avançou sobre tudo, o tempo arrastou a noite para o céu da cidade, fechou-se o esquife.
Nem uma réstia, uma vela, um sopro. Nada. Reinou a escuridão. A perpétua escuridão.

José Vecchi de Carvalho

Nasceu em Cataguases. Vive atualmente em Viçosa. Coautor de A casa da Rua


Alferes e outras crônicas (2006), e autor de Duas Cruzes (contos, 2018),
Contradança (contos, 2020), Cada gota de silêncio (contos, 2021) e
Redemunho (romance, 2023).
A LÍNGUA PORTUGUESA E OS NEOLOGISMOS

Hugo PONTES

Define-se neologismo como toda palavra ou expressão criada de maneira espontânea ou forçada.
Também se considera neologismo um novo significado atribuído a uma palavra já existente no
vocabulário. Como exemplo a palavra “Legal” que significa dentro da lei; e pode ser entendido,
também, com o sentido de algo bom.

O neologismo pode ser criado no próprio idioma ou importado de uma língua estrangeira, como
ocorre frequentemente na linguagem técnica. Há aqueles de caráter popular ou literário, restritos a
um determinado idioma, e outros, como os termos científicos, que são internacionais, e devem ser
adaptados morfologicamente a cada idioma.

Os neologismos podem ser léxicos e sintáticos. Os primeiros, quando corretamente adaptados à


língua, enriquecem o vocabulário sem ferir o gênio da língua; os sintáticos, também chamados de
construção, empobrecem o idioma por atentarem contra a sua estrutura e recomenda-se que sejam
evitados.

As nomenclaturas científicas e técnica são quase todas baseadas nas línguas grega e latina.
Dessa forma os neologismos criados em inglês utilizam, em sua maioria, radicais gregos e latinos, o
que facilita a sua adaptação às línguas neolatinas como o Português.

Há neologismos que são formados com as letras iniciais da expressão designativa de uma
doença, como AIDS (Acquired Immune Deficiency Syndrome), É discutível, nesses casos, se as letras
devem estar dispostas na sequência das palavras do idioma de origem ou de sua tradução vernácula,
como é o caso de SIDA, em Portugal, pois a tradução é Síndrome da Imunodeficiência Adquirida.

Por outro lado, a aceitação de um vocábulo importado só se justifica quando absolutamente


necessário por não existir palavra vernácula equivalente e, nesse caso, é imprescindível sua correta
adaptação morfológica; do contrário, é preferível usar-se a palavra no idioma de origem, por
empréstimo, destacando-a em negrito ou itálico para mostrar que aquela é uma palavra originária de
outro idioma. Exemplo disso é a palavra cassino, originária do Latim (casino), passando para o
italiano, francês e chegando até nós escrita com dois SS. Isso porque a pronúncia no idioma português
tem som forte CaSSino, caso contrário deveria ser pronunciado CaZino.

O registro de um neologismo nos dicionários assegura a sua incorporação definitiva ao léxico


e nos dá a tranquilidade necessária para o seu uso. Exemplo disso é a palavra solucionática, criada
pelo jogador Dario, do Atlético Mineiro, quando proferiu a frase: “Não me venham com a
problemática, que eu tenho a solucionática.” Ou o ex-ministro do trabalho, Rogério Magri, que criou
a palavra imexível.

O neologismo sintático importado do inglês constitui uma aberração que descaracteriza o nosso
idioma e decorre, quase sempre, de traduções literais e despreparo dos tradutores. O hábito da leitura
de textos médicos em inglês também contribui, inconscientemente, para a aceitação e utilização de
expressões e construções sintáticas próprias da língua inglesa, travestidas em roupagem vernácula,
caracterizando o denominado gerundismo (palavra que é um neologismo). Como exemplo, podemos
citar a tradução “tem sido mostrado” (má tradução do inglês para “it has been shown”) que pode ser
dito: foi mostrado, ou mostrou-se.

É sabido que a língua é dinâmica e se renova constantemente. Muitas palavras tornam-se


arcaicas e deixam de ser usadas; outras mudam de significado ou adquirem novas acepções. A criação
de neologismos é um dos instrumentos de renovação da língua. Apesar da renovação constante em
seu léxico, a língua tem estrutura própria, sua gramática, sua maneira de expressar-se, seu paradigma
culto, que devem ser respeitados e conservados. Colecionamos alguns absurdos cometidos contra o
idioma português com a aparição de neologismos ditos, em geral, por pessoas ditas cultas:
competitivados (competitivos), inicializar (iniciar), principializar (principiar), Cartório Registral (no
lugar da locução adjetiva Cartório de Registro), repetimização (repetir, ou repetição), desaposentação
(essa não tem como explicar, pois não dá para saber se alguém que aposenta se arrepende e volta ao
trabalho), modernialização (modernização), descontinualizar (talvez queiram dizer interromper),
garantista (garantia??) e extraordinariedades (para coisas extraordinárias).

E assim o idioma é castigado, quer pelas traduções duvidosas ou pelo mau uso do idioma.

Hugo PONTES
Professor, poeta e jornalista.
A CHAVE

INÊS LOURENÇO

Podemos estar sozinhos


de muitas maneiras mas faz falta tantas vezes
apenas o ruído de uma chave na fechadura ou
o som de uma gaveta. Gastámos com volúpia
os nossos tempos de isolamento
essa coisa divina de não ouvir o que não nos seduz
nem nos consola. Mas breve regressa
o enfado desse encarceramento voluntário entre paredes
e ruídos domésticos da vizinhança
que nos confirmam ignorados do mundo
como um rato ou uma barata numa fresta de rodapé.
Por isso me alivia o som dos teus passos nas escadas
apesar das desconversas e das falsas concordâncias
no habitar dos dias.
AS IDADES DA CHUVA

INÊS LOURENÇO

Mergulhar as galochas nas grandes


poças de chuva abaixo da berma dos passeios
como peixes de águas paradas e
experimentar a alegria irrazoável
dos pequenos interditos

inalar fundo o cheiro


da chuvada de verão sobre a terra seca e não
resistir a rabiscar um poema
banal e cheio de sinestesias
e reflexões cósmicas

ouvir deitada o ruído


do despenhar líquido percussão e eco já
orquestrados de há muito
por outros telhados de outras cidades com chuva

Regressas agora à pequena Ítaca


no tapete do quarto.
ANOTHER BRICK IN THE WALL (Pink Floyd)

INÊS LOURENÇO

Éramos pequenas batas brancas. Só


algumas tinham monograma bordado e fechavam atrás com um laço. Muitas
imitavam batas adultas sem laço para poupar tecido. A professora
primária era uma velha fascista que dava bofetadas
às meninas mais pobres se faziam cinco erros
no ditado e nunca tocava na filha do dono da pastelaria
nem na sobrinha do inspector. Obrigava-nos a rezar o terço
antes das aulas e aprendíamos junto
com a prova dos nove e os rios das Colónias
a humilhar os mais fracos a ser bajuladoras e hipócritas
a zombar dos diferentes a decorar sem compreender. Tínhamos
na parede acima da secretária o nosso Salvador
que não nos salvava daquela harpia
bem assessorado por outro que nos tinha vindo salvar da ruína
republicana com um presidente de dragonas militares que cortava
fitas. Entre 40 meninas só 5 fizeram admissão ao liceu. A maioria
foi para aprendiza de costura, sopeira ou criar os irmãos mais novos, que era tudo
que A Bem da Nação nos era oferecido. Nem
sequer tínhamos a nobreza humilde de um tijolo no muro. Éramos
a inocente terra calcada na base do muro. E
vinha longe o tempo de cantar:
Teacher leave them Kids alone!
DÉCADAS

INÊS LOURENÇO

As meninas da minha década


se eram magrinhas e tinham cabelos lisos
eram meninas feias. Porque
a beleza infantil era redonda e com muitos caracóis
loiros de preferência. As meninas da minha década
gostavam de histórias de fadas e bruxas más e
brincavam às casinhas à cabra-cega e à
minha mãe dá licença. As mais burguesas
tinham uma boneca vinda de Paris
que dizia papá e mamã. As mais pobres iam
buscar cinco tostões de ossos ao talho para a sopa
ou uma posta de bacalhau de molho à mercearia. Muitas
ceavam castanhas cozidas
ou umas papas de nabiças. Os rapazes
eram um continente distante
sempre ruidosos e bruscos
mas pressentidos como algo intransponível no mundo

As meninas da minha década obedeciam


às mães às tias às irmãs mais velhas
às professoras às catequistas às madrinhas. Sempre
uma cadeia de poderes e obediências
que era pecado infringir. Usavam
todos os dias saia abaixo do joelho
porque calças eram só deles. Faziam
jantarinhos a fingir e punham uma pétala
amarela na sertã de brincar como
um ovo estrelado. Aprenderam
a valsa o tango e o pasodoble
e algumas ficaram a sofrer de espondilose
para fugir dos relevos do par
As meninas da minha década
fizeram vinte anos nos anos 60. Descobriram
o rock e o twist. Leram Simone de Beauvoir
e mandaram às malvas as exigências
de virgindade e demais preceitos misóginos. Algumas
dedicaram a vida a conspirações políticas
contra os ditadores sabujos e
muitas arriscaram abortos clandestinos e outras misérias
do domínio patriarcal. Puderam finalmente
usar saias acima do joelho soltar os cabelos e adoptar
a interdita peça masculina depois multiplicada
em jeans

Hoje duas décadas passadas


no século vinte e um sem ditadores nem cabra-cega
dedico este poema
às meninas das décadas por vir.

INÊS LOURENÇO
Nasceu no Porto, onde reside e se licenciou em LLM (Estudos Portugueses),
na FLUP. Publica desde 1980 cerca de 13 títulos de poesia e dois de
microficção, em editoras como Limiar, Asa, Companhia das Ilhas, entre
outras. Colaborou em inúmeros livros colectivos e revistas nacionais e de
outras línguas. Uma antologia, organizada e posfaciada pelo poeta
Ronaldo Cagiano, dedicada à sua poesia, saiu no Brasil em 2019, editado pela
Jaguatirica, Rio de Janeiro, sob o nome Os Pecados Predilectos. Fundou em
1987 os Cadernos de Poesia HÍFEN, onde durante 10 anos participaram com
inéditos poetas nacionais e de outros idiomas.
Haicais 1

Rubens Shirassu Júnior

Flor amarela
na ponta do galho
acenando para o abismo.

Dói ardido
(dentro do vaso)
pingos de lírio.

Nas malhas da rede,


a aranha pende
sobre o xadrez, a luz.

Pintar estrelas no muro


tem o céu
ao alcance das mãos.
Para meu pai Rubens Shirassu
(in memoriam)

Rubens Shirassu Júnior

Vela sobre a terra


raiz que se esvai
orvalho na pedra.

Árvore caída
verde vira amarelo
última cor de vida.

Coroa Imperial
veste delicada
sob o chão de finados.

Rubens Shirassu Júnior,

escritor, pesquisador, poeta, ensaísta e pedagogo, de Presidente Prudente, São Paulo. Autor, entre outros, de
KamiQuase Haicais, Guaratinguetá, São Paulo, 2014. Sete livros lançados, entre os gêneros relatos de viagem,
crônica, ensaio, artigo e poesia. Seu poema “O reino do interno” foi interpretado duas vezes, no programa
Provocações de Antônio Abujamra, na TV Cultura, canal 2, São Paulo. Publicou quatro haicais na revista
literária virtual Arvoressências, da comunidade brasileira de Paris. Teve o artigo “Na ponta da língua dos
escritores” citado na tese de doutorado Comidas, prazeres, gozos e transgressões, de Angelina Bulcão
Nascimento, Editora Universidade Federal da Bahia (Edufba) 2007, Salvador, Bahia.
Massas humanas
atravessam terras
e oceanos em retirada
bíblica.

O mar avermelha a terra,


mas não se abre
como nos tempos de Jacó
e Moisés

Corpos caminham
corajosamente
na trilha de um mesmo
deserto
imaginário.

Charlton Heston, do alto


da montanha, contempla,
desolado, a planície.

12/08/2017

Joaquim Branco

Poeta, ficcionista, professor de literatura, nasceu em Cataguases. Tem 34


livros publicados e poemas espalhados pelo mundo. Editor de jornais e
revistas na época da Contracultura. Pretende lançar em junho o livro de
poemas "Zona de Conflito".
Refúgio

Helen Massote Carvalho

Ao meu pai

Há quanto tempo
me perdi
abraçada enroscada
naquela cintura
grossa e de
barriguinha
nadando comigo
que não sabia
nadar nem ele
mas me levou
até a margem
Bons tempos!
tristeza é uma
falta que o
tempo não
desfaz
Mas a gente dá
uma colher
de chá
chamando apenas
de saudade
Novelo

Helen Massote

Ao Antônio Jaime

Sei de um livro
que todo mundo
conhece mas
que nunca
saiu depois
inda falam
que a gente
inventa conversa
mentira, que
às vezes é
difícil de
contar
Mas que é
verdade
há notícias
alguém já leu
e outro alguém gostou
um dia ele aparece
para além da

memória
com seus versos
suas prosas
e nossas manhas
Um dos pés do sol
se espraiando pelas ruas
e o luar amassado
por testemunha.
Mooca

Helen Massote

Ao Padre Júlio Lancellotti

Escrevo essas tortas


linhas como quem
optou em ser gauche
na vida ando por
muitas esquinas
apinhadas de
multidões invisíveis
estamos a um
passo do abismo
não é melhor
deixar que o padre
caia sozinho?

Helen Massote

Helen é poeta e publicitária.


Trabalha na Fiocruz e é uma das editoras da Chicos.

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