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Revista

Brasileira fa s e i x
• A B R I L - M AI O - J U N H O 2 0 2 0 •

a no i i I • n . ° 1 0 3
A c a d e m i a B ra s i l e i ra R e v i s ta B ra s i l e i ra
d e L e t ra s 2 0 2 0
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Tarcísio Padilha, Zuenir Ventura. ISSN 0103707-2

As colaborações são solicitadas.

Os artigos refletem exclusivamente a opinião dos autores, sendo eles também responsáveis
pela exatidão das citações e das referências bibliográficas de seus textos.
Transcrições feitas pela Secretaria Geral da ABL.

Esta Revista está disponível, em formato digital, no site www.academia.org.br/revistabrasileira.


Sumário
Cicero Sandroni
Apresentação 7

EN S AIO
Celso Lafer
Uma análise de percursos complementares: Antonio Candido, Helio Jaguaribe e Rubens Ricupero 9
Glauber de Oliveira
A Poesia de Geraldo Holanda Cavalcanti 21
Arnaldo Niskier
Cecília Meireles e a Educação 25
Antonio Carlos Secchin
O nome sob o nome 33
Marcos Estevão Gomes Pasche
Raio sobre tela: crítica de arte na poesia de Ferreira Gullar 37
Luiz Guilherme Ribeiro Barbosa
Fevereiro de 1957 – Notas para um ou dois poemas de Ferreira Gullar inéditos em livro 45
Andrea Almeida Campos
Edwiges de Sá Pereira: Uma feminista vitoriana na primeira metade do século XX 59
Peron Rios
Mário Faustino, Camões e o sopro da utopia 71
Paulo Franchetti
Bandeira: vida & verso 79
Sérgio Alcides
Um pouco de Grécia na literatura nacional 91

EN TREVISTA
Alberto da Costa e Silva  103
Antônio Torres  113
João Almino  119

POESIA
William Soares dos Santos  125
Leonardo Antunes  133
Mariana Ianelli  141
Emmanuel Santiago  159

CONTO
Angelo Davila
Ladrão roubado 169
Juan José Arreola
O guarda-freios 177
Lewis Nkosi
O preso 183
Marcos Konder Reis
O menino de Copacabana 195
Esta a glória que fica, eleva, honra e consola.
Machado de Assis
Apresentação

Cicero Sandroni
Ocupante da Cadeira 6 na Academia Brasileira de Letras.

N
esta edição n.o 103 da Revista Bra- cista, integrante do grupo da Escola Nova.
sileira, publicamos ensaio de Celso que revolucionou o ensino no Brasil.
Lafer, Cadeira 14 da ABL, ex-minis- Antonio Carlos Secchin, Cadeira 19 da
tro do Exterior, jurista e pensador, sobre os ABL, poeta, ensaísta e historiador literário,
problemas brasileiros: “Uma análise de per- nos oferece seu discurso como recipien-
cursos complementares”. Em texto límpido, dário na Academia de Ciências de Lisboa,
Lafer estuda a obra de Antonio Candido, setor de Letras, em sessão sob a presidên-
mestre fundamental da literatura brasileira, cia de Artur Anselmo, e que contou com
ao lado de análises dos ensaios do pensador a presença de inúmeros acadêmicos portu-
Hélio Jaguaribe, 9.o ocupante da Cadeira 11 gueses. Foi recebido por António Valdemar,
da ABL, sociólogo que liderou uma geração que é Sócio Correspondente da Academia
de intérpretes do Brasil, e de Rubens Ricu- Brasileira de Letras.
pero, diplomata com vasta experiência nas No correr das páginas, Marcos Estevão
lides da República e representante do Brasil Gomes Pasche escreve artigo em que lem-
na cena internacional. bra outra face da personalidade múltipla do
Segue-se texto de Glauber de Oliveira poeta Ferreira Gullar, que foi o 7.o ocupante
sobre a obra do embaixador Geraldo Ho- da Cadeira 37 da ABL: a de crítico de arte,
landa Cavalcanti, Cadeira 29 da ABL, tam- em “Raio sobre tela: crítica de arte na poe-
bém poeta e ficcionista, autor de obra com sia de Ferreira Gullar”, que cai como um
estudo e tradução do Cântico dos cânticos. raio iluminado sobre sua obra.
No próximo texto, o acadêmico Arnal- Ainda sobre Ferreira Gullar, Luiz Guilher-
do Niskier, Cadeira 18 da ABL, jornalista e me Ribeiro Barbosa escreve “Fevereiro de
educador de destaque no cenário nacional, 1957 – Notas para um ou dois poemas iné-
traça mosaico luminoso sobre a humanista ditos em livros”.
Cecília Meireles, tendo por base sua atuação Andrea Almeida Campos assina o ensaio
na educação, sem esquecer a Cecília poeta, “Edwiges de Sá Pereira: Uma feminista vito-
artista plástica, cronista, jornalista, conferen- riana na primeira metade do século XX”.
8  •  Cicero Sandroni

A seguir Peron Rios escreve sobre poeta Nas Entrevistas, depoimentos de: Alberto
de alta cultura que nos deixou em plena da Costa e Silva (Cadeira 9 da ABL), Anto-
juventude: “Mário Faustino, Camões e o so­ nio Torres (Cadeira 23 da ABL) e João Almi-
pro da utopia”. no (Cadeira 22 da ABL).
Paulo Franchetti, no artigo “Bandeira: vida Na Poesia: William Soares dos Santos,
& verso”, aborda um poeta pedra de toque Leonardo Antunes, Mariana Ianelli e Emma-
na cultura brasileira: nascido no Recife, “na nuel Santiago.
Rua da Ventura/ colegial na da Sole­dade”, Na Ficção: contos de Angelo Davila (La-
na juventude veio para o Rio, mas queria ir drão roubado), Juan José Arreola (O guar-
“pra Pasárgada”, onde era amigo do Rei. da-freios), Lewis Nkosi (O preso) e Marcos
Sérgio Alcides contribuiu com o ensaio Konder Reis (O menino de Copacabana).
“Um pouco de Grécia na literatura nacional”. Boa Leitura.
ENSAIO

Uma análise de percursos


complementares: Antonio Candido,
Helio Jaguaribe e Rubens Ricupero
Celso Lafer
Ocupante da Cadeira 14 na Academia Brasileira de Letras.

I (1849-1910), que não só se dedicou como


homem público à Abolição da escravatura,
José Bonifácio de Andrada e Silva (1763- como também identificou na superação do
1838), o patriarca de nossa Independência, legado da escravidão um problema funda-
inaugurou uma linhagem de pensadores e mental, a ser superado para a efetiva retifi-
homens de ação que na vida brasileira se cação dos desacertos da sociedade brasileira.
dedicaram a refletir sobre os rumos do Bra- O papel próprio da palavra do intelec-
sil. Em seus múltiplos ‘projetos’ para o país, tual público voltado para articular rumos
José Bonifácio, com sua envergadura de es- e propiciar conhecimentos com o objeti-
tadista, seus conhecimentos do Brasil e sua vo de efetivar diretrizes necessárias para a
sólida formação teórica, adquirida no perío- gestão de sociedades secularizadas não é
do em que viveu em Portugal e em centros uma peculiaridade brasileira. É uma tarefa
europeus de relevo, elaborou uma visão de que usualmente emerge com a percepção
futuro para a nova nação. Cumpriu assim, aguda das imperfeições de uma sociedade.
com qualidade, uma tarefa de intelectual pú- É a preocupação com o destino de Portugal
blico no momento inicial do nation-building que anima a geração de 70, no século XIX,
do país. Foi, aliás, o que fizeram, na Argen- e Antonio Sergio, no século XX.
tina do século XIX, em outro contexto e A mensagem de Oliveira Martins, como
em circunstâncias diversas, Juan Bautista destaca Guilherme d’Oliveira Martins,1 se-
Alberdi e Domingo Faustino Sarmiento, guidor de seu legado, foi, como pedagogo
e também na América Latina, a partir do e homem público, abrir horizontes, afastar
Chile, Andrés Bello. as ilusões do atraso e da ignorância, e pos-
O andar da História revelou significativas sibilitar um apropriado e renovado lugar
imperfeições da arquitetura do Brasil. É um no mundo para um país de grandeza his-
dado que explica a continuidade da linhagem
1 Cf.Martins, Guilherme d'Oliveira. O essencial sobre Oli­
inaugurada por José Bonifácio. Entre seus veira Martins. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moe-
muitos sucessores, lembro Joaquim Nabuco da, 2003.
Conferência “Leituras do Brasil” realizada na Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, em 14 de janeiro de 2020.
10  •  Celso Lafer

tórica como Portugal, resgatando em novos Nesta conferência, vou tratar das lei-
moldes “o olhar mundo” lusitano dos des- turas do Brasil de Antonio Candido, Helio
cobrimentos de que fala Eduardo Lourenço. Jaguaribe e Rubens Ricupero, cuja impor-
Faço estas considerações preliminares tância vou destacar, beneficiado pela me-
para dar uma moldura geral de minha con- lhor familiaridade que tenho com seus per-
ferência. Ortega y Gasset, em El tema de cursos, sobre os quais escrevi no correr do
nuestro tiempo,2 apontou que toda gera- tempo, com um conhecimento instigado
ção tem uma sensibilidade própria que a pela convergência de múltiplas afinidades e
caracteriza, independentemente de suas pelos afetos da amizade.
especificidades e diferenças. Ela se expressa
em sua lida com ideias, valores e instituição
que recebeu da geração que a antecedeu e II
no subsequente desafio de ir elaborando as
Antonio Candido (1918-2017) foi uma
características próprias de seu percurso na
das grandes referências intelectuais do Bra-
sensibilidade de sua perspectiva.
sil. Teve o reconhecimento de nosso mundo
No Brasil da década de 1950, uma notá-
luso-brasileiro ao receber, em 1998, o Prê-
vel geração de intelectuais, com atuação no
mio Camões. São de indiscutível enverga-
debate público, dedicou-se a pensar o país
dura suas contribuições para o entendimen-
e seu futuro. Tiveram como ponto de par-
tida o que escreveram na década de 1930, to do país, de sua literatura e do fenômeno
a partir de distintos olhares, Gilberto Freyre, literário.
Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Foi um notável professor de Teoria Lite-
Jr., os ’clássicos’ das leituras do Brasil desse rária e de Literatura Comparada da Faculda-
período. de de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Trata-se de uma geração que, a partir do da USP. Suas aulas eram uma obra de arte,
patamar do conhecimento recebido da que como posso dar o testemunho de antigo
a antecedeu, procurou, à sua maneira, as aluno. Sua capacidade de discernimento de
chaves para o entendimento e os caminhos matizes e sua “paixão pelo concreto” fize-
da “ideia a realizar” das transformações da ram dele um crítico literário de vertentes,
arquitetura imperfeita do país. Tem como sempre atento, em sua análise e juízos re-
tema compartilhado o Brasil – sua formação flexivos, à especificidade de cada obra.
e seu destino político, econômico e cultural. Transformou-se, no decorrer de sua
Integram essa geração figuras eminentes existência, em uma grande presença na
como Celso Furtado, Roberto Campos, Ray- vida brasileira, dotada de auctoritas. Sua
mundo Faoro, Darcy Ribeiro, Florestan Fer- palavra, quando ele se manifestava – pois
nandes, Antonio Candido, Helio Jaguaribe não tinha a vocação da militância política
e também Rubens Ricupero, que é de uma ativa –, tinha peso em função da limpidez
geração mais moça, mas cujo pensamento de sua conduta ética e de seu empenho em
se vincula a figuras que acima indiquei. ser justo no trato com as pessoas e das si-
2 Ortega y Gasset, José. El tema de nuestro tiempo. 13. tuações – uma faceta que subjaz à maneira
ed. Madri: Revista de Occidente, 1958. de proceder de seu “ser socialista”.
U ma análise de percursos complementares : A. C andido , H. J aguaribe e R. R icupero   •  11

Afonso Arinos, celebrando seus sessen- artísticas. Com sensibilidade ex parte popu-
ta anos, qualificou-o como um grande mes- li, formula o direito erga omnes à literatura,
tre, que amadureceu no exercício de sua embasando-o como indispensável à forma-
maestria por “uma serenidade sem frieza, ção humana, pois arte e literatura são incom-
uma tolerância sem concessões, uma firme- pressíveis e não se circunscrevem às necessi-
za sem rusticidade”.3 dades materiais. Respondem às necessidades
O estilo de sua prosa, em seu jogo entre profundas do ser. Literatura, afirma Antonio
ordem e movimento, é uma expressão da Candido, é uma atividade sem sossego. Não
qualidade de sua visão, assim como, em ou- corrompe nem edifica. Traz livremente o que
tro registro, o coloquial de sua encantadora chamamos de bem e o que chamamos de
conversa, sempre bem temperada de ’estó- mal. Humaniza em sentido profundo porque
rias’ e reminiscências. Disso dá testemunho faz viver, no trato da complexidade contradi-
nosso amigo Guilherme d’Oliveira Martins, tória de cada um de nós.
em seu texto “Com Antonio Candido em Falando em Portugal, não posso deixar
São Paulo”.4 de mencionar o último livro publicado de
Este é um rápido esboço do perfil do Antonio Candido, O albatroz e o chinês
autor de Formação da literatura brasileira: (2004),7 sobre o qual também escrevi como
momentos decisivos 1750-1880 (1959).5 seu devotado admirador e amigo. Na se-
O leitor português tem acesso mais fácil à gunda parte dele, dedica-se à análise da
diversidade da obra de Antonio Candido com recepção das obras de Eça de Queiroz, Oli-
a publicação por uma editora de Coimbra, veira Martins e Guerra Junqueiro no Brasil.
em 2004, do livro O direito à literatura e ou- Estuda a relevante atuação cultural dos
tros ensaios.6 O texto “O direito à literatura”, intelectuais portugueses que viveram em
que examinei em mais de uma oportunidade terras brasileiras em função do salazarismo,
seguindo o tema arendtiano do “direito a ter de muitos dos quais foi próximo, entre eles,
direitos”, parte, em termos próprios, do prin- particularmente, Jorge de Sena. Na argú-
cípio da igualdade e da não discriminação – cia de sua crítica de vertentes, avalia com
ponto de partida do papel dos direitos huma- originalidade A ilustre casa de Ramires, de
nos para a qualidade da convivência coletiva. Eça de Queiroz, e A brasileira de Prazins, de
Destaca a liberdade como a autonomia do Camilo Castelo Branco.
aperfeiçoamento do ser humano, nela fun- As limitações de tempo não me permi-
damentando a liberdade das manifestações tem expandir minhas considerações sobre a
abrangência da obra de Antonio Candido.
3 Franco, Afonso Arinos de Melo. “Depoimento”. In: Vou cingir-me, porque é o pertinente para
Arinos, Afonso et al. Esboço de figura: homenagem
a Antonio Candido. São Paulo: Livraria Duas Cidades, esta conferência, à já mencionada Formação
1979, p. 37. da literatura brasileira, um livro de “sete fô-
4 In: Martins, Guilherme d'Oliveira. Portugal: identidade

e diferença – Aventuras da memória. Lisboa: Gradiva, legos”, como o qualifica Roberto Schwarz.8
2007, pp. 215-219.
5 Candido, Antonio. Formação da literatura brasileira: 7 Idem. O albatroz e o chinês. 2. ed. ampl. Rio de Janei-
momentos decisivos 1750-1880. 16. ed. Rio de Janeiro: ro: Ouro sobre Azul, 2010 [1. ed.: 2004].
Ouro sobre Azul, 2017 [1. ed.: 1959]. 8 Schwarz, Roberto. “Os sete fôlegos de um livro”. In:
6 Idem. O direito à literatura e outros ensaios. Coimbra: Sequências brasileiras. São Paulo: Companhia das Le-
Angelus Novus, 2004. tras, 1999, pp. 46-58.
12  •  Celso Lafer

Octavio Paz considera que as literaturas fato cultural, de cariz político. Articula-se
das Américas são literaturas de fundação. como um sistema que resulta da presença
Nascem da expansão do universo econô- de autores mais ou menos conscientes de
mico, cultural, linguístico, demográfico, in- seu papel fundacional; de diferentes tipos
clusive nas vertentes utópicas, da Europa e de público, sem os quais uma obra não vive
a ela se contrapõem para, na lida com as – é apenas uma “manifestação literária”
realidades concretas do Novo Mundo, ir en- isolada –; e das obras que se ligam umas
gendrando uma tradição própria, distinta às outras e, na variedade de seus estilos e
das matrizes europeias, em nosso caso, a propostas, vão se interconectando por pro-
matriz lusitana.9 cessos de adensamento recíprocos.12
Antonio Candido esclareceu uma face- Os momentos decisivos da formação do
ta da adaptação dos padrões estéticos da sistema na periodização de Antonio Candi-
Europa ao desafio das condições físicas e do começam em 1750 e se estendem até
sociais do Novo Mundo, ao destacar que o 1880. Articulam-se como fruto da intera-
enfrentamento da realidade nas manifesta- ção de obras com um público que começa
ções literárias iniciais no Brasil teve como a se formar no século XVIII. Consiste em
característica atribuir sentido alegórico à uma síntese das tendências particularistas e
flora e de magia à fauna. Foi um meio de universalistas que ele examina com seu do-
compensar a pobreza dos recursos e das mínio da literatura comparada. Daí o não
realizações, transpondo-as para a escala provincianismo de Formação e a dialética
do sonho ao dar transcendência a coisas, de complementaridade que Antonio Candi-
fatos e pessoas. Daí a predileção da poesia do aponta entre o Iluminismo dos neoclás-
pela prosopopeia, isto é, a humanização da sicos autores do Arcadismo (por exemplo,
natureza que fala ao homem, cujo exemplo Cláudio Manuel da Costa) e os românticos
inaugural é a obra Prosopopeia (1600), de (por exemplo, Gonçalves Dias, Castro Alves,
Bento Teixeira Pinto. Em suas palavras: “É José de Alencar), os quais, tendo partido
como se o gigantismo e a inospitalidade da dos árcades, se beneficiaram da vocação do
terra se acomodassem aos desejos do colo- Romantismo para, ao afirmar as singulari-
nizador, que deste modo a incorpora frater- dades, dar voz na poesia e na prosa à pro-
nalmente ao universo dos seus sonhos”.10 posta de autonomia da literatura brasileira.
A independência instigou a dimensão Em poucas palavras, um país independente
fundacional da literatura brasileira. Expres- passou a possuir uma literatura indepen-
sa, nesse sentido, como diz Antonio Candi- dente, com seus temas e visões do Brasil.
do, uma “história dos brasileiros no seu de- A concepção de um sistema, que leva
em conta a relação literatura e sociedade,
sejo de ter uma literatura”.11 Trata-se de um
um dos tópicos recorrentes do percurso de
9 Paz, Octavio. “Literatura de fundación”. In: Obras
Antonio Candido, é a moldura de abran-
completas. Barcelona: Círculo de Lectores; México: gência, erudição e acuidade com a qual
Fondo de Cultura Económica, 1994, v. III, pp. 43-48. Formação estuda e analisa as obras e os
10 Candido, Antonio. “Literatura de dois gumes”. In: A

educação pela noite. 5. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre autores dos momentos decisivos de sua
Azul, 2006, p. 205.
11 Idem. Formação da literatura brasileira, op. cit., p. 27. 12 Idem, ibid., p. 25.
U ma análise de percursos complementares : A. C andido , H. J aguaribe e R. R icupero   •  13

periodização. Decorridas tantas décadas de sa produção, existem, a partir do paradigma


sua publicação, esse livro e suas interpreta- representado por Machado de Assis, picos
ções retêm plena atualidade para apreender de excelência na poesia (por exemplo, Car-
o Brasil e a especificidade de sua literatu- los Drummond de Andrade, João Cabral de
ra. Cabe registrar que, no work in progress Melo Neto) e na prosa (por exemplo, Gra-
posterior à Formação, Antonio Candido fez ciliano Ramos, João Guimarães Rosa), que
instigantes e originais análises das obras e conferem à literatura brasileira do século
autores que nela examinou. XX uma presença de destaque na literatu-
Trata-se de uma grande interpretação ra universal, mais circunscrita, no entanto,
do tema da formação do Brasil, uma das porque o português não é uma língua de
grandes preocupações, como mencionei, circulação internacional, como no passado
da geração de intelectuais públicos brasilei- foi o latim e é hoje o inglês. É, no entanto,
ros que começaram a publicar na década de uma língua universal, como observou Fer-
1950. No entanto, em sua maioria, identifi- nando Pessoa, pois é capaz, em sua flexibi-
caram na formação do Brasil as raízes dos lidade, de responder na íntegra a todas as
desacertos da arquitetura do país. Antonio formas de expressão possíveis.15 Guilherme
Candido compartilha com seus companhei- de Almeida esclarece a dicotomia universal/
ros de geração uma efetiva visão crítica internacional da língua comum que nos une
em relação às injustiças e imperfeições da ao afirmar, com sensibilidade de poeta, o
sociedade brasileira e a “ideia a realizar” repertório da “capacíssima língua nossa,
de sua superação. Analisa, nesse sentido, de pequeno curso e grandes recursos, que
como a consciência do subdesenvolvimento tão bem sabe dizer, e de que tanto mal
do país, na literatura brasileira a partir do se diz”.16
decênio de 1930, expressa esteticamente
múltiplos inconformismos com nossa arqui-
tetura imperfeita.13 Isso, no entanto, não III
afetou o campo do conhecimento de que
Helio Jaguaribe (1923-2018) foi, em sua
trata Formação da literatura brasileira, que
trajetória, uma personalidade generosa,
se tornou um fato cultural consolidado e de
solar e republicana. Representou em nosso
boa qualidade, dotado da especificidade de
país uma encarnação específica da razão
uma autonomia própria.
vital ortegueana em sua dupla função de
Iniciação à literatura brasileira (1997)14
orientar nossa vida no mundo e de orientar-
é uma primorosa e atualizada síntese das
-nos no entendimento do mundo em nossa
ideias de Formação, complementada com
vida, para recorrer à sua própria formulação
uma análise do consolidado sistema literá-
de leitor atento da obra de Ortega y Gas-
rio brasileiro, que abrange a produção dos
set. “Compreender o nosso tempo na pers-
autores e obras até a década de 1950. Nes-
pectiva do Brasil” e “compreender o Brasil
13 Cf. “Literatura e subdesenvolvimento”. In: A educa-
ção pela noite, op. cit., pp. 169-191. 15 Cf.A língua portuguesa. Org. de Luiza Medeiros. São
14 Candido, Antonio. Iniciação à literatura brasileira. Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 149.
4. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004 [1. ed.: 16 Almeida, Guilherme de. Flores das Flores do mal de

1997]. Baudelaire. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2010, p. 98.


14  •  Celso Lafer

na perspectiva do nosso tempo” foi o lema A obra de Helio é a mais abrangente


que formulou em 1953 para a revista Ca- de sua geração. Não cabe, nos limites des-
dernos do Nosso Tempo, que fundou e di- ta exposição, examiná-la em sua amplitu-
rigiu. Daí a dialética de complementaridade de, de que é um exemplo a coletânea de
entre o nacional e o universal que permeia seus ensaios reunidos em Brasil, mundo e
sua leitura do Brasil, como, aliás, a de For- homem na atualidade (2008).17 Vou limitar-
mação. Tem como horizonte o conhecimen- -me a aspectos relevantes de sua leitura do
to do país e a preocupação constante com a Brasil. Não quero deixar de mencionar, no
“ideia a realizar” de seu futuro. entanto, que, no campo de suas incursões
No cogito de Helio, associam-se, para de fôlego na Sociologia da História, insere-
lembrar Hannah Arendt, o thinking do lo- -se Um estudo crítico da História (2001).18
gos, na abrangente busca do entendimento Nesse ambicioso livro, estuda dezesseis ci-
das coisas, e a inquietação do willing, da vilizações principais no âmbito das quais se
voluntas, no embate com a resistenciabili- empenha em elucidar as facetas que leva-
dade da realidade. Logos e voluntas estão ram a sua emergência e que asseguraram
balizados por compromissos éticos, cívicos e/ou comprometeram sua sustentabilidade.
e republicanos, ou seja, há um ethos que Subjaz a esse livro o tema recorrente do pre-
baliza sua reflexão. A vita activa de Helio, sente e do futuro do Brasil.
como um intelectual público, esteve volta- Também, falando em Lisboa, não quero
da com brio tanto para indicar rumos – no deixar de registrar, como escreveu Alvaro
sentido de ‘direção’ – quanto para propi- Vasconcelos, o afetuoso apreço que Helio
ciar conhecimentos – meios para sua efe- tinha pelas coisas portuguesas, de Camões
tivação. Em sua obra, nas instituições que ao queijo da Serra, e a importância que
criou, como o Instituto Superior de Estudos atribuiu à convergência cooperativa entre
Brasileiros (ISEB), em seus artigos e interven- Portugal e Brasil no contexto renovado da
ções, empenhou-se em explicar e clarificar redemocratização, da acessão lusitana à
o porquê e como promover a racionalidade União Europeia, das perspectivas da luso-
do desenvolvimento, tanto como processo fonia e do que isso pode oferecer para a
quanto como projeto, destinado a ampliar ordem mundial.19
democraticamente, com liberdade e igual- Helio, no mundo das ideias, foi um
dade, o poder do controle da sociedade pensador que, por aproximações sucessi-
brasileira sobre seu destino. vas, com empenho de scholar, sistemati-
O impacto de Helio na opinião pública zou e desenvolveu, numa densa obra, as
teve muito a ver com o vigor e o entusiasmo percepções e intuições originárias de sua
de sua razão vital, com a fulgurante inte-
17 Jaguaribe, Helio. Brasil, mundo e homem na atualida-
ligência de seu poder de síntese e a origi- de. Brasília: FUNAG, 2008.
nalidade contagiante de suas formulações. 18 Idem. Um estudo crítico da História. Rio de Janeiro:

Paz & Terra, 2001.


Em poucas palavras, com seu estilo afeito à 19 Cf. Vasconcelos, Álvaro. “Brasil, Portugal e a Euro-

frequentação das boas letras e que, como pa – as raízes e o projeto”. In: Alberto Venancio; Israel
Klabin; Vicente Barreto (Org.). Estudos em homenagem
todo estilo, como dizia Proust, expressa a a Helio Jaguaribe. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2000,
qualidade de uma visão. pp. 39-45.
U ma análise de percursos complementares : A. C andido , H. J aguaribe e R. R icupero   •  15

razão vital. É o que ocorre com suas leitu- peculiaridades nacionais. É um meio para
ras do Brasil, que são um contínuo work in atingir um fim: o desenvolvimento.22 Na
progress. dialética das ideias e das posições que pro-
O nacionalismo é um dado da realidade põe, o nacional é o movimento dialógico da
política dos países que retêm significado e diferença que há do ser crítico em sua inte-
alcance que se prolongam no cenário con- ração com o universal, para não se petrificar
temporâneo. Permanece, por isso mesmo, no imobilismo zelotista de um nacionalismo
na pauta dos desafios da teoria política, de meios. A dicotomia nacionalismo de
aguçado pelos impactos da era da globa- fins/nacionalismo de meios deu à reflexão
lização, que internalizou o mundo na vida de Helio uma abertura intelectual­ mente
dos países.20 heurística em suas análises subsequentes
Helio enfrentou o tema em O naciona- dos desafios do desenvolvimento e dos ca-
lismo na atualidade brasileira (1958),21 seu minhos da inserção internacional do Brasil,
primeiro livro de fôlego, que teve grande como sublinhei em um texto sobre a visada
repercussão no Brasil. Elaborou-o na pers- de sua obra.23
pectiva do país no mundo, muito atento ao Seu livro subsequente é Desenvolvimen-
papel do nacionalismo no debate político to econômico e desenvolvimento político
brasileiro da década de 1950, um debate (1962).24 Na primeira parte, Helio discute
que, em novos moldes, está presente na como se imbricam desenvolvimento econô-
sociedade brasileira e que expressa as aspi- mico e organização política, identificando,
rações das condições de autonomia do país. no incremento da racionalidade pública, o
Esse é um tema recorrente em sua leitura nexo entre a vertente econômica e a políti-
do Brasil. ca de desenvolvimento. Na segunda parte,
A primeira parte do livro está dedicada à procede a uma sintética avaliação histórica
análise teórica do nacionalismo como fenô- do Estado e da economia brasileira para
meno histórico e social e o alcance de sua vis
apontar a relevância de um nacionalismo
directiva como rumo para o desenvolvimen-
desenvolvimentista.
to do país. A segunda parte examina os pro-
O inóspito clima político implantado
blemas concretos que suscitava esse rumo,
pelo regime autoritário de 1964 para a livre
em relação à questão do petróleo, do capital
discussão das ideias levou um “intelectual
estrangeiro, e conclui com uma análise da
público” como Helio a um auto­exílio nos
policy de visada estratégica, sobre os melho-
Estados Unidos. Foi um período em que le-
res caminhos da política exterior brasileira.
cionou em grandes universidades america-
Nesse livro, Helio formula sua perspecti-
nas (Harvard, MIT, Stanford). Da experiência
va própria do nacionalismo, à qual foi dan-
do prosseguimento no correr de sua obra. 22 Idem, ibid., pp. 52-53.
É um nacionalismo de fins e não de meios. 23 Cf. Lafer, Celso. “Zelotismo/Herodianismo na refle-
xão de Helio Jaguaribe”. In: Lima, Sérgio Eduardo Mo-
Não é uma afirmação autocentrada de reira. (Org.). Visões da obra de Helio Jaguaribe. Brasília:
FUNAG, 2015, pp. 27-43.
20 Cf. Canovan, Margaret. Nationalism and Political 24 Jaguaribe, Helio. Desenvolvimento econômico e de-

Theory. Cheltenham: Edward Elgar, 1996. senvolvimento político: uma abordagem teórica e um
21 Jaguaribe, Helio. O nacionalismo na atualidade brasi- estudo do caso brasileiro. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Paz
leira. Rio de Janeiro: ISEB, 1958. & Terra, 1969 [1. ed.: 1962].
16  •  Celso Lafer

intelectual dessa época, provêm Political Um dado da maior importância para a


Development (1973) e, subsequentemen- aspiração da autonomia de um país é seu
te, Introdução ao desenvolvimento social potencial de viabilidade.27 Viabilidade na-
(1978).25 cional é assim uma das categorias que,
Nesses dois livros, estão presentes o co- como condição do desenvolvimento po-
nhecimento da História brasileira; a política lítico, ele examina em suas múltiplas dis-
comparada; o uso sincrônico e diacrônico cussões relacionadas à “nossa arquitetura
da experiência de outros países na análise imperfeita”, ao traçar rumos e apontar
das perspectivas brasileiras; as contribui- conhecimentos-meio, necessários para re-
ções da ciência política norte-americana; o tificá-la. Corresponde ao que os ’realistas’
diálogo com os clássicos; os grandes pen- qualificam, conforme observa Gelson Fon-
sadores europeus e os estudiosos latino- seca Jr., como um adensamento dos “fun-
-americanos e brasileiros. Disso resulta, no damentos do poder nacional”.28 Diz respei-
trato das mudanças, necessárias para lidar to a um mínimo crítico de recursos naturais
com nossa arquitetura imperfeita, uma ela- e humanos, condicionados pelas exigências
borada concepção funcional-dialética das científico-tecnológicas de cada época, por
sociedades, das variáveis de participação e lideranças e pelas circunstâncias históricas.
institucionalização de seus sistemas políti- É o alargamento desses fundamentos que
cos, do papel das lideranças e das congru- está ao alcance do Brasil que caracteriza a
ências ou incongruências entre o social, o visão de Helio como “intelectual público” e
econômico, o cultural e o político. seu nacionalismo de fins.
Daí, no contínuo work in progress da O Brasil está inserido no mundo e não é
reflexão de Helio, o papel que teve o alar- uma grande potência. Por isso, o comple-
gamento pluralista do mapa do saber da mento da categoria de viabilidade nacional
teoria e da ciência política. Daí igualmente a é a categoria da “permissibilidade interna-
base de sustentação teórica das prescrições cional”, ou seja, o que está ao alcance ou
da “ideia a realizar” de seu nacionalismo de não está ao alcance da atuação de um país
fins, que norteiam em distintas conjunturas
nas distintas conjunturas históricas. Foi o
suas inúmeras e subsequentes obras dedi-
que tornou Helio, a partir do texto pioneiro
cadas ao desenvolvimento brasileiro, nas
sobre política externa de O nacionalismo na
quais se mesclam thinking e willing. É o que
atualidade brasileira, o patrono inaugural
dele faz, como “intelectual público” de sua
do estudo acadêmico das relações interna-
geração, com rigor e vigor, um profeta da
cionais em nosso país.
lucidez, como escrevi, analisando uma de
O tema da permissibilidade subjaz ao
suas obras da década de 1980.26
conjunto de seus estudos reunidos em
25 Jaguaribe, Helio. Political Development: A General
Theory and a Latin American Case Study. Nova York: 27 Cf. Jaguaribe, Helio. Political Development, op. cit.,
Harper & Row, 1973; Jaguaribe, Helio. Introdução ao pp. 337 e ss.
desenvolvimento social: as perspectivas liberal e marxis- 28 Cf. Fonseca Jr., Gelson. “Relendo um conceito de

ta e os problemas da sociedade não repressiva. Rio de Jaguaribe: a permissibilidade no sistema internacio-


Janeiro: Paz & Terra, 1978. nal”. In: Venancio, A.; Klabin, I.; Barreto, V. (Org.).
26 Lafer, Celso. “Helio Jaguaribe: o profeta da lucidez”. In: Estudos em homenagem a Helio Jaguaribe, op. cit.,
Ensaios liberais. São Paulo: Siciliano, 1991, pp. 163-168. pp. 93 e ss.
U ma análise de percursos complementares : A. C andido , H. J aguaribe e R. R icupero   •  17

Novo cenário internacional (1986)29 e tra- internacionais. Integra, como Antonio Can-
balhos posteriores. Estão voltados para as dido, o panteão de minha admiração.
condições de acesso à autonomia do Brasil, Bluteau, em seu pioneiro Vocabulário
que consiste em conciliar, em distintas con- português e latino (1728), consigna que
junturas, uma margem significativa de au- “Repúblico é o zeloso do bem da Repúbli-
todeterminação na condução dos assuntos ca, o amigo do bem público”. Helio, em sua
internos com uma apreciável capacidade de trajetória de grande intelectual público, foi
atuação internacional. paradigma de um repúblico.
No diálogo universal/nacional, os estu-
dos de Helio se dedicam a refletir sobre a or-
dem mundial, ou seja, sobre a dinâmica do IV
funcionamento do sistema internacional, as
Rubens Ricupero (1937) está mais próxi-
transformações das hegemonias e o escopo
mo de minha geração do que da de Antonio
da atuação dos Estados Unidos durante e
Candido e Helio Jaguaribe. Tem, no entanto,
após a Guerra Fria. Dedicam-se igualmen-
vínculos com a geração que o antecedeu.
te aos rumos da Diplomacia brasileira e
Basta lembrar que seu grande e recente livro
suas opções estratégicas. Daí a relevância
que comentarei nesta conferência, A diplo-
que atribui ao nosso entorno regional e o
macia na construção do Brasil: 1750-2016
consequente papel da integração latino-
(2017),30 traça explicitamente uma analogia
-americana, e, nesse contexto, o significa-
com a obra de Antonio Candido. O autor
do do aprofundamento do relacionamento
aponta que, parafraseando-o, escreveu um
Argentina-Brasil. Helio também atribui a
livro sobre o desejo dos brasileiros de ter uma
devida importância à agenda ambiental e à
política externa.31 O ano de 1750 é também,
capacitação científico-tecnológica do Brasil.
como em Antonio Candido, o ponto de par-
Nesse sentido, não foi por acaso que as-
tida da formação diplomática do Brasil, mas
sumiu a pasta da Ciência e Tecnologia no
por razões distintas. Constitui-se na data do
“Ministério dos notáveis” do Presidente
Tratado de Madri, celebrado entre a Coroa
Fernando Collor de Mello, que também in-
Portuguesa e a Espanha. Foi concebido pelo
tegrei como chanceler, contando com seu
secretário do rei D. João V, o brasileiro Ale-
apoio na condução da Rio-92, a grande
xandre de Gusmão, qualificado como o avô
conferência da ONU sobre Meio Ambiente
da Diplomacia brasileira e nascido em San-
e Desenvolvimento.
tos, como José Bonifácio. O Tratado de Ma-
Conheci e admirei Helio desde meus
dri deu o contorno da escala continental de
tempos de estudante. Tive o privilégio de
nosso país, que é um dos elementos identifi-
ter sido seu amigo e com ele convivido e
cadores de nossa presença no mundo.
compartilhado muitas de suas iniciativas de
Rubens tem o dom da clareza da pa-
intelectual público. Foi uma referência per-
lavra, escrita ou falada, que elucida, sem
manente e um patrono de meu percurso
simplificações, a complexidade das coisas.
nas áreas de ciência política e das relações
30 Ricupero, Rubens. A diplomacia na construção do
29Jaguaribe, Helio. Novo cenário internacional. Rio de Brasil. Rio de Janeiro: Versal, 2017.
Janeiro: Guanabara, 1986. 31 Idem, ibid., p. 27.
18  •  Celso Lafer

Seu estilo dá ordem e movimento ao seu modo que o diálogo nacional/universal – a


pensamento, como ensinava Buffon. A His- visão do Brasil e a visão do mundo – ope-
tória, para Rubens, caracteriza, nos tempos ra na reflexão de Rubens, à semelhança do
longos braudelianos ou curtos das conjun- que em seus respectivos campos de conhe-
turas, o teor da sensibilidade diplomática de cimento fizeram Antonio Candido e Helio
suas percepções e avaliações, como desta- Jaguaribe, como sublinhei anteriormente
cou Gelson Fonseca Jr. no prefácio ao seu nesta conferência.
livro Visões do Brasil (1995),32 sobre o qual San Tiago Dantas foi uma grande figu-
também escrevi na época. Daí a relevância ra de intelectual e homem público do Brasil,
que atribuiu à História no trato das relações pela qual tanto Rubens quanto Helio têm
internacionais. Aos seres humanos compete compartilhada admiração e afinidades, inclu-
dar à História um sentido por meio da razão sive porque, como chanceler, ele foi o gran-
e da ação, como observa na conclusão des- de clarificador do recorrente alcance de uma
se livro, evocando Vico.33 Foi o que fez em política externa voltada para a autonomia
A diplomacia na construção do Brasil, que é e o desenvolvimento, que se imbricou com
uma grande leitura de nosso país e de sua seu projeto nacional, com o foco no destino
arquitetura, elaborada na perspectiva orga- coletivo do país. San Tiago afirmou que “a
nizadora da política externa. tarefa da inteligência humana é tirar o valor
Trata-se de uma obra única na biblio- das coisas da obscuridade para a luz”.34 É o
grafia brasileira. Transcende o circunscrito que faz Rubens em A diplomacia na constru-
tradicional da história diplomática, e não ção do Brasil, que é um livro de fôlego. Foi o
apenas em nosso país. Oferece uma abali- elaborado resultado de uma reflexão de dé-
zada interpretação do sentido de direção da cadas. Lastreia-se num conhecimento abran-
política externa do Brasil e de seu efetivo gente e multidisciplinar. Beneficia-se, no
papel na construção do país. Avalia com
correr da interação de suas partes, das lições
discernimento o movimento da pauta di-
da experiência de quem viveu, como diplo-
plomática na trama da agenda da história
mata brasileiro de relevo, as possibilidades
política e econômica nacional. Analisa suas
e os limites da atuação da política externa
respectivas transformações no âmbito mais
brasileira – uma experiência alargada tanto
amplo das grandes mudanças da “máquina
pelo exercício de funções públicas como a de
do mundo”, configuradoras do espaço de
ministro do Meio Ambiente e da Amazônia
inserção internacional do Brasil desde o pe-
Legal e de ministro da Fazenda, quanto pelo
ríodo colonial.
conhecimento das especificidades do fun-
A reflexão de Rubens apura-se com a
cionamento de organizações internacionais,
perspectiva propiciada pela análise compa-
como secretário-geral da Conferência das
rativa da experiência histórica da inserção
Nações Unidas sobre Comércio e Desenvol-
internacional de países que apresentam
vimento (UNCTAD).
analogias e afinidades com o nosso. É desse
A sensibilidade em relação aos movi-
32 Cf. Fonseca Jr., Gelson. “Prefácio”. In: Ricupero, Ru- mentos da História nacional e internacional
bens. Visões do Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1995, p. 10.
33 Ricupero, Rubens. A diplomacia na construção do 34Dantas, San Tiago. D. Quixote: um apólogo da alma
Brasil, op. cit., p. 738. ocidental. Rio de Janeiro: Agir, 1948, p. 16.
U ma análise de percursos complementares : A. C andido , H. J aguaribe e R. R icupero   •  19

confere ao livro renovada substância para O grande modelo da Diplomacia do


a esclarecedora distinção que, há muitos conhecimento e do preparo, como explica
anos, Rubens elaborou dos tradicionais ei- Rubens Ricupero, na linha de seus traba-
xos de ação diplomática brasileira: o das re- lhos anteriores, foi o Barão do Rio Branco,
lações de simetria ou de relativa igualdade o admirável institution-builder do Itama­raty
com os países de poder em situações inter- e o arquiteto de sua autoridade. Na Re-
nacionais comparáveis à do Brasil, como os pública, equacionou, por meios pacíficos,
da América Latina, e, em seu âmbito, o con- com talento e originalidade, os problemas
texto da vizinhança que é a circunstância de pendentes das fronteiras do país, liberando
nosso eu diplomático, e o das relações de o caminho para o que veio a ser a Diplo-
assimetria ou desigualdade com as nações macia do desenvolvimento. Concebeu, nas
das quais nos separa uma diferenciação circunstâncias da época, um válido modo
apreciável de poderio político e econômico, de atuar do Brasil nos eixos da simetria e
como foram, no século XIX, a Grã-Bretanha da assimetria. Além do mais, contribuiu de
e, no século XX, os Estados Unidos. maneira decisiva para articular uma ideia do
Esta distinção entre os dois eixos e seus Brasil no mundo: a de um país sem ambi-
desdobramentos é uma de suas contribui- ções territoriais, em paz com seus vizinhos,
ções à teoria das relações internacionais confiante no Direito e no valor das soluções
e aos desafios da estratificação da ordem negociadas, empenhado em ser reconheci-
mundial, a partir de uma perspectiva brasi- do como uma força de moderação a serviço
leira. Ela é enriquecida no livro pela análise da criação de um sistema internacional mais
das múltiplas dimensões do poder, inclusive equilibrado e pacífico. Essa ideia do Brasil
o que positivamente representou, em distin- no mundo veio a ser, em distintas conjuntu-
tas fases da História brasileira, a Diplomacia ras e com variadas ênfases, uma das notas
do conhecimento e do preparo intelectual. do estilo diplomático brasileiro.
Nessa linha, no Império, a política externa Gelson Fonseca Jr., no já mencionado
traduziu-se, no dizer do Conselho do Estado, prefácio ao livro de 1995 de Rubens Ricupe-
numa “Diplomacia inteligente, sem vaidade; ro – Visões do Brasil –, observa que o interlo-
franca sem indiscrição; enérgica sem arro- cutor subjacente dos ensaios que o integram
gância”, muito ajustada às necessidades de é o próprio pensamento diplomático brasi-
construção da unidade do Estado nacional leiro, que ele, como autor, exprime, revela,
na lida com a Grã-Bretanha e no trato com muitas vezes adota e outras, sutilmente, criti-
os problemas da Questão do Prata. ca. Em A diplomacia na construção do Brasil,
Essa postura caracterizou os estadistas a interlocução com o pensamento diplomá-
do Império que tiveram relevante papel di- tico é explícita. Daí o interesse e o sabor de
plomático, como o Visconde do Uruguai e que se reveste a análise dos agentes da polí-
o Visconde do Rio Branco, e profissionais da tica exterior no correr dos tempos e a avalia-
Diplomacia, como Duarte da Ponte Ribeiro, ção do que lograram em circunstâncias mais
que, nos 52 anos de sua carreira no Minis- ou menos difíceis da vida brasileira. Nessas
tério, foi decisivo na formulação da qualifi- avaliações, o empenho de objetividade do
cada política de limites do Império. autor não exclui a apreciação, por vezes
20  •  Celso Lafer

crítica, do encaminhamento que deram à é seu – clássico critério de justiça desde os


agenda da política exterior brasileira, emba- romanos –, merece reconhecimento e ad-
sada numa larga experiência, ’de dentro’ e miração. Ela percorre as páginas de A diplo-
não ’de fora’, do que é a especificidade do macia na construção do Brasil (1750-2016),
fazer e do operar diplomático. Da qualidade que é um livro de dedicado afeto, destituído
dessa experiência, dou meu testemunho nas de demagogia, pelo Brasil, e de estima pelo
inúmeras oportunidades que tive de com ele Itamaraty – instituição a que serviu como
compartilhar desafios diplomáticos de nosso qualificadíssimo profissional, sabendo nela
país. Entre eles, na condução da Rio-92, sua identificar, sem deslumbramentos, o que
competência na negociação do capítulo fi- tem de positivo seu estilo de ser e de atuar.
nanceiro da Agenda 21.
No período que se estende até 1960,
as considerações têm o lastro de seu do- V
mínio de questões complexas – das tradi- Antonio Candido, Helio Jaguaribe, Rubens
cionais, como fronteiras, reconhecimento Ricupero são grandes intelectuais que se
internacional do país, tráfico internacional dedicaram, cada um ao seu modo, a pensar
de escravos, conflitos no Prata, guerra do o Brasil e sua formação e analisar seus ca-
Paraguai, às contemporâneas, como globa- minhos a partir de uma larga visão de seus
lização, comércio internacional, multilatera- campos de conhecimento: cultura/literatu-
lismo, armas nucleares, direitos humanos, ra; teoria política e relações internacionais;
meio ambiente – e de como se imbricam na diplomacia e política externa. Todos têm
pauta nacional e internacional. No período a dimensão de intelectuais públicos e há,
subsequente, que se estende até o fim do como espero ter esclarecido, complementa-
governo Dilma Rousseff, elas têm a dimen- riedade em suas leituras do Brasil.
são própria de quem viveu como testemu- A visão crítica que compartilham sobre
nha ou agente o que se passou. Destaco as imperfeições de nossa arquitetura está
o empenho de objetividade com o qual o permeada, no entanto, sem demagogias
autor analisou e avaliou as circunstâncias cívicas, pela dedicação ao país. É o que nos
internas e externas, os momentos de fragili- anima, num momento de mais trevas do
dade e os mais favoráveis que enfrentaram que luz no Brasil e no mundo, a seguir a ad-
os que conduziram a política externa e a Di- moestação de Tocqueville, em A democra-
plomacia brasileiras, tanto aqueles com os cia na América:35 “Ayons donc de l’avenir
quais tem maior afinidade, quanto aqueles cette crainte salutaire qui fait veiller et com-
com os quais sua sintonia é menor. Nisso battre, et non cette terreur molle et oisive
incluo a serenidade com que analisou os qui abat les coeurs et les énerve”, ou seja,
tempos recentes das presidências Fernando “É preciso ter em relação ao futuro o receio
Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Sil- salutar que faz velar e combater”.
va, e os debates que suscitaram na agenda
da opinião pública nacional.
35Tocqueville, Alexis de. De la Démocratie en Améri-
Essa postura, que atribui, tanto positiva que/ Souvenirs/ L’Ancien Régime et la Révolution. Paris:
quanto negativamente, a cada um o que Robert Laffont, 1986, v. II, p. 655 (IV parte, cap. VII).
A Poesia de Geraldo Holanda
Cavalcanti
Glauber de Oliveira
Formado em Ciências Sociais e Filosofia (Bacharelado/Licenciatura)
na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

C
omo faz bem a leitura de uma obra Já se falou um pouco da obra, mas é
inteiramente. Ou, se não isso, deve- muito pouco, perto de tudo que ela con-
mos ler o máximo que seja possível tém. Deve-se lamentar não ter feito um
de um autor. Acha-se que isso fica ratifica- pinçar na obra dos textos mais representati-
do com a leitura da obra poética de Geraldo vos, mas talvez isso não tenha sido de todo
Holanda Cavalcanti. Corroborando o poeta ruim, afinal de contas é como se ao invés de
e escritor colombiano Álvaro Mutis, a poe- uma fatia de guloseima, se tivesse a mesma
sia de Geraldo Holanda Cavalcanti é varada inteira. Ou seja: fartura. Logo se fica justi-
do sentimento feminino-amoroso, notada- ficado pelos exageros ou faltas cometidos
mente no início. durante a feitura do ensaio.
Passemos a uma primeira observação
Falar da obra poética que está sendo
importante: a presença da terra natal do
discutida é um verdadeiro mosaico de pos-
poeta, especialmente (até por causa de
sibilidades. O autor é vário. Vário nas for-
quem escreve este ensaio), a presença da
mas, vário nos ritmos, vário nas estéticas.
cidade de Olinda, mas também Recife, Ti-
Talvez seja engraçado, mas justamente por
jipió... e já que estamos falando em cida-
ser um autor variegado, menos temos para
des, cosmopolitizemos a questão, afinal de
falar dele. Folheia-se a sua obra (na verdade
contas o poeta é um diplomata e por isso
se lê a mesma, toda) e o que se percebe é o que mais temos citados em sua obra são
que se pode fazer um tumultuoso trabalho. espaços geográficos diversos. Cidades es-
Seja em pequeno ou grande tamanho. O pecialmente – pode lembrar-se delas com
fazedor destas linhas coloca-se este com- certeza.
promisso: leitor e admirador da obra deste Foram estabelecidos três tópicos para
membro da Academia Brasileira de Letras, observação da obra do autor, mas que na
a solução que encontrou foi uma solução verdade são dois (apesar de que agora se
romântica. Espera-se que possa ser de agra- ocorre de pensar na questão do conteúdo,
dável leitura. sem dúvida menos importante, mas que
22  •  Glauber de Oliveira

para autor da estirpe de quem se está fa- ligado à Rússia, antes chamada União Sovi-
lando, falar sobre conteúdo cai como uma ética), além disso, demonstrando erudição,
mão à luva). Que seja permitido fazer uma o usufruto de poetas como tema, poetas
digressão sobre o que é estética. Estética na orientais e ocidentais, sua dívida a Jorge
verdade é tudo, inclusive o ritmo, que há de Luis Borges... enfim muito pode falar-se, o
ser considerado aqui. O intuito maior da di- medo de quem escreve estas linhas é de se
gressão é desfazer uma confusão que ficou estar sendo enfadonho.
acima estabelecida entre estética e forma. Passa-se agora para a forma propriamen-
Na verdade são a mesma coisa. Reafirman- te dita, a estética do poeta comentado. Dir-
do agora os blocos a serem observados na -se-ia que o autor escreve majoritariamente
obra do autor, destacar-se-ia o ritmo, a for- um texto descritivo, ele gosta de montar
ma (que também é o ritmo) e o conteúdo. imagens, paisagens poéticas como se fossem
É uma discussão muito interessante. É im- quadros, de certa forma um poeta-pintor,
possível deixar de pensar naqueles nossos também procura fazer contrastes psicoló-
críticos literários da primeira metade do sé- gicos dentro dos poemas e, o que é muito
culo XX (Álvaro Lins, Sérgio Milliet, Eduardo significativo, não se furta às metáforas, por
Frieiro, Otto Maria Carpeaux, Alceu Amoro- sinal, de lembrança, há de se destacar que
so Lima, Agrippino Grieco – este um pou- talvez mais de um livro seu frequente a me-
co mais antigo, ou até mesmo os críticos taforização de forma contínua. Acha-se que
iniciais: Sílvio Romero, José Veríssimo, Ara- se pode falar até em surrealismo.
ripe Júnior, João Ribeiro... enfim a própria Nome referendado pelas figuras mais im-
nata do estudo literário brasileiro). Diga-se portantes do Brasil e até além de nossa na-
inclusive que é difícil deixar de pensar neles ção, muitos destes já falecidos, mas que só
por causa do escrever “ao correr da pena”. fazem dar autoridade de lápide a tudo que
Quantos tartamudeares não são cometidos faz o nosso poeta e escritor (diplomata sem
por causa do ato de escrever ao sabor da in- dúvida, não nos esqueçamos nunca)... é in-
tuição? Se existem corruptelas, elas podem crível: o fluxo de ideias corre como um rio e
vir a ser ruminadas e o texto que inicialmen- coisas que não foram ditas tomam a licença
te era só uma avaliação de uma obra, pode de serem citadas. Quem pervaga a obra de
até ganhar caráter quase de tratado. Geraldo Holanda Cavalcanti entusiasma-se
Falando do ritmo na obra de Geraldo com a citação dos mais diversos autores,
Holanda Cavalcanti, este autor é muito ver- poetas e não poetas, estrangeiros. E bem
sátil. Usa do soneto, usa das quadras, usa que se poderia apresentar aqui outra faceta
do verso livre, usa de rimas, usa de formas do autor, que é a do tradutor, mas isso fica
não tão comuns (há de se lembrar de um para outra ocasião. O que se quis agora foi
poema seu feito em dísticos com métrica falar do genuíno poeta. Valoroso, infenso a
bem peculiar). qualquer contrariedade e dignificando nosso
Quanto ao conteúdo se fale no amor, país como enorme fazedor poético.
nas lembranças internacionais (faça-se re-
cordação à China), questões militares, polí- P.S. (1): uma coisa que não foi dita, não
ticas (a ligação ao socialismo, especialmente pode deixar de ter menção. Já comentada
A P o es i a de G e r a l d o H o l a n da C ava l c a n t i   •  23

por Álvaro Mutis na introdução à Poesia surpreendidos. Apesar disso se resolve fazer
reunida (Ed. Bertrand Brasil, 1998), fala o mais uma consideração. É quanto à manei-
autor colombiano da necessidade da leitura ra que o autor apresenta o seu texto. Há a
do Fausto para destrinchar o temário femi- forma pessoal, confessional, como há a for-
nino-amoroso, já discutido no ensaio, mas ma impessoal, indireta, na terceira pessoa
quis lembrar o Fausto e seu autor, Johann do singular. Acha-se importante fazer esse
Wolfgang von Goethe, para ressaltar a tipo de comentário porque muito se fala na
imagem convenientíssima para o poeta condição superior da forma impessoal sobre
contemporâneo, que é a do poeta culto, a confessional. Daí, por exemplo, o moti-
internacional, que nos apresenta, desde o vo de, no embate entre dois grandes líricos
princípio, o senhor Geraldo Holanda Ca- brasileiros, Manuel Bandeira e Carlos Drum-
valcanti. Dir-se-ia que esse é o lema para o mond de Andrade, dar-se a primazia ao últi-
jovem poeta: seja culto, seja internacional. mo sobre o primeiro. Discussão, no mínimo,
Coisa que, por sinal, Geraldo Holanda Ca- terrificante. Pelo menos neste ponto o au-
valcanti já era desde cedo por sua condição tor resenhado trafega pelas duas margens
de diplomata. da dicção pessoal e impessoal. E Manuel
Bandeira e Carlos Drummond de Andrade
P.S. (2): pós-escrito de última hora. Quan- também! Que discussão terrível esta de dic-
do ousamos falar de alguma coisa quere- ção! Não parece ser a mais importante para
mos ser completos por mais que sejamos a verdadeira poesia.
Cecília Meireles e a Educação

Arnaldo Niskier
Ocupante da Cadeira 18 na Academia Brasileira de Letras. Formado em Matemática e Pedagogia
pela Universidade do Estado do Rio de janeiro. É Doutor em Educação. Foi membro do Conselho
Nacional de Educação. Autor de mais de cem livros. Membro da Academia Brasileira de Educação.

“Brasil melhor só pode ser um Brasil novo, Voltando à nossa poeta, Cecília Benevi-
refeito, reconstruído de baixo para cima, des de Carvalho Meireles nasceu no bairro
– porque, em cima, como verificaram os Rio Comprido, no Rio de Janeiro, no dia 7
revolucionários, tudo está errado, corroído
de novembro de 1901. Seu pai, Carlos Al-
pela política, e não há jeito de fazer boa obra
berto de Carvalho Meireles, era funcionário
nova com material tão velho e condenado”.
do Banco do Brasil, enquanto sua mãe, Ma-
C ecília M eireles
thilde Benevides Meireles, era professora do

S
e o destino não me proporcionou a antigo ensino primário, na rede pública. Ela
ventura de conviver com Cecília Mei- não conheceu o pai, que faleceu três meses
reles, uma das maiores poetas da li- antes do seu nascimento, e, aos três anos
teratura brasileira, mais recentemente pude de idade, perdeu a mãe e foi morar com
retornar à sua obra, graças a uma gentileza a avó materna, dona Jacinta Garcia Benevi-
da querida amiga Nélida Piñon. Ela me pre- des, uma portuguesa da Ilha de São Miguel,
senteou com a coleção, editada pela Global, nos Açores.
em que são reproduzidas as crônicas da au- A fatalidade marcou profundamente a
tora de Ou isso ou aquilo especificamente vida de Cecília Meireles, como registrou o
sobre educação, setor ao qual se dedicou Acadêmico Murilo Melo Filho, em artigo
por muitos anos, com inexcedível afinco. publicado na imprensa:
Posso confidenciar desde logo que, se Desde criança, viu-se marcada pela morte:
não tive maior contato pessoal com Cecí- seu pai morrera quando ela ainda estava no
lia, o mesmo não pode ser dito em relação ventre materno. E perdera sua mãe três anos
depois. Foi uma órfã praticamente completa,
à sua filha, a atriz Maria Fernanda. Tive o
íntima da morte desde a sua gestação, cujas
ensejo de aplaudi-la no teatro, inúmeras
histórias narradas talvez lhe tenham produzi-
vezes, especialmente quando encenou a do o influxo ibérico, lusitano, espanhol, ilhéu
conhecida peça “Um bonde chamado de- e oceânico. Sua infância foi perseguida pela
sejo”, de Tennessee Williams. Sua interpre- orfandade, que influenciaria toda a sua obra
tação foi inesquecível. poética. Seria escolhida por essa fatalidade até
26  •  Arnaldo Niskier

mesmo no casamento com o ilustrador por- de gato, Ou isto ou aquilo e Escolha o seu
tuguês Correia Dias – pai de suas três filhas sonho. O saudoso Afrânio Coutinho assim
Marias (Matilde, Elvira e Fernanda) –, que se celebrou a obra da poeta:
suicidaria logo em seguida. Poucos poetas brasileiros terão sido coro-
ados do êxito de Cecília Meireles, como prova
Sua formação escolar foi bem simples,
se haverem esgotados rapidamente todos os
mas já denotava o futuro brilhante que teria.
seus livros. Por outro lado, raros terão, como
O antigo primário foi na Escola Municipal ela, tão unânime consagração por parte da
Estácio de Sá, onde teve a honra de receber crítica.
do poeta Olavo Bilac uma medalha de ouro
pelo desempenho exemplar, por ocasião da Baseados nas suas primeiras obras, al-
conclusão do curso, em 1910. Formou-se guns estudiosos tentaram classificar o seu
em 1917 na Escola Normal do Distrito Fede- estilo como simbolismo, enquanto outros
ral, no Rio de Janeiro, aos 16 anos de idade, definiram como modernismo, mais direta-
sob os auspícios de professores renomados, mente ligado à segunda fase do movimen-
como o poeta Osório Duque Estrada, o his- to. Há especialistas que enxergam romantis-
toriador Basílio de Magalhães e a escritora mo e até parnasianismo. Digamos que é até
Alexina Magalhães Pinto. Em 1918, Cecília um pouco temeroso entrar nessa seara de
Meireles começou a dar aula no antigo cur- definições, pois ela sempre foi avessa a es-
so primário da Escola Pública Deodoro, na sas tentativas. Nos anos 1950, por exemplo,
Glória, como professora adjunta. Depois, em entrevista ao jornal A Gazeta, ela dava o
em 1920, fez parte da turma de desenho seguinte conselho aos jovens poetas: “Nun-
da Escola Normal do Distrito Federal. ca se filiem a nenhuma escola literária: es-
cola é uma prisão”.
O surgimento da poeta Existe outro exemplo que confirma esse
pensamento. Numa carta enviada a Augus-
O mercado editorial saudou o apare-
to Meyer, em 1930, Cecília Meireles afir-
cimento da obra de Cecília Meireles com
mou:
alegria e entusiasmo. Aos 18 anos, lan- Eu vivo muito afastada de todos os gru-
çou o primeiro livro de poemas, Espectros pos literários porque no Rio, em geral, não há
(1919). O segundo, Nunca mais, saiu em nada mais em desacordo com uma alma de
1923, logo após a Semana de Arte mo- artista que a alma dos artistas.
derna de 1922. Depois, vieram dezenas de
livros, que se tornaram clássicos da literatu- Certa vez, o poeta mineiro Carlos Drum-
ra brasileira, dos quais podemos citar: Mar mond de Andrade assim definiu a persona-
absoluto, Problemas de literatura infantil, lidade de Cecília Meireles:
Há uma graça fluida nos comentários que
Doze noturnos de Holanda e o Aeronauta,
ela vai tecendo à margem da confusão, dos ti-
Romanceiro da Inconfidência, Poemas es-
ques, dos equívocos, dos absurdos da vida co-
critos na Índia, Batuque, Canções, Giroflê, tidiana. Em vez de censura, o sorriso reticente,
Giroflá, Romance de Santa Cecília, A rosa, mas suave, de ironia sem amargor. Sorriso de
Obra poética, Metal Rosicler, Poemas de pena pelos que não sabem ver e conviver, per-
Israel, Antologia poética, Solombra, Olhinhos turbando a vida geral.
C e c í l i a M e i r e l es e a E d u c a ç ã o   •  27

Em 1938, seu livro Viagem foi o vence- Escola Normal do Distrito Federal, quando
dor do Prêmio Olavo Bilac de poesias, da preconizou a liberdade individual e a mo-
Academia Brasileira de Letras. O escritor dernização do ensino no Brasil. Ela acabou
Cassiano Ricardo, que presidiu a comissão desclassificada (ficou em segundo lugar),
julgadora, e foi o autor do parecer que indi- perdendo para o concorrente que defendia
cou, dentre as 29 inscritas, a obra vencedo- a manutenção da concepção pedagógica
ra, assim definiu a autora: reinante naquele período. Faziam parte da
Cecília Meireles não se limita a ser um banca de examinadores, Alceu Amoroso
poeta, mas um pensador também, não só um Lima, Antenor Nascentes, Coelho Neto e
poeta, mas um artista compenetrado dos mais Nestor Victor.
sutis valores que soube criar e que nem todos Entre 1930 e 1933, Cecília Meireles
terão a agudeza de espírito e de sensibilidade passou a assinar, no jornal Diário de No-
para compreender. (…) Cecília Meireles reali-
tícias, a “Página de Educação”, e também
za dois passeios, um às fontes puras e tradi-
uma coluna, “Comentários”. O Brasil co-
cionais do sentimento no momento em que
todos fazem no intelectualismo, e outro, ao
meçou a conhecer, naquele momento, o
clássico, na desordem do mundo atual. O re- outro lado da poeta. Nesse espaço con-
sultado desses dois passeios é um brinde ao quistado na imprensa, passou a lutar pela
leitor. reforma educacional, aproveitando sua
ligação com Fernando de Azevedo. As crô-
Numa segunda oportunidade, Cecília nicas defendiam os ideais da Escola Nova,
Meireles foi homenageada pela Academia um movimento que reivindicava a renova-
Brasileira de Letras. Em setembro de 1964, ção do ensino, e que tinha a inspiração nos
ela foi contemplada com o Prêmio Macha- pensamentos do filósofo norte-americano
do de Assis pelo conjunto da obra. Mas não John Dewey e do psicólogo suíço Édouard
teve tempo de receber a principal láurea da Claparède.
ABL, porque faleceu no dia 9 de dezembro As opiniões dos educadores Fernando
de 1964, aos 63 anos. Diante da fatalidade, de Azevedo, Lourenço Filho e Anísio Tei-
a premiação foi feita post mortem. xeira, pregando principalmente a universa-
lização da escola pública, laica e gratuita,
haviam sido responsáveis pelas reformas
Cecília e a Escola Nova
educacionais ocorridas nos estados e no en-
Embora tenha ficado famosa pela gran- tão Distrito Federal (Rio de Janeiro), na dé-
de obra na área de poesia, a ligação de Ce- cada anterior e no início dos anos 1930. Ce-
cília Meireles com a educação é uma das cília Meireles assumia no jornal o papel de
histórias mais bonitas da literatura brasilei- porta-voz do movimento. Além de divulgar
ra. Afinal, ela sempre foi a favor da auto- as obras de Dewey e Claparède, ela fazia
nomia dos estudantes e também do direito entrevistas com personalidades e publicava
de todos a uma educação de qualidade. pensamentos dos ingleses William Kilpatrick
Tudo começou em 1929, por ocasião da e Pierre Bovet, dos suíços Jean Piaget, Jean
defesa de sua tese, “O Espírito Vitorioso”, Jacques Rousseau, Adolphe Ferrière e Johann
para a cátedra de literatura brasileira da Pestalozzi, dos franceses Gustave Flaubert,
28  •  Arnaldo Niskier

Émile Durkheim e Michel de Montaigne, dos à educação integral da criança; e escreveu


alemães Friedrich Fröbel, Johann Friedrich vibrantes crônicas em defesa da renovação
Herbart e Georg Kerschensteiner, do belga da escola brasileira, em todos os níveis e em
todos os graus. No seu ideário pedagógico,
Ovide Decroly, da italiana Maria Montessori,
como peças de um jogo de xadrez estrutural-
da sueca Ellen Key e do indiano Mahatma
mente dispostas, de modo claro e inequívoco
Gandhi, entre outros.
se nos deparam as linhas mestras do seu pen-
Teve grande repercussão, em 1930, a samento, a partir do respeito à personalidade
entrevista feita com o psicólogo suíço Édou- do aluno, em todas as fases de sua formação
ard Claparède, famoso por seus estudos nas e em todas as idades do seu crescimento e
áreas da psicologia infantil, pedagogia e desenvolvimento.
formação da memória, quando o especialis-
Os temas abordados por Cecília Meire-
ta esteve no Brasil, a convite da Associação
les eram variados, e todos tinham a mesma
Brasileira de Educação (ABE). Outro assunto
importância para ela, pois, no final, rela-
que mereceu grande destaque ocorreu em
cionavam-se com a questão educacional.
1931, quando Cecília Meireles conversou
Destacamos alguns dos assuntos que mere-
com a pintora suíça Louise Artus-Perrelet,
ceram sua preocupação: conceitos de vida,
autora do livro O desenho a serviço da
liberdade, cooperação, valor educativo das
educação, baseado nas concepções de
viagens, amor à natureza, valorização do
John Dewey. Na época, a artista estava tra-
trabalho, leitura dos jornais, universalismo,
balhando no Brasil, para o governo de Mi-
história da educação, cinema e educação,
nas Gerais.
Escola Normal, Escola Nova, escola pública,
educação urbana, educação rural, teatro e
O sucesso das crônicas educação, educação e turismo, atividades
Na efervescência dos anos 1930 e 1940, culturais, educação artística, desenhos in-
Cecília Meireles captou todos os problemas fantis, e outros. Nada melhor do que uma
que afetavam os sistemas de ensino no Bra- declaração da própria Cecília Meireles para
sil e procurou apontar possíveis soluções, definir o seu trabalho na imprensa:
baseadas na Escola Nova. Para Leodegário A Nova Educação tem, principalmente,
essa vantagem: de não se dirigir apenas à es-
A. de Azevedo Filho, que organizou o livro
cola, à criança e ao professor. Ela atua sobre a
Cecília Meireles – Crônicas de educação,
família, a sociedade, o povo, a administração.
em cinco volumes, para a Editora Global, Ela está onde está a vida humana, defenden-
a poeta brasileira assumiu de fato a defe- do-a, justamente, dos agravos que sobre ela
sa da educação e da cultura brasileiras, e deixam cair os homens que se converteram
em nenhum momento poupou críticas aos em fantoches, movidos por interesses infe-
poderosos: riores, esquecidos das altas qualidades e dos
Em síntese, na raiz do pensamento de nobres desígnios que definem a humanidade,
Cecília Meireles pode-se depreender a sua na sua expressão total.
convicção humanística, sempre preocupada
com a formação (não apenas a informação) Uma das crônicas mais comentadas,
do educando. Escreveu maravilhosos livros de “Professores e pais”, foi publicada em 16
literatura infantil, em prosa e verso, visando de setembro de 1930, quando afirmou:
C e c í l i a M e i r e l es e a E d u c a ç ã o   •  29

“A educação moderna, para ser uma rea- conta que estávamos vivendo naquele pe-
lidade viva, depende do entendimento de ríodo o caos da Segunda Guerra Mundial:
professores e pais, de modo que a obra da Um país novo, mas de intensa capacidade
escola e do lar se unifique numa comum in- evolutiva, como o Brasil, não pode deixar de
tenção”. se instruir com as experiências já verificadas
em outros pontos da terra – para aproveitar
Uma década depois da primeira expe-
com os bons exemplos de umas, e acautelar-
riência, no jornal Diário de Notícias, Cecília
-se dos desastres de outras. (…) Como os
Meireles retornou ao seu ofício de jornalis- ideais são as forças inspiradoras da educação,
ta especializada em educação. De 1941 a resulta que o mundo se encontra em pleno
1942 assinou a coluna “Professores e es- caos, nessa matéria.
tudantes”, publicada no jornal A Manhã,
dirigido por Cassiano Ricardo e Menotti
Manifesto dos Pioneiros
del Picchia, cuja linha editorial era simpá-
tica ao Estado Novo, implantado em 1937. Deve-se dar destaque especial a um
Na redação do diário havia uma constela- momento do país em que se reuniram es-
ção de mestres da literatura. Além dos três pecialistas para elaborar o famoso “Mani-
já citados, também trabalhavam no local festo dos Pioneiros da Educação Nova”, em
Múcio Leão e Ribeiro Couto, com apoio dos 1932, com a participação de Cecília Mei-
colaboradores Gilberto Freyre, José Lins do reles. Redigido por Fernando de Azevedo,
Rego, Manuel Bandeira, Oliveira Vianna e contou com a assinatura de 26 especialis-
Vinicius de Moraes. tas, entre os quais o pai do acadêmico Al-
Dessa vez, os tempos mudaram e a berto Venancio Filho, criando uma base filo-
orientação era outra. A polêmica que levou sófica que se estendeu ao longo do tempo.
à criação do Manifesto dos Pioneiros não O manifesto denunciou, em plena Era Var-
mais existia, e havia a recomendação de gas, que a oportunidade de acesso à edu-
que não escrevesse nada sobre política em cação era privilégio de poucos. Foi um mo-
sua coluna. Cecília Meireles, então, privile- vimento renovador, que abordou questões
giou, nessa nova fase, algumas temáticas como laicidade, gratuidade, obrigatorieda-
diferentes, como literatura infantil, turismo, de e coeducação, tentando colocar todos
poesia, questões relacionadas à infância e no mesmo pé de igualdade, como direitos
principalmente folclore. Apesar de o Estado do indivíduo, considerando o que já ocor-
Novo ser um regime de exceção, com cer- ria em nações mais desenvolvidas.
teza, a poeta enxergou na nova tarefa uma A educação nova deveria ter como fun-
oportunidade para lutar e divulgar as suas damento a descentralização administrativa,
ideias na defesa de políticas públicas foca- levando a todos uma educação espontâ-
das na educação e na cultura. É claro que, nea, alegre e fecunda, em íntima conexão
a todo momento, os assuntos abordados com a região e a comunidade. O objetivo
por ela teriam alguma ligação com a ques- só poderia ser alcançado se houvesse uma
tão da educação. Na sua primeira coluna, mudança radical e profunda. Isso tudo deve
por exemplo, tocou na questão diretamen- ser pensado à luz dos quase 90 anos de-
te, mas de forma universal, levando-se em corridos desde a divulgação do Manifesto.
30  •  Arnaldo Niskier

Seria um apelo à criatividade do aluno, des- O sucesso foi tão grande que os especialis-
de o jardim de infância até a Universidade, tas consideram que a biblioteca funcionou,
esta então voltada exclusivamente para as na verdade, como um centro de cultura
profissões liberais (engenharia, medicina e infantil, por disponibilizar para o público
direito), quando era necessário alargar hori- diversas atividades paralelas, como jogos,
zontes científicos e culturais, como se pede música, cinema, cartografia, pintura, de-
ainda hoje. senho e outras. Em uma de suas crônicas,
Criticou-se a falta de preparação profis- Cecília Meireles afirmava:
sional dos professores, apelando-se para a A criança não é um boneco, cujas habi-
verticalidade e a cultura, o que só seria pos- lidades ou inabilidades se exploram. É uma
sível obter se os estudos fossem feitos em criatura humana com todas as forças e fra-
quezas, todas as possibilidades de evolução e
nível superior. Os primeiros frutos das ideias
involução inerentes à condição humana. Por
pregadas no manifesto surgiriam, logo a
isso mesmo são condenáveis todas as atitudes
seguir, sobretudo nas reformas do ensino que a rebaixem, ou que lhe estorvem o seu
no Distrito Federal durante a administração normal desenvolvimento.
de Pedro Ernesto Batista, que contou com
o precioso auxílio de Anísio Teixeira e, em Durante essa experiência, a poeta edu-
1934 e 1935, na fundação das Universida- cadora pôs em prática muitas mensagens
des de São Paulo e do Distrito Federal, res- contidas em sua produção poética, onde o
pectivamente. lúdico e as brincadeiras predominam. Quem
Além de Cecília Meireles e de Fernan- não se emociona com os poemas “Ou isto
do de Azevedo, também assinaram o do- ou aquilo”, “O menino azul”, “A chácara
cumento outros 24 educadores, dos quais do Chico Bolacha”, “Colar de Carolina”,
destacamos: Afrânio Peixoto, Sampaio Dó- “A bailarina”, “Leilão de jardim” ou “Jogo
ria, Anísio Teixeira, Lourenço Filho, Roquete de bola”? Com certeza, a inspiração de Ce-
Pinto, Almeida Júnior, Hermes Lima, Fran- cília Meireles veio das referências que tinha
cisco Venancio Filho, Edgar Sussekind de em relação às formas de divertimento das
Mendonça, Pascoal Leme e Raul Gomes. crianças, destacando a força do imaginário
infantil para enfrentar as situações do coti-
diano. Ela sempre deixou bem claro o seu
Biblioteca infantil desejo de potencializar as qualidades das
Outra marca da trajetória como poe­ crianças:
ta educadora foi a inauguração, em 15 de Quando nos aproximamos do mundo in-
agosto de 1934, da Biblioteca Infantil do fantil, o primeiro cuidado que devemos ter
Pavilhão Mourisco, em Botafogo, a primeira é o de agir de tal modo, que entre nós e as
biblioteca pública infantil brasileira. Duran- crianças se estabeleça uma ponte de abso-
luta confiança, por onde possamos ir até
te a gestão de Anísio Teixeira à frente da
elas, e elas, por sua vez, sejam capazes de vir
Diretoria Geral de Instrução Pública do Dis-
até nós.
trito Federal, Cecília Meireles coordenou a
criação do espaço, que era muito frequen- Depois de quatro anos de existência,
tado por estudantes de escolas públicas. a biblioteca fechou as portas, em 19 de
C e c í l i a M e i r e l es e a E d u c a ç ã o   •  31

outubro de 1937, durante a vigência do Es- vontade política. Ainda temos milhões de
tado Novo. O motivo? Seria cômico se não analfabetos.
fosse trágico: houve uma denúncia de que As ideias sobre educação de Cecília Mei-
havia no acervo da biblioteca um livro de reles, com destaque para as suas Crônicas
conotações comunistas. Simplesmente, o li- de educação, proporcionam a mesma emo-
vro em questão era As aventuras de Tom Sa- ção que sentimos ao ler a sua obra poética.
wyer, de Mark Twain. Cecília Meireles ainda Defensora permanente dos ideais de uma
argumentou que a obra era um clássico da nova educação e pelos direitos das crianças
literatura infantil mundial, usado em mui- e dos jovens a uma educação de qualidade,
tos países, inclusive nos Estados Unidos, In- ela sempre lutou pelo futuro dos nossos es-
glaterra, Itália e França. Mesmo assim, não tudantes, criticou, de forma contundente,
teve jeito e a biblioteca foi fechada. Dizem os políticos e especialistas que se perdiam
que os livros foram levados para a Escola em leis e teorias, sem traçarem, efetivamen-
Minas Gerais, na Urca. O endereço passou te, um plano nacional de educação. Desta-
a abrigar uma repartição ligada à cobrança camos, ainda, que uma de suas maiores
de impostos. Posteriormente, ficou aban- preocupações era com a formação dos pro-
donado, até, finalmente, ser demolido, em fessores. Segundo ela, a vocação, os sonhos
1952, durante a construção do Túnel do e os ideais eram colocados de lado, diante
Pasmado. Apesar da breve duração, o em- da dura realidade que teriam que enfrentar,
preendimento foi pioneiro e é considerado sem uma base sólida de conhecimentos e,
a semente da criação das bibliotecas públi- ainda, praticando uma educação desvincu-
cas e, também, das infantis, que surgiram a lada da realidade dos alunos e da sociedade
partir daquele período. como um todo.
Cecília Meireles discorreu sobre todos
os temas educacionais possíveis: métodos,
Conclusão especialistas, professores, livros, arte, leis,
Cecília Meireles, em sua época, sempre reformas, crianças, adolescentes, política,
valorizou o magistério, o qual considerava liberdade, escola, literatura infantil, educa-
um sacerdócio. Infelizmente, por falta de ção comparada (com as suas viagens) e a
estímulos, a profissão segue numa nítida importância da família. Como sempre di-
tendência decrescente, sem nenhuma pers- zia: “Tudo, em suma, é sempre uma ques-
pectiva oficial de estancar este processo, tão de educação”. Colocar as crianças em
consequentemente revertê-lo o mais breve destaque, como o centro de todo o pro-
possível. Ela admirava os professores de- cesso educativo, é um outro ponto enfa-
dicados, que colocavam como objetivo o tizado em sua obra. Poeticamente, como
atendimento a seus alunos. Hoje, o exer- educadora, afirmava que elas deveriam ser
cício do magistério é considerado uma o foco das atenções, do estudo dos profes-
profissão como outra qualquer, e temos o sores, que deveriam compreendê-las inte-
grande desafio de levar educação de quali- gralmente: “Escola não é um edifício, não
dade para regiões pouco assistidas. O gran- é um corpo docente. Escola é um conjunto
de obstáculo é a falta de mentalidade, de de crianças”.
32  •  Arnaldo Niskier

Referências FILHO, Murilo Melo. “Cecília Meireles – Deusa e poeta”.


Jornal do Brasil, 17/08/2005.
FILHO, Leodegário A. de Azevedo (Org.). Cecília Meireles NISKIER, Arnaldo. “Cecília Meireles – A Educadora”. Revis-
– Crônicas de educação. Vol. 1 a 5, Rio de Janeiro: ta Brasileira, da Academia Brasileira de Letras, número
Editora Global, 2017. 32, fase VII, julho-agosto-setembro de 2002, ano VIII.
FILHO, Leodegário A. de Azevedo. “No centenário de Cecí- TELLES, Lygia Fagundes. “Cecília Meireles da minha juven-
lia Meireles”. Revista Brasileira, da Academia Brasileira tude”. Ciclo de conferências. Centenário do Nasci-
de Letras, número 28, fase VII, julho-agosto-setembro mento de Cecília Meireles. Rio de Janeiro: Academia
de 2001, ano VII. Brasileira de Letras, 21 de agosto de 2001 (mimeo).
O nome sob o nome

Antonio Carlos Secchin


Ocupante da Cadeira 19 na Academia Brasileira de Letras. É Doutor em Letras pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro (1982). Professor de Literatura Brasileira das Universidades de Bordeaux (1975-1979), Roma
(1985), Rennes (1991), Mérida (1999), Paris III-Sorbonne Nouvelle (2009) e da Faculdade de Letras da UFRJ.

A
alegria de ingressar na Academia Seria impossível, nos limites de um bre-
das Ciências de Lisboa só não su- ve discurso, esgotar a rememoração dos nu-
pera a honra que sinto por ter sido merosos laços que me ligam a Portugal, a
eleito para esta bicentenária instituição. começar pelos de sangue: no lado materno,
Agradeço aos senhores Acadêmicos o minha ascendência é integralmente lusa,
acolhimento unânime a meu nome; ao Pre- pelo avô, José Fuzeira, natural de Redondo,
sidente Artur Anselmo, a António Valdemar, no distrito de Évora, e pela avó, Átala de
pela proposição da candidatura e pelo gene- Lemos Fuzeira, filha de portugueses. Graças
roso discurso de recepção, ao Embaixador do a essa ascendência, está em curso, nas tra-
Brasil em Portugal, Senhor Luís Alberto Figuei- mitações finais, meu processo de obtenção
redo Machado; a Joaquim Falcão, confrade da cidadania portuguesa.
eleito, em representação da Academia Brasi- Meu avô era homem intensamente es-
leira de Letras (ABL), e sua esposa Vivianne piritualizado. Em 1969, quando eu sequer
Falcão; ao escritor Fabio Coutinho, presiden- iniciara os estudos universitários, meu pai,
te da ANE, Associação Nacional de Escrito- Sives Secchin, revelou-me anedota familiar.
res, aqui presente no esteio de uma amiza- Contou que, ao visitar-me recém-nascido,
de quase cinquentenária; aos romancistas José Fuzeira saiu do quarto aos prantos. Meu
Teolinda Gersão e Jorge Reis-Sá, responsável pai, preocupado, indagou-lhe o que ocorre-
pelo lançamento, em Portugal, da edição de ra. Respondeu que se emocionara porque,
minha poesia reunida; ao historiador Rui Lou- num átimo, visionara toda minha existência.
rido, coordenador cultural da UCCLA, União Sives quis saber o que José antevira, e o avô
das Cidades Capitais de Língua Portuguesa. comentou: “Vi tudo. Fique tranquilo. Ele será
Agradeço a todos os demais amigos que vie- escritor”. Portanto, até hoje não sei se sou es-
ram abrilhantar, com seu prestígio e presen- critor por vocação ou apenas para obedecer à
ça, esta cerimônia, que simboliza, também, o sinalização persuasiva de meu ancestral.
prestígio da cultura e da língua portuguesa, José também foi poeta, autor de singe-
da qual somos fiéis servidores. lo livrinho, Trovas de sombra e luz, o que,
Discurso de posse na Academia das Ciências de Lisboa proferido em 10 de maio de 2018 (Lisboa, Portugal).
34  •  Antonio Carlos Secchin

em meus arroubos afetivos da adolescên- Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), outro fato
cia, era motivo suficiente para equipará-lo a aproximou-me ainda mais do mundo portu-
Camões, figura, aliás, de sua extremada ve- guês. Fui convidado pela professora Cleonice
neração. Não era afeito ao Modernismo, e Berardinelli para atuar como monitor de lite-
por isso desconfio de que, no episódio com ratura portuguesa. Meu trabalho consistia em
o recém-nascido, algumas de suas lágrimas auxiliar os professores em levantamentos bi-
possam ter sido vertidas pelo conhecimen- bliográficos e demais pesquisas para o prepa-
to premonitório da literatura que viria a ser ro de aulas e, eventualmente, até ministrá-las,
praticada pelo neto. sob a orientação de um docente. Tratava-se,
Aos 14 anos, ouvi de um primo pouco a rigor, de uma espécie de estágio prepara-
mais velho ardilosa pergunta: “Sabe quem tório para o exercício efetivo do magistério
são os três maiores poetas portugueses?”. superior. A bolsa de monitoria era reservada
Ele próprio respondeu: “Camões, Antero de a contingente bem restrito de estudantes.
Quental e...”. Na sequência, para compor o Tudo levava a crer, portanto, que eu de-
triunvirato, eu aguardava, claro, o nome de senvolveria carreira universitária no campo
José Fuzeira, nosso comum avô. Mas, para das letras lusas, não fosse o convite, dois anos
minha surpresa e decepção, eis que o primo depois, do prof. Afrânio Coutinho, para que
arrematou: “Fernando Pessoa”. Quem seria eu substituísse uma professora de literatura
esse intruso, esse usurpador da láurea que brasileira, que solicitara licença por motivo
eu julgava de direito pertencente ao querido médico. Esse inesperado convite reorientou
Fuzeira? meu caminho profissional. A partir daí, então,
Em pouco tempo, descobri a obra do tal consolidou-se o vínculo efetivo com as letras
terceiro poeta, e minhas manifestações ini- brasileiras, sem, todavia, jamais esgarçar-se o
ciais de sanguíneo ciúme logo transforma- vínculo afetivo com as letras lusitanas.
ram-se em gestos de permanente devoção. Já no mestrado, eu, que tivera o privilé-
De meu livro de estreia, Ária de estação, gio de assistir ao derradeiro curso de Cleo-
que publiquei aos 21 anos, consta o poema nice em nível de graduação, fui novamen-
“A Fernando Pessoa”, que transcrevo: te seu aluno, apresentando trabalho final
Ser é corrigir o que se foi,
sobre a “Dobrada à moda do Porto”, de
e pensar o passado na garganta do amanhã. Álvaro de Campos. Elaborei um ensaio que
É crispar o sono dos infantes, acabou sendo estampado em publicação
com seus braços de inventar as buscas italiana dedicada ao escritor.
em caminhos doidos e distantes. Em fins de 1975, comecei a trabalhar
É caminhar entre o porto e a lenda como leitor na Universidade de Bordeaux,
de um tempo arremessado contra o mar.
onde permaneci por quase quatro anos. Res-
Domar o leme das nuvens, onde mora
ponsável pela área de cultura, história e lite-
o mito, a glória, de um deus a naufragar.1
ratura brasileiras, frustrava-me o fato de eu
Em 1973, no meu último ano de gradua- não poder divulgar Fernando Pessoa, ainda
ção na Faculdade de Letras da Universidade mais porque, na França, à época, seu nome
1 A Fernando Pessoa. In: SECCHIN, Antonio Carlos. Des- ainda padecia de escassa circulação. Recorri,
dizer. Rio de Janeiro: TOPBOOKS, 2017. p. 17. então, a um estratagema: consegui incluir
O n o me s o b o n o m e   •  35

em minhas aulas a poesia de Pessoa, sob a Capitais de Língua Portuguesa, “Novos ta-
alegação de que, como Ricardo Reis passa- lentos, novas obras em língua portuguesa”,
ra bastante tempo no Brasil, o poeta, assim, que arregimenta centenas de concorrentes
não deixava de ser parcialmente “brasileiro”. de toda a lusofonia. Efetuei mais de duas
De volta ao Rio de Janeiro, tornei-me pro- dezenas de palestras sobre temas de língua
fessor titular de literatura brasileira, em 1993. e literatura portuguesas, ou sobre as relações
Entre os cinco membros da banca examina- culturais entre Portugal e o Brasil. Entre elas,
dora, dois eram renomados catedráticos de cito “O enigma M. de A.”, que proferi nesta
literatura portuguesa: Massaud Moisés, da Casa há um decênio; o discurso de recepção
Universidade de São Paulo (USP), e, em novo na ABL, em 2009, ao sócio correspondente
encontro, Cleonice Berardinelli. Ao cabo do Arnaldo Saraiva; e ainda “João Cabral: a lite-
concurso, ofertei à mestra a fotocópia de uma ratura brasileira e algum Portugal”, na Univer-
prova que eu fizera num exame de gradua- sidade de Coimbra, em 2011.
ção, no longínquo ano de 1971. Além de en- Também sou grato ao Instituto Camões e
tão haver-me concedido nota elevada, Cleo­ à Fundação das Casas de Fronteira e Alorna,
nice profetizara, em comentário manuscrito à que, em 1995, receberam-me na condição
margem do texto, uma frutífera carreira nas de professor convidado. Grato igualmente à
Letras para aquele jovem estudante. Fundação Calouste Gulbenkian, pelo apoio a
Como veem, não posso me queixar de um magnífico projeto de coedição celebrado
profecias portuguesas, desde o berço, com entre a Glaciar e a ABL, e ao Jornal de Letras,
meu avô Fuzeira, até a juventude, com a pro- na pessoa de seu diretor, o intimorato poeta
fessora Cleonice. Hoje, de bom grado aco- e jornalista José Carlos de Vasconcelos, que,
lho quaisquer palavras benfazejas que algum em 2015, publicou nesse periódico minha
amigo queira emitir a respeito de meu futu- “Autobiografia desautorizada”.
ro, desde que esse amigo seja português ou No início deste discurso, apresentei os
vinculado a Portugal, porque, nesses casos, versos que, aos 20 anos, escrevera em ho-
já percebi que as profecias se concretizam. menagem a Pessoa. Gostaria de concluir a
Para não entediar-vos além do mínimo elocução com a leitura de poema recente,
protocolar, cuido agora de sintetizar outras em que o vate também é citado, unindo
marcas da forte presença portuguesa em mi­ assim, através de Pessoa, os laços de mi-
nha trajetória. Integro três conselhos editoriais nha existência e de meus versos. Aliás, do
lusitanos ou luso-brasileiros, dois deles nos livro Desdizer, poesia reunida, a ser lançado
Estados Unidos, um no Brasil. Participei dez amanhã, dia 11 de maio, na Biblioteca da
vezes do júri do Prêmio Portugal Telecom de Imprensa Nacional-Casa da Moeda, cons-
Literatura, e cinco vezes do júri do Prêmio Ca- tam dois textos que se reportam a grandes
mões, nas ocasiões em que saíram vencedores autores portugueses. Um dialoga com Eu-
Lygia Fagundes Telles, Ferreira Gullar, Manuel génio de Andrade, a quem visitei no Porto.
António Pina, Alberto da Costa e Silva e Hélia O outro convoca Pessoa (Pessoa não cessa
Correia. Há três anos faço parte, como repre- de ser um outro), cujo nome comparece na
sentante de meu país, da comissão julgado- primeira estrofe do primeiro poema do novo
ra do Prêmio Literário da União das Cidades livro. A peça se intitula “Na antessala”, e
36  •  Antonio Carlos Secchin

aspira a ser um cartão de visitas da obra em É, pois, com modéstia, entrelaçada a


sua totalidade. Leio-a: júbilo e emoção, que passo a integrar o
Espalhei dezoito heterônimos quadro da Academia das Ciências de Lis-
em ruas do Rio e Lisboa. boa. Junta-se a tantos confrades ilustres
Todos eles, se reunidos, alguém que às vezes consegue ser Antonio
não valem um só de Pessoa. Secchin.
Trancafiei-me num mosteiro, Na tradição da Itália, como se sabe, os
esperando de Deus um dom. filhos homens portam apenas o apelido (o
O que Ele me deu foi pastiche sobrenome) paterno. Assim, a descendên-
da poesia de Drummond. cia italiana masculina indica simultanea-
Ressoa na minha gaveta mente uma presença e uma ausência, a
um comício de versos reles. da linhagem materna. Não ignoramos que
Em coro parecem dizer: uma ausência, às vezes, pode pesar tanto
Não somos Cecília Meireles. ou mais do que uma presença.
O desavisado leitor Por sob o nome escrito em meu regis-
espere bem pouco de mim. tro civil, pulsa um outro, não expresso, mas
O máximo, que mal consigo, indelevelmente inscrito em minha vida. Por-
é chegar a Antonio Secchin.2 tanto, aceitai que eu aqui o desvele, e, ao
2 “Na antessala”. In: SECCHIN, Antonio Carlos. Des­dizer. despedir-me de vós, afetuosamente decla-
Rio de Janeiro: TOPBOOKS, 2017. p. 178. re-me António Fuzeira.
Raio sobre tela: crítica de arte
na poesia de Ferreira Gullar
Marcos Estevão Gomes Pasche
Professor de Literatura Brasileira da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e crítico literário,
autor de De pedra e de carne (Confraria do Vento, 2012) e de Cláudio Manuel da Costa,
Série Essencial (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2014).

Para Nathália Augusto Se convierem dois contrapontos hipotéti-


cos dessa natureza, imaginemos um poema

E
m entrevista publicada no primeiro discursivo, de baixa densidade imagética e
volume de Papos contemporâneos, metafórica, contentado em descrever qual-
organizado por Dau Bastos, Ferreira quer quadro ou escultura. Imaginemos um
Gullar assim respondeu a uma pergunta outro texto, agora devotado à experimen-
acerca das diferenças entre a crítica e a poe- tação, no qual eventuais informações artís-
sia de sua lavra: ticas apareçam apenas soltamente. Outro
Ensaio é mais reflexão, teoria, tentativa de é o perfil dos poemas críticos (conforme
compreender, demonstrar. A poesia, não, é chamarei aqui) de Ferreira Gullar. No poe-
muito especial, é essa coisa que falei de inven- ta que pondera e delira, crítica de arte e
tar a vida. Quando escrevo sobre arte, procu- poesia se aproximam até se fundirem, num
ro coerência no que digo em relação ao que
amálgama do teórico e do artístico, daí sur-
escrevi antes; quando faço poesia, não tenho
gindo um outro dizer, ponto novo em sua
essa preocupação. Essa é uma diferença impor-
escrita. A novidade surpreende por dupla
tante entre a poesia e o pensamento teórico. A
poesia também é um tipo de reflexão, mas não originalidade: configura um motivo recente
busca coerência alguma (2007, p. 85). da poesia enquanto consolida juízos que,
em âmbito teórico, remontam aos anos de
A distinção tem procedência conceitual. 1950 – à origem da obra geral do poeta-
Porém, os dois últimos livros poemáticos de -crítico, portanto. O exercício não é inédito
Gullar aproximam as atividades em que ele no curso histórico da poesia brasileira, mas
mais se notabilizou – a poesia e a crítica de com Gullar ele alcança um patamar distinto,
arte. Isso já se notava em livros anteriores, pela alta voltagem do inteligível e do sen-
mas Muitas vozes (1999) e Em alguma parte sível nos poemas em si; e, em termos de
alguma (2010) exibem com solidez grada- trajetória, pelo resgate que o poeta propicia
tiva textos pautados pelas artes plásticas e ao crítico, quando este se encontrava numa
plasmados por linguagem transfiguradora. fase de certo esgotamento.
38  •  Marcos Estevão Gomes Pasche

Na vertigem do dia, de 1980, é o livro um amarelo arde/ me queimaria nele/ ou


em que tal fusão se estampa pela primei- teria manchado para sempre de delírio/ a
ra vez na poesia do maranhense, ainda de ponta dos dedos” (p. 401).
maneira discreta. “Lições da arquitetura”, Avançada no tempo, a nuance de es-
referente e reverente à obra de Oscar Nie- crita é adensada, aparentemente de for-
meyer, não se restringe ao encômio, tam- ma parca. Em Muitas vozes, de 1999, são
pouco à mimetização em versos de algum dois os poemas que corporificam o dizer da
projeto arquitetônico. O texto suscita um crítica de arte: “Méditation Sans Bras, de
estilo que o poeta passaria a desenvolver Rodin” e “Poema para Franz Weissmann”.
jungindo dicção espantosa e olhar analítico: Dentro do volume, a quantidade é pouca,
“No ombro do planeta/ (em Caracas)/ Oscar afinal são dois textos em meio a um total
depositou/ para sempre/ uma ave uma flor/ de cinquenta e quatro. Mas se se considerar
(ele não faz de pedra/ nossas casas:/ faz de que os poemas críticos haviam aparecido
asa)”.1 Motivadas pelas afinidades ideológi- com apenas um exemplo em cada um dos
cas que aproximavam o poeta e o arquiteto, dois livros anteriores, Muitas vozes já com-
as estrofes seguintes prosseguem cantando porta o dobro. Só que o quantitativo é fator
a solidariedade e a esperança, integrando secundário por enquanto. O típico discurso
termos da técnica e palavras da cosmovi- do crítico, que interpreta a composição e
são – “traço futuro”, “o ferro o cimento a avalia a fatura de trabalhos, molda-se pelo
fome”, “humana arquitetura”, “açúcar da dinamismo da poesia, seja na observação
pedra”, “argila da aurora” – e rematando- de uma peça em sua unidade –
-se entre o crítico e o político: “Oscar nos O corpo vem
ensina/ que a beleza é leve” (Ibidem). do metal da treva
Em Barulhos, de 1987, manteve-se a porejando luz na parte leprosa
da figura
quantidade desse tipo de escrito: “Pintura”
  onde falta o braço
figura isoladamente no volume que registra arrancado
a despedida do autor de seus vínculos gru- (sem nunca ter estado ali)
pais, fossem de partido ou de vanguarda. O com fúria
texto não toma alguma produção unitária deixando a chaga
para dela anotar referências, como se lhe a arder
satisfizesse a estrita identificação de um ob- fervente de ausência
e junto ao rosto
jeto. Antes e além, afirma-se a contamina-
de tal modo que
ção mútua de obra e espectador, quando
o ilumina
pele e pasta se imbricam e o texto se infla- em laivos e lascas de luz
ma como textura: “Eu sei que se tocasse/ as quais
com a mão aquele canto do quadro/ onde se vertem
1 In: GULLAR, Ferreira. Toda poesia. 21.ª edição, revista no pulsante cofre do púbis
e ampliada. Curadoria de Augusto Sérgio Bastos. Rio
de Janeiro: José Olympio, 2015. p. 372. As próximas ci-
Ela medita
tações de poemas de Ferreira Gullar serão extraídas da relâmpagos
mesma fonte, pelo que informarei apenas o número da sobre despojos
página. Agradeço ao curador pela referência da atuação
e Gullar na revista Continente, mencionada adiante. (“Méditation Sans Bras, de Rodin”, p. 530).
Raio s o b r e t e l a : c r í t ic a d e a rt e n a p o es i a d e F e r r e i r a G u l l a r   •  39

–, seja na concepção de uma poética em Centradas em Franz Weissman, invenção


sua amplitude: e reflexão coerem: o escultor se contrapõe
a antecessores e sua escultura não é do re-
Ao contrário
do escultor de antes
pleto, e sim do vazado. E se o poema revela
que aquilo de que fala valendo-se de um enig-
para dissipar a noite ma – o espaço não é falta de massa, e sim
(mítica) modalidade transparente de existência –,
que habita a matéria a resenha, que oferece entendimento, não
imprimia à superfície prescinde da ruptura com a lógica para di-
da massa zer o que diz: nela, afinal, a escultura não
velocidades de luz,
é objeto, e sim “um ser do espaço e de es-
Weissmann
paço”. Diferentes em suas especificidades,
escultor de hoje
arte e ensaio se conjuntam para se afirma-
  abre
a matéria rem um dizer outro e afim. Catalogado na
e mostra que dentro dela esfera da crítica de arte, o livro Relâmpagos,
não há noite mas de 2003, confirma o improvável encontro:
espaço de seus quarenta e nove textos, onze se
dispõem em verso, dentre os quais “Médi-
puro espaço
tation Sans Bras, de Rodin”, “Poema para
modalidade transparente Franz Weissmann”, “Lições da arquitetura”
de existência e “Pintura”.
(“Poema para Franz Weissmann”, p. 531). Em Ferreira Gullar, essa modalidade de
escrita atinge culminância em seu último
Nesses lances, a escrita de Ferreira livro de poemas – Em alguma parte algu-
Gullar forja-se por uma dicção híbrida, do- ma, de 2010. Neste, são seis os textos te-
tada de postura contemplativa, própria do matizados pelas artes plásticas, a ponto de
estudo, e de espírito alterante, que convida constituírem uma seção exclusiva dentre
o objeto estudado a habitar a casa aberta as quatro do volume. Aqui a quantidade
da confusão. Embora o autor tenha distin- tem inegável relevo, e pode ser especu-
guido ensaio e poesia, ligando o primeiro lada em duas direções: uma é pela parte
à explicação e desobrigando a segunda da imperscrutável da subjetividade do autor,
coerência, a conjugação do poema anterior que por razões nem sempre claras leva-se
a uma passagem de “VII Salão Nacional ou é levado a temas e formas. A outra dire-
de Arte Moderna”, resenha publicada em ção congrega fato e hipótese: de atuação
1958, acende um imprevisto: “Em Weiss- frequente e destacada no debate estético
man, por exemplo, nada verá quem busque em períodos anteriores e posteriores ao
as qualidades tradicionais do volume, de de seu exílio (ocorrido de 1969 a 1977),
massa, de peso de matéria. Sua escultura a partir da década de 1990 Gullar começa
é um ser do espaço e de espaço, e é das a perder espaço crítico em veículos de
tensões e virtualidades do espaço que ela se grande prestígio. Vejo nisso uma conse-
constrói” (2015, p. 306). quência da adesão – ao longo de suas três
40  •  Marcos Estevão Gomes Pasche

últimas décadas de vida, aproximadamen- pelos cofres públicos, claro!) nos corredores
te – a um conservadorismo incompatível e salas da Bienal. Vai cair gente de montão!
com o engajamento vanguardista e com Bem, depois decido... Estou aberto a suges-
tões extravagantes. Cartas para a redação
a militância de esquerda que tanto marca-
(2003, p. 39).
ram sua biografia. Seus derradeiros traba-
lhos críticos regulares se deram nas revistas Os poemas críticos de Em alguma parte
Continente, de 1999 a 2009, e Arte & in- alguma atestam o domínio de uma vertente
formação, entre 2000 e 2001, ambas sem trabalhada por poetas outros e que Gullar
a mesma influência e visibilidade do Suple- passou a experimentar quando já estava
mento Dominicial do Jornal do Brasil, de poeticamente consagrado e quando suas
que o maranhense foi articulista e editor indagações culturais se encontravam num
entre 1956 e 1961, e das revistas Veja e limite reflexivo e de recepção pública. Em
Isto É, com as quais colaborou ao voltar do meio a isso, ele revisitou temas frequentes,
exílio.2 Nesse segmento, seu último livro deu à sua longínqua trajetória poética um
com abordagens e posicionamentos novos traço novo e revivificou seu fazer crítico,
é Argumentação contra a morte da arte, inscrevendo-o substantivamente em sua bi-
de 1993, cuja procedência contestatória é bliografia poética – parte de sua obra man-
dissolvida por manifestações grosseiras: tida em prestígio.
Pois se é assim, também vou me candida- Uma importante diretriz do Romantis-
tar à próxima Bienal. Solicitarei à instituição
mo alemão reivindicava unir crítica e cria-
que providencie, para minha performance,
ção, e, no Brasil, uma tendência que vai de
uma tropa de dois mil burros montados por
anões! É uma ideia chocante ou estarei sendo Euclides da Cunha a Alberto Pucheu recla-
tímido? Talvez seja mais instigante despejar ma a indisciplina da ciência pelo contato
vários milhões de bolinhas de gude (pagos subversivo com a arte. Ao mesmo tempo
em que reforçam tal orientação, os poe-
2 A Continente, publicação da Companhia Editora de

Pernambuco, de circulação mensal, segue vigente nos


mas críticos de Ferreira Gullar colocam-na
formatos impresso e virtual, acessível no endereço noutro movimento, pois, além de receber
https://www.revistacontinente.com.br/. Os setenta e
três textos publicados pelo crítico naquele periódico
poeticidade, a crítica leva com ênfase sua
podem ser acessados diretamente a partir de https:// coerência à poesia, retraduzindo uma par-
www.revistacontinente.com.br/secoes/1034-colunas/
traduzir-se.html. A Arte & Informação, da editora Ar de
te na outra parte. Os poemas efetivam o
Paris, teve apenas cinco números impressos. Inicialmen- analítico e expressivo, indo mais fundo
te, as publicações eram trimestrais, mas os dois últimos
números saíram depois do previsto, e por isso a circu-
que o mero discurso acerca de objetos
lação se deu entre maio de 2000 e dezembro de 2001. culturais e adiante da linguagem poética
Cada um dos cinco números trazia um dossiê de algum
movimento de vanguarda, cuja análise ficava a cargo de
pura, isenta de comunicabilidade, caso de
Gullar. Pela ordem, os dossiês versaram sobre Cubismo, “Escultura”, parte do poema “Definições”,
Futurismo, Expressionismo, Dadaísmo e Vanguardas
Russas. Após o quinto número, a revista faliu, e dela
de O vil metal (1957): “trapézio de can-
não encontrei arquivos na internet. Sobre a atuação cros/ Saturno e Marte/ SVUCROS/ copos
de Gullar no SDJB, ver MONTEIRO, Bruno Melo; SILVA,
Renato Rodrigues (Org.). Antologia crítica: Suplemento
de pus/ das álgebras” (p. 120). Os poemas
Dominical do Jornal do Brasil/ Ferreira Gullar. Rio de Ja- críticos identificam artistas e obras, mas de
neiro: Contra Capa, 2015. A atuação na Veja e na Isto
É resultou em GULLAR, Ferreira. Arte contemporânea
modo a expô-los como dicção ou processo,
brasileira. São Paulo: Lazuli, 2012. estourado no pano negro da noite –
Raio s o b r e t e l a : c r í t ic a d e a rt e n a p o es i a d e F e r r e i r a G u l l a r   •  41

É mesmo que nada “Os fios de Weissmann”, que mostram tra-


evocá-lo pintado balhos escultóricos de Siron Franco e Franz
(na tela) Weissmann, respectivamente), ora ela é evi-
daí porque denciada pela dedicatória (“Mínimo voo”,
só restou a Siron
a Amílcar de Castro; “Desenvolvimento
imprimir as marcas da morte ausente
do quadrado em cubo”, a Mary Vieira; e
e vil
no leito de concreto “Quadro-corpo”, a Iberê Camargo). Conju-
metáfora brutal gados textos e oferecimentos, cada um dos
da vida que explodiu poemas pensa inventivamente o fazer dos
(“Vestígios”, p. 625) evocados. Se considerarmos que em toda
a bibliografia poética de Gullar anterior a
–, ou na claridade matutina do nada: 2010 houve apenas seis dedicatórias con-
tudo de que ela vencionais (inscrições apostas entre o título
dispunha e o corpo do texto), as deste caso ganham
era um quadrado significado determinante, por assinalarem
de metal o procedimento central da crítica: falar do
ionizado
fazer de alguém. “Figura-fundo” é o único
mas o sonha poema da seção que não registra o nome de
cúbico qualquer artista. Iniciador da seção, coube a
e o traduz ele a insígnia das concepções estéticas do
de quadrado autor: uma arte-poética das artes plásticas,
em cubo
subseguindo-lhe as poéticas particulares.
de ar
(e luz) a pintura, digamos,
é mentira
para isso
corta-lhe isto é:
a fímbria com uma pera
lúcida certeza: pintada
e a dobra não cheira
na razão
não se dilui
exata da beleza (...)
em xarope,
(“Desenvolvimento do quadrado água rala e azeda, é
em cubo”, p. 628). pintura e por isso
dura
A identificação parte daquilo, daquele
mais do que qualquer pera verdadeira (p. 620).
ou daquela que motiva cada um dos poe-
mas: “Vestígios”, “Mínimo voo”, “Os fios Dos poemas que partem de poéticas,
de Weissmann”, “Desenvolvimento do qua- destaco “Quadro-corpo”, centrado não
drado em cubo” e “Quadro-corpo” apon- numa pintura específica, e sim numa ação
tam direta ou indiretamente as obras con- de pintar – a de Iberê Camargo, insinua a
templadas. Ora a referência ao artista faz-se oferta. Cada uma de suas três estrofes dá a
ao correr do texto (o já citado “Vestígios” e ver um movimento, verbalizado por um tipo
42  •  Marcos Estevão Gomes Pasche

de discurso e pela alternância de pronomes. Assim na tela como no céu, um relâmpago


Inicialmente, a fala faz pensar num crítico rasga e rabisca até consumar-se em parali-
especulando perspectivas para a apreciação sia vibrante, num remate apoteótico.
da pintura. A linguagem prefere o pedagó- e surpreenderá
gico ao metafórico, e o movimento segue o na tela
dúbio olhar do artista, criador e espectador o relâmpago
de sua própria peça: (ali parado)
da ação furiosa
Há dois modos de ver da mão
os seus quadros: de perto, que à pasta-noite
como ele os via infundiu
ao pintá-los esta convulsão de cósmica gestação
e de longe da luz ou
ou seja melhor dizendo
da distância que tomava da humana combustão
para avaliá-los (p. 630). ou
melhor dizendo
A segunda parte toma o receptor, deslo-
da conversão do pintor
cando-o da observação para aproximá-lo do de seu osso e
organismo da obra. O mover, então, é de musculatura
envolvimento, não restrito à contemplação de seu câncer
distanciada. O vocabulário técnico entre os e sua desventura
sexto e nono versos adensam a dicção es- enfim
a transubstanciação
pecializada de quem conduz seu discurso
do pintor em pintura (pp. 630-1).
e, no lugar de comentários frios, investe na
orientação do corpo e do sentir: A exemplo do afirmado pela compara-
ção dos textos pautados por Franz Weis-
e neste ir e vir
você agora
sman, em torno de Iberê Camargo Gullar
como ele antes escreve textos distintos em seus pontos de
(mas ao revés) partida e muito convergentes nos pontos
descobrirá o viés de chegada e nos percursos. Em resenha
da tessitura de 1958, o maranhense diz que o gaúcho,
da pasta luminosa e basta diante de certa moda pictórica, “recuou
que lhe constitui (...) como para retomar contato com as for-
a carnadura (Ibidem).
mas autênticas de pintura” (2015, op. cit.,
O terceiro movimento é preponderante- p. 303). À frente, afirma-se que o gaúcho
mente do fazer artístico. Se as primeira e “avança furiosamente”, que “sua pintura,
segunda cenas dão ênfase ao pintor e ao em luta, se orienta” e que “é como pin-
espectador, na terceira o protagonismo é tor que Iberê Camargo se entrega a uma
assumido pela arte, num evento de aguda aventura dramática” (Ibidem, p. 304). Pu-
excitação. Ao poeta-crítico soma-se agora blicado quarenta e cinco anos depois da re-
um narrador, que ficcionaliza o desfecho senha, “Iberê: essa lama estelar”, capítulo
em que pintura e pintor se incorporam. de Relâmpagos, em apenas quarenta linhas
Raio s o b r e t e l a : c r í t ic a d e a rt e n a p o es i a d e F e r r e i r a G u l l a r   •  43

retoma por três vezes a palavra “aventura”. uma nova aventura. Sem se ignorar que a
Segundo o crítico, ao pintor gaúcho foi ne- experiência pode significar apuro e estímulo
cessário recuar a um estágio primitivo da à autonomia, da resenha para o livro o autor
pintura, “descida vertiginosa do desconhe- adensou sua prosa crítica adensando-lhe a
cido ao conhecido” (2003, op. cit., p. 136), poeticidade. Não se veja nisso uma simples
pela necessidade de fundar a linguagem injeção de vocabulário metafórico: “Iberê:
fora de fórmulas e práticas convencionadas. essa lama estelar” formula um enredo ale-
Essa aventura é uma aposta de vida, impri- górico para apresentar o pintor como ser da
mida em “pasta escura e no entanto lumi- cultura e do mistério. E se ao pintor-pintura
nosa, uma espécie de lama estelar, plena de foi necessário recuar à origem da expressão,
energia, donde deve ressurgir a fala amea- o crítico-poeta alcançou sobrevida volvendo
çada do homem que arriscou perder-se na à dimensão poética da linguagem, por ele
matéria” (Ibidem, idem), e que, com paixão habitada antes de seus textos serem postos a
e gravidade, significa a “busca dessa ilusão serviço de programas. Também grave e apai-
que quer transcender a matéria, o instante, xonada, a aventura de Ferreira Gullar é plena
a morte” (Ibidem, p. 137). de coerência – ilusão que quer transcender o
Os dois textos se situam em fases bem esgotamento, o limite e o desapreço.
diversas da produção de Gullar: o de 1958
Referências
é assinado por quem se via no centro da
“Não sou viciado em poesia” (entrevista de Ferreira Gullar).
discussão estética; pelo requinte editorial e In: BASTOS, Dau (Org.). Papos contemporâneos. Rio
pelo corpus definido pelo critério da admi- de Janeiro: UFRJ, 2007. pp. 77-88.
GULLAR, Ferreira. Argumentação contra a morte da arte.
ração, o livro de 2003 decorre mais da força 8. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003.
_____. Relâmpagos: dizer o ver. São Paulo: Cosac & Naify,
de um nome do que de uma nova investida 2003.
sobre as artes plásticas. Tendo sido intérprete _____. Toda poesia. 21. ed. Curadoria de Augusto Sérgio
Bastos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2015.
de primeira hora e articulador de vanguar- MONTEIRO, Bruno Melo; SILVA, Renato Rodrigues (Org.).
das nacionais, Ferreira Gullar encontrava-se Antologia crítica: Suplemento Dominical do Jornal do
Brasil/ Ferreira Gullar. Rio de Janeiro: Contra Capa,
num limite crítico. Lançou-se, portanto, a 2015.
Fevereiro de 1957 – Notas para um
ou dois poemas de Ferreira Gullar
inéditos em livro
Luiz Guilherme Ribeiro Barbosa
Doutor em Teoria Literária pela UFRJ. Professor de Português e Literaturas do Colégio Pedro II.
Autor de A mão, o olho: Uma interpretação da poesia contemporânea (2014).
Integra o grupo de pesquisa Litescola: Literatura e Ensino.

Agradeço a Renato Rezende e Sergio o poema fora anunciado como um “trailer”


Cohn, parceiros na pesquisa sobre a poesia da exposição (JORNAL DO BRASIL, 1957, p. 8),
neoconcreta, e a Marcos Pasche, parceiro e com a observação de que devia ser lido até
leitor de longa data da obra de Gullar, pela
o final antes de o leitor do jornal formular o
colaboração durante a pesquisa.
juízo. Embora não haja registro de que
tenha sido exposto no MEC, o poema de

E
m 1957, na mesma edição em que Gullar foi anunciado como exemplo repre-
publica um poema de Ferreira Gullar, sentativo da exposição, funcionando, pelo
o Suplemento Dominical do Jornal do menos, como testemunho da situação da
Brasil (SDJB) noticia a abertura da I Exposi- recente poesia concreta sob a perspectiva
ção Nacional de Arte Concreta, na segun- de um de seus formuladores, na ocasião.
da-feira, 4 de fevereiro, às 18h, no Salão de O poema é como um trailer, mas muito
Exposições do prédio do Ministério da Edu- singular, pois, em lugar de passar em revista
cação e Cultura (MEC), no Centro do Rio obras da exposição, pode-se dizer que pro-
de Janeiro (SUPLEMENTO, 1957, p. 9). A põe uma experiência concreta das palavras
exposição tinha ocupado o Museu de Arte na página do jornal, antecipando a mostra.
Moderna de São Paulo (MASP) de 4 a 18 de Observando o poema na página à primei-
dezembro de 1956, e chegava ao Rio sob ra vista, reconhecem-se seis partes textu-
patrocínio do caderno de cultura que a no- ais organizadas em módulos retangulares,
ticiava. Ferreira Gullar, que desde outubro dispostos em três colunas com dois módu-
de 1956 editava, ao lado do amigo Oliveira los cada, preenchendo uma página inteira
Bastos, a seção “Artes Plásticas” do Suple- do jornal no formato paisagem (Figura 1;
mento, publicou seu poema “concreto” em GULLAR, 1957b, p. 3). A princípio, o movi-
página inteira, disposto em seis retângulos mento de leitura do jornal, por hábito, con-
distribuídos por três colunas, na edição de vida a ler o poema coluna a coluna, mas o
domingo na véspera da abertura carioca da encadeamento semântico do texto apresen-
mostra. Na quarta-feira da semana anterior, ta maior coerência numa leitura horizontal
Figura 1  GULLAR, 1957b, p. 3 (cf. Anexo)
F e v e r e i ro de 1957   •  47

dos módulos. Assim, partindo das palavras 50 páginas que formam, após a leitura das
no primeiro módulo, não está claro se a lei- 14 primeiras, de acordo com a montagem
tura deve prosseguir para as palavras abaixo atenta do leitor, a sequência: “a formiga tra-
desse módulo ou para as palavras ao seu balha na treva a terra cega traça o mapa do
lado direito, de maneira que, como as par- ouro forno maldita urbe” – Gullar observa
tes não estão numeradas, é possível con- que posteriormente eliminou a palavra “for-
siderar a ambiguidade na ordenação. Há, no” do texto (GULLAR, 1991, s/p). Foi esse
no entanto, uma indicação para a direção o trabalho exposto nas mostras de arte con-
horizontal da leitura dos módulos em duas creta em São Paulo e no Rio de Janeiro, mas
partes textuais: os finais de linhas “ru” e apenas parcialmente: cinco das 50 páginas,
“fa” se repetem num dos módulos como com 1,5m de altura e 0,5m de largura cada
partes incompreensíveis do texto, mas são uma (GULLAR, 1991, s/p). O trabalho, por-
completados pelos fragmentos iniciais das tanto, se impunha, ainda que fragmentado,
linhas do módulo ao lado direito, dispostas e em grande medida pelos seus vazios. Ao
na mesma direção de “ru” e “fa”: “ru” rememorá-lo, o poeta considera que a or-
/ “ina”, “fa” / “lha”, “ru” / “ga”, “fa” / ganização das palavras em páginas diferen-
“la”. As margens de ambos os módulos tes, com as letras dispersas na página como
estão apagadas na sua interseção, coinci- insetos, a serem remontadas pelo olhar do
dindo com o movimento de completar as leitor, possibilitava “conciliar o discurso linear
palavras de um módulo no outro. A expe- com a espacialização da palavra” (GULLAR,
riência de leitura demanda a montagem do 2007, p. 23), problema que tinha sido aberto
poema, seja no âmbito da organização dos pelo livro de 1954. O folhear das páginas era
módulos retangulares, onde as partes tex- o gesto necessário para formar o discurso,
tuais estão impressas, seja na recomposição que, no entanto, era simplificado pela esco-
das palavras fragmentadas entre módulos. lha vocabular e desacelerado pela contem-
Gullar oferecia, nesse momento, um cartão plação da visualidade das letras minúsculas
de visitas à poesia concreta, embora, sob a dispostas na página grande. Segundo Gullar,
perspectiva do que se narrou depois, o poe- no entanto, a busca da poesia concreta di-
ma não apareça como exemplo das melho- vergia dessa realização, pois propunha a
res realizações do movimento. eliminação da sintaxe verbal – das relações
Nem mesmo aparece nas memórias do gramaticais entre as palavras – e a composi-
poeta, e entre alguns motivos que podem ção das palavras de acordo com uma sintaxe
ser considerados está a diferença formal des- visual, o que levou um dos poetas concretos
se texto em relação àqueles publicados por de São Paulo, Décio Pignatari, a propor não
Ferreira Gullar depois de 1954, quando lança se tratar O formigueiro de um poema con-
A luta corporal. Ao rememorar a trajetória creto (GULLAR, 2007, p. 23).
como poeta, o autor lembra, nos diversos Essa, porém, é uma leitura realizada por
textos que publicou a respeito, que a primei- Gullar posteriormente. Os sentidos da poe-
ra obra que produziu em diálogo com a poe- sia concreta estavam em disputa naquele
sia concreta foi O formigueiro, poema data- momento, e não apenas a sua significação,
do de 1955 e composto por uma série de como também o sentido da vanguarda.
48  •  Luiz Guilherme Ribeiro Barbosa

Em março de 1957, no mês seguinte à ex- texto, desenvolve uma pesquisa formal em
posição carioca, Ferreira Gullar publicou no diálogo com O formigueiro, tensionando a
Suplemento Dominical um artigo denomi- direção linear da leitura do verso, em cri-
nado “O poema concreto”, que inicia com se, mas preservando a seriação de páginas
o seguinte parágrafo: ou módulos, e de palavras em cada página
Não existe ainda – e espero que não venha a ou modo, em relação de continuidade. Sob
existir – uma maneira rigorosa de definir o que é essa perspectiva, O formigueiro (1955), o
um poema concreto. Essa falha pode perturbar “poema concreto” de fevereiro de 1957 e
certos leitores mais curiosos ou mais desconfia-
os poemas visuais para página única (Gullar
dos; para o poeta, no entanto, tal imprecisão é
compôs e publicou pelo menos 15 desses
fecunda – e chego mesmo a dizer que, quando
já for possível definir o poema concreto, é que a poemas) constituem o corpus da pesqui-
experiência que hoje nos impulsiona já perdeu sa concreta de Gullar, desde o começo de
sua força (GULLAR, 1957a, p. 2). 1955, quando se encontrou com Augusto
de Campos na Cinelândia e passou a se
As tensões discursivas entre Ferreira corresponder com o grupo da revista Noi-
Gullar e os três poetas de São Paulo que gandres, até 1959, quando inaugurou a
editavam a revista Noigandres parecem im- I Exposição Neoconcreta, no MAM do Rio,
plícitas nesse trecho, tanto que em junho e apresentou os livros-poema (GULLAR,
de 1957 a diferença de concepção teórica 2007, p. 21-40; GULLAR, 2015, p. 37-44).
se torna clara na capa do Suplemento, com Nos depoimentos em que rememora
a publicação lado a lado de um manifesto o período, Ferreira Gullar não menciona
de Gullar, Oliveira Bastos e Reynaldo Jardim, o poema de fevereiro de 1957, propondo
em resposta polêmica a uma intervenção de uma continuidade, no tempo, entre a expe-
Haroldo de Campos. O que, ainda assim, riência de O formigueiro, em 1955, e a dos
interessa depreender é como o poema de “poemas puramente visuais, explorando as
Gullar publicado em 3 de fevereiro daque- relações entre os valores semânticos e fonéti-
le ano se insere na pesquisa “concreta” do cos” (GULLAR, 2015, p. 41). Pode ser exem-
poeta, que assumiria outra denominação, plo desses poemas “puramente visuais”
“neoconcreta”, apenas em 1959. Com aquele sem título em cuja primeira linha se
isso, a leitura de que O formigueiro con- lê “mar azul”, publicado em 3 de março de
sistia num “livro-poema” antes do termo, 1957 numa das páginas do SDJB. A mancha
forma que será explorada por outros artis- gráfica do poema aumenta em largura linha
tas do grupo neoconcreto, como Lygia Pape a linha, pois a cada vez que a linha se repete,
(Livro da Criação, 1959), e terá sido referên- uma expressão é adicionada, até formar, na
cia fundamental para a série Bichos (1960), quinta linha, a combinação de cinco expres-
de Lygia Clark, consiste numa leitura poste- sões equidistantes: “mar azul / marco azul
rior da pesquisa estética desenvolvida por / barco azul / arco azul / ar azul” (GULLAR
Gullar a partir da publicação de A luta cor- apud BASTOS, 1957, p. 5). Ao apresentar
poral. Nesse sentido, o poema de fevereiro o poema, Oliveira Bastos considera-o com-
de 1957, ao apresentar a série de módu- posto sob o princípio da “progressão arit-
los retangulares que organiza as partes do mética”, compreendendo as expressões
F e v e r e i ro de 1957   •  49

linguísticas como “cápsulas sonoras” justa- p. 1). A enunciação da palavra num poema
postas (BASTOS, 1957, p. 5). Embora Gullar visual “orgânico” representa, para o leitor,
não destaque esse poema nos ensaios em uma “vivência”, então uma poética se ela-
que relê a sua obra, talvez pela linearidade bora de acordo com a significação do voca-
horizontal da leitura, que imita a tradicional bulário. A frequência de termos referentes a
direção de leitura do verso, “mar azul” abre cores e a elementos naturais (“mar”, “árvo-
a seção “Poemas concretos/neoconcretos” re”, “erva”, “mel” etc.) nos poemas visuais
seja de Toda poesia (1950-1980), reunião da de Ferreira Gullar manifesta a dimensão “vi-
obra poética organizada pelo poeta, seja de vencial” em textos muito curtos, embora
Poesia completa, teatro e prosa, reunião da apenas a comparação entre esses poemas
obra de Gullar preparada por Antônio Car- e os demais da obra de Gullar possa dar a
los Secchin (GULLAR, 1981; GULLAR, 2008). dimensão poética desse trabalho. A relação
Essa série de poemas inclui alguns que serão desencontrada entre expressão e recepção
designados como “neoconcretos” nas pági- do poema, que a leitura de Spanudis parece
nas do SDJB, graças às leituras desenvolvidas suscitar ao atribuir subjetividade à mera re-
pelo poeta e psicanalista Theon Spanudis, petição vocabular, parece o cerne do proble-
que integrou o movimento neoconcreto. ma para Gullar, a exemplo de quando, em
Embora, portanto, os livros-poema sejam 2007, relembra aquele momento:
uma forma, na obra de Gullar, associada Coloquei-me, então, a seguinte questão:
com a poética neoconcreta, será sobre o tra- como realizar um poema que resulte numa es-
balho com os “poemas puramente visuais” trutura visual expressiva e, ao mesmo tempo,
obrigue à leitura palavra por palavra? A neces-
que a compreensão “neoconcreta” será en-
sidade de resolver este problema levou-me a
gendrada inicialmente. inventar o livro-poema (GULLAR, 2007, p. 32).
Spanudis procura interpretar poemas
visuais de Gullar com base nas noções de O texto “mar azul”, publicado no SDJB
“espaço orgânico” e “espaço vivencial”, um mês após o poema de fevereiro de 1957,
em especial um poema que repete, for- inicia uma série de poemas visuais cuja pes-
mando uma coluna vertical à esquerda da quisa proporcionará a criação, em 1959 e
página, a palavra “árvore” cinco vezes, va- 1960, de livros-poema, poemas-objeto e o
riando a distância entre as linhas (“árvore // poema enterrado, e a elaboração da teoria
árvore / árvore / árvore ////// árvore”), com- do não objeto. Assim, é no âmbito da pes-
pondo um ritmo visual (SPANUDIS, 1959, quisa dos poemas visuais que a diferença
p. 1). Não são todos os poemas concretos em neoconcreta se enuncia, justificando, des-
que se reconhece o silêncio como elemen- sa maneira, o emprego de uma barra com
to de composição do texto, intercalando- valor ambíguo ou transitório para nomear a
-se ritmicamente à ocorrência das palavras. seção “Poemas concretos/neoconcretos” da
Quando acontece, a relação entre a palavra poesia reunida ou das obras completas de
e o espaço da página torna-se “orgânica”, Gullar. Por isso, por exatidão devo retificar a
segundo Theon Spanudis, propiciando uma afirmação de que esses poemas integram o
experiência “regressiva” da palavra como conjunto de textos “concretos” do autor, já
“coisa”, em vez de signo (SPANUDIS, 1959, que durante o processo de composição da
50  •  Luiz Guilherme Ribeiro Barbosa

série receberam nomeação diferente. No visuais corrobora a noção de antecipação do


entanto, também por isso se pode reler o livro-poema no trabalho de 1955, sugerindo
valor estabelecido por Gullar para o primei- que a forma neoconcreta desdobrável pelo
ro trabalho que realizou depois do livro de leitor opera uma síntese das pesquisas an-
1954. Considerar O formigueiro, criado em teriores. Quando narra, assim que encerra a
1955, como “precursor” (GULLAR, 2007, descrição de O formigueiro, o poeta lembra:
p. 23) dos livros-poema, expostos em 1959, “Logo em seguida, escrevi poemas mais or-
embora verdadeiro, representa escamotear todoxamente concretistas” (GULLAR, 2015,
o sentido da pesquisa “concreta” de Gullar, p. 41). É possível que fosse logo em segui-
e o poema publicado em fevereiro de 1957 da, mas, entre a exposição do seu trabalho
parece ajudar na compreensão desse pro- mallarmeano na I Exposição Nacional de Arte
blema. Pois, em primeiro lugar, a referência Concreta, em dezembro de 1956, e o início
do livro ou da plaquete como suporte para da publicação dos poemas “ortodoxamente
a composição de um poema remonta a um concretistas”, em março de 1957, Gullar pu-
texto fundamental e conhecido desde o co- blica nas páginas do Jornal do Brasil o poema
meço da pesquisa concreta. Seria possível de fevereiro de 1957. É possível também que
considerar, pelo menos a título de hipótese, esse poema representasse um caminho de
que O formigueiro consiste numa tradução trabalho vislumbrado pelo poeta e logo em
para o lirismo de Ferreira Gullar – com as seguida abandonado. Afinal, do ponto de
imagens dos jardins, do mato e da cidade vista da forma, o poema parecia resolver um
de São Luís do Maranhão, presentes desde problema colocado pela exposição: O formi-
A luta corporal – do poema Un coup de dés, gueiro se estendia por 50 páginas com 1,5m
publicado em 1897 por Stéphane Mallarmé de altura, das quais apenas cinco puderam
em Paris, França. A tomada de consciência ser expostas, ao passo que o poema de feve-
da palavra como objeto gráfico e o trabalho reiro se estendia por seis módulos cuja orde-
de indagação sobre o destino da composi- nação parece ambígua, funcionando como
ção do poema na página são figurados pelas um texto que depende da exposição simul-
formigas ou, a rigor, pelas letras que, reuni- tânea das partes para ser lido. Com isso, a
das pela leitura, recompõem a palavra que as diferença entre o poema a ser folheado e
nomeia e descreve o trabalho cego e infernal que não pode ser exposto integralmente, e
na cidade subterrânea. Do mar para a terra, o poema a ser integralmente observado para
do naufrágio para o formigueiro, o texto de ser montado pela leitura esclarece a diferen-
Gullar considera a relação entre superfície e ça entre O formigueiro e o poema de feverei-
asfixia, letra e experiência, leitura e expres- ro, e justifica em parte o esquecimento desse
são poética, enfrentando a negatividade irra- trabalho, nem exposto, nem publicado em
diada pela crise do verso, no impasse em que livro. Mesmo O formigueiro ficou inédito em
se reconhece depois de 1954. livro até 1991. Nesse sentido, o livro-poema
É sob essa perspectiva que o poema de funciona como síntese desses dois trabalhos,
fevereiro de 1957 pode ser lido. A continui- O formigueiro e o “poema concreto” sem
dade que Ferreira Gullar estabelece nas suas título publicado em fevereiro de 1957, pois
memórias entre O formigueiro e os poemas consiste num objeto a ser exposto e a ser
F e v e r e i ro de 1957   •  51

folheado ou manipulado, assim como o Livro disposição na página sugere a forma do


da criação, de Lygia Pape, o Livro infinito, de losango, se os termos forem considerados
Reynaldo Jardim, os Bichos, de Lygia Clark, e vértices de um polígono, ou o movimento
alguns outros “não objetos” produzidos du- de uma hélice, se forem considerados pon-
rante o movimento neoconcreto. tas em torno de um eixo (GULLAR, 1959,
Os poemas visuais “concretos/neocon- p. 7). Os termos descritivos, “campo” e
cretos”, datados, em Toda poesia, em 1957 “verde”, estão ordenados, de acordo com
e 1958, implicam a enunciação de cada a sequência de leitura sugerida, de maneira
palavra pelo leitor como um procedimento intercalada aos termos metafóricos, “pano”
da leitura necessário à produção de sentido e “vivo”, como num quiasmo, o que indica
do texto. Essa consideração pode parecer diferença no procedimento de composição
evidente por si mesma, mas é a esse pro- em relação aos poemas visuais concretos,
blema que Gullar se refere quando narra que em geral propõem a abstração progres-
a produção do livro-poema – o leitor, em siva da compreensão durante a leitura: da
lugar de receber as palavras do texto, re- onomatopeia “VVVVVVVVVV” à palavra
cria-o ao enunciar, ainda que em silêncio, “VELOCIDADE”, do termo “terra” às ex-
pelo olhar, cada elemento que o compõe. pressões “ara terra”, “rara terra” ou “errar
Diferentemente dos procedimentos de a terra”, do termo lógico “se nasce morre”
fragmentação de palavras encontrados em à formulação neobarroca “re-desnasce des-
“tensão” (1956), de Augusto de Campos, e morre”, da imagem “com som cantem” a
“velocidade” (1957), de Ronaldo Azeredo, seu oposto complementar “sem som tom-
ou de derivação e composição de palavras bem”, nos poemas concretos aqui lembra-
encontrados em “terra” (1956), de Décio Pig- dos (BANDEIRA & BARROS, 2002). O cru-
natari, e “nascemorre” (1958), de Haroldo zamento entre os quatro termos do poema
de Campos, os poemas visuais de Ferreira de Gullar imanta o espaço branco da página
Gullar apresentam nomes substantivos ou entre eles, sobre o qual se projeta o sentido
adjetivos inteiros e, em geral, com signifi- e a vivência, para retomar o termo de Theon
cação concreta e morfologia primitiva. Pelo Spanudis, do “campo verde” como um
menos um desses poemas de Gullar restou “pano vivo”. A leitura palavra por palavra
inédito tanto na reunião Toda poesia, de consiste num fenômeno de criação textual,
1980, quanto em Poesia completa, teatro pois altera a percepção do poema como
e prosa, de 2008. Apesar disso, assim como objeto gráfico, atribuindo-lhe cor, textura e
o poema-trailer de 1957, esse outro poe- significação distintas do que o olho revela.
ma visual esteve na abertura da I Exposição Na página em que foi publicado no
Neoconcreta, se não exposto, publicado SDJB, na edição especial para a I Exposi-
tanto nas páginas do SDJB quanto no ca- ção Neoconcreta, a mesma edição em que
tálogo da exposição (GULLAR, 1959, p. 7; se publica o Manifesto do grupo, o poema
GULLAR, 2007). Combina quatro palavras, “pano” está impresso ao lado de um breve
que, numa leitura de cima para baixo, da texto em que Gullar apresenta o conceito
esquerda para a direita, formam a sequên- do “livro-poema” (Figura 2). As imagens
cia “pano / verde / campo / vivo”, cuja das esculturas de Amilcar de Castro e Franz
52  •  Luiz Guilherme Ribeiro Barbosa

Weissmann revelam se tratar de uma pá- Embora não tenha sido incluído nos li-
gina dedicada à escultura (como as seções vros que reúnem a poesia de Gullar, o poe-
nas páginas anteriores dessa edição do Su- ma “pano” participa de um tema da obra do
plemento, que trataram de pintura e de poeta. A imagem do campo gramado apare-
teatro e dança, e a seção na página poste- ce em outros três poemas visuais compostos
rior, que trata de gravura), embora a pre- em 1957 e 1958, que ou combinam, dispon-
sença de Ferreira Gullar, apresentando o do na página, as palavras “verde” e “erva”,
livro-poema como objeto escultórico, indi- ou empregam apenas a palavra “erva”.
que o aspecto transdisciplinar da arte neo- Um desses poemas, segundo narra Gullar,
concreta, principalmente em relação ao pa- “vai gerar um problema novo em minha
pel da poesia nesse grupo. No texto, Gullar experiência de poeta concreto” (GULLAR,
atribui ao livro-poema ou “poema-livro” o 2007, p. 29). Publicado em 3 de novembro
uso da página como “elemento interior” ao de 1957 na capa do SDJB, o poema sem tí-
poema, integrando um ao outro, em diálo- tulo organiza em distribuição retangular 12
go inclusive com o formato e os cortes do repetições da palavra “verde”, em quatro
suporte (GULLAR, 1959, p. 7). O efeito, em linhas e três colunas (GULLAR, 1957c, p. 1).
lugar de conceber o poema como objeto Na última linha, depois da última repetição,
gráfico, está em “submergir” a página na surge uma nova palavra, como excesso do
dimensão temporal da linguagem, funcio- esquema: “erva”. Tendo recebido a notícia
nando como elemento gramatical na rela- de um amigo que lera o poema, de que não
ção entre as palavras (GULLAR, 1959, p. 7). precisou ler por 12 vezes a palavra “verde”
Posteriormente, o termo “não objeto” será para perceber que se tratava da repetição
convocado para a interpretação desse efei- da mesma palavra, pois via isso antes de ler,
to. Nesse sentido, uma experiência como O Gullar então compreende que o poema vi-
formigueiro, de 1955, embora considerada sual apresenta um problema de leitura, para
por Gullar precursora do livro-poema, con- o qual o livro-poema foi elaborado como so-
vida o leitor a reunir as letras espalhadas lução, na medida em que a página permite
pela grande área do papel, de modo que o ao poeta organizar a leitura palavra por pa-
espaço de página branca entre os grafemas lavra (GULLAR, 2007, p. 32). Apesar disso, o
da palavra decomposta seja um obstáculo a poema que repete o termo “verde” 12 ve-
ser superado pelo olhar do leitor. Diferente- zes, até concretizar a cor na coisa, na planta,
mente do que acontece em “pano”, texto figurando ainda, com o retângulo de pala-
que requer a contemplação do espaço da vras, o campo verde, foi publicado no final
página entre as palavras, sem que esteja de 1957, ao passo que os livros-poema fo-
claro, como nas esculturas de Weissmann, o ram expostos no começo de 1959. O poema
contorno do poema. A página como “silên- “pano”, pela sua composição, bem como
cio verbal”, proposta por Gullar acerca do pela data de publicação, parece ter sido
livro-poema, acontece no poema publicado composto posteriormente ao final de 1959.
ao lado da proposta conceitual, no entanto Em outros dois poemas, compostos pos-
não parece o procedimento organizador de teriormente, reconhece-se um diálogo com
O formigueiro (GULLAR, 1959, p. 7). o poema “pano”. Ainda sob perspectiva
Figura 2  GULLAR, 1959, p. 7.
54  •  Luiz Guilherme Ribeiro Barbosa

temática, Gullar esclarece a gênese, se não em 1987. Poema dos mais significativos do
da série de poemas para o campo verde, da livro, atualiza a pesquisa estética na obra re-
emoção que permitiu a elaboração desses e visitando questões atravessadas pelo poeta
outros poemas: na década de 1950. O envelhecimento do
Ele [o poema “verde verde verde”] nasceu corpo e a forma poética requerida pelo en-
da evocação da praça central da cidade de Al- velhecimento dramatizam a recusa à “opa-
cântara, no Maranhão, que visitara em 1950, ca matéria”, fuga viável graças à escuta
quando quase ninguém morava lá; tive a sen-
do desejo do poema, que “quer ser fala”,
sação de que a erva que ocupava toda aque-
“murmúrio”, muitas vozes, alarido, baru-
la praça crescia ali para ninguém (GULLAR,
2007, p. 29-32). lhos, “rente à pulsão / estelar / chamada”...
(Figura 3; GULLAR, 2008, p. 312-313).
Essa cena retorna num poema do últi-
mo livro publicado pelo poeta, Em alguma
parte alguma, de 2010. No poema “Relva
verde relva”, o poeta pergunta onde, den-
tro de si, “fulge de repente um largo verde
esquecido” (GULLAR, 2010, p. 42). O acon- Figura 3  GULLAR, 2008, p. 313
tecimento acaba por ser, na segunda estro-
fe, localizado “em algum lugar nenhum” Também O formigueiro retorna aqui,
– parafraseando o título do livro – e o largo em miniatura: nele, as letras de uma palavra
“como se fosse um lago” inundado pela cor estão, como na Figura 3, dispersas na pági-
verde, forrado pela “miúda algazarra da rel- na. Assim como A luta corporal, “um vento
va”, acaba por ser figurado por imagem se- de 1953-1954...” (GULLAR, 2008, p. 313):
melhante à do poema de 1959: “ah aquela nela, a matéria escura da linguagem emer-
inesperada toalha verde viva” (GULLAR, ge no corpo a corpo com a criação. Embora
2010, p. 42). O “pano vivo” no catálogo no poema “pano” a forma sugerida em lo-
da I Exposição Neoconcreta constitui me- sango figure o “campo” desenhado entre as
mória do poema publicado 51 anos depois, palavras, e em “vida” a dispersão das quatro
fomentando diálogos entre o poema visual letras figure algo como uma explosão e uma
e o poema em versos, a arte neoconcreta e constelação, em ambos os casos a posição
a crítica às vanguardas, a representação da dos termos e a ordenação cruzada ou em
cidade e da natureza e o processo de mo- zigue-zague conversam de perto. “Feverei-
dernização da cultura brasileira, a experiên- ro de 82” termina num lamento às avessas,
cia lírica e o problema da composição etc. um “ai”, mas lúdico. Para Gullar, a poesia
Não bastasse a relevância temática do concreta foi coisa séria, e em alguma medida
poema “pano” na obra de Gullar, a forma nunca terminou. O poema de fevereiro de
como as palavras do poema estão organi- 57 parece representar um momento grave
zadas na página, única nos poemas visuais na pesquisa do poeta, assim como o poema
do poeta, comparece no recurso gráfico enterrado ou o fim de A luta corporal. Im-
empregado no desfecho do poema “Feve- passes, quando corpo, linguagem e morte,
reiro de 82”, publicado no livro Barulhos, por instantes, parecem não se descolar.
F e v e r e i ro de 1957   •  55

ANEXO
Um poema concreto de Ferreira Gullar
I

FOGO
osso
DO
CORPO
furna
DO
OSSO
urna
DO
oco
ORCO
fosso
DO
corpo

II (ou III)

o fogo
a fera
sem osso    e o couro
em chaga
o fogo
a lepra
erma
rufa nas flores
o seu tambor

III (ou V)

as flores
hérnias
celestes hienas
cegas
as
flores os
postes
do vão
rufam

no luto

feito poeira
56  •  Luiz Guilherme Ribeiro Barbosa

IV (ou II)

a poeira
a desfeita
coroa [exposta]
rumor do facho em ru
e fa

a falha o rastro a pira a ru


fa

r
u
f
a

V (ou IV)

ina árvore esparsa


lha

ga do verso a puída
la a poeira

no osso

VI

o rufo
o osso da fala
o fogo armado
o h
l o
r
u
f o
g o
clarão carvão
na boca
o rufo
o pelo
da hiena
osso
da hérnia
tambor
do luto
o
culto
troféu na fera
F e v e r e i ro de 1957   •  57

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_____. “O poema concreto”. Jornal do Brasil, Rio de Ja- SUPLEMENTO Dominical do Jornal do Brasil. Jornal do
neiro, Suplemento Dominical, p. 2, 17 mar. 1957a. Dis- Brasil, Rio de Janeiro, Suplemento Dominical, 3 fev.
ponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/030015_ 1957. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/
07/71582. Acesso em 20 jul. 2020. 030015_07/70215. Acesso em 19 jul. 2020.
Edwiges de Sá Pereira: Uma feminista
vitoriana na primeira metade do
século XX
Andrea Almeida Campos
Professora de Direito e Pesquisadora na área de Estudos de Gênero da Universidade
Católica de Pernambuco. Coordenadora do Núcleo de Estudos de Gênero da
Cátedra UNESCO/Dom Hélder Câmara de Direitos Humanos no biênio 2009/2011.

A
alma humana não é forjada ao sa- demitiram de seus desafios, coube tudo, in-
bor de um dia, mas traz em si a for- clusive uma tradução distinta do que enten-
tuna e a miséria de várias estações. demos por coerência. Ao menos, no modo
Complexidades, paradoxos e contradições, como aprendemos a pensar a coerência em
aparentemente, imperscrutáveis desafiam tempos pós-modernos e pós-iluministas.
os seus pretensos decifradores a penetra- E uma das personagens da cultura que
rem no território do inesperado. E se o edifí- melhor personifica a complexidade desses
cio humano é sempre polimorfo e mutante, mean­dros que atravessam os fins do século
o que dizer daqueles que foram entregues à XIX e os meados do século XX foi uma mu-
luz do mundo em zonas limítrofes, em tem- lher. E essa mulher foi a escritora, sufragista
pos atravessados por mudanças radicais? e líder feminista, Edwiges de Sá Pereira.
Daqueles que tiveram as suas subjetividades Edwiges de Sá Pereira nasceu em uma
construídas na travessia entre dois séculos pequena cidade do interior do estado de
diametralmente distintos? As transforma- Pernambuco, no Nordeste brasileiro, em 25
ções trazidas pelo século XX forjaram não de outubro de 1884. Em meados e finais do
apenas um novo cotidiano existencial para século XIX, ter nascido no interior do país
os seres humanos advindos do século XIX, não era sinônimo de desvantagem cultural e
proporcionado pela feérica revolução in- econômica em face daqueles que viviam no
dustrial, mas também e sobretudo, rupturas litoral. Muito ao contrário. No caso de Per-
profundas, desmantelamentos dantes ini- nambuco, estado que já havia sido a capita-
magináveis, transvalorações, novos modos nia mais próspera da antiga colônia, era na
de pensar e acreditar a vida. Para aqueles aristocracia canavieira e nos seus integran-
que nasceram nesse umbral, entre o naufrá- tes que residia a representação da elite eco-
gio e o nascimento de verdades totalmente nômica e intelectual local. No Recife, o que
outras, semeados em um solo de condições havia era uma burguesia emergente, os fi-
tensamente conflitantes, que receberam lhos dos mascates. Edwiges era, então, uma
em si, abertamente, esses eflúvios e não se das filhas dessa aristocracia latifundiária e
60  •  Andrea Almeida Campos

“letrada”. O seu pai era o senhor proprietá- não no antropocentrismo moderno. A me-
rio do Engenho Cipó e advogado formado tafísica foi um pensamento indissociável
pela Faculdade de Direito no tempo em que a ela.
a sua sede ainda era no Mosteiro de São Dos doze irmãos de Edwiges, destacaría-
Bento em Olinda, o Dr. José Bonifácio de Sá mos o conhecido jurista Virgílio de Sá Perei-
Pereira, tendo chegado a ser eleito Deputa- ra, um dos expoentes da chamada “Escola
do Provincial. Sua mãe, Dona Maria Amélia do Recife” ao qual foi incumbida a elabora-
Rocha de Sá Pereira também era filha de ção de um novo Código Criminal Brasileiro.
um abastado senhor de engenho. Uma fa- Virgílio de Sá Pereira chegou a ser o que hoje
mília letrada, mas longe de coadunar com seria um Ministro do Superior Tribunal de
ideias liberais e iluministas. O que para nós Justiça com sede, à época, na capital do Bra-
na contemporaneidade pode soar como um sil, Rio de Janeiro. A obra desse, ainda hoje,
contrassenso, uma vez que no nosso modo renomado civilista e penalista (mais ainda ci-
de pensar é descabido quaisquer avanços vilista) é atravessada por citações da literatu-
sociais e humanos fora do espírito da ilus- ra, sendo a sua escrita, essencialmente, lite-
tração, que estejam divorciados das revolu- rária. Citaria, ainda, Manoel Arthur, que era,
ções burguesas dos finais do século XVIII. também, voltado às letras e conhecido lati-
O filósofo francês Michel Foucault, por nista. Sendo conceituado juiz de direito, che-
motivos outros, é um dos que colocaram o gou a alçar o cargo de desembargador do
homem moderno e iluminista em questão. Tribunal de Justiça de Pernambuco. Quanto
Contingenciou a racionalidade antropo- a Eugênio, aquele que criou junto a Edwiges
cêntrica a partir de seu livro As palavras e o jornal Echo Juvenil entre a infância e a ado-
as coisas (1979). Mas não é a voz corrente. lescência de ambos, era ele, também, poeta
E tudo o que coloque em questão o ilumi- e literato. Foi advogado de causas nacionais
nismo e a ilustração é concebido como obs- importantes como aquela que pleiteava, pe-
curantismo e reacionarismo. Pois: a família rante o Supremo Tribunal Federal, a demar-
de Edwiges de Sá Pereira e ela própria eram cação dos limites do estado do Rio Grande
pessoas cultas e bem-formadas, mas, em do Sul. Chegou a ser auditor de guerra e fa-
vários aspectos, contrailuministas. Mas, tal- leceu, precocemente, aos 35 anos de idade,
vez, aqui, já tenhamos a primeira chave para durante a maldita pandemia da gripe espa-
sairmos de nosso desconforto ao conce- nhola em 1918 (imagino como essa perda
bermos a possibilidade de cultura sem ilus- deve ter sido devastadora para Edwiges). Um
tração: Edwiges não era de raiz burguesa, outro irmão, Eurico, era advogado militante,
muito menos liberal. O seu pai era maçom tendo sido um dos mais reconhecidos advo-
e integrava o Partido Conservador. A união gados empresariais de seu tempo, atuando
entre os seus pais, José Bonifácio e Maria no foro do Rio de Janeiro. Em razão do sólido
Amélia, teve como fruto uma prole brilhan- conceito que desfrutou no mundo jurídico,
te, mentes emancipadas, mas não todos li- foi presidente nacional do Instituto dos Ad-
berais, não todos iluministas em seu sentido vogados do Brasil (atual OAB). Uma de suas
estrito. Edwiges foi forjada nas humanida- irmãs, Nanette de Sá Pereira, foi professora
des, nas sensibilidades, mas não no laicismo, catedrática de língua portuguesa da Escola
E dwi g es de S á P ereir a : U m a f em i n is ta v i to r i a n a n a p r i me i r a m e ta d e d o s é c u l o XX   •  61

Normal do Recife, além de exímia remadora A sua harmoniosa vida familiar, signo de
(CAMPOS, 1987). boa aventurança, exala toda a sua doçura
Mas voltemos à infância de Edwiges em no poema “No lar”:
Barreiros. Foi vivendo em Barreiros que ela
No lar
editou, junto a seu irmão Eugênio, o jornal
manuscrito Echo Juvenil. Em 1897 alguns de     À minha irmã Margarida
seus poemas antes publicados no Echo Juve- Ri-se na sala a trêfega criança,
nil foram, também, publicados no jornal O Como a enxotar a mágoa que domina
Paiz do Rio de Janeiro. Nessa mesma edição A natureza, quando o sol declina
Para o ocaso feliz onde descansa…
de O Paiz veio à estampa uma matéria do
escritor Arthur de Azevedo, um dos escrito- Na estofada cadeira se embalança
res fundadores da Academia Brasileira de Le- Uma jovem mulher, e a fronte inclina
tras, apresentando, elogiosamente, ao Brasil, Para beijar a filha pequenina,
a poetisa de 13 anos de idade que vivia no De sua vida a lúcida esperança.
interior de Pernambuco (AMARAL, 2016). Reflete o espelho a serpentina acesa,
Nesses poemas, cuja coletânea deu forma À luz da qual uma velhinha reza,
ao seu primeiro livro de poemas editado na E eu vejo a fé impressa no seu rosto…
capital, Recife, Campesinas (1901), lançando
Basta em todas as casas esta cena,
Edwiges, definitivamente, para a vida literá-
Assim tão meiga, plácida e serena,
ria aos 17 anos de idade, estava um franco
Para alegrar as horas do sol posto.
elogio à vida familiar e ao aconchego da vida
Barreiros, 1898.
doméstica. Um olhar lírico e sensível sobre o
mundo, como podemos depreender, de ime- Mas a menina-moça, Edwiges, em sua
diato, no poema que o inaugura: lírica já revelava ter experimentado os dila-
ceramentos da alma:
Meu livro
Perdoa-me se um dia, Dor suprema
Tuas nevadas folhas descerrando, Pranto supremo, pranto dolorido,
Alguém, meu fraco mérito acusando, Companheiro da dor, pranto pungente
De ti chasqueie e ria, Dize-me tu, que tornas comovente
Não te escrevi, meu livro, para os sábios, O suspirar de um coração ferido.
Para os sábios, bem sei que tu não prestas…
Dize-me tu que já de toda a gente
Tinha minh’alma em festas Ouviste o peito a soluçar dorido.
E um riso alegre a me enfeitar os lábios, Sim! Tu que és sempre o intérprete escolhido
E antes que me viessem vis ressábios De quem os golpes do infortúnio sente:
A alegria turvar de minha vida,
Eu quis cantar e essas canções modestas Dize-me tu se por acaso existe
Fui tirando da lira estremecida. Dor tão cruenta, padecer tão triste
Como de um’alma as duras aflições,
Tudo quanto da vida eu penso, e via
Nos meus sonhos gentis e soberanos, Ao ver cortando a vastidão imensa
Tudo quanto me enleva a fantasia Da região sombria da descrença
– Canto na lira azul dos verdes anos! O bando das primeiras ilusões.
Barreiros,1900. Barreiros, 1900.
62  •  Andrea Almeida Campos

E na experimentação dos primeiros ver- O livro Campesinas, publicado com 51


sos não poderia faltar o socorro incontrastá- poemas, teve prefácio de Antônio de Sou-
vel da fé e o colo da religiosidade. Edwiges, za Pinto, figura intelectual proeminente da
que em anos mais altos foi uma fervorosa sociedade pernambucana da época. Em seu
militante feminista, ardorosa combatente texto, Souza Pinto coloca em questão temas
contra os flagelos sociais e imersa na atua- que atravessariam, por toda a vida, tanto a
ção política (foi candidata a deputada para a literatura como o pensamento de Edwiges:
Assembleia Nacional Constituinte de 1934), a rejeição às expressões modernistas que se
nunca deixou de ser uma cristã indeclinável, avizinhavam e o lugar da religião e da Igreja
criticando com altivez todo e qualquer pen- Cristã na modernidade. Afirma Souza Pinto
samento que desafiasse a Igreja Católica em em seu prefácio:
seu lugar de esplendor e glória: Não se pode deduzir do que temos dito
que a forma incorreta ou descuidada seja a
Desolada
mais apreciável, senão que todo produto artís-
  A meu Pai tico, digno desse nome, carece de mais alguma
Beijando a cruz de rútilo rosário, coisa que a habilidade da expressão: precisa
Clotilde reza uma oração, fitando da grandeza de sentimentos e da nobreza de
O vulto de Maria no sacrário. intuitos. A arte, tomando esta palavra no seu
Dos belos olhos seus vem deslisando sentido mais geral, foi primitivamente um auxi-
Um rosário de lágrimas ardentes, liar do culto, e não deve esquecer esse grande
Que se lhe vai no colo desmanchando. ofício, embora a transformação necessária do
sentimento religioso que lhe deu a “Imitação de
Na posição dos pobres penitentes Cristo”. (SOUZA PINTO in SÁ PEREIRA, 1901).
– Joelhos em terra, mãos entrelaçadas –
Envia à Virgem súplicas ferventes. Ainda vivendo em Barreiros, em atmos-
fera rural e rodeada de livros e saberes, foi
De pungente amargura repassadas
Edwiges convidada, no ano de 1901, para ser
São as frases que, triste, balbucia
Com o fervor das almas desoladas. sócia correspondente da Academia Pernam-
bucana de Letras (APL), função que exerceu
Pede à clemente e divinal Maria até 1920 quando, então, foi eleita para uma
– Testemunha da dor que a dilacera –
das cadeiras dessa prestigiosa Academia (a
O bálsamo que as mágoas alivia.
primeira acadêmica brasileira). Portanto,
Suplica, reza e, soluçando, espera a sua brilhante trajetória intelectual tem a
– Fitando sempre o casto santuário – marca inicial da zona interiorana e agrária de
A proteção da santa que venera.
Barreiros. Logo, ao mudar-se para o Recife,
Beijando a cruz de rútilo rosário, antes de ser uma neófita no mundo literário,
Clotilde pensa que tardar não deve ela já era escritora com trabalhos publica-
O remédio que abrande o seu fadário… dos fora do estado e sócia correspondente
Beija a cruz do rosário, e não se atreve, da APL. No Recife, logo após a sua chegada
Não faz o mesmo à cruz que lhe foi dada… acompanhando a sua família, foi cofundado-
Acha a que tem na mão pequena e leve, ra, de forma original, de uma revista exclusi-
E a que carrega por demais pesada! vamente destinada ao público feminino, ver-
Barreiros, 1896. sando sobre temas como instrução feminina,
E dwi g es de S á P ereir a : U m a f em i n is ta v i to r i a n a n a p r i me i r a m e ta d e d o s é c u l o XX   •  63

chamada de O Lyrio e que teve circulação de termo final do movimento, decapitada pelos
1902 a 1904 (AMARAL, 2016). “ilustrados” Jacobinos. Revolucionários ilu-
Transportou da sua vida nos engenhos ministas que não toleravam os seus pleitos
para a sua trajetória na capital uma forte por igualdade jurídica e política entre ho-
sensibilidade para com as desigualdades so- mens e mulheres. De igual modo, a feminis-
ciais no mundo do trabalho, uma vez que ta inglesa Mary Wollstonecraft contrapõe-se
havia convivido com o regime escravocrata a Rousseau em seu projeto pedagógico tra-
e era assumidamente, em suas futuras teses, duzido em sua obra Emílio ou da educação
uma aguerrida defensora dos direitos sociais (1762), e que excluía as mulheres, através do
e combatente de todas as formas de desi- livro A reivindicação dos direitos da mulher
gualdade e opressão. Ainda assim, como já (1790). Do que se depreende que iluminis-
o foi dito, não era uma iluminista. Desafian- mo não é sinônimo de feminismo, muito
do a nossa ideia contemporânea de que não menos uma consequência natural deste. No
há luta por liberdade e igualdade sem que a entanto, a crítica de Edwiges ao movimento
mesma esteja amparada pela Ilustração. Não francês não repousava estritamente no que
se encontrava Edwiges alinhada ao materia- diz respeito ao tratamento conferido pelos
lismo de Voltaire (SÁ PEREIRA, 1945), cuja iluministas às questões referentes à igualda-
crítica clerical a repugnava, nem mesmo ao de entre homens e mulheres e outras afins,
que teria de contrailuminismo o pensamen- mas, fundamentalmente, por sua superação
to de Rousseau, cujas teorias deram força ao da metafísica e pelos ataques à Igreja Cató-
pensamento socialista. Edwiges sustentava lica. Sem fé e sem Deus, não haveria, para
ideias contrailuministas por razões outras que Edwiges a possibilidade de emancipação
não aquelas rousseaunianas que fulminavam humana de suas eventuais misérias originais,
os males e os efeitos perversos do proces- como podemos observar neste poema escri-
so civilizatório, os avanços tecnológicos e a to já em sua idade adulta e publicado no livro
geração de riquezas em sua obra Discurso de poemas póstumo Horas inúteis (1960):
sobre a origem e os fundamentos da desi-
gualdade entre os homens (1755). Edwiges, Cântico
por seu lado, nunca se colocou em oposição    Para Emília Guerra
à propriedade privada como o fez Rousseau. Anda o pecado na vida
Este angariou simpatizantes dentre aqueles Como a serpente fatal
que se colocavam no que a modernidade Seduzindo a alma dorida
compreende como “à esquerda” no movi- Para as conquistas do mal
mento revolucionário francês, os Jacobinos. Mas contra o ardil da serpente
Lembrando que aquela que é tida como a Que para o mal nos seduz
primeira das feministas, uma das mais ativas Faz-se reduto potente
pensadoras e militantes durante a Revolução O Coração de Jesus.
Francesa, uma figura exponencial feminina, Lírio celeste que encerra
Olympe de Gouges, que bradou contra os O orvalho de todo bem,
extremismos do novo regime, postos em De cada mágoa da terra
marcha por Marat e por Robespierre foi, ao Faz nova estrela do Além.
64  •  Andrea Almeida Campos

Para o contrito que sofre Normal, tendo sido também professora de


E anseia um raio de luz, português do Curso Comercial do Colégio
É de bênçãos áureo cofre Eucarístico e professora de história geral
– O Coração de Jesus.
e do Brasil do Instituto Nossa Senhora do
Como é feliz...quem não teme Carmo. Ocupou o cargo de superinten-
– Quem tem fé é sempre feliz! dente de ensino dos Grupos Escolares da
Mão firme dirige o leme Capital e durante esse exercício formulou
Toda a viagem bendiz. um projeto educacional para todo o Estado
A Fé é a luz de minh’alma de Pernambuco, a pedido de seu governo,
– Triste de quem não tem luz acerca da organização e funcionamento do
Creio em Deus: a dor me acalma ensino técnico e profissional local (ROCHA,
– O Coração de Jesus! 2019). As suas propostas integram o seu
Mas voltemos ao desembarque de trabalho pedagógico Impressões e notas –
Edwiges, acompanhando a sua família, ao Pedagogia, publicado em 1926. Como já
Recife em fins de 1901. O seu pai, José foi dito, Edwiges não restringia o seu proje-
Bonifácio de Sá Pereira, que havia vendido to educacional às mulheres das elites. A sua
o seu engenho em Barreiros, era mais um franca preocupação estava na formação das
integrante da aristocracia canavieira que mulheres das bases sociais, dos estratos
experimentava da decadência da economia mais baixos. Para tanto, prestava entu-
açucareira em finais do século XIX, tendo siasmado incentivo às Escolas Domésticas,
a abolição dos escravos como maior fator. às Escolas Rurais e aos Institutos Profissio-
Trocara o seu status de senhor de engenho nais (AZEVEDO, 2009). Para este grupo
para o de ocupante de um cargo no Go- de mulheres de classes menos favorecidas
verno do Estado. A menina-moça Edwiges, despertou, portanto, o interesse do então
então, continuou os seus estudos na Es- Governador de Pernambuco, Sérgio Loreto
cola Normal do Recife. Quando em 1902, (1922-1926). Era, então, eloquente o seu
junto a colegas como Amélia Freitas Bevi- caráter de mulher, precipuamente, voltada
láqua e Luíza Ramalho, criou a revista O ao mundo da educação, da formação de
Lyrio, dirigida, exclusivamente, ao público gerações e do conhecimento, especialmen-
feminino, muitos de seus artigos versavam te como arma de emancipação feminina.
sobre a importância da educação feminina. Correspondendo-se com feministas
A educação feminina como principal ins- de vários rincões do Brasil, Edwiges de Sá
trumento de emancipação da mulher em Pereira escreveu para diversas revistas com
uma sociedade sexista e que deveria ser esse viés, como no caso da revista gaúcha
um direito de todas as mulheres, inobstan- Escrínio, cuja editora era a educadora e
te a sua classe social. Uma vez concluído escritora feminista, Andradina de Oliveira,
o seu curso, Edwiges vem a ser professora e dos periódicos Vida feminina e O rata-
da Escola Normal, sendo alçada, posterior- zana. Desenvolveu, durante toda a vida,
mente, à professora catedrática de prática intensa atividade jornalística, tendo sido a
didática e de pedagogia. Mas a sua função primeira mulher a ser membro da Associa-
de educadora não se esgotou na Escola ção de Imprensa de Pernambuco. Publicava
E dwi g es de S á P ereir a : U m a f em i n is ta v i to r i a n a n a p r i me i r a m e ta d e d o s é c u l o XX   •  65

recorrentemente em jornais da estatura do Rio de Janeiro. Nessa tese, Edwiges divide


Diário de Pernambuco e do Jornal do Com- as mulheres em três grupos categorizados
mercio, tradicionais jornais pernambucanos por suas classes sociais e suas qualificações
ainda hoje em circulação, e no extinto, mas, para o trabalho, sendo eles: o grupo das mu-
em seu tempo, de muita credibilidade, Jor- lheres que não precisam trabalhar (as mulhe-
nal Pequeno. Os seus temas de predileção res das elites); o grupo das mulheres que
sempre foram a reforma do ensino público precisam trabalhar e que sabem trabalhar
de Pernambuco e os direitos da mulher na (as mulheres das classes intermediárias) e o
família e na sociedade (AZEVEDO, 2009). grupo das mulheres que não sabem traba-
Durante suas viagens de visita a seus lhar e que precisam trabalhar (as das classes
irmãos que moravam no então Distrito Fe- baixas). Apesar do cunho feminista e propo-
deral, Rio de Janeiro, travou amizade com a sitivo de sua tese na inclusão das mulheres
bióloga Bertha Lutz, presidente nacional da no mundo do trabalho, sendo essa a sua
Federação Brasileira pelo Progresso Femi- preocupação primacial, Edwiges continuava
nino, participando do I Congresso Interna- alinhada a uma concepção racial eugênica
cional Feminista ocorrido em dezembro de e que era a preponderante nas elites inte-
1922 naquela cidade. Uma vez tendo con- lectuais de sua época. Leiamos os termos
tinuado a troca de missivas com feministas iniciais de sua tese:
do sul e do sudeste do país, em 1931 fun- ...somos (…) um povo velho, de civilização
dou a seccional pernambucana da Federa- multissecular, com todos os característicos de
sua estrutura étnica, dono de virtudes e vícios
ção Brasileira pelo Progresso Feminino, para
que se misturam e se entrechocam imprimin-
a qual foi eleita presidente de 1931 a 1935.
do-lhe o traço inconfundível destacado pelos
Após o seu mandato, manteve-se como nossos historiadores; um povo selvagem, sem
Presidente de Honra até 1937, quando do noção dessas duas entidades abstratas, viven-
advento do Estado Novo varguista. do apenas do instinto; um povo semibárbaro
Durante a sua direção na Federação Bra- e inferior, sem energias para reação e o pro-
sileira pelo Progresso Feminino, privilegiou testo, sem intuição de direito ou justiça – eis
o tema da educação feminina, e não ape- os elementos constitutivos da nossa naciona-
nas na teoria, mas, sobretudo, na prática, lidade na sua origem biológica e social (SÁ
PEREIRA, 1932).
criando a Escola de Oportunidades cujo es-
copo era o de oferecer cursos tais como os Nas primeiras décadas do século XX era
de datilografia, de línguas e de correspon- corrente atribuir as mazelas sociais, eco-
dência para as jovens mulheres provenien- nômicas e políticas brasileiras ao caráter
tes de todas as classes sociais do estado de mestiço do seu povo. Este pensamento,
Pernambuco. É também em 1931, ano da importado de países como os Estados Uni-
fundação da seccional pernambucana da dos, Alemanha, Inglaterra e França, era o
Federação Brasileira pelo Progresso Femini- que prevalecia dentre as vozes pensantes,
no que Edwiges apresenta a sua tese Pela inclusive dentre aquelas que fundaram o
mulher e para a mulher durante o II Con- Movimento Eugênico Brasileiro capitane-
gresso Internacional Feminista na sede do ado pelo médico Renato Ferraz Kehl. Este
Automóvel Clube na então capital federal, era denominado de “eugenismo negativo”.
66  •  Andrea Almeida Campos

Recepcionando essa teoria como proceden- racial e biológico. Se Edwiges, junto a no-
te, Edwiges se propunha a uma forte atua- mes como Oliveira Vianna, Euclides da
ção com vistas à salvação dos filhos dessa Cunha e Miguel Couto, ainda não estava a
miscigenação, resgatando-os de seus gro- par de teses de “eugenia positiva” como as
tões e incluindo-os socialmente através da de Roquette-Pinto, de Belisário Penna e do
educação: sociólogo Gilberto Freyre, que viria em 1933
É para uma nacionalidade assim promís- a publicar a sua obra máxima Casa-grande
cua, assim arbitrária que devemos elaborar um & senzala, revolucionando a antropologia
processo educativo que a todos atinja, a todos
brasileira, o fato é que, tanto os eugenistas
aproveite, a todos interesse pela harmonia in-
negativos quanto os eugenistas positivos re-
dispensável entre a natureza do educando e
a natureza da educação (SÁ PEREIRA, 1932). pudiavam a igualdade entre os sexos, o que
hoje denominamos de igualdade de gê-
E esses grotões estariam ocupados por nero. Para os primeiros, as mulheres eram
mulheres de vida desregrada, desemprega- tidas como procriadoras e a eugenia era
das, prostituídas, sem família ou cujos com- uma forma de “advertência do perigo que
panheiros não conseguiam prover o lar a ameaça a raça com o feminismo” (MACIEL,
contento. Inapetentes e incapazes de fazer 1999). Enquanto, muitos dos segundos, os
as suas próprias revoluções, caberia às mu- eugenistas positivos como Gilberto Freyre,
lheres brancas das classes superiores, atra- conterrâneo de Edwiges, também na déca-
vés da educação, ajudá-las e transportá-las da de 30, afirmavam:
para uma vida em civilização. Dois anos an- As novas gerações [década de 1920/30] de
tes do II Congresso Internacional Feminista, moças já não sabem, entre nós, a não ser entre
em 1929, também no Rio de Janeiro, reali- a gente mais modesta, fazer um doce ou gui-
zava-se o I Congresso Brasileiro de Eugenia sado tradicional e regional. Já não têm gosto
em comemoração do centenário da Acade- nem tempo para ler os velhos livros de receitas
de família. Quando a verdade é que, depois
mia Brasileira de Medicina e presidido por
dos livros de missa, são os livros de receitas de
Edgard Roquette-Pinto e Renato Ferraz Kehl
doces e de guisados os que devem receber das
(MACIEL, 1999). Foi então, em inícios da mulheres leitura mais atenta. O senso de de-
década de 30, quando do calor das discus- voção e de obrigação devem completar-se nas
sões acerca do controle eugênico das imi- mulheres do Brasil, tornando-as boas cristãs e,
grações, casamentos e natalidade, que foi ao mesmo tempo, boas quituteiras, para as-
criada a Comissão Central de Eugenia cujo sim criarem melhor os filhos e correrem para a
escopo era assessorar os governos e auto- felicidade nacional. Não há povo feliz quando
às suas mulheres falta a arte culinária. É uma
ridades públicas no que dizia respeito ao
falta quase tão grave como a da fé religiosa
aperfeiçoamento eugênico da população.
(FREYRE apud SILVA, 2015).
O médico e antropólogo Edgard Roquette-
-Pinto foi um dos que foram na contramão Percebe-se que, mais do que um elogio
do que se entendia a miscigenação como às mulheres prendadas e religiosas, Freyre
eugenia negativa, sustentando que os pro- ataca as novas letradas, as que não leem os
blemas do Brasil não eram raciais, mas sim “velhos livros”, as que se esforçam por ocu-
sociais com forte crítica ao determinismo par um lugar na vida pública e no espaço
E dwi g es de S á P ereir a : U m a f em i n is ta v i to r i a n a n a p r i me i r a m e ta d e d o s é c u l o XX   •  67

intelectual, projeto esse que tinha por uma vez, vencedoras, Edwiges se candidatou à
de suas líderes, Edwiges de Sá Pereira. Pois Deputada da Assembleia Nacional Consti-
bem, intelectuais tão revolucionários em tuinte de 1934 pelo Partido Econômico, um
seus escopos de ação e pensamento, mas partido liberal fundado por comerciantes e
ainda tão refratários a abandonarem os industriais do estado do Rio de Janeiro. Não
seus postos de senhores e monopolizado- era opositora do capitalismo, portanto, nem
res da vida pública e das ideias. Sobre esse da liberdade de expressão, muito menos do
contraditório estado de coisas versejava direito à associação. A sua intransigência na
Edwiges: defesa aos valores da família e da religião,
o seu amor à cultura italiana (falava fluente-
Mulheres mente o italiano e recitava poemas de Ga-
De ser não sei, na seriação dos seres, briele d’Annunzio de memória), a sua advo-
Que mais preocupa e que se estuda tanto: cacia pelos direitos no mundo do trabalho e
Alma, razão de agir, paixões, misteres,
o seu conservadorismo nos costumes (não
A essência do seu riso e do seu pranto!
bebia, não fumava e nunca frequentou a
Magos, poetas, filósofos, no entanto, boemia) não foram suficientes para aliá-
Mergulhando-as na orgia dos prazeres,
-la a grupos como aquele dos integralistas
Ou elevando-as nas palmas como a um santo,
aliados ao fascismo. Lembrando que a hie-
– Controversos que são quanto às mulheres!
rarquia eclesiástica apoiava o integralismo à
Dessas vacilações, desses enganos época. Muito pelo contrário. A despeito dos
Surge o dogma, imutável, transcendente
avanços sociais propiciados pelo varguismo,
Que ao homem sagra “senhor” entre os
humanos…
condenava veementemente o estado auto-
ritário de Vargas, não lhe tendo qualquer
E dono, e chefe, e rei – por que padeces, simpatia. Não transigia com quaisquer to-
Ó forte, ó sábio e vives tão somente
talitarismos, atacando com veemência em
Na razão desse mal que mal conheces?!
seus textos o que viria a ser o falangismo
E liderando esse projeto emancipatório espanhol cuja uma das fortes característi-
na década de 1930, Edwiges de Sá Perei- cas era o tradicionalismo católico. Quando
ra combateu bravamente o antifeminismo, do Estado Novo, antes que Getúlio Vargas
mais ainda no que diz respeito ao direito à baixasse decreto fulminando a liberdade de
educação, à inserção no mundo do traba- associação e instituísse a censura, Edwiges
lho e à vida profissional com a ocupação de Sá Pereira pôs termo e fechou as portas
dos postos de trabalho, desde o trabalho da Federação para o Progresso Feminino em
das operárias nas fábricas até seus cargos Pernambuco em 1937.
de direção e, diversamente do que se es- Uma vida, por conseguinte, atravessada
peraria de uma católica sem concessões, por momentos paroxísticos na vida nacio-
advogava pelo direito ao divórcio. Na luta nal, de rupturas, tragédias e ebulição na
pelos direitos políticos das mulheres, lide- história global. Edwiges era criança quando
rou o movimento sufragista no estado de da Abolição da Escravatura e da Proclama-
Pernambuco. Movimento cuja liderança ção da República. Mas já era uma mulher
nacional era exercida por Bertha Lutz. Uma adulta quando atravessou a pandemia da
68  •  Andrea Almeida Campos

gripe espanhola e as duas Grandes Guer- Reafirmando a supremacia do pensa-


ras Mundiais. Em fins dessa última proferiu mento religioso e teocêntrico e o seu de-
uma conferência intitulada “A influência da sacordo com o movimento revolucionário
mulher na educação pacifista do pós-guer- francês de fins do século XVIII, escreve
ra” (1945). A conferência fora escrita para Edwiges no mesmo texto:
uma série de vinte e oito conferências orga- E desde o princípio dos tempos que a mão
nizadas pela Academia Pernambucana de de Deus vem polindo, desgastando, nivelando
as arestas do instinto primitivo dos trogloditas,
Letras, tendo sido publicada na Revista da
no sentido de que o viajante de cada ciclo não
Academia Brasileira de Letras em sua edição claudique no caminho, contrafazendo, desvir-
de dezembro de 1946. Como não poderia tuando o seu destino na terra. É que o homem
deixar de ser, já que inerente ao seu mo- briga por tudo e por nada. Helena e a Guerra
dus operandi, Edwiges editou a conferên- de Troia; a filosofia dos enciclopedistas e a Re-
cia em folhetos de modo a divulgar o seu volução Francesa (…) – tudo vem através dos
conteúdo em institutos culturais, centros tempos atestando o temperamento belicoso
do homem (SÁ PEREIRA, 1945).
de atividades femininas no lar e nos meios
de trabalho profissional. No texto da confe- E nesse mundo do pós-guerra, mes-
rência, ainda é aguda a crítica de Edwiges mo proclamando “a necessidade de uma
ao humanismo moderno e às suas concep- organização internacional pacifista para a
ções evolucionistas, aos valores e propostas segurança da humanidade”, uma força ins-
iluministas francesas no que diz respeito à titucional temporal, a paz tão almejada não
educação e à metafísica. Leiamos Edwiges: será alcançada se não for pelas vias espiri-
O insucesso da pedagogia inspirada nos tuais, pelas mãos de Deus; são essas mãos
princípios da Revolução Francesa é um índice. que devem as mulheres segurar em seus
O laicismo substituindo o sectarismo, a quem esforços de empreenderem uma educação
se atribuía, entre outros, o grande mal de enti-
pacifista:
biar os espíritos e tolher a liberdade de pensa- A mulher há de colaborar com interesse,
mento, produziu em sentido retroverso “uma e Deus queira que para esta colaboração ser
geração indisciplinada, impatriótica e refratá- produtiva e elevada hajam os diretores da
ria ao trabalho sistemático”. O agnosticismo nova ordem estabelecido leis e princípios que
levou, nos domínios pedagógicos da França lhe harmonizem o trabalho autônomo e o fa-
e dos países que lhe imitaram o sistema, a çam valer. Se tão bela, patriótica e altruística
confusão de um traçado sem rumo confiado foi a sua atuação no esforço da guerra, maior
ao livre-arbítrio. Isto porque os reformadores e melhor ainda deverá ser no esforço de paz.
legislaram para o seu ponto de vista filosófi- E animando essa escalada para o alto, a essên-
co, inspirado no materialismo de Voltaire. Não cia de um ideal comum ligado a um sentimen-
decorre do cérebro efervescente, orientado to comum de amor universal: o ideal religioso.
ou desorientado pelas revoluções, plasmar a Sem Deus não se poderão jamais soldar os
seu talante o pensamento, a mentalidade das elos dessa corrente pacifista através das con-
coletividades a educar. A tradição, a heredita- trovérsias dos homens (SÁ PEREIRA, 1945).
riedade, as condições de meio e de raça são
fatores decisivos que definem, acentuam, sin- Em sua produção literária, mesmo ten-
gularizam a psicologia do povo a conduzir e a do vivido até as margens da década de 60
aparelhar (SÁ PEREIRA, 1945). do século XX, desconheceu o modernismo.
E dwi g es de S á P ereir a : U m a f em i n is ta v i to r i a n a n a p r i me i r a m e ta d e d o s é c u l o XX   •  69

Melhor ainda: rejeitou-o, como podemos sim descontínuo, disruptivo, aleatório. Em


constatar em sua própria letra – “A lei do seu conservadorismo aliado ao progressis-
menor esforço tem proporcionado frutos mo desafiam-se os intricamentos cartesia-
bem pecos, haja vista o menosprezo pelo nos e as fáceis categorizações, inclusive no
idioma, a dissonância e a incoerência na alinhamento político.
poesia e na pintura modernistas”. Em sua Isabel Edwiges de Sá Pereira faleceu a 14
prosa não se detecta quaisquer referências de agosto de 1958 aos 73 anos de idade em
a obras nem a escritores realistas, muito sua casa no bairro do Espinheiro, no Recife.
menos naturalistas. Ler a sua poesia é mer- Morava sozinha. Nunca se casou nem teve
gulhar em um universo vitoriano, em um filhos. Embora, a certa altura de sua vida,
mundo do século XIX, incorruptível e in- lamentasse não ter sido uma mãe solteira.1
transponível. O parnasianismo e o simbolis-
mo são por ela perpetuados. Para Edwiges Referências
de Sá Pereira não há poesia fora da métrica Amaral, Walter Valdevino do. “Edwiges de Sá Pereira: uma
voz pernambucana no Segundo Congresso Internacio-
e da rima: nal Feminista” (Rio de Janeiro, 1931). Temporalidades
– Revista de História, v. 8, n. 3, 2016.
Rimas Azevedo, Ferdinand. “Cristãs feministas em Pernambuco
1930-1950: a atuação de Edwiges de Sá Pereira, Dul-
Rimas para o meu verso… tenho tantas! ce Chacon e Nair de Andrade”. Revista de Teologia e
Ciências da Religião da UNICAP, v. 8, n. 2, pp. 167-190,
E que bonitas são todas as rimas…
2009.
– Verso, é rimado que melhor tu cantas, Campos, Virgílio. Um pensador da escola do Recife: Sá Pe-
E assim, cantante, é que melhor animas. reira e o seu tempo. Recife: FUNDARPE, 1987.
Foucault, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins
Versos sem rimas, versos brancos. Flores, Fontes, 1979.
Maciel, Maria Eunice de “A eugenia no Brasil”. Revista
Não vos basta o perfume que deleita: Anos 90, n. 11, Porto Alegre, 1999.
Ostentai toda a gala em vossas cores, Rocha, Sidney. Cronologia de Edwiges de Sá Pereira. Revista
Hexágono, CEPE Editora, v. 2, n. 5, p. 38-39, 2019.
Túnica iriante que a campina enfeita. Sá Pereira, Edwiges. Campesinas. Recife: Officinas Graphi-
cas da Associação da Bôa Imprensa, 1901.
Versos sem rimas, versos brancos… Almas, _____. Pela mulher, para a mulher. Recife: Officinas Graphi-
De que vos serve este viver assim: cas da Associação da Bôa Imprensa, 1932.
_____. Um passado que não morre – No centenário do Dr.
Horas vazias de emoção tão calmas
João Baptista Regueira Costa, 1845-1945. Recife: Im-
Como o riso ideal de um querubim. prensa Industrial, 1945.
_____. A influência da mulher na educação pacifista do
(…) pós-guerra. Recife: Imprensa Industrial, 1947.
_____. Horas inúteis. Recife: Imprensa Oficial, 1960.
Rimas para o meu verso… tenho tantas… Silva, Marcelo Melo da. Antifeminismos e feminismos no
E que bonitas são todas as rimas! Recife dos anos de 1930. In: Lugares dos historiado-
res: velhos e novos desafios, Anais do XXVIII Simpósio
– Verso, é rimado que melhor tu cantas. Nacional de História, Florianópolis, 2015.

E assim o foi Edwiges de Sá Pereira, uma Para saber mais


Campos, Zuleica Dantas Pereira. Pela mulher, para a mu-
líder feminista à frente de seu tempo no sé- lher: Uma voz feminista no Recife dos anos 30. Dis-
culo XX e, a uma só vez, uma poetisa oito- ponível em: http://www.unicap.br/neal/artigos/Texto-
6ProfZuleica.pdf Acesso em 03 de agosto de 2020.
centista e uma religiosa e pensadora agos- Fagundes, Emelly Sueny Fekete. “Uma das faces do feminismo
em Pernambuco: Transgressões e permanências na traje-
tiniana. Paradoxos e anacronismos que nos tória da Federação Pernambucana pelo Progresso Femini-
levam a pensar não apenas o feminismo, no (1931-1937)”. Dissertação de Mestrado no Programa

mas a nossa história e o caráter humano de 1 SáPereira, Hebe. Hebe de Sá Pereira: Depoimento (ou-
modo nunca linear, sistemático, causal, mas tubro de 2010).
70  •  Andrea Almeida Campos

de pós-graduação em História da UFRPE. 2018. Dispo- Silva, Maria Angélica Pedrosa de Lima et al. “Entre versos e
nível em: http://www.tede2.ufrpe.br:8080/tede2/bits- manifestos: as contribuições de Edwiges de Sá Pereira
tream/tede2/7811/2/Emelly%20Sueny%20Fekete%20 para a emancipação social e política da mulher em Re-
Facundes.pdf. Acesso em 03 de agosto de 2020. cife (1920-1932)”. Anais do IV Colóquio de História da
Nascimento, Alcileide Cabral do. “O bonde do desejo: o UNICAP, Recife, 2010.
movimento feminista no Recife e o debate em torno
do sexismo (1927-1931).” Revista de Estudos Feminis- Obras de Edwiges de Sá Pereira
tas, v. 21, n. 1, Florianópolis, 2013. Campesinas.1901 (Poesia)
_____. “Por uma igualdade emancipadora da mulher: Edwi- Impressões e notas. 1926 (Assunto pedagógico)
ges de Sá Pereira e Martha de Hollanda, feministas em Pela mulher, para a mulher. 1931 (Tese)
luta pela cidadania política em Pernambuco dos anos Um passado que não morre – No centenário do Dr. João
de 1930”. Anais do XV Encontro Regional de História Baptista Regueira Costa, 1845-1945. 1945 (Ensaio)
da ANPUH-RIO, Rio de Janeiro, 2012. A influência da mulher na educação pacifista do pós-guer-
Pedrosa, Cida. “A Eva militante e todas as horas úteis para ra. 1947 (Conferência)
a mulher e pela mulher”. Revista Hexágono, CEPE Edi- Horas inúteis. 1960 (Poesia)
tora, v. 2, n. 5, p. 5-23, 2019.
Silva, Marcelo Melo da. “Cuidar do lar… e da pátria: o voto Inéditos
feminino em Pernambuco nas eleições de 1933”. Bil- Eva militante (Ensaios)
ros – Revista de História, v. 5, n. 8, Fortaleza, 2017. Joia turca (Ensaios)
Mário Faustino, Camões
e o sopro da utopia
Peron Rios
Professor de Língua Portuguesa do Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Pernambuco. Publicou,
pela Editora da UFPE, a premiada tese “A Viagem Infinita: um estudo sobre Terra Sonâmbula, de Mia
Couto”, e proferiu palestras sobre as literaturas brasileira, moçambicana e francesa em várias universidades
do Brasil e do exterior. É membro do Grupo de Estudos em Crítica Cultural e Artes (GECCA).

1. As teses pós-utópicas de “A modernidade é o transitório, o fugitivo,


o contingente, a metade da arte, cuja outra
Haroldo de Campos metade é o eterno e o imutável” (CAMPOS,
O ensaio de Haroldo de Campos “Poesia 1997, p. 248).
e modernidade: da morte da arte à cons- A visão moderna de Haroldo sempre se
telação. O poema pós-utópico”, presente muniu de certo pragmatismo, de uma se-
na coletânea O arco-íris branco (CAMPOS, leção orgânica da tradição. Para o autor de
1997), pode nos dar, de saída, uma visão Galáxias, o vezo puramente historiográfico
antiflusseriana da elaboração poética. Se, interessaria apenas aos “eruditos”, no senti-
em meados do século XX, Vilém Flusser de- do pouco apreciável que o termo acolhe. No
sejava uma fabricação verbal elaborada pelo fim das contas, o que subjaz a essa crença é
som absoluto, significante pleno, Haroldo a formação de base poundiana, são os ecos
advogaria, no lugar de uma “poesia pura”, das lições do poeta norte-americano, cons-
uma “poesia para”, em que certo engaja- tantes sobremaneira do livro – hoje clássico
mento ganharia vez. Isso ocorreria, porém, – ABC of reading, traduzido por Augusto de
numa perspectiva contingente, guardando Campos e José Paulo Paes como ABC da lite-
a consciência do transitório e compondo- ratura. Ezra Pound ali defende um conceito
-se de um nacionalismo aberto, conectado, de tradição atualizada (os poetas que devem
não atomizado. A provisoriedade é atestada formar o paideuma de um crítico são aque-
pelo próprio Campos, quando se refere ao les que, em boa medida, contribuem para
pensamento estético baudelairiano: a época da recepção) e uma prática forte-
Baudelaire, na culminação desse proces- mente axiológica de leitura – lastreada, por
so (um processo que retoma a oposição de
sua vez, num método comparativo típico das
“belo universal”/“belo relativo” para acentu-
ar, nessa relativização do belo, um ideal de
experiências científicas dos biólogos e suas
novidade em constante mutação), acaba por lâminas de amostragem.
encontrar no “transitório” (cujo paradigma é Tal compreensão desembocará no exer-
a moda) o critério distintivo da modernidade: cício tradutório de todo o grupo concretista
72  •  Peron Rios

conhecido por Noigandres: as escolhas ver- provisória do credo estético individual para o
bais para o texto de chegada, numa tradu- afloramento das plataformas coletivistas típi-
ção, deveriam favorecer o impacto estético cas dos decálogos vanguardistas – não passou
do leitor contemporâneo (e não exatamen- de utopia. A transformação da poesia de alto
te um leitorado abstrato, pertencente ao nível em pão diário (a “poesia universal pro-
momento de produção): “A tradução – vis- gressiva”), portanto, revelou-se uma esperan-
ta como prática de leitura reflexiva da tradi- ça estiolada, uma promessa não cumprida, o
ção – permite recombinar a pluralidade dos que invibializou, segundo Campos, a própria
passados possíveis e presentificá-la, como identidade da experiência de vanguarda:
diferença [...]” (CAMPOS, 1997, p. 269). A Sem perspectiva utópica, o movimento
coerência teórica, nesse caso, é absoluta: de vanguarda perde o seu sentido. Nessa
dar primazia à sensibilidade estética de uma acepção, a poesia viável do presente é uma
poesia de pós-vanguarda, não porque seja
recepção do século XVII de John Donne, por
pós-moderna ou antimoderna, mas porque é
exemplo, é não apenas habitar uma realida- pós-utópica (CAMPOS, 1997, p. 268).
de primordialmente hipotética como tam-
bém constitui uma abordagem historicista Alguns dos elementos acima elencados
do texto literário – algo fora das intenções convergem para a linhagem reflexiva do
dos escritores concretos. Acompanhando o poeta-crítico Mário Faustino. Em depoi-
próprio Haroldo, lemos: mento sobre o piauiense (“Mário Faustino
A urgência em se outorgar uma “tradição ou a impaciência órfica”), Campos lembra
viável” (em identificar “aquela parte da tradi- que se tratava de um “crítico de formação
ção literária que permanece vital ou foi revivi- poundiana” (CAMPOS, 2006, p. 189). Por
da” para uma determinada época, como diz
exemplo, o exercício do “make it new” – di-
Roman Jakobson a propósito do ponto de
visa metodológica de Pound –, tão presente
vista sincrônico nos estudos literários) solicita
antes o escritor que o historiador da literatura nos ensaios faustinianos do Poesia-experi-
(CAMPOS, 1997, p. 252). ência, nada mais é do que a supramencio-
nada atualização dos “passados possíveis”
Um valor mais alto se alevanta, porém, no terreno escarpado da “transcriação”.
nas teses de um primeiro Haroldo de Cam- As preocupações de Haroldo a respeito
pos: a expectativa oswaldiana de, pelo do papel social da poesia são igualmen-
viés da vanguarda, disseminar a literatura te uma tônica do pensamento poético de
“exigente” (para usarmos o termo de Leyla Faustino. Num “diálogo de oficina”, este
Perrone-Moisés). Fazer o público degustar indaga verticalmente: “Em que o poema
esse biscoito fino. Ao mesmo tempo, e ‘ativo’ ajudaria a mudar uma sociedade?”
quase como uma necessidade correlata, (FAUSTINO, 1977, p. 35). Mas recusa, ve-
o poeta pretendia sofisticar os parâmetros ementemente, o utilitarismo que não põe
de cultura e de leitura desse mesmo públi- em primeiro plano a fatura esteticamente
co burguês. bem realizada de um poema (na verdade,
Semelhante nivelamento técnico, po- outra lição do autor de The cantos):
rém, não se confirmou na educação dos lei- Há, por exemplo, os pobres de espírito
tores e a prática socialista da poesia – elisão que confundem ética e estética, somente por
M á r i o F au s t i no , C a m õ es e o s o p ro da u to p i a   •  73

superficialmente exprimir as condições sociais ruptura, mostrou-se sempre generosamente


reinantes, ou apenas por fazer-se, aparente- sensível aos experimentos mais radicais da
mente, porta-voz das aspirações populares, poesia concreta, embora, na sua produção
possa ser um bom poema, pouco importando pessoal, conservasse ainda certos elos com a
suas qualidades intrínsecas. Quanto a mim, tradição discursiva (CAMPOS, 2006, p. 190).
nego terminantemente que um mau poema
possa servir seja lá ao que for (FAUSTINO, Em Faustino, tal afinidade com a tradi-
1977, p. 38). ção do verso ocidental agirá como resistên-
cia – embora, insistimos, estimulasse as pes-
Estes são alguns dos principais pontos quisas poéticas dos concretos – à implosão
de consonância entre o autor de O homem radical que o grupo de São Paulo pratica-
e sua hora e o grupo de São Paulo. Todavia, mente impunha, em sua fase heroica. Uma
assoma agora uma linha divergente entre amostra do vínculo de Mário com a poesia
Mário Faustino e os escritores paulistas. que secularmente o antecedeu se expôs de
Em balanço sobre a poesia brasileira na modo exemplar em sua “atualização” de
década de 50, informa-nos Faustino que Luís de Camões, no saboreio sincrônico do
o “verso”, no sentido em que a palavra tem poeta português, que vislumbraremos na
sido empregada até agora, se encontra, no sequência.
momento, em crise, em todos os países do
Ocidente e que [...] a experiência “concretis-
ta”, na melhor das hipóteses, poderá salvar 2. Temas e formas:
a poesia brasileira do marasmo discursivo- intercâmbios
-sentimental em que se encontra (apesar dos
esforços de João Cabral e de alguns outros), O desejo de inscrever sua criação no diâ-
provendo nossa linguagem poética de novos metro da literatura épica pôs o poeta Mário
campos de ação perceptivos e expressivos Faustino, incontornavelmente, em diálogo
(FAUSTINO, 2003, p. 480-481). visceral com Luís de Camões, e aproximar
o autor de O homem e sua hora de Os lu-
Entretanto, alertava antes o poeta-editor:
síadas é tão necessário quanto previsível. O
É para esses poemas [de Décio Pignata-
que frequentemente se perde de vista, no
ri, Haroldo e Augusto de Campos, Ferreira
Gullar e alguns outros menos importantes] entanto, é o vínculo que a obra faustiniana
que vimos pedir a atenção do leitor honesto estabelece com a lírica do poeta português,
desta página, cujo orientador – que escreve localizada em mais de um aspecto.
estas palavras – deixa esclarecido não ser, pelo O piauiense Mário migra de Belém do
menos até hoje, “concretista”, não tendo inte- Pará para o Rio de Janeiro em 1956, e sua
resse pessoal na experiência tentada por seus atuação como crítico e poeta se desenvol-
colegas de São Paulo e pelo sr. Ferreira Gullar ve em plena efervescência do Concretismo.
(FAUSTINO, 2003, p. 479).
Recordemos que, dentre as inúmeras ban-
Haroldo de Campos também tinha cons­ deiras hasteadas pelos concretistas, ganha
ciência dessa refração: destaque a de que o verso tradicional mor-
Como poeta, aberto ao novo, dotado de rera: já não fazia sentido escrever poesia
um manuseio dúctil e sutil das técnicas do continuando a discursividade ocidental e va-
poema em verso, capaz do fragmento e da lia mais, portanto, explorar a fragmentação
74  •  Peron Rios

verbal e os amplos espaços de uma página. contamina com seus desacertos, sua trágica
Aqui é que assoma a relevância de Faustino imparidade. Na verdade, a lírica de Faustino
na cena literária de então: emular modelos retoma, nesse particular, a convulsão emoti-
como os de Camões contribuiu para a re- va de Camões, o qual – por apresentá-la em
sistência que ele impôs às decretações apo- larga medida – tornou-se, em suas éclogas,
calípticas enunciadas pelos paulistas. (Aliás, o poeta de um “bucolismo intranquilo” (Cf.
este o papel da tradição: servir de bala e FRAGA, 1989).
baliza. O conhecimento do que a humani- A pulverização do mundo no moinho
dade pôde elaborar oferece cautela a quem do tempo é tópica de Faustino, calcada
se propõe instaurar uma novidade absoluta. nessa tradição que Luís de Camões conso-
Não é outra coisa o que nos diz Antonio lidou: “Inês, Inês, quem sobrevive, quem,/
Candido, em palestra sobre Sérgio Buarque Nos filhos que fabrica?”, indaga um eu-
de Holanda: o Modernismo de 1922 en- -lírico do vate brasileiro (FAUSTINO, 1985,
controu em São Paulo uma liberdade que o p. 56), em poema não finalizado e de pre-
Rio, por ter sido corte e resguardar tesouro clara referência a Os lusíadas. Vale subli-
cultural, não propiciava – a de não ter culti- nhar: aqui, a repetição verbal sinaliza certa
vado uma tradição1). incompreensão, alguma perplexidade. Em
Inúmeros são esses modelos emulados outro poema longo e memorável, escreve-
e podemos iniciar destacando o enunciar -nos o autor:
de um desconcerto do mundo – tônica de [...] paz de sentinela/ maravilhada à vista/
Camões e da poesia europeia dos séculos de si mesma nas algas/ do tumultuoso ven-
XVI e XVII. Os versos de “Correm turvas to,/ de seus restos na mágoa/ do tumulário
as águas deste rio” são um vivo exemplo tempo,/ de seu pranto nas águas do mar justo
–/ maravilha de estar assimilado/ pelo vento
desse desnorteio existencial: “Tem o tem-
repleto/ e pelo mar completo – juventude
po sua ordem já sabida;/ O mundo, não;
(FAUSTINO, 1985, p. 59-60).
mas anda tão confuso,/ Que parece que
dele Deus se esquece” (CAMÕES, 2008, p. Novamente a imagem da água vem
528), e não por acaso essa instabilidade se refletir o tempo como tumulário contra a
materializa na imagem heraclítica do rio. A juventude. Camões, por sua vez, mostran-
poesia de Faustino, de teor conflituoso e do a metamorfose de tudo, expunha, em
agônico, não raro denuncia, como em “Ba- “De vós me aparto, ó vida! Em tal mudan-
lada”, semelhante incongruência. O dístico ça”, a alegria enquanto véspera da dor:
de abertura desse texto é um claro exem- “Não sei para que é ter contentamento/
plo de beleza estilística e da cosmovisão se mais há de perder quem mais alcança”
da ruína: “Não conseguiu firmar o nobre (CAMÕES, 2008, p. 276).
pacto/ Entre o cosmos sangrento e a alma As metamorfoses que desembocam na
pura” (FAUSTINO, 1985, p. 115). Note-se o finitude geram a angústia do renascentista
que expressam os decassílabos expostos: a Camões, mas antecipando a contrição tipi-
personalidade é impoluta, mas o mundo a camente barroca de um Gregório de Matos
1 Cf. https://m.youtube.com/watch?v=wXgG0GR7CYg (para ficarmos na língua portuguesa). Não
(acesso em 09/08/2020). é por acaso que o célebre “Mudam-se os
M á r i o F au s t i no , C a m õ es e o s o p ro da u to p i a   •  75

tempos, mudam-se as vontades” será recu- expressas em elementos substantivos. É o


perado, em seu espírito, no conhecidíssimo caso, aqui, de “inferno”, “inverno”, “outo-
“Nasce o Sol, e não dura mais que um dia”, no”, “purgatório”, “estio”. Já não são coi-
do Boca do Inferno. Temos, então, o Ca- sas ou eventos; antes, aparecem adjetivais
mões de verve maneirista. (a metáfora semântica gera uma translação
O poeta português antecipa o Roman- de categorias). Mas é exatamente isto que
tismo apresentando a morte como solução Saraiva e Lopes apontam como inovador
para o sofrimento terreno e, em sua cos- em Luís de Camões:
movisão, vida é vetor hermenêutico (mar- Com imagens-símbolos formulares, conse-
ca tipicamente romântica): “E sabei que, gue impor por momentos ao espírito do lei-
segundo o amor tiverdes,/ tereis o enten- tor um senso do real bem diferente do senso
comum: certas qualidades tornam-se coisas
dimento de meus versos” (“Enquanto quis
substantivas, se não mesmo elementos ou
Fortuna que tivesse”). Mário Faustino, por
essências, tais o verde, a luz, dos olhos ama-
sua vez – e para usar as palavras de Artur
dos; ou, pelo contrário, como que descobre
Ataíde (2010) –, guarda um “romantismo as qualidades neve, fogo, água – dizemos
resistente” (cf. “Alma minha gentil, que te qualidades e não coisas, porque tais palavras
partiste”). Similar a Camões e suas amadas trazem apenas à poesia o matiz afectivo des-
platônicas, Dante e sua Beatriz ou Petrarca pertado por certas associações de ideias ou
e Laura, Faustino vê a presença do ser ama- impressões (LOPES; SARAIVA, 2010, p. 314).
do como entrada no paraíso. É o que nos
Ponto de contato: o barroquismo, que
revela “Inferno, eterno inverno, quero dar”:
se vislumbra no jogo de antíteses e é típico
Inferno, eterno inverno, quero dar do soneto camoniano, reaparece aqui em
Teu nome à dor sem nome deste dia todo vigor: lar frio, praia sem mar. E, toda-
Sem sol, céu sem furo, praia sem mar,
via, com a “concentração emocional” que
Escuma de alma à beira da agonia,
Camões emprestou a tal forma fixa. Nessa
Inferno, eterno inverno, quero olhar
De frente a gorja em fogo da elegia, chave barroquizante, o precioso amor e o
Outono e purgatório, clima e lar mundo emergem como antítese. Para que
De silente quimera, quieta e fria. um se faça viável, o outro deve ser derrota-
Inverno, teu inferno a mim não traz do. Em medida considerável, já em Camões
Mais do que a dura imagem do juízo se verificava uma tal cosmovisão: o abando-
Final com que me aturde essa falaz
no da vida objetiva se compensava, afinal
Beleza de teus verbos de granizo:
de contas, com a cristalização mental da
Carátula celeste, onde o fugaz
Estio de teu riso – paraíso? pessoa amada. Veja-se o poema, de Fausti-
(FAUSTINO, 1985, p. 173). no, que merece comparecer na íntegra:

Note-se, primeiramente: a escolha lexi- O mundo que venci deu-me um amor,


Um troféu perigoso, este cavalo
cal mais culta semelha a do Camões dos so-
Carregado de infantes couraçados.
netos; além disso: assim como um texto in- O mundo que venci deu-me um amor
teiro pode ganhar um valor adjetivo – como Alado galopando em céus irados,
a Canção do exílio lida por José Guilherme Por cima de qualquer muro de credo,
Merquior) – também qualidades podem ser Por cima de qualquer fosso de sexo.
76  •  Peron Rios

O mundo que venci deu-me um amor sucedem). Mais curioso, porém, é que, indo
Amor feito de insulto e pranto e riso, aos projetos inconclusos de Mário Faustino,
Amor que força as portas dos infernos, lá flagramos os desideratos de escritura que
Amor que galga o cume ao paraíso.
ele alimentava: a poesia camoniana é ab-
Amor que dorme e treme. Que desperta
solutamente central naquela que seria sua
E torna contra mim, e me devora
E me rumina em cantos de vitória...
vertente épica – a contramão da cartilha li-
(FAUSTINO, 1985, p. 171). terária dos anos 50, no Brasil. Dizendo de
outra forma, a presença de Camões na obra
Entre Faustino e Camões, portanto, ou- de Faustino é muito mais densa e constante
tra interseção se detecta: a possibilidade de do que a mera menção noticiosa que faz
se experimentar o amor sem o saborear em Mendonça Teles ao poeta “aeromorto”, em
sua seiva carnal: reabilitação do idealismo seu Camões e a poesia brasileira (cf. TELES,
platônico (não é outra coisa que dizem os 2001, p. 252).
versos “Por cima de qualquer muro de cre- O poema inacabado, intitulado “A re-
do,/ Por cima de qualquer fosso de sexo”). construção” (FAUSTINO, 1985, p. 99), seria
Por fim, a perversidade do pior dos deuses composto de oito partes perfazendo longa
– Eros – se notabiliza como outro camonia- narrativa e, de acordo com os documentos
no remake: “Amor que dorme e treme. Que que se tem, apenas a primeira seção estaria
desperta/ E torna contra mim, e me devora/ concluída. Reaparecem, ali, os versos decas-
E me rumina em cantos de vitória...”. sílabos e brancos – dessa vez a relatarem
uma tragédia velada, a iminência da ruína
2.1. Um Camões menos casual
descrita numa atmosfera fantasmática (“O
do que previsto
céu, de incendiar-se ameaçado,/ Recolhe
Comparações guardam sempre o risco suas nuvens. E demora/ Em reinos mais pa-
da proximidade fortuita: interseções casuais, cíficos o sol,/ Temente desta aurora. [...] Não
contingentes, intercâmbios que alargam falo/ A língua destes cânticos, não danço/
pouco a leitura dos textos pareados. De A dança destes ritos. [...] Faz sempre noite/
fato, cada qualidade elencada poderia, iso- Neste país [...]”). No cenário agônico des-
ladamente, servir de cotejo a inúmeros poe- crito, a fauna se inscreve num imaginário
tas de filiação diversa. Todavia, a proximi- macabro e romântico (“[...] De rapina/ São
dade entre os autores em todos os pontos todas estas aves, o morcego/ Geme no ar
enumerados já nos daria elementos para enquanto nos monturos/ O rato ri dos ho-
um servir de lente estética para o outro, in- mens [...]”) e a imagem táctil do frio é uma
dependente das noções de influência e de constante no poema, constituindo o seu
intencionalidade (importa se Faustino, por leitmotiv; a baixa temperatura traduz a re-
exemplo, pretendeu retomar Camões ou se duzida, ou rarefeita, ventura. Justificando o
o poeta português deságua na sensibilidade título, porém, vislumbra-se nos versos um
do brasileiro. Mas também importa – e so- fio de esperança e o eu-lírico, herói épico,
bretudo – que as poéticas dialogam e que, seria o arauto de novos e auspiciosos tem-
borgianamente, os poetas anteriores tam- pos: “Enfim todo um clamor de riso e can-
bém são influenciados por aqueles que os to/ Em língua nova e minha. Esta cidade/
M á r i o F au s t i no , C a m õ es e o s o p ro da u to p i a   •  77

Aberta não me opõe fossos nem muros a chama do legado épico em suas canôni-
[...]”. Todas as partes estão previstas no pla- cas modalidades: ambas as coisas vinham
no de Faustino, em que também se conhe- acrescidas da escolha em tornar central,
cem as leituras que dariam lastro aos blocos no processo criativo, uma personalidade
poéticos. representativa da própria tradição em lín-
Das oito divisões mencionadas, nada gua portuguesa. Claro: também Faustino
menos do que cinco preveem, de algum cultivava o fragmento; entretanto, ele ser-
modo, a presença do autor d’Os lusíadas via como célula poética, matéria-prima de
como suporte criativo. Na quinta parte, Má- um tecido mais coeso:
rio Faustino parafrasearia, metalinguistica- Na última fase de sua poesia, Mário Faus-
mente, o incontornável “Sôbolos rios que tino projetava reunir os poemas-fragmentos
vão”; já no excerto seguinte, o escritor lusi- que escrevia, em longos poemas que seriam
publicados de cinco em cinco anos. Morreu
tano assumiria o posto que Virgílio ocupou
dois anos depois da decisão desse projeto
na Divina comédia: “Camões acompanha (CHAVES, 2004, p. 51).
o poeta nos infernos” (FAUSTINO, 1985,
p. 106); na sequência, o vate quinhentista É notório, portanto, que semelhante
estabeleceria um diálogo com o eu-lírico de propósito o distinguia decisivamente do
“A reconstrução”; num “Pequeno roteiro” credo literário hegemônico de então. Di-
final, lemos enfim textualmente: ríamos mais: Faustino, emitindo a plenos
Luís de Camões será o Virgílio de minha pulmões o sopro da utopia, ainda não sa-
peregrinação. Fica a meu lado, Luís de Ca- boreara o desencanto de um Haroldo tar-
mões, agora. (Tomo as armas que ele pendu- dio, em seu clássico ensaio de O arco-íris
rou nos salgueiros e que nunca mais ninguém
branco.
usou, bem como a lira que ele abandonou
para chorar sôbolos rios...) (FAUSTINO, 1985,
p. 108). Referências
ATAÍDE, Artur Almeida de. O Romantismo resistente e o
Em uma palavra: o timbre camonia- Classicismo possível. Recife: Bagaço, 2010.
CAMÕES, Luís Vaz de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova
no na composição poética do escritor de Aguilar, 2008.
O homem e sua hora está longe de figu- CAMPOS, Haroldo de. O arco-íris branco. Rio de Janeiro:
Imago, 1997.
rar um acidente. Trata-se, antes, de uma _____. Metalinguagem e outras metas. São Paulo: Perspec-
tiva, 2006.
presença premeditada, de um epicentro CHAVES, Lília Silvestre. Mário Faustino: uma biografia. Belém:
a gerar sismos, um dueto de coloraturas. Secult; IAP; APL, 2004.
FAUSTINO, Mário. Poesia-experiência. São Paulo: Perspec-
E, à maneira de ritornello, a coda volta ao tiva, 1977.
_____. De Anchieta aos Concretos (org. Maria Eugênia Boa-
introito: numa cena literária em que a fra- ventura). São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
tura do verso se converteu em status quo e _____. Poesia completa, poesia traduzida. São Paulo: Max
Limonad, 1985.
em que certa discursividade ganhou ates- FRAGA, Maria do Céu. Camões: um bucolismo intranquilo.
Lisboa: Almedina, 1989.
tado de óbito, a poética de Mário Faustino LOPES, Óscar; SARAIVA, António José. História da literatura
significou desvio e atrito. Não apenas o portuguesa. 17. ed. Porto: Porto Editora, 2010.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Mutações da literatura no século
verso tradicional estava, embora redimen- XXI. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
sionado, presente em sua escritura, e não TELES, Gilberto Mendonça. Camões e a poesia brasileira e o
mito camoniano em língua portuguesa. 4. ed. Lisboa:
somente a composição literária reacendia Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001.
Bandeira: vida & verso

Paulo Franchetti
Professor titular aposentado da Unicamp e autor, entre outros, de Alguns aspectos da teoria da
poesia concreta (Editora da Unicamp, 2012), Nostagia, exílio e melancolia – leituras de Camilo
Pessanha (Edusp, 2001) e Estudos de Literatura Brasileira e Portuguesa (Ateliê Editorial, 2007).

N
um artigo de 1940, Sérgio Buar- que há nelas mais importância, maior interes-
que de Holanda escreveu que foi se poético.3
Manuel Bandeira “quem primeiro
Quando, muitos anos depois, em 1958,
entre nós empregou o verdadeiro verso li-
retomou esse texto e o ampliou para ser-
vre”. A afirmação tem impacto, mas vale a
vir de introdução à obra reunida do poeta,
pena notar também que, nesse texto, inte-
suprimiu essa formulação, junto com um
gra uma concessiva, pois o ponto a afirmar
trecho de crônica do poeta que parecia
é que, para o poeta modernista (“iniciador
apoiá-la: “falamos de certas coisas brasi-
do movimento modernista”, tinha escri-
leiras como se as estivéssemos vendo pela
to Sérgio na Fon-fon, em 19221), “não se primeira vez, de sorte que em vez de expri-
tornou necessário o abandono dos ritmos mirmos o que há nelas de mais profundo,
tradicionais”.2 isto é, de mais quotidiano, ficamos nas ex-
No mesmo artigo, o crítico apontava o terioridades puramente sensuais”.
que lhe parecia uma característica marcante Logo mais será interessante retomar
da poesia de Bandeira: essa passagem. Mas, antes, registre-se um
As imagens raramente obedecem em seus
dado de época. O texto de 1940 era uma
poemas a uma escolha. As coisas triviais, quo-
resenha das Poesias completas. Nesse volu-
tidianas, podem valer mais para ele do que as
realidades vistosas. E isso não por simplismo me, em que veio a Lira dos cinquent’anos,
voluntário, mas certamente pela convicção de já era sensível a diminuição da prevalên-
cia do verso livre (essa pedra de toque do
1 “Manuel Bandeira”. In: Holanda, Sérgio Buarque de. O Modernismo) no conjunto da obra.4 Junto
espírito e a letra – estudos de crítica literária, vol. 1. São
Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 144. 3 Id.,
Ibid., p. 281.
2 “Poesias completas de Manuel Bandeira”. Ibid., p. 277. 4 No que diz respeito ao equilíbrio entre verso livre e ver-
A frase é: “... pois apesar de ter sido ele quem primeiro so medido tradicional, a evolução de Bandeira é clara:
entre nós empregou o verdadeiro verso livre, não se tor- se em Libertinagem só havia 3 poemas em versos me-
nou necessário o abandono dos ritmos tradicionais para didos, contra 35 em versos livres, em Estrela da manhã
que nos desse algumas das suas criações poéticas mais há um perfeito equilíbrio, que será rompido em Lira dos
audaciosas”. cinquent’anos, em que praticamente dois terços dos
80  •  Paulo Franchetti

com o lançamento do livro, aconteceu tam- ultrapassar-se a si mesmo pode ser carac-
bém a candidatura de Bandeira à Academia terística de vários poetas de estilos e perso-
Brasileira de Letras. Nesse contexto, Sérgio nalidades diferentes. Ou seja, esse ultrapas-
parecia empenhado em rebater algum hi- sar-se, para ser reconhecido como próprio
potético “censor superficial e desatento” desse poeta, deve ser um ultrapassar-se
que verberaria como defeito a versatilida- específico, com uma marca pessoal. O que
de dessa poesia de metro e de tom vário, Sérgio não explica.
reafirmando “a unidade profunda que no A questão que subsiste é que no mesmo
entanto subsiste em tudo quanto escreveu texto ele afirma que o verso livre “foi um
Manuel Bandeira”. Para fazer frente a esse instrumento bem adequado à sua expressão
desafio, buscou – por meio de uma com- lírica” (p. CLXII), e que:
paração rápida e algo cruel com Ronald de Quando procura ajustar-se às medidas
Carvalho, tomado como exemplo de acade- dos velhos cancioneiros e mesmo às formas
micismo poético – indicar a singularidade quinhentistas, o que sucede numerosas vezes,
do autor de Libertinagem. Por fim, sem tra- desde seu livro de estreia [...], é como se a ex-
pressão lírica de Manuel Bandeira tivesse de
zer mais elementos, concluiu: “unidade na
súbito encontrado um instrumento congenial
variedade: é essa realmente uma das fortes
(p. CLIX).
impressões que confirma em nós a leitura
do volume de Poesias completas”.5 É claro, portanto, que é preciso buscar,
Já em 1958, a “unidade superior de além da questão formal, a unidade da obra:
toda a sua obra” não parece mais um pro- na particularidade desse impulso lírico que ao
blema a exigir demonstração, embora o mesmo tempo encontra no verso livre um ins-
aproveitamento da primeira parte do artigo trumento adequado e reconhece nas formas
de 1940 ainda traga Ronald como sparring quinhentistas um instrumento congenial.
dos verdadeiros modernistas. Mas nem por Aliás, a noção mesma de “obra” termi-
não parecer deixa de ser uma questão, para na por ser de alguma maneira relativizada,
a qual Sérgio aventa respostas. A primeira quando lemos:
delas é que a unidade se daria pelo cons- Ao oposto de certos artífices de nossos
tante esforço do autor em “ultrapassar-se a dias, ele [M.B.] não tem e jamais teve a ambi-
si mesmo”.6 Esforço esse plenamente rea- ção de objetivar as efusões líricas em alguma
lizado e que “nenhum leitor familiarizado construção totalmente independente e bem-
-equilibrada. Sua poesia não quer ser um ar-
com seus diferentes aspectos deixará de
tefato. Exige a presença viva e permanente do
reconhecer logo ao primeiro contato”. Mas autor, não apenas à sombra de uma inteligên-
isso, é claro, não basta, pois o esforço de cia eficaz; nisso denuncia bem sua qualidade
poemas usam o verso tradicional. Apenas como curiosi- lírica, no sentido pleno da palavra7
dade: na sequência da obra, em Belo belo e Opus 10, a
distribuição volta a ser rigorosamente equilibrada; já em Sérgio não desenvolve essa postulação,
Estrela da tarde, há amplo predomínio do verso e das
formas tradicionais, sendo três quartos das peças em ver- mas talvez aí resida o traço de singularidade
so medido, contando entre elas 11 sonetos e 1 sonetilho. dessa poesia, que atravessaria e se sobrepo-
5 Id., Ibid., p. 282.
6 Holanda, Sérgio Buarque de. “Trajetória de uma poe- ria à sua diversidade de registros formais.
sia”. In: Bandeira, Manuel. Poesia completa e prosa. Rio
de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 2009, p. CLIX. 7 Id., Ibid., CLXI.
Bandeira: v i da & v e rs o   •  81

De fato, se há um ponto de força a partir [...]” (p. CLXIV). E como efeito de leitura
do qual toda a poesia de Bandeira se ilumina anotam: “a nossa atenção é despertada
é este: a presença viva e permanente do autor. inicialmente pela voz lírica deste Eu, que,
A propósito, Sérgio registrou, no texto de ao construir os poemas, nos acompanha a
1958, que: cada passo, dando a cada verso o seu tim-
Essa absorção dos acidentes da vida ex- bre e a sua vida” (p. CLXIV).
terior no próprio mundo íntimo exprime-se Na sequência, ressaltam “a adesão fer-
reiteradamente em toda a obra poética de
vorosa à realidade material do mundo” e
Manuel Bandeira, mas é sobretudo típica do
nela radicam a impressão de “espontânea
primeiro livro.
naturalidade da sua poesia, que tem a
Fiquemos com a primeira parte – “ex- simplicidade do requinte” (p. CLXV), bem
prime-se reiteradamente em toda a obra” como a capacidade de “aproximar-se do
– e agora juntemos-lhe aquela afirmação de leitor, fornecendo-lhe um acervo tão am-
1940 – a de que as coisas triviais podiam va- plo de informes pessoais desataviados, que
ler mais para esse poeta do que as realidades entretanto não parecem bisbilhotice, mas
vistosas, e que não são “escolhidas”, no sen- fatos poeticamente expressivos” (p. CLXVI).
tido de selecionadas por sua carga poética Esses mesmos pontos tinham merecido a
ou seu apelo pitoresco. Por fim, se acrescen- atenção, em 1940, de Álvaro Lins, num bre-
tarmos a equivalência que o próprio Bandei- ve artigo que traz algumas das observações
ra estabelece entre “o mais profundo” e “o mais agudas que podemos ler sobre a com-
mais cotidiano”, podemos pensar que para pleição da poesia de Manuel Bandeira.9 Do
Sérgio – e para quase toda a crítica posterior ponto de vista de Lins, a conquista da voz
– é isso que permite ao leitor reconhecer a mais pessoal do poeta resulta “da harmonia
marca de Bandeira. que ele realizou entre as forças inconscien-
O mais profundo no mais quotidiano, tes da inspiração e a força disciplinadora da
aliás, talvez não seja a melhor maneira de razão”. Mas o ponto mais importante não é
definir o tom predominante nessa poesia. essa tensão, mas o resultado do seu equilí-
O mais pessoal no mais cotidiano, a trans- brio: o poeta seria capaz de “uma disciplina
formação do mais cotidiano no mais íntimo que atinge o ascetismo e que dá constante-
talvez fossem formulações mais adequadas. mente a impressão de uma pobreza francis-
De fato, é nessa direção que vai o estudo cana”. “Tem o gosto da pobreza, da solidão,
assinado por Gilda de Mello e Souza e An- da simplicidade”. Na sequência, o crítico
tonio Candido, em 1966.8 Falam eles ali de propõe que essa pobreza é, na verdade, um
dois modos poéticos – adesão ao real e sub- anseio de profundidade, pureza e perfeição.
versão dele por deformação voluntária – e Portanto, uma abdicação do supérfluo. Um
afirmam: “entre os dois modos poéticos, ou derivativo dessa atitude seria a capacidade
os dois polos da criação, corre como unifi- de “exprimir um máximo de poesia num mí-
cador um Eu que se revela incessantemente nimo de palavras”.10

8 Souza, Gilda de Mello e Candido, Antonio. “Estrela da 9 Lins, Álvaro. “Crítica literária – Poesia”. In: Bandeira,
vida inteira”. Repr. in Bandeira, Manuel. Poesia comple- Manuel. Poesia completa e prosa. Cit., p. CXLV e ss.
ta e prosa. Cit., pp. CLXIV e ss. 10 Id., Ibid., p. CXLVII.
82  •  Paulo Franchetti

Numa direção contrária ao que propo- Onestaldo de Pennaforte, já em 1936,


rão Gilda e Antonio Candido de Mello e incumbiu-se de demonstrar como Bandei-
Souza, Lins vai dizer que Bandeira: ra foi, desde os primeiros livros, um expe-
É um solitário que exige o nosso esforço, a rimentador de novas soluções para o verso
nossa vontade, o nosso despojamento. Só ex- tradicional.12 Na verdade, um experimenta-
prime os homens na medida em que esses ho-
dor que não raras vezes produzia experiên-
mens procurem colocar-se dentro dele. Para
cias de acentuado sabor cultista – que no
sentir a sua poesia será preciso subir até ao
poeta e identificar-se com ele, porque nunca vocabulário de combate modernista pode-
descerá para se identificar conosco.11 riam ser classificadas como parnasianas. E o
próprio Bandeira discorreu amplamente so-
Entretanto, apesar de opostas, creio que bre o seu conhecimento e exercício exausti-
são formulações complementares, pois am- vo do verso medido.
bas enfatizam a demanda de identificação, Mas é nas suas reflexões sobre o verso li-
pelo leitor, do lugar de onde fala o poeta. vre, assim como no seu embate a esse respeito
A oposição do ponto de vista, no caso, jus- com Mário de Andrade, que se encontra uma
tifica-se porque Álvaro Lins escrevia ainda pista para compreender melhor a construção
quando a obra de Bandeira estava em pro- da figura poética de Bandeira e a obtenção do
gresso. Os Souzas, escrevendo já 12 anos tom pessoal inconfundível, que lhe permitirá,
após a publicação de Itinerário de Pasárga- todo o tempo, manter ao lado da versificação
da, representam o momento de leitura em modernista a tradicional – que, com o tempo,
que a forma específica de ser da poesia de como já se viu, vai inclusive predominar.
Bandeira está solidificada. Ou seja, aquela No Itinerário de Pasárgada (1954), Ban-
demanda de identificação da voz pessoal, deira nos diz que:
do contorno biográfico que dinamiza a es- O verso verdadeiramente livre foi para
tética da pobreza e a escolha dos temas, era mim uma conquista difícil. O hábito do ritmo
sentida em 1940 como dificuldade ofereci- metrificado, da construção redonda foi-se-me
da ao leitor, gesto aristocrático (para usar corrigindo lentamente a força de estranhos
dessensibilizantes.13
a expressão de Lins), mas já na década de
1960 – realizado o milagre da transubs- E também:
tanciação – era lida como fait accompli, ou Ora, no verso livre autêntico o metro deve
seja, como facilitador da leitura, aproxima- estar de tal modo esquecido que o alexandri-
ção ao leitor. no mais ortodoxo funcione dentro dele sem
Outro ponto que parece assente na me- virtude de verso medido (p. 39).14
lhor crítica é a importância do verso livre 12 Pennafort, Onestaldo de. “Marginália à poética de

Manuel Bandeira”. In: Bandeira, Manuel. Poesia com-


para a libertação do melhor do poeta. Na pleta e prosa. Cit, pp. XCIII e ss.
verdade, parece já um lugar-comum afirmar 13 Bandeira, Manuel. Itinerário de Pasárgada. Rio de Ja-

neiro: Editora do Autor, 1966, p. 38.


que o momento decisivo para a obtenção 14 Retoma aqui Bandeira um ponto de debate com

do tom mais característico da poesia de Mário de Andrade, nos primeiros tempos modernistas,
quando censura ao poeta paulista o uso de versos de
Bandeira seja Libertinagem. cadência tradicional de entremeio com versos livres.
Para a compreensão do sentido do verso livre para Ban-
deira, são de especial interesse as cartas, de outubro
11 Id., Ibid., p. CXLVI. de 1922, identificadas com os números 5, 6 e 7 neste
Bandeira: v i da & v e rs o   •  83

O ponto a ressaltar é que, nas duas fra- poderíamos acrescentar), há uma conquista
ses, o verso medido surge como uma forma de objetividade:
de sensibilidade. Ou talvez possamos dizer, A realidade [...] só se deixa captar, por sua
para maior clareza, um condicionante da vez, de modo pleno, mediante um recurso à
deliberada dissolução dos compassos e medi-
forma de sentir ou apreender a realidade
das tradicionais, à ruptura de todas as conven-
(pelo poeta) e um filtro a moldar a percep-
ções formais e estéticas.16
ção do leitor.
Sérgio Buarque já havia apresentado Portanto, para Sérgio, a liberdade não é
essa questão de modo bastante incisivo. No evidentemente uma conquista ou um obje-
seu texto de 1940, quando atribui a Bandei- tivo em si, mas uma condição de acesso à
ra o “verdadeiro” verso livre, o que tem em realidade, sem o filtro da sensibilidade im-
mente é que ele permite “abandonar uma posto pelas formas tradicionais: “Liberdade
forma impessoal já amaciada pela usura”. E e objetividade tornaram-se termos rigoro-
isso, para Sérgio, vale tanto para a impes- samente correlatos”. Esse é um ponto im-
soalidade das formas tradicionais quanto portante para Sérgio. Tanto que, em outro
para a impessoalidade das inovações, como contexto, num artigo de 1950, usando uma
o verso livre generalizado a partir do Mo- passagem de I. A. Richards, condena os
dernismo – em contraste com o qual o de poemas que não conseguem violentar as ex-
Bandeira seria tão “verdadeiro” quanto, pectativas comuns do tempo: “examinados
concomitantemente ou depois, a sua poe- nos seus pormenores, revelam uma imper-
sia medida. De fato, num artigo de 1950, o sonalidade extrema, uma absoluta ausência
crítico escreve: de caráter individual, seja no ritmo, seja no
Os poemas que não nos oferecem a menor fraseado” (p. 248). E por fim, citando o au-
aspereza, a mínima resistência, porque evocam, tor americano, aponta para pior efeito de
através de palavras-chave, do timbre e até do
sentido: “Poderiam ter sido elaborados por
ritmo, a imagem do já visto, sentido, assimilado
uma comissão de escritores”.17 Bandeira,
e geralmente aprovado, tendem sem dúvida a
encontrar, de parte dos críticos indolentes, uma nesse caso, é sempre o contraexemplo re-
aceitação mais pronta [...] Pode-se dizer que se ferido: o poeta, ao longo da sua carreira,
trata, aqui, de uma aceitação adquirida, pree- faria o esforço de proteger e manter a sua
xistente e originada em sugestões estranhas ao individualidade contra “a perspectiva des-
poema. O resultado é que uma interpretação sas reações” (p. 248).
automática vem a tomar a dianteira sobre o Na sua difícil conquista do verso livre,
exato valor do contexto...15
um dos faróis de Manuel Bandeira foi um
Daí a sua postulação, em 1958, de que texto que ele refere várias vezes: “Em bus-
ao eliminar o filtro do ritmo tradicional ca do verso puro”, de Pedro Henriquez-
(e da disposição anímica a ele vinculada, -Ureña.18

16 Idem. “Roteiro de uma poesia”, cit., p. CLVI.


volume: Moraes, Marcos Antonio de (Org.). Correspon- 17 O espírito e a letra – estudos de crítica literária, vol.
dência – Mário de Andrade & Manuel Bandeira. São 2. Cit., p. 248.
Paulo: Edusp, 2001. 18 Reproduzido em UREÑA, Pedro Henriquez-. Estudios
15 Holanda, Sérgio Buarque de. O espírito e a letra – es- métricos. Obras completas, Tomo III. Santo Domingo:
tudos de crítica literária, vol. 2. Cit. 247-8. Secretaria de Estado de Cultura/Editora Nacional, s/d.
84  •  Paulo Franchetti

A radicalidade do ensaio de Ureña resi- esse o único traço distintivo do “verso puro”,
de na sua identificação do ritmo como pura seria o discurso corrido, cuja divisão em li-
repetição, mas não porque no seu interior nhas não busca a marcação de pausas capa-
se repita este ou aquele elemento, nesta ou zes de definir uma série rítmica.21
naquela ordem ou posição, como o acen- Outro ponto que deve ter encontrado
to ou a duração. Isso, para ele, são atua- ressonância em Bandeira, embora ele não
lizações históricas de uma fórmula ideal. o refira diretamente, é que, para Ureña, no
O verso, em sua pureza, se define como tal primeiro pós-guerra, o ideal do verso puro
por ser uma unidade rítmica dentro de uma caminhava junto com outros ideais de pure-
série. Uma unidade rítmica, portanto, que za e reconstrução por meio da radicalidade,
não só integra uma série, mas é definida da recuperação da simplicidade:
por ela. Uma unidade rítmica que, apesar Si es verdad que nuestro tiempo cava has-
de definida como tal, não tem identidade ta llegar a la semilla de las cosas para echarlas
rítmica quando isoladamente considerada, a que germinen de nuevo y crezcan libres; si
el empeño de simplificación y de claridad toca
“não aceita apoios rítmicos exteriores; se
a los fundamentos de los valores espirituales,
contenta com o impulso íntimo de seu voo y del valor económico, y de la actividad polí-
espiritual”.19 tica, y de la vida familiar, ¿por qué no ha de
Manuel Bandeira fez um bom resumo tocar a las formas de expresión? Reducido a su
desse ensaio de Ureña na conferência “Poe- esencia pura, sin apoyos rítmicos accesorios, el
sia e verso”,20 e interpretou corretamente o verso conserva intacto su poder de expresar,
seu anseio e conceito de “verso puro”, ao su razón de existir. (p. 463)
escrever no Itinerário de Pasárgada aquela
Além de Ureña, outro escritor, hoje
reivindicação de que mesmo o verso medi-
pouco lembrado entre nós, teve marcante
do eventualmente inserido num conjunto
presença na reflexão de Bandeira sobre a
de versos livres não deveria ser percebido
questão do verso: Carlos Vaz Ferreira. O tí-
como tal, mas sim como um fragmento
tulo de seu trabalho mais conhecido (Sobre
de fala comum ou como elemento que só
la percepción métrica22) será retomado pelo
significa pela posição na série e não pela
poeta numa crônica de 1942: Percepção
associação a uma disposição de espírito
métrica.23 O que Bandeira encontra nesse
“poética”.
Rigorosamente falando, nos termos de 21 A propósito, para Ureña a prosa não se confunde

Ureña adotados por Bandeira, o verso re- com a linguagem falada. Aliás, para ele, a última proe­
za do desenvolvimento da prosa é justamente a sua
almente “puro”, cujo ritmo é determinado imitação convincente da linguagem falada. A prosa, tal
exclusivamente pelas pausas de fim de ver- como a entende, é uma derivação do verso. Ou seja,
um discurso que perdeu ou negou a segmentação por
so, sem qualquer outro apoio de recorrên- meio de pausas “arbitrárias” para compor séries rítmi-
cia, poderia ser entendido (uma vez que é cas (Ureña, Op. cit., p. 465-7).
22 Ferreira, Carlos Vaz. Sobre la percepción métrica.
determinado apenas por essas pausas) como Barcelona: Imprensa Elzeviriana, 1920. A publicação
discurso dividido em linhas. Já a prosa, sendo em livro, na verdade, é apenas a republicação isolada
em volume, com correção de gralhas, do texto que saiu
originalmente em outro livro do autor, Ideas y observa-
19 Ibidem,p. 464. ciones, de 1905.
20 Bandeira, Manuel. Poesia completa e prosa. Cit., 23 Bandeira, Manuel. Crônicas inéditas, vol. 2. São Pau-

p. 1.184 e ss. lo: Cosac Naify, 2009, p. 352.


Bandeira: v i da & v e rs o   •  85

trabalho de 1920 é algo em que ele mesmo Mas o que de fato interessa aqui é que Ban-
se reconheceu: deira, na sua crônica, afirma dois pontos: o
Aquele espírito de compreensão que se primeiro é a proposição de que:
funda no conhecimento da boa tradição alia- Assim como se pode falar de uma sintaxe
do à curiosidade de novas formas, desejadas ideo­lógica, se poderia também falar de uma
não para destruição das velhas mas para am- métrica ideológica, que, levando em conta
pliá-las e completá-las. certos movimentos da alma, ousa quebrar
num verso o ritmo geral do poema para o con-
O ponto central do livro de Vaz Ferreira formar ao ritmo interior que o inspira (p. 353).
é a afirmação de que a percepção métri-
ca pelo ouvinte ou leitor é uma disposição O segundo é, por meio da citação que
ativa. Que há uma forma de ouvir versos e encerra a crônica, afirmar que o verso total-
uma forma de ouvir prosa. E que a forma mente livre:
de ouvir versos permite, por exemplo, que Es tendência buena, natural, legitima
(siempre que sea además, no em lugar, de la
um mesmo verso pronunciado em segmen-
versificación reglada, y en los casos en que
tos por 3 atores (e interrompido ainda por
responda más a necesidad espontánea que a
um toque de clarim) seja organizado, pelo deliberado propósito)”.27
ouvinte, como um perfeito decassílabo.24 E
é também essa forma de ouvir que permi- Num texto notável dos anos de 1960,
te, segundo Vaz Ferreira, que numa dada Wilson Martins desenvolve a tese de que
estrofe as sinalefas não se façam na leitura, Bandeira, “o maior poeta brasileiro contem-
mas que o ouvinte as processe como tais, porâneo”:
“se tem ouvido poético”, para recompor Jamais esteve, na verdade, no centro das
versos harmoniosos.25 revoluções literárias, nem mesmo nas suas
linhas de força predominantes. Ele sempre
Para Bandeira, na inflexão já observada
foi um poeta ‘paralelo’ e, em termos de pura
para a predominância do verso medido e
apreciação estética, eliminando tanto quanto
das formas tradicionais a partir de Lira dos possível do nosso espírito as considerações,
cinquent’anos, o ensaio do autor uruguaio mesmo inconscientes, de história literária, po-
tem agora a mesma importância que teve de-se pensar que uma das suas singularidades
o do dominicano na época do verso livre.26 foi a condição necessária da outra: ele pôde
ser sucessivamente ‘o maior poeta contempo-
24 O verso em questão é este, de Zorrilla, com a devida râneo’ na medida mesmo em que não era o
marcação teatral: ‘poeta mais típico’ ou mais representativo de
Garcia – No puede más mi corazón de fiera.
 Sálvese, sí...
cada momento.28
  (Don García va a salir de la tienda, en cuyo objetivista e mecânico dos legisladores do Parnaso”, em
momento suena la señal de un agudo clarín. Don 1942 – no período, portanto, do que depois se conven-
García se detiene.) cionaria denominar Geração de 45. Porque a verdade é
Arjona – El clarín! que o livro de Vaz Ferreira, após as postulações iniciais
Pueblo – Um caballero! que são de fato estimulantes, perde-se numa minuciosa
25 Ibidem, pp.14-5. e algo preciosa análise da versificação francesa, sem le-
26 “O ensaio de Carlos Vaz Ferreira pode colocar-se entre var muito adiante aquilo que tão enfaticamente propõe
os mais notáveis do gênero e ao lado do de Pedro Hen- como ponto de partida da sua reflexão.
riquez Ureña ‘En busca del verso puro’” (p. 352). Essa 27 Bandeira, Manuel. Crônicas inéditas, vol. 2. São Pau-

afirmação, aliás, permite ver como a questão do retorno lo: Cosac Naify, 2009, p. 356.
à metrificação tradicional era importante para Bandeira, 28 Martins, Wilson. “Poeta contemporâneo”. In: Ban-

e como ele sentia ser necessário confrontar “o contexto deira, Manuel. Poesia completa e prosa, cit. p. CLXXXIII.
86  •  Paulo Franchetti

O que Martins surpreende nessa formu- do poeta termina quase sempre definida a
lação é justamente a nota mais pessoal de partir dos seus poemas em verso “verdadei-
Bandeira, que se realiza de várias maneiras. ramente livre”, de Libertinagem em diante.
Pela inserção da sua biografia como ele- Ao mesmo tempo, nosso vocabulário
mento mítico a organizar não só as imagens crítico parece ter tido alguma dificuldade
principais da sua poesia, mas ainda a moti- de lidar – especialmente nos tempos pós-
var as escolhas estilísticas; pela sua recusa -new criticism – com aquilo mesmo que
em ceder às tendências dominantes, mas caracterizaria o tom próprio de Bandeira,
sempre a elas respondendo com simpatia especialmente nos poemas de recorte mais
ou curiosidade (a recusa ao automatismo pessoal, ou melhor, mais vinculados à ima-
seja do verso medido, seja do verso livre po- gem de “poeta menor”, tísico profissional,
limétrico modernista; o retorno às formas o menino da vida que poderia ter sido e que
clássicas a partir dos anos 40; a prática de não foi.
poemas concretos na década seguinte). Apenas como exercício de deslocamen-
Desses fatores, entretanto, o que pare- to de perspectiva, poderíamos trazer aqui
ce mais relevante é a vinculação obra/vida, um outro referencial teórico e crítico, que
no sentido de fazer de cada escolha e de não era desconhecido de Bandeira. Trata-se
cada momento literário uma resposta a da poesia de haicai.
um anseio de realização ou a uma reação O haicai, de uma forma ou outra, esteve
a uma fatalidade. Essa vinculação, que é presente ao longo do Modernismo. E mes-
lentamente construída ao longo da poesia mo antes. Na apresentação do Pau-Brasil,
e da prosa publicada – estrategicamente como se sabe, Paulo Prado cita um terceto
exposta como as vicissitudes de um “poeta de um poeta francês, tomando-o por haicai
menor”, isto é, que não se ergue acima dos japonês, para em seguida falar da poética
limites da própria individualidade –, tem capaz de “obter, em comprimidos, minu-
o momento de esplendor em Itinerário de tos de poesia”.29 Luis Aranha, por sua vez,
Pasárgada, obra sem semelhante em nossa tem haicais embutidos nos longos e ousa-
literatura, pelo que realiza de fusão vida-e- dos poemas, tão maltratados por Mário de
-obra, demonstração de competência téc- Andrade. E Guilherme de Almeida, em que
nica e potencialização do arsenal imagético pese seu contato com a colônia japonesa,
de origem particular. difundiu no país um tipo de haicai acrescido
Para toda a crítica posterior à publicação de um adorno precioso de títulos e rimas,
desse livro (1954), será ele referência inelu- uma das quais interna.30 Mas outros culto-
dível e guia preferencial na incursão no uni- res houve da forma, um dos quais foi Olde-
verso poético de Bandeira. E talvez por isso gar Vieira.31
mesmo, dado o peso que nesse depoimen- 29 A propósito, ver: Franchetti, Paulo. “Um certo poeta

to se dá à libertação pelo verso livre, seja japonês”. In: Estudos de literatura brasileira e portu-
guesa. Cotia: Ateliê Editorial, 2007.
um pouco sensível em toda parte um certo 30 Sobre o haicai guilhermino, ver: “Guilherme de Al-

apagar das luzes sobre a produção posterior meida e a história do haicai no Brasil”. In: Franchetti,
Paulo, Op. cit.
de Bandeira, especialmente sobre a última 31 Vieira, Oldegar. Folhas de chá. São Paulo: Cadernos

coletânea, Estrela da tarde. A “maneira” da Hora Presente, 1940. O livro traz ilustrações de Anita
Bandeira: v i da & v e rs o   •  87

Numa crônica de maio de 1943, intitu- para produzir o efeito de sabi, “o essencial
lada “Hai-Kais”, Bandeira discorre breve- é a atitude filosófica do poeta, que pode
mente sobre o haicai japonês, elogia o livro apreciar a beleza da simplicidade natural,
Folhas de chá, de Vieira, por conta de dois nascida da experiência da vida humana”. Já
haicais que transcreve e, por fim, apresen- shiori seria a expressão harmoniosa de con-
ta sua tradução de cinco haicais de Bashô, junto, enquanto hosomi significaria “sutile-
quatro dos quais depois incluiria em livro.32 za refinada do pensamento do poeta que
A fonte desse primeiro contato documen- chegou àquele estado de espírito cheio de
tado de Bandeira com o haicai japonês é o fineza e quietude”.
livro Matsuo Bashô et disciples – haïkaï, de Kuni Matsuo apresenta, nesse texto in-
Kuni Matsuo e Émile Steinilber-Oberlin, de trodutório, uma visão muito moderna, tri-
1936.33 E pode-se imaginar com que pra- butária do restaurador do haicai, Masaoka
zer terá lido na apresentação de Steinilber- Shiki. Nos tratados da escola de Bashô, po-
-Oberlin trechos como este, sobre Bashô: rém, encontramos esses termos – e outros
E a pobreza – como em São Francisco – é igualmente importantes – definidos de uma
um tesouro para ele, o único que permite, ao forma que parece mais abrangente. No que
Poeta, os contatos íntimos com a natureza, a mais diretamente interessa à caracterização
riqueza das confidências profundas e o segre-
do haicai, mas não só – pois também se
do de uma vida depurada.
aplicam a outras artes – são dois: wabi e o
Nesse volume, Kuni Matsuo, além dos já referido sabi.
comentários interpretativos (dos quais um Sabi, segundo os tratados, é a qualida-
é reproduzido na crônica), apresenta um de de poemas caracterizados pelo clima de
resumo dos termos-chave na caracteriza- solidão e de tranquilidade: um texto tem
ção da arte do haicai, segundo Bashô: sabi, sabi quando exprime a calma, a resignada
shiori e hosomi. Embora simplifique bastan- solidão do homem no meio da beleza bri-
te o sentido de sabi, que dá como sinôni- lhante, da grandeza do universo, como nes-
mo de sobriedade, ainda assim explica que, te haicai de Kobayashi Issa:
Em solidão,
Malfatti e uma introdução em que o autor apresenta as Como a minha comida –
características do haicai. Na época, teve grande difu-
são. Talvez também porque tenha sido objeto de algu- E sopra o vento do outono.34
ma publicidade, pois concorreu, junto com Viagem, de
Cecília Meireles, ao prêmio da Academia Brasileira de Wabi também conota solidão, mas des-
Letras, em 1938. Um depoimento do autor, recolhido ta vez com referência ao estado emocional
por Carlos Verçosa, vale a pena ser lembrado: quando
Vieira visitou Bandeira, ainda na década de 40, este lhe da vida do eremita, do asceta. Designa um
mostrou uma estante e disse: “É nessa estante que eu calmo saboreio dos aspectos agradáveis da
guardo os livros de minha preferência, que eu estou
lendo e gosto de reler sempre. O seu livro tá aí.” (Oku: pobreza, do despojamento que liberta o es-
viajando com Bashô. Salvador: Secretaria de Cultura e pírito dos desejos que o prendem ao mun-
Turismo, 1996, p. 383).
32 Bandeira, Manuel. Crônicas inéditas 2, cit., p. 384-8. do. É portadora de wabi a arte que, com
33 O livro se encontra disponível em https://docplayer.

fr/50438051-Matsuo-basho-et-disciples-haikai-traduc-
tion-de-kuni-matsuo-et-emile-steinilber-oberlin-1936. 34 Tradução de Elza Taeko Doi e Paulo Franchetti. In:
html e também é oferecido gratuitamente na Amazon, Franchetti, Paulo (Org.) Haikai – antologia e história.
para Kindle. Campinas: Editora da Unicamp, 2012.
88  •  Paulo Franchetti

o mínimo de elementos, significa apenas o subordina todo o resto, é a sua capacida-


suficiente para que se realize o momento de de de realizar as qualidades indicadas pelos
integração entre o homem e o que o rodeia, termos que vimos expondo.
como nestes versos: Ora, isso tem implicações diretas na
forma específica de recepção do haicai. E
Àqueles que só se interessam
também, por consequência, na forma de
Pelas flores de cerejeira
Eu gostaria de mostrar a primavera: sua produção, porque, quando lemos os
No capim, no meio da neve, comentários tradicionais japoneses (como
Num vilarejo de montanha.35 aquele que Bandeira leu e transcreveu na
sua crônica), o que vem para primeiro pla-
Essa maneira de perceber e avaliar um no não são as qualidades técnicas do hai-
texto não é, por certo, congenial à nossa cai, mas o contexto (real ou imaginário) da
tradição. Mas o sentimento que produz e as sua produção. Alguém já definiu o poema
cordas emotivas que toca existem, é claro, tradicional japonês, o tanka, de uma ma-
entre nós e formam como um continuum neira que serve perfeitamente ao haicai.
em tom menor (para glosar o tema) ao lon- Aquele seria “cinco linhas em busca de um
go da literatura ocidental, como em todos contexto”;38 este, três – portanto talvez
os seus livros mostrou, com muitos exem- ainda mais necessitado de contexto.
plos, R. H. Blyth.36 O que impressiona em muitos comen-
A avaliação de um bom haicai ou de tários é não só a profusão dos detalhes co-
uma boa obra de arte (para forçar um pou- nhecidos ou imaginados para o momento
co o uso deste termo para designar uma em que o poema é feito, mas também o
sessão de haicai ou de chá) não se restrin- que parece mais relevante: a relação entre
ge, portanto, ou não privilegia o aspecto de o que o poema diz ou faz e o que se espe-
realização técnica. A autonomia do objeto raria, como reação banal, automatizada, de
estético é algo que parece muito distante alguém naquela situação.
do haicai de Bashô. Não que a técnica e seu E agora, depois dessa breve incursão no
domínio não sejam importantes. São, e há universo do haicai, podemos regressar a Ma-
todo um longo treinamento para o domínio nuel Bandeira: a questão que este paralelo
dos passos essenciais de cada arte.37 Mas buscou destacar é a da leitura contextuali-
o distintivo do haicai, o objetivo a que se zada a partir de uma situação específica de
35 O poema é de Fujiwara Ietaka (1158-1237) e foi ci-
produção do texto poético. Porque é essa
tado por Sen no Rikyú (1521-1591) – o maior mestre situação que permite, do nosso ponto de
do Cha no yú – como exemplo do espírito do wabi-cha vista, o maior rendimento da poesia de Ban-
(tipo de cerimônia do chá em que se utilizam objetos
vulgares, porém escolhidos cuidadosa e significativa- deira, especialmente aquela em que, para
mente pelo mestre da cerimônia). A tradução é de Elza retomar a formulação de Sérgio Buarque de
Taeko Doi e Paulo Franchetti.
36 A propósito, ver Blyth, R. H. A history of haiku; Haiku Holanda, “liberdade e objetividade torna-
(4 vol.) e especialmente Zen in English literature and ram-se termos rigorosamente correlatos”.
oriental classics. Tokyo: The Hokuseido Press, 1942.
37 Entretanto, embora não possamos aqui discutir o Ou, para falar com Bandeira, aquela em que
seu alcance e implicações, é também célebre a frase de o mais profundo é o mais cotidiano.
Bashô, na qual o mestre afirma que uma criança de dez
anos tem mais possibilidade de fazer um bom haicai à 38 Miner, Earl R. An introduction to Japanese court poe­

sua maneira do que qualquer letrado muito instruído. try. Stanford: Stanford University Press, 1968, p. 28.
Bandeira: v i da & v e rs o   •  89

Nesse sentido, parece muito precisa a de feição clássica, sejam aqueles, por fim,
percepção de Álvaro Lins, já referida: Ban- em que o poeta se aproxima das tendên-
deira exige do seu leitor (e cria, ao longo cias dominantes no tempo, como a poesia
da obra, as condições para isso) uma lei- neomodernista dos anos 1940 ou a poesia
tura contextualizada, uma leitura na qual concreta na década seguinte.
os fragmentos do quotidiano, o grito de Para a construção desse lugar especial
desespero ou a expressão crua do desejo na literatura e no imaginário brasileiro, o
sejam vistos não em si mesmos, mas a par- verso livre foi de importância central, pelo
tir de um ponto de vista, de um contexto que implicou de conquista do coloquial,
pessoal. O que não quer dizer, de forma do prosaico, do corriqueiro – daquilo en-
alguma, diminuição da potência estética fim que foi potencializado ao máximo na
ou emotiva. Pelo contrário, é essa pode- definição da figura autoral. Mas quando
rosa configuração da figura autoral que consideramos em conjunto a obra poética
impede que, como o porquinho-da-índia, de Bandeira, recusando-nos a recortá-la de
o leitor possa fazer nenhum caso das suas modo a obtermos um S. João Batista do
ternurinhas.39 E é ela que redimensiona, no Modernismo, ou, pior, um modernista aos
conjunto da obra – por meio de uma con- poucos mitigado, que no final da vida per-
tinuidade reafirmada até mesmo pela práti- deu o pique e o pulso, talvez tenhamos a
ca que o poeta manteve de sempre incluir
tentação – no que toca ao vulto inteiro do
nos livros publicados poemas pertencentes
poeta – de concordar mais uma vez com
a outras fases, ou mais condizentes com
Álvaro Lins: “só aparentemente é que o
os que vieram no livro anterior –, sejam os
Sr. Manuel Bandeira é um poeta ‘fácil’. Na
poemas de extração simbolista, sejam os
realidade, muito mais difícil do que o mais
39 De fato, se não surgissem vinculados a essa forte
hermético dos nossos grandes poetas”. Tão
figura autoral que os dinamiza e contextualiza num
amplo universo afetivo e cultural, poemas como “Por- difícil, poderíamos dizer, e quase sempre
quinho-da-índia”, “Andorinha” e alguns outros do tipo
tão transparente, quanto um bom mestre
provavelmente só teriam a oferecer ao leitor uma singu-
lar dose de pieguice. de haicai.
Um pouco de Grécia
na literatura nacional
Sérgio Alcides
Professor da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo. Autor, entre outros livros, de Armadilha
para Ana Cristina e outros textos sobre poesia contemporânea (Rio de Janeiro: Verso Brasil, 2016).

E
ra uma vez o identitarismo da nação. O império da identidade – do latim iden-
Foi há muito, muito tempo. Ele tam- titas, no sentido de “mesmitude” – um dia
bém se espalhou como um fenômeno conquistou até a própria Grécia, que segun-
global – internacional, aliás. E também pre- do o lugar-comum seria o “berço da civili-
tendeu determinar o que podia e o que não zação” e a sede simbólica de um pretenso
podia ser considerado “nacional” na litera- universalismo. Ironicamente, era um exem-
tura. Em várias partes do mundo, sobretudo plo de “país novo” – mais novo que o Brasil.
em ex-colônias e ex-possessões das potên- Emergira em 1832, depois de uma guerra
cias da Europa e do Oriente Próximo, sábios de independência, com a qual se libertara
e doutores se esforçaram para chamar a de três séculos de domínio turco-otomano.
atenção do público para a poesia “de auto- Guardadas as baionetas, viria a vez das ca-
ria nacional”, o romance como expressão netas. Caberia a estas esgrimir o que cons-
do “lugar” da nacionalidade. Muitas con- tituiria a nova “helenicidade”, usando a
ferências, artigos e teses dedicaram-se, em mesma tinta importada usada bem longe
academias ao redor do globo, a investigar o da Acrópole pelos poetas da “brasilidade”
não-sei-quê da identidade que se levantava – ainda que esses termos só fossem inven-
contra os abusos da literatura estrangeira. tados cerca de um século depois.2
Admirava-se Goethe, o genial intérprete do No Brasil, nem mesmo a integridade ter-
espírito alemão. Mas não muita gente dava ritorial estava assegurada, quando a ideia
ouvidos a Goethe, o idealizador dessa qui-
Humanism and Democratic Criticism. Nova York: Co-
mera, a Weltliteratur (algo como “literatura lumbia UP, 2004, pp. 85-118.
2 Em grego, hellenikótita (“helenicidade”) é um neolo-
mundial”, ou antes, “literatura-mundo”).1
gismo da década de 1920; cf. Bruneau, Michel. “Hellé-
nisme, hellinismós: nation sans territoire ou idéologie?”
1 Ver: Auerbach, Erich. “The Philology of World Lite- Géocarrefour 77, n. 4: 2002, p. 322; quanto à “brasi-
rature”. In: Auerbach, Erich. Time, History and Litera- lidade”, o Houaiss data o termo de 1927; Houaiss, An-
ture. Selected Essays of… Edição e prefácio de James tonio & Villar, Mauro (Orgs.). Grande dicionário Houaiss
I. Porter. Tradução de Jane O. Newman. Princeton NJ: da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Instituto Antonio
Princeton UP, 2014, pp. 253-65; e Said, Edward. W. “In- Houaiss e Objetiva, 2001; disponível em https://houaiss.
troduction to Erich Auerbach’s ‘Mimesis’”. In: Said, E. uol.com.br – acesso em 31 de agosto de 2020.
92  •  Sérgio Alcides

romântica da nação se estabeleceu em cír- massacre dos gregos anatolianos pela Tur-
culos dominantes, durante a Regência. Lite- quia, e depois o drama dos refugiados que
ratos da Corte aprendiam com sumidades se salvaram atravessando o mar Egeu.4 Es-
francesas o valor das palmeiras e a essência tes viveriam a experiência paradoxal de um
das cascatas. A visão dos pastores da Arcá- exílio grego dentro da Grécia – como “uns
dia era uma apropriação ilegítima: os neo- desterrados” em sua terra, mais ainda que
gregos que se ocupassem do bucolismo an- os brasileiros pressupostos na famosa frase
tigo. E eles ainda tinham seus hoplitas, no de Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes
bojo de tantas ânforas desenterradas. Nós do Brasil.5
– isto é: os brasileiros – deveríamos buscar Os dois casos exemplificam bem as difi-
o espelho dos “nossos” próprios aboríge- culdades de fixação do local da identidade,
nes, os arqueiros infalíveis, em suas pirogas. que seria um requisito importante, hoje,
Pouco importava que, nas cidades de todo para a teoria pós-colonial.6 Embora um de
o país, a população escravizada fosse muito seus formuladores frise bem que “precisar
mais visível, negra e parda, levando nas cos- o lugar de onde se fala não implica exclu-
tas o fardo da má-consciência dos senhores. sivamente uma determinação geográfico-
O “nacional” não era isso: ocultava-se nas -cultural”,7 mesmo a situação do sujeito se
matas, fugira para os sertões. Além disso, o apresenta incerta, quando se supõe que ele
genocídio dos povos nativos podia ser con- é uma coletividade (e não um indivíduo), na
venientemente atribuído aos ex-colonizado- falta de uma coesão segura, seja no espaço,
res portugueses. Já expulsos de suas terras, seja na cultura. Quanto à enunciação, sobre-
os índios sofreriam agora o esbulho de sua vém a suspeita: trata-se de uma coletividade
imagem, convertidos em símbolo dos atuais que fala através de um representante, ou an-
sitiantes, que a partir do Sete de Setembro tes de um indivíduo que se arvora falar por
seriam informados do seu pertencimento a outros, impondo a todos suas convicções?
uma nação brasileira (e não portuguesa). Rompidas as “grandes narrativas” da
Já o território grego alcançado em 1832 modernidade, inclusive a da formação nacio-
não dava conta de abrigar toda a nação nal, outras pautas identitárias se sucederam,
imaginada, que uma antiga diáspora espa-
4 Ver: Doulis, Thomas. Disaster and Fiction. Modern
lhara bem além dos Bálcãs, pelo Norte da
Greek Fiction and the Asia Minor Disaster of 1922.
África, na península Anatólia e ao redor Berkeley CA: University of California Press, 1977.
5 “(...) somos ainda hoje uns desterrados em nossa ter-
do Mar Negro.3 O cultivo da identidade
ra”. Holanda, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São
nacional praticamente impunha o projeto Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 31; ver também:
político de uma expansão, mas o sonho Clark, Bruce. Twice a Stranger. The Mass Expulsions that
Forged Modern Greece and Turkey. Cambridge MA:
de uma “Grande Grécia” não demoraria Harvard UP, 2006.
6 Ver, por exemplo, o conceito de locus of enunciation
a se tornar um pesadelo, em 1922, com o
em Walter D. Mignolo. The Darker Side of Renaissan-
ce. Literacy, Territoriality and Colonization. Ann Arbor
3 “Havia mesmo uma nação grega em 1832?”, pergun- MI: University of Michigan Press, 2003, pp. 1-25; além
ta um historiador; Gallant, Thomas W. The Edinburgh de Homi K. Bhabha. The Location of Culture. London:
History of the Greeks, 1768-1913. Edimburgo: Edin- Routledge, 1994.
burgh UP, 2015, ebook. Ver: Beaton, Roderick. Greece. 7 Achugar, Hugo. La biblioteca en ruinas. Reflexiones

Biography of a Modern Nation. Chicago: Chicago UP, culturales desde la periferia. Montevidéu: Trilce, 1994,
2019, pp. 1-14. p. 26.
Um p o uc o d e G r é ci a n a l i t e r at u r a n ac i o n a l   •  93

seguindo roteiros parecidos. A crítica foi se- exemplo, o crítico mexicano Antonio Ala-
vera com o essencialismo atribuído à nacio- torre, especialista na poesia da época mo-
nalidade, mas nem sempre atentou para o derna, inclusive a chamada “novohispana”,
mecanismo dessa atribuição, em si mesmo. escrita em contexto colonial. Diz ele:
Um crítico pós-moderno da “grecocidade” Nunca me preocupou a maneira como o
chegou a descrever o problema de modo enorme e generalíssimo substantivo literatura
sofre delimitação ou especificação por obra
mais abrangente:
do adjetivo nacional.10
Como qualquer outra noção de identida-
de, trata-se da ideia de fronteiras fixas e de
Para Alatorre, em princípio, a própria lite-
encerramento: exclui o que não for autêntico
ratura já era por si só um lugar de enuncia-
e verdadeiro, o não grego, e retrata como uni-
dade autotélica o que é original e eternamen- ção, “enorme e generalíssimo”. Aliás, mais
te helênico.8 que um lugar (um tópos), ela era toda uma
tópica, um continente de lugares-comuns
Se é verdade que nunca o lugar da enun- transmitidos por uma tradição que trans-
ciação se mostra neutro, fica implicada nele bordava da Europa para o Oriente e o Novo
uma disputa. Mas nem sempre os contendo- Mundo, ou reclamados dessa tradição por
res a explicitam, sobretudo quando se sentem letrados de todas as nacionalidades, aonde
certos demais do chão que têm debaixo dos quer que ela chegasse. Por isso Alatorre dizia
pés. E assim podem ter uma surpresa ao li- que as implicações identitárias nacionais:
darem com a ficção moderna, cuja especiali- Podem significar muito desde pontos de
dade (em prosa e verso) é justamente “puxar vista que não são o da literatura, mas do pon-
o tapete”, desestabilizar as certezas, repropor to de vista da literatura não significam pratica-
mente nada.11
a consideração do mundo e da experiência.9
A marca de nascença da questão da “li- Ocorre que, como Alatorre bem sabia,
teratura nacional” é o pressuposto pouco ninguém fala simplesmente desde um só
ou nada problematizado de que o lugar de lugar – pelo menos não em nenhuma par-
onde se escreve é a nacionalidade – dentro te onde os tempos modernos tenham de-
ou fora de seu território geográfico-político. sembarcado. Assim, escrever um poema em
O conceito é muito recente, de procedên- Roma ou na Cidade do México não consti-
cia romântica: só começou a ser esboçado tui exatamente a mesma experiência – ain-
na segunda metade do século XVIII, junto da que isso nos séculos XVII ou XVIII não
com a própria concepção de “literatura” da tivesse tanto a ver com a nacionalidade, e
modernidade. Não estranha que essa ideia sim com a diferença colonial. E, ao lugar
pareça embaraçosa para quem hoje se dedi- de enunciação metropolitano ou periférico,
ca a manifestações literárias anteriores. Por juntava-se um outro, mais abstrato: a pró-
8 Lambropoulos, Vassilis. Literature as National Institu- pria tradição da cultura letrada. Esta abar-
tion. Studies in the Politics of Modern Greek Criticism. cava a ambos, com a cidadania espiritual
Princeton NJ: Princeton UP, 1988, p. 100.
9 Ver: Iser, Wolfgang. The Fictive and the Imaginary.

Charting Literary Anthropology. Baltimore: The Johns 10 Alatorre, Antonio. “En torno al concepto de literatu-

Hopkins UP, 1993, p. 4: “(…) uma característica básica ra nacional”. Diálogos: Artes, Letras, Ciencias humanas
de cada ato [de ficcionalização] é que ele cruza algum 19, n. 2, México, mar.–abr. 1983, p. 6.
tipo de fronteira”. 11 Idem.
94  •  Sérgio Alcides

(por assim dizer) de uma “república das se acolher à sombra do projeto imperial, rei-
letras”, um lugar-comum, idealizado como vindicando precisamente o critério de uma
uma espécie de meritocracia cosmopolita.12 nação brasileira. O autoencerramento da
Portanto, são pelo menos dois lugares de identidade ocultava de seus proponentes o
fala: um chão de terra, um chão de letras provincianismo que regressava pela porta
– nenhum tão firme quanto seria desejável. dos fundos: escrevendo em Paris, onde era
A sobreposição era tensa, contraditória, estudante, o jovem poeta brasileiro Gonçal-
movediça. Em todas as partes. Porém, mais ves de Magalhães criticava o recurso à am-
ainda nas periferias coloniais dessa repúbli- bientação “grega” na poesia luso-brasileira
ca imaginária, onde a precariedade de suas – mas nada sabia sobre a recente revolução
instituições se mostrava ainda maior. balcânica que transcorria na mesma época,
No século XIX o critério nacional se ex- na qual perdera a vida um dos ícones literá-
pandiu e formou seu próprio império, no rios de seu tempo, certamente metropolita-
qual o aparelho político do Estado-nação no: Lorde Byron.
era apenas uma espécie de pretensa me- Para o futuro Visconde do Araguaia, o
trópole, com sua aspiração à soberania, problema parecia simples: se a nação é inde-
nem sempre concedida pelas realidades pendente, e se a literatura é da nação, então
objetivas. Mas seria arriscado afirmar que a literatura também deve ser independente,
nessa expansão ele realmente conquistou como coisa nacional. Uma concepção meta-
também a literatura entre seus territórios, física da nacionalidade inspira seu manifesto
junto com a economia, as finanças, o sis- romântico de 1836, com a tentativa não pro-
tema tributário, o direito, a educação e o blematizada de reduzir o lugar de enuncia-
monopólio da força. Os exemplos de Lorde ção literária a um único plano fatal: a pátria,
Byron, Baudelaire e Flaubert denotam uma identificada com o território do Império, a
despeito das ameaças de desmembramento
resistência tenaz. O de Whitman, por outro
ainda por serem debeladas.
lado, leva a pensar que às vezes é a litera-
Para Gonçalves de Magalhães, se um
tura que conquista a nação: entre capa e
povo um dia desaparecer da face da histó-
contracapa, num livro que vai crescendo a
ria, então sua literatura dará testemunho à
cada edição, o leitor abre um país.
posteridade de seu caráter, dizendo aos in-
Em outras partes do Novo Mundo, po-
teressados: “se pretendeis também conhe-
rém, muitos literatos viram no expansionis-
cê-lo, consultai-me, porque eu sou o espíri-
mo nacional uma oportunidade para supe-
to desse povo, e uma sombra viva do que
rar aquela condição dual, por meio de um
ele foi”.13 Tribos ameríndias estariam entre
empenho político mais direto. No Brasil, a
as testemunhas por ele convocadas, den-
eclosão de movimentos separatistas de nor-
tro dessa concepção, por exemplo em seu
te a sul, com a crise do Primeiro Reinado e
poema heroico “A Confederação dos Ta-
durante a Regência, não impediu uma pri-
moios”, de 1856. Porém a mera descrição
meira geração de ideólogos românticos de
13 Magalhães, Domingos José Gonçalves de. “Ensaio so-
12 Ver:Ferrone, Vincenzo. Lezioni illuministiche. Roma, bre a história da literatura do Brasil”. Nitheroy. Revista
Bari: Laterza, 2010; e Fumaroli, Marc. La République Brasiliense. Ciencias, Letras e Artes 1, n. 1, Paris, 1836,
des lettres. Paris: Gallimard, 2015. p. 132.
Um p o uc o d e G r é ci a n a l i t e r at u r a n ac i o n a l   •  95

da paisagem bastaria para caracterizar a Era necessário, portanto, que essa “ra-
identidade do país, como se a essência da zão oculta” da história arrastasse os vates à
nacionalidade se inscrevesse fatalmente até contemplação da natureza brasileira (como
mesmo no mundo natural – ou antes de se ela fosse uniforme) e dos costumes na-
tudo nele, sendo a nação um valor autócto- cionais (como se houvesse um consenso a
ne, essencialmente indígena. respeito de quais deles seriam aceitáveis).
Nisso, Gonçalves de Magalhães e outros Os efeitos da ênfase inaugural nas ex-
literatos de seu círculo, como João Manuel terioridades identitárias da “cor local” fo-
Pereira da Silva e Joaquim Norberto de Sou- ram determinantes e duradouros. Reinavam
sa Silva, seguiam a doutrina de autores eu- soberanos quase quatro décadas depois,
ropeus, como o francês Ferdinand Denis, na época do cinquentenário da Indepen-
o alemão Friedrich Bouterwek e o suíço dência do Brasil, quando Machado de Assis
Simonde de Sismondi.14 Estes, ao tratarem publicou, em 1873, seu conhecido balanço
da poesia luso-brasileira, queixavam-se da da literatura brasileira até então. O traço
mesma coisa: faltava índio e sobrava pastor principal, dizia o escritor, era “certo instin-
da Arcádia. Foi com essa orientação que o to de nacionalidade”. “Poesia, romance,
manifesto romântico de 1836 atacou a gre- todas as formas literárias do pensamento
cocidade luso-brasileira: buscam vestir-se com as cores do país”, e
A poesia do Brasil não é uma indígena ci-
há na opinião pública “um instinto que a
vilizada; é uma grega vestida à francesa e à
leva a aplaudir principalmente as obras que
portuguesa, e climatizada no Brasil (...). En-
cantados por esse nume sedutor, por essa bela trazem os toques nacionais”, instinto que
estrangeira, os poetas brasileiros se deixaram se manifesta como “o geral desejo de criar
levar por seus cânticos, e olvidaram as simples uma literatura mais independente”.17
imagens que uma natureza virgem com tanta Já se escreveu bastante sobre esse artigo
profusão lhes oferecia.15 de Machado de Assis, mas – salvo engano
Mas, se a poética clássica parecia um – ainda não se observou que ele dialoga
empecilho à expressão literária da naciona- surdamente com o manifesto romântico de
lidade, sua superação era uma questão de Gonçalves de Magalhães, que introduzira o
tempo. A fatalidade da nação logo se encar- tema de um instinto nacional como “razão
regaria de corrigi-la. Porque, segundo Gon- oculta” da história e instrumento para a
çalves de Magalhães: realização progressiva, no tempo, do desti-
Existe no homem um instinto oculto que, no reservado para a literatura na apoteose
a despeito dos cálculos da educação, o dirige; identitária da nação. Nesse diálogo, a argu-
e de tal modo esse instinto aguilhoa o homem mentação de Machado é como um banho
que em seus atos imprime um caráter de ne- de água fria. Diz ele:
cessidade.16 (...) manifesta-se às vezes uma opinião que
14 Ver: César, Guilhermino (Org.). Historiadores e críti- tenho por errônea; é a que só reconhece espí-
cos do romantismo. São Paulo: Edusp, 1978; e Roua- rito nacional nas obras que tratam de assunto
net, Maria Helena. Eternamente em berço esplêndido.
A fundação de uma literatura nacional. São Paulo: 17 Assis, Joaquim Maria Machado de. “Notícia da atual

Siciliano, 1991. literatura brasileira. Instinto de nacionalidade”. In: Assis,


15 Magalhães, Gonçalves de, op. cit., p. 146. J. M. M. de. Crítica literária e textos diversos. São Paulo:
16 Idem, p. 147. Unesp, 2013, p. 430.
96  •  Sérgio Alcides

local, doutrina que, a ser exata, limitaria muito com a prudência habitual de um cético. Usa
os cabedais da nossa literatura.18 o adjetivo no lugar de uma especificação
que, uma vez esboçada, já se converteria
Um punhado de exemplos brasileiros e
em restrição, planificação, empobrecimen-
estrangeiros bastaria para a refutação, cul-
to em termos absolutos e ideais de algo
minando com a menção a obras de Shakes-
que atua na relatividade dos movimentos
peare ambientadas na Itália ou na Dinamar-
da história, encarnado no real cambiante,
ca, que não impediram o autor de ser “além
em processo. Discutir essa indeterminação
de um gênio universal, um poeta essencial-
em face de suas manifestações literárias se-
mente inglês”.19 Machado até reconhece
ria a própria alçada da crítica, da crítica que
a importância dos assuntos locais numa
Machado chama de “doutrinária, ampla,
“literatura nascente”, mas adverte: “não
elevada”, cuja falta no Brasil – só no Brasil
estabeleçamos doutrinas tão absolutas que
de então? – “é um dos maiores males de
a empobreçam”.20 E empobrecimento é o
que padece a nossa literatura”.24
que o articulista aponta, sutilmente, ao co-
Mas não seria essa ausência da crítica
mentar seja o romance, que “busca sem- um sinal persistente da precariedade daque-
pre a cor local” e raramente é “puramente le outro lugar de enunciação literária, mais
de análise”, com seu “grande amor a esse propriamente público do que nacional? Não
recurso da descrição”,21 seja a poesia, tão faltaria no império um espaço mais amplo e
confiante de ser nacional “só porque insere mais arejado para aquela república letrada,
nos seus versos muitos nomes de flores ou mesmo ao preço de uma dualidade contra-
aves do país”, com sua “nacionalidade de ditória?
vocabulário e nada mais”.22 Em aberto: assim Machado prefere dei-
“O que se deve exigir do escritor”, diz xar o problema. E ele não voltaria a traba-
a célebre conclusão de Machado, “é cer- lhar nesse artigo, que só foi republicado
to sentimento íntimo, que o torne homem postumamente, em livro. Essa certa incer-
do seu tempo e do seu país, ainda quando teza facilita a frequente confusão entre
trate de assuntos remotos no tempo e no “instinto de nacionalidade” e “sentimento
espaço”.23 íntimo”, a qual convém desfazer. A primei-
“Certo sentimento íntimo”, escreve ele, ra expressão, usada no próprio título, está
em paralelo a “certo instinto de nacionalida- ligada ao anseio pela emancipação de uma
de”. No entanto, “certo” quer dizer “incer- literatura nacional, anseio que se apressou
to” – porque é uma certeza a incidência des- em estabelecer as “doutrinas tão absolu-
ses pontos, mas é incerta a possibilidade de tas” que seria melhor frear. Trata-se, para
determiná-los, descrevê-los, fomentá-los. Machado, de um fenômeno compreensível
Machado se abstém de qualquer tentativa, e até louvável como “sintoma de vitalidade
e abono de futuro”.25 Mas é dele que o arti-
18 Idem, p. 432.
19 Ibidem.
culista deriva as duras objeções que faz – no
20 Ibidem. que nitidamente se contrapõe a Gonçalves
21 Idem, p. 434.
22 Idem, p. 438. 24 Idem, p. 433.
23 Idem, pp. 432-3. 25 Idem, p. 429.
Um p o uc o d e G r é ci a n a l i t e r at u r a n ac i o n a l   •  97

de Magalhães. Este apostava todas as espe- antigos, formando toda uma coluna do câ-
ranças justamente na fatalidade do instinto none literário do Ocidente. Mas não é difícil
nacional. perceber como esse passado, para os gre-
Mas, na segunda expressão de Macha- gos modernos, ameaçava tornar-se antes
do, o indivíduo aparece na frente da nação: uma opressão do que um esteio. Não só
é o seu “sentimento íntimo” o que impor- pela dificuldade de ombrear com tamanhos
ta, aquela verdade certa de incerto contor- gigantes e se tornar contemporâneo deles
no, que sem cores externas nem doutrina na hora de escrever, mas sobretudo pela
prévia o situa no tempo e no espaço. Tal brutal solução de continuidade – imposta
verdade interior também sabe “precisar o por quase dois milênios de história.
lugar de onde se fala”: é um lugar em aber- A chamada “literatura grega” agora
to, dinâmico, que não se reduz a nenhum não seria exatamente a possível “literatura
determinismo, nenhuma teleologia, nenhu- nacional” grega, inclusive por ser ampla-
ma filosofia da história. Seria justo indagar mente vista como um patrimônio da Europa
se essa abertura não reclamaria para si um e propagada como paradigma de universa-
lugar-comum, na esfera diversificada e con- lidade. Certamente, era um paradigma et-
flituosa do público, dificilmente redutível a nocêntrico, mas de um etnocentrismo que
restrições identitaristas. sequer era dos gregos, como nação, e sim
Problemas semelhantes foram enfrenta- das potências europeias que assistiram im-
dos por outros escritores latino-americanos, passíveis à rebelião dos romiói (os cristãos
em diferentes momentos. Por exemplo: Al- ortodoxos que falavam grego) contra o Im-
fonso Reyes, em 1932; Jorge Luis Borges, pério turco-otomano. A “literatura grega”
em 1955. Ambos escreveram sob a pressão tinha sido tão expropriada da Grécia quanto
do essencialismo descritivo reclamado pela os famosos relevos de mármore do Parthe-
identidade nacional, contra o qual reagiram. non levados para a Inglaterra pelo Conde
Um pouco de Grécia pode ajudar a en- de Elgin no início do século XIX (hoje no
tender melhor a situação do escritor latino- acervo do Museu Britânico).
-americano. Mas não me refiro à Grécia da Se foram viajantes e críticos estrangeiros
Antiguidade, que foi uma das maiores fasci- que sugestionaram para os românticos bra-
nações de Alfonso Reyes, aquela Grécia de sileiros a ênfase na descrição exterior, para
Homero, o poeta imemorial que Borges não os gregos da mesma época havia todo um
cessava de evocar. Falo da Grécia moder- helenismo europeu determinando o mo-
na, pós-colonial, bem menos arquetípica. delo marmóreo a seguir, com exclusão de
A questão da literatura nacional ali era mil tudo de helênico escrito ou cantado entre
vezes mais complicada do que na América a Antiguidade e a modernidade, ou no pe-
Latina. Evidentemente, ninguém poderia ríodo bizantino na Idade Média ou sob o
duvidar da existência de uma literatura gre- domínio turco-otomano na Era Moderna.
ga. Em meio a tantas ruínas antigas espa- Onde os brasileiros tinham palmeiras, os
lhadas pelo país, estavam as sombras escri- gregos teriam colunas dóricas.
tas de Homero, Hesíodo, Teócrito, Píndaro, Para os gregos, tudo se complicava ain-
Safo, Anacreonte e muitos outros autores da mais porque o cânone “estrangeirado”
98  •  Sérgio Alcides

tinha sido composto oralmente ou por es- vida na sua cidade, que era Alexandria, no
crito em diferentes estágios arcaicos ou an- Egito. Níkos Kazantzákis era de Creta, que
tigos da língua deles, que não permanecera permaneceu otomana até 1898. Yórgos
estática ao longo de tantos séculos. Agora, Theotokás nasceu em Constantinopla – a
para ser grego a sério, com toda a marmo- Istambul da Turquia. Como reduzir a um
rização da cor local, seria preciso reinventar padrão idêntico tanta diversidade de ori-
o idioma dos clássicos, numa versão depu- gens e cruzamentos?27 E, principalmente,
rada da língua real falada pelo povo cotidia- para quê?
namente. Surgiu assim o enorme problema Essas irregularidades são o que pode
da diglossia: de um lado, a katharévoussa servir de esclarecimento mútuo entre a Gré-
purista, a expressão por escrito do Estado e cia e os países da América Latina, no que
da elite letrada; de outro, o idioma demóti- tange à literatura. Do lado de cá, herdamos
co, popular, falado em casa e nas ruas pela as línguas de extintos impérios, o espanhol
nação em geral, inclusive pelos letrados, para a maioria, o português para o Brasil,
dentro e fora do território estatal. Qual se- o francês e o inglês no Caribe. Do lado de
ria então a língua da “literatura nacional”? lá, a língua própria teve que ser excluída
A resposta não era nada fácil de encontrar, em benefício de suas formas extintas, a
por depender da disputa entre diferentes serem restauradas artificialmente. Nos dois
concepções literárias. A língua do “senti- casos, impôs-se o projeto de corresponder
mento íntimo” de que falava Machado – ou a noções preconcebidas, de procedência
seja: aquela com a qual o sujeito fala con- europeia, acerca de critérios metafísicos tais
sigo mesmo – só poderia ser a falada no como o “espírito do povo” e o “espírito do
dia a dia. Mas talvez a outra, supostamente tempo” – por meio de um “geral desejo”,
mais elevada, cuidasse melhor da aspiração para citar Machado, desejo que, por mais
exaltada a valores ideais como a beleza e a instintivo que fosse (segundo Gonçalves de
identidade ou da busca do efeito do subli- Magalhães), pertencia apenas a uma ca-
me. Desse modo, a superação do purismo mada letrada e comprometida, ciosa por
na literatura neogrega só terminou com a instinto de seus privilégios, entre os quais
emergência do modernismo, no início da o de determinar o caráter da nação, deci-
década de 1930.26 dindo, por exemplo, como no caso do Bra-
Um problema adicional era a diáspora: sil, se esse caráter podia ou não incluir o
a língua em seus diferentes registros evo- negro onipresente, enquanto se espelhava
luíra de modo diverso em diferentes partes no índio ausente por já ter sido expulso ou
habitadas por comunidades gregas. Vários dizimado.
dos principais escritores da Grécia moder- Às vezes, da cor local, nem todos os
na nasceram em outras terras. Constantino tons são convenientes. Sempre seletiva, a
Caváfis, por exemplo, passou quase toda a descrição identitarista contribuía também
26 Ver: Beaton, Roderick. An Introduction to Modern 27 Ver: Dyck, Karen van. “The Language Question and

Greek Literature. Oxford: The Clarendon Press, 1994; the Diaspora”. In: Beaton, Roderick & Ricks, David
e Tziovás, Dmitri. The Nationism of the Demoticists (Orgs.). The Making of Modern Greece. Nationalism,
and its Impact on Their Literary Theory (1888-1930). Romanticism & the Uses of the Past. Farnham UK:
Amsterdam: Hakkert, 1986. Ashgate, 2009, pp. 189-98.
Um p o uc o d e G r é ci a n a l i t e r at u r a n ac i o n a l   •  99

para uma cilada pitoresca que comprimia uma situação cultural muito mais intricada,
a multiplicidade própria de nações moder- em perspectivas bem menos otimistas.29
nas em estereótipos sempre dóceis ao ape- Na Grécia, essa virada se deu três déca-
tite europeu por exotismo, tropicalismo, das antes, em 1922, com a já mencionada
orientalismo, helenismo etc. – apetite com “catástrofe da Ásia Menor”. À derrota mi-
o qual a “literatura nacional” sem perce- litar diante da Turquia, seguira-se um dos
ber se solidarizava, pagando a conta, nos massacres mais hediondos do século XX,
melhores moldes coloniais. Nos manuais que dera fim a milênios de presença helêni-
de história da literatura grega moderna, ca na Anatólia. Duas consequências imedia-
por exemplo, o final do século XIX é cober- tas se impuseram, uma social e outra moral.
to pela chamada ethographía, ou “realis- A primeira é que em questão de poucas se-
mo folclórico”, que explora a descrição de manas a população de um país já empobre-
costumes e tipos rurais que dominou a fic- cido quase dobrou, com a chegada de dois
ção grega do período, enquanto o país se milhões de refugiados anatólios. A segunda
modernizava e se urbanizava lentamente, é que finalmente a elite política e a letrada
à margem das letras.28 Isto, nos anos em tiveram que enterrar, à força, os sonhos de
que o grande romance europeu chegava grandeza acalentados desde a Independên-
ao ápice, justamente quebrando as tipolo- cia, a chamada Megale Idéa expansionista;
gias, rompendo o estereotípico, lançando de repente ficou claro que o Estado grego
o leitor na incerteza e na indeterminação não poderia estender-se até onde a nação
de seus próprios lugares presumivelmente chegasse, porque o contrário é que ocor-
estáveis. rera: a nação expulsa de outras partes viera
Assim, um problema semelhante ao en- refugiar-se no território nacional estreito.30
frentado por Machado desafiaria também Essa tragédia moderna teve um impac-
to cultural profundo, e condicionou vários
os escritores neogregos, como desafiava
aspectos do modernismo grego, marcando
outros latino-americanos. Mas as tempora-
sobretudo a chamada Geração de 1930. Era
lidades são relativas, nem sempre coeren-
um grupo heterogêneo de escritores, em
tes entre si. Antonio Candido fala de dois
geral alinhados na opção pelo idioma de-
momentos da cultura brasileira em face de
mótico, popular, e alguns dos quais inclina-
suas limitações condicionantes: a “cons-
dos a uma maior abertura à Europa e a ou-
ciência amena de atraso”, ligada à ideo-
tras influências estrangeiras. Na busca por
logia de “país novo” e à correspondente
um lugar de enunciação próprio, a catástro-
convicção de que a expansão da instrução
fe do modelo autocentrado levou alguns a
por si só sanaria o problema; e a “cons-
concluírem que a autenticidade desse local
ciência catastrófica de atraso”, ligada à
não impunha que ele estivesse encerrado
constatação do subdesenvolvimento, que
para o grande crítico só se afirmou depois 29 Candido, Antonio. “Literatura e subdesenvolvimen-

da Segunda Guerra Mundial, revelando to”. In: A. Candido. A educação pela noite e outros
ensaios. São Paulo: Ática, 1987, p. 142.
30 A estimativa de gregos mortos na Anatólia em 1922
28 Beaton. An Introduction to Modern Greek Literature, é vaga: teriam sido centenas de milhares; cf. Beaton.
pp. 68-72. Greece. Biography of a Modern Nation, pp. 223-6.
100  •  Sérgio Alcides

em si mesmo, onde o ressentimento pode- europeu”, que depois tentaram importar


ria devorá-lo, agora que o antigo devaneio para a Grécia moderna, de maneira que o
da grandeza se esfumara. Propôs-se então ideal de “helenicidade” se arriscava a con-
um movimento duplo, em direções que só trabandear para o país, como se fossem au-
um olhar esquemático demais julgaria con- tênticos, valores de fato estrangeiros, como
traditórias: de um lado, a decisão pela lín- o estilo neoclássico da sede da Academia
gua viva do cotidiano, dentro de um plano de Atenas.32 De fato, o imponente edifí-
particular de expressão literária; de outro, a cio era obra de um arquiteto holandês, o
escolha de não excluir de antemão a aspira- Barão Teophil Hansen, construído a partir
ção a um plano universal. de 1859 sob a supervisão de Ernst Ziller, que
Um dos expoentes desse grupo foi o era alemão.33 Erguia-se na rua Panepistimí-
poeta e ensaísta Yórgos Seféris, que viria a ou como poderia estar na Ilha dos Museus,
ganhar o prêmio Nobel em 1963. Não por em Berlim, ou na Cinelândia, no Rio.
acaso, era natural de Esmirna, principal ci- Assim como Machado questionava a
dade grega da Anatólia, destruída pelas própria consolidação da literatura brasi-
tropas turcas. E foi no contexto de uma leira, que para ele estava apenas “alvore-
polêmica sobre a “helenicidade” (hellenikó- cendo” e continuava sem uma “fisionomia
tita) da literatura grega moderna que seus própria”,34 Seféris argumentou com a mes-
argumentos se aproximaram, em 1938, da ma palavra-chave: ainda não se formara a
posição tomada por Machado em 1873. O fisionomia de um “helenismo helênico”,
adversário do poeta atacava a poesia gre- enquanto permaneciam incertos os contor-
ga de vanguarda e alegava que as “obras nos da própria Grécia moderna. E esses tra-
poéticas genuínas” deviam refletir “a des- ços fisionômicos, diz Seféris, “serão precisa-
coberta de novos aspectos da vida helêni- mente a síntese de todas as características
ca”, livres de qualquer influxo estrangeiro, de todas as obras de arte verdadeiras que
porque a única “vida genuína” era aquela tiverem sido criadas por gregos”.35
“enraizada na terra e no espírito ctônicos”. Frisemos: “verdadeiras” – lembrando
Nisto consistiria a “helenicidade” da litera- que a discussão desse juízo, permanecen-
tura grega.31 do incerta, só poderia caber à crítica, ao
Em sua refutação, Seféris argumen- lugar-comum da esfera pública, em aber-
tou que os gregos pouco haviam contri- to, não ao critério fechado da identidade
buído para a formação de um “helenismo nacional. Para Seféris, a adoção da língua

31 Para uma reconstrução da polêmica entre Seféris e 32 Seféris, Yórgos. “A Dialogue on Poetry”. In: Seferis,

Constantino Tsátsos, ver: Doulis, Thomas. “The Strate- G. On the Greek Style. Selected Essays in Poetry and
gy of George Seferis: The Individual Poet and the Greek Hellenism. Tradução de Rex Warner & Th. D. Frango-
Tradition”. The Texas Quarterly 11, n. 2, Austin TX, ou- poulos. Londres: The Bodley Head, 1967, p. 95.
tono de 1968, pp. 72-88; e Leontis, Artemis. Topogra- 33 Cf. Biris, Manos & Kardamitsi-Adami, Maro. Neo-

phies of Hellenism. Mapping the Homeland. Londres, classical Architecture in Greece. Los Angeles: The J.
Ithaca NY: Cornell UP, 1995, pp. 135-9. Ver também: Paul Getty Museum, 2004, pp. 138-52. Ver também:
Jurado, José Antonio Moreno. “Reflexiones em torno a Calotychos, Vangelis. Modern Greece. A Cultural Poe-
‘Diálogo sobre la poesía’”. In: I. M. García Galvez (Org.). tics. Oxford, Nova York: Berg, 2003, pp. 30-35.
Giorgos Seferis: 100 años de su nacimiento. Granada: 34 Assis, Machado de, “Notícia da atual literatura bra-

Centro de Estudios Bizantinos, Neogriegos y Cipriotas, sileira”, p. 429.


2002, pp. 53-9. 35 Seféris. “A Dialogue on Poetry”, p. 95.
Um p o uc o d e Grécia n a l i t e r at u r a n ac i o n a l   •  101

popular foi um primeiro passo “na direção Tudo o que nós, os escritores argentinos,
da verdade”:36 o abandono da expressão fizermos com felicidade pertencerá à tradição
artificial, restrita à elite e atrelada ao projeto argentina, de igual modo como a abordagem
de temas italianos pertence à tradição da In-
expansionista do Estado. Seria então possí-
glaterra por obra de Chaucer e Shakespeare.40
vel a elaboração literária de um “sentimen-
to íntimo” que contribuísse para delinear E, antes de todos, Machado, em 1873,
uma fisionomia helênica ainda indefinida, sobre a emancipação de uma literatura bra-
desde um lugar de enunciação mais aberto sileira:
e múltiplo, nem por isso menos preciso. Essa outra independência não tem Sete
Décadas depois, a crítica pós-moderna de Setembro nem campo de Ipiranga; não se
grega atacaria o nacionalismo da Geração fará num dia, mas pausadamente, para sair
de 1930.37 Sem entrar no mérito da ques- mais duradoura; não será obra de uma gera-
ção nem duas; muitas trabalharão para ela até
tão, valeria a pena verificar como a orienta-
perfazê-la de todo.41
ção nacionalista pode prescindir da redução
identitária para se afirmar: a militância co- Em todos esses casos, nota-se uma preo-
letiva não é necessariamente essencialista, cupação em via de mão dupla, entre o par-
nem está na dependência da mera descrição ticular e o universal, com a aposta de não
de atributos exteriores. Para Seféris, quanto haver contradição entre esses termos, e sim
ao problema da “helenicidade”, seria pre- certa interdependência, como quer Candi-
ferível não antepor uma solução postiça ao do, ao falar em “assimilação recíproca”.42 O
seu desenrolar histórico; daí o conselho que ponto crucial, onde o particular e o universal
dá a seus confrades, para que buscassem a podem cruzar-se, é precisamente a esfera do
sua verdade particular, “não perguntando- público, lugar de enunciação, de recepção,
-se como podem ser gregos, mas confiando de crítica, de conflito e livre debate – enfim,
no fato de que, por serem gregos, as obras da “aberturidade”, segundo a palavra alemã
nascidas de sua alma não poderão ser se- que a designa, Öffentlichkeit.43 Daí a gravi-
não gregas”.38 dade do protesto de Machado sobre a falta
Poucos anos antes, Alfonso Reyes es- da crítica no Brasil, onde a opinião pública
crevera, também em contexto polêmico,
vol. 8, 1996, p. 439. Reyes está nesse artigo respon-
sob ataque identitarista: “A literatura me- dendo a comentários negativos que recebeu do crítico
xicana é a soma das obras dos literatos nacionalista Héctor Pérez Martínez.
40 Borges, Jorge Luis. “El escritor argentino y la tradi­
mexicanos”.39 E Borges, em 1955: ción”. In: Borges, J. L. Obras completas, 1923-1972.
Buenos Aires: Emecé, 1974, p. 273.
41 Assis, Machado de. “Notícia da atual literatura bra-
36 Idem, ibidem.
37 Ver, por exemplo: Lambropoulos. Literature as Na- sileira”, p. 429.
42 Candido. “Literatura e subdesenvolvimento”, p. 155.
tional Institution, pp. 44-65; Leontis. Topographies of 43 Ver: Habermas, Jürgen, The Structural Transforma-
Hellenism, pp. 132-71; e Calotychos, Vangelis. “The Art
of Making Claques: Politics of Tradition in the Critical tion of the Public Sphere: An Inquiry into a Category of
Essays of T. S. Eliot and George Seferis”. In: Layoun, M. Bourgeois Society, tradução de Thomas Burger & Frede-
N. Modernism in Greece? Essays on the Critical and Li- rick Lawrence. Cambridge MA: Polity, 1989; Koselleck,
terary Margins of a Movement. Nova York: Pella, 1990, Reinhart. Crítica e crise. Uma contribuição à patogêne-
pp. 81-136. se do mundo burguês. Tradução de Luciana Villas Bôas.
38 Seféris. “A Dialogue on Poetry”, p. 95. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999; e Taylor, Charles.
39 Reyes, Alfonso. “A vuelta de correo”. In: Reyes, A. Modernity and the Rise of the Public Sphere. Stanford
Obras completas. México: Fondo de Cultura Económico, CA: Stanford UP, 1992.
102  •  Sérgio Alcides

era “malformada ainda, restrita em extremo, lugar, ora secando-o, ora dissolvendo-o no
pouco solícita”.44 Tão indeterminada quanto vazio”.45 Eis aí uma sensação inassimilável
o “sentimento íntimo” de que falava Ma- à identidade da nação, que não pode sa-
chado é a “verdade” almejada por Seféris: ná-la por si só, com nenhuma pintura da
a abertura é seu lugar e sua paisagem. Por cor local.
meio dela, o íntimo se abre para o público, Esse amargor é também uma parte do
transfigurado. lugar da enunciação, para Seféris. Lugar não
Também se relaciona a esse horizonte comum, decerto, onde talvez o poeta gre-
o amargor que Seféris manifesta – na sua go se encontre junto de Machado, Reyes,
“consciência catastrófica do subdesenvol- Borges e tantos outros escritores do Novo
vimento”, ao constatar a incompletude da Mundo e de outros mundos novos como a
fisionomia espiritual da Grécia, cujos “pou- Grécia moderna. Sem “razão oculta”, sem
cos marcos discerníveis” aparecem rodea- filosofia da história e sem nenhum instinto
dos por “uma grande extensão” indistinta. nem nenhuma certeza de que alguma fisio-
“Essa extensão”, diz ele, “por vezes isola nomia possa definir-se além daquela que
cruelmente o artista que deseja viver nesse eles próprios forem desenhando.

44 Assis, Machado de. “Notícia da atual literatura bra- 45 Seféris. “A Dialogue on Poetry”, p. 97.
sileira”, p. 429.
ENTREVISTA

Alberto da Costa e Silva

Entrevista concedida à Revista Revestrés


Participaram dessa entrevista: André Gonçalves, Salgado Maranhão
(escritor, convidado), Samária Andrade e Wellington Soares

O
apartamento na rua das Laranjei- tempo com aparência frágil e firme, era o
ras, no bairro de mesmo nome, senhor de seus domínios.
no Rio de Janeiro, tem um amplo Após as apresentações de praxe e o pedi-
espaço, dividido em duas salas. Em uma do dele por alguns minutos de espera antes
delas, uma grande biblioteca ocupa toda de iniciarmos a entrevista, por ter amanhe-
a parede, tendo por companhia mesa, um cido com algum desconforto físico, Alberto
abajur aceso, muitos livros nas prateleiras e da Costa e Silva, recuperado, pediu que lês-
documentos empilhados. Na outra área, as semos em voz alta todas as perguntas, em
paredes estão cobertas por obras de arte, sequência: queria saber quais eram para or-
que passeiam por estilos diversos. Ali, tam- ganizar o pensamento e ir respondendo em
bém, grandes sofás e várias cadeiras e pol- seguida. Assim o fizemos. A cada pergunta,
tronas revelam – ou deixam imaginar – que, ele: “a próxima”. Uma das perguntas fazia
por aquele ambiente, circularam e circulam referência ao atual momento da diplomacia
muitas pessoas, ideias, conhecimento: é um brasileira. Ao ouvi-la, antecipou a resposta:
local acolhedor e aparentemente preparado “um diplomata não comenta o trabalho
para sediar longos encontros. Em diversas de outros diplomatas”, pedindo que fosse
mesas e prateleiras, várias esculturas. De excluída. Após ouvir todas as questões, de-
variados tamanhos e arrumadas e expostas terminou: “vamos lá, vou começar pela pri-
com visível cuidado, têm temática africana – meira”. E seguiu respondendo uma a uma e,
ou remetendo à África e suas personagens aqui e ali, nos cobrando por algum esque-
e tradições. cimento: “você pulou uma”. O desconforto
Quando chegamos para a entrevista, passou e a voz, em alguns momentos bai-
Alberto da Costa e Silva já nos aguardava. xa e entrecortada, se tornou firme. Alberto,
Sentado em um dos sofás, tinha uma pintu- bem-humorado, disse: “vocês perguntaram
ra quase abstrata com uma figura de Cris- sobre meu pai, e isso me fez ficar bem”.
to a quase abençoá-lo por trás. Silencioso, Alberto Vasconcellos da Costa e Silva é
com postura ereta e elegante, ao mesmo filho de Antônio Francisco da Costa e Silva
Entrevista publicada na Revista Revestrés, Edição Padre Florêncio, N.o 45, Março-Abril/2020.
104  •  E n t revist a co n c e d i d a à R ev i s t a R ev e s t r é s

e de Creusa Fontenelle de Vasconcellos da Egito, Costa do Marfim, entre outros. Tem


Costa e Silva. Seu pai, mais conhecido como mais de 35 obras publicadas, entre ensaios,
Da Costa e Silva, é, para muitos, o grande poemas, antologias, livros sobre História e
poeta do Piauí, e inclusive autor da letra do literatura infanto-juvenil, além de três livros
hino piauiense. onde escreve sobre suas memórias.
Alberto, o filho, também se tornou poe- Nesta entrevista, são flagrantes a in-
ta, além de ensaísta, historiador, memoria- fluência e o carinho de Alberto da Costa
lista e diplomata. Recebeu em 2014, pelo e Silva pelo pai. Como revela ainda o do-
conjunto de sua obra, o Prêmio Camões, cumentário O retorno do filho, de Douglas
um dos mais importantes prêmios literários Machado, que explora a relação afetiva e
em português e instituído pelos governos poética entre pai e filho, e também seus li-
do Brasil e Portugal para laurear autores vros de memórias e o discurso de posse na
que contribuíram para o enriquecimento do ABL, no qual Alberto escreveu: “Ponho a
patrimônio literário e cultural da nossa lín- mão nessa mão que a saudade deixou para
gua. Em julho de 2000 foi eleito para a Ca- sempre no meu ombro… Só isto quis e que-
deira de número 9 da Academia Brasileira ro: cumprir esse vaticínio, ser o que o meu
de Letras, a qual presidiu nos anos de 2002 pai sonhou ser”.
e 2003. Nascido em 1931 e formado pelo Perguntado como preferia ser chamado,
Instituto Rio Branco em 1957, foi diplomata se poeta, embaixador, comendador, respon-
em Lisboa, Caracas, Washington, Madri e deu: “Chamem-me como quiserem. Isso
Roma. Foi também embaixador na Nigéria, não importa”.
no Benim, em Portugal, na Colômbia e no Então, aí está nossa conversa com Al-
Paraguai, e é acadêmico correspondente da berto da Costa e Silva. O homem. O filho.
Academia de Ciências de Lisboa. Costuma O poeta, filho do poeta.
repetir que, ao se tornar diplomata, realizou
um sonho que era do pai: “Mas ele era mui- Entrevista
to feio, e naquela época isso era importante
Salgado Maranhão  Dentre as tantas con-
e não conseguiu. Hoje isso não existe mais,
tribuições que as culturas africanas nos de-
senão ninguém seria diplomata”.
ram, quais nos caracterizam e sequer nos
Seus estudos o converteram em um
damos conta?
dos mais importantes intelectuais brasilei-
ros. É especialista na cultura e na história Alberto da Costa e Silva  O africano não
da África, com título de Doutor Honoris deu contribuições para o Brasil: o africano
Causa em Letras pela Universidade Obafe- ajudou a formar o Brasil! (fala com ênfase)
mi Awolowo (ex-Universidade de Ifé), da Não são apenas contribuições, não deixou
Nigéria (1986), e em História pela Universi- aqui lembranças, ele realmente ajudou a
dade Federal Fluminense (2009) e pela Uni- criar o país. Esse país foi criado com o es-
versidade Federal da Bahia (2012). Recebeu forço de vários povos, decerto, mas com a
aproximadamente 40 condecorações no presença muito forte das várias vertentes
Brasil e em países como Portugal, Colôm- africanas. Não foi só um grupo africano que
bia, Paraguai, Peru, Togo, Espanha, Itália, influenciou o Brasil, foram muitos, e com
A l b e rto da C o s ta e S i lva   •  105

culturas completamente diferentes, mas não traz com ele para o Brasil. Chega ao
que marcaram a nossa vida. Eu diria que a Brasil e não traz mais Oxum no rio, mas
maneira de andar do brasileiro, a maneira na alma. De certa maneira ele altera o que
de sentar, a maneira de conversar, as pala- trouxe com ele. O que era dele continua
vras que ele usa, o ritmo das frases, tudo aqui, mas em outro plano. Você tem coi-
lembra a África, mas não é igual à África. O sas curiosíssimas. Você tem Iemanjá, que é
Brasil não repete a África, o Brasil reinven- uma ameríndia, e que aparece em muitas
ta a África. Temos tendência a procurar a imagens no Brasil como branca, e até loi-
contribuição que a África deu à música bra- ra! São processos de enriquecimento único
sileira; a África não deu, a África foi um dos que são formadores, e são formadores por-
componentes da música brasileira. A músi- que também aí entra o papel dos artistas,
ca popular tem uma raiz africana, não tem dos intelectuais. Por que você quando fala
raiz portuguesa. Não tem raiz no século 19 em religiões de matriz africana lembra ime-
francês. Entre a África e o Brasil tem uma diatamente de orixás, dos iorubás? Porque
permanente troca, de maneira de viver, de houve um sujeito chamado Jorge Amado,
maneira de sentir, pensar e atuar, de falar, outro chamado Caribé, Dorival Caymmi,
dizer, criar. É muito mais profundo do que, outro chamado Pierre Verger, e vai por aí.
simplesmente, contribuir. Essas pessoas fizeram, dos orixás, deuses,
divindades nacionais. Deram a eles o prestí-
gio que tinham os deuses gregos. É a soma
André Gonçalves  E o que podemos ver de
de tudo isso que faz quase impossível você
mais evidente nessa construção?
distinguir o que vem da África, o que vem
ACS  Há pontos semelhantes, idênticos, de Portugal, o que vem da Itália, o que vem
nos quais se pode rastrear a presença ne- da Alemanha, o que pertence ao índio. Por
gra. Por exemplo, veja a parte religiosa. Há exemplo: o Curupira. O que é o Curupira?
uma tendência por parte de muitos histo- É um anãozinho cabeludo, que tem os pés
riadores de considerar que religiões de ver- voltados para trás para iludir os caçadores,
tentes africanas são todas ligadas à venera- para impedir que os caçadores destruam os
ção dos orixás. Mas os orixás só existem, na animais da floresta. Eu, quando era meni-
África, em uma região muito pequena, que no, soube que isso era uma lenda tupi, até
é no sul, sudoeste da Nigéria, e no sudeste que, quando comecei a estudar a África,
da República do Benim. Só nesse pedaço, descobri que os anõezinhos cabeludos com
nesse pedacinho, é que se conhece os ori- os pés para trás para enganar os caçadores
xás. O que aconteceu? Quando vieram para e que falam por assovio tinham vários no-
o Brasil, sobretudo, no fim do século 18 e mes e diferentes formas. Existem também
início do século 19, eram povos africanos na África. Então lhe pergunto: o que é afri-
acostumados a grandes cidades, urbanos, cano nesse personagem brasileiro e o que é
puderam manter seus cultos quase como ameríndio, e o que é ameríndio e africano
eram na África. Digo “quase como eram” em outras coisas mais? O que mais me cha-
porque, na África, Oxum era a deusa de de- mou atenção quando cheguei pela primei-
terminado rio, mas esse rio o escravizado ra vez na África, além das roupas, a beleza
106  •  E n t revist a co n c e d i d a à R ev i s t a R ev e s t r é s

das roupas, foi a maneira como as pessoas organização social, de onde é que vieram
andavam e se sentavam. Era inteiramente aquelas paliçadas, porque elas eram dife-
diferente na África ocidental do que havia rentes das paliçadas indígenas. Posterior-
visto em Portugal. Eu estava morando em mente me interessei pelo estudo da África
Portugal, nessa época. pela África, não apenas pelo que havia de
África no Brasil. Mas pela África em si, pela
África que estava lá, pela África que foi,
Samária Andrade O senhor foi um dos
pela África que é. Para ter também orgu-
primeiros intelectuais brancos a estudar so-
lho das raízes do outro lado do oceano. Se
bre a negritude…
nós temos orgulho de nossa herança grega
ACS  Não sou, não sou… Muitos antes de também temos de ter orgulho de nossa he-
mim já estudavam, não vou citar nomes rança cabinda, mandinga, iorubá, fon, fan-
porque vou esquecer algum… ti, alufá e vai por aí, diferentes culturas que
ajudaram a formar o Brasil. Interessei-me
pela África pelo que eles nos deram, uma
Samária Andrade E o que seus estudos
história artística extraordinária, que não era
traziam de novo em relação aos que eram
estudada nas escolas, o que poderia au-
desenvolvidos até então?
mentar a autoestima dos brasileiros.
ACS  A única novidade que eu trouxe para
os estudos foi que dediquei a minha aten-
Wellington Soares  O senhor tem um en-
ção para a África. Em geral se estudava, se
saio sobre Castro Alves, o poeta baiano co-
preocupava com o africano no Brasil. Eu
nhecido como “o poeta dos escravos”. Esse
achei que precisávamos estudar o africano
título é um título merecido? O perfil do ne-
na África, estudar a história da África. Os
gro nos poemas de Castro Alves é realista?
costumes africanos, as lendas africanas,
para entendermos o Brasil. Não que o Brasil ACS  Não, não é realista, mas ele merece o
seja igual à África, nem parecido, o Brasil é título. Castro Alves foi vital na luta pela abo-
diferente das várias Áfricas, são vários Bra- lição, foi um personagem importantíssimo.
sis. Os descendentes de africanos deram Ele fez poesia social da maior qualidade. Ele
grande contribuição aos estudos. Teodoro não recolheu as paisagens africanas da boca
Sampaio, por exemplo, que era negro, es- dos escravizados, ele foi buscá-las no orien-
creveu sobre a contribuição do tupi na ge- talismo francês, europeu. Então os escravos
ografia nacional. Vários deles se dedicaram falam das palmeiras do deserto, poucos es-
aos estudos dos indígenas, da antropologia cravos vieram do deserto. A maioria veio das
urbana. Então era isso que realmente me savanas ou das florestas. Então ele estava,
interessava: os africanos na África. Quando por assim dizer, contaminado pela estética
descobri a África, aos 16, 17 anos, me inte- de seu tempo, mas isso não faz com que
ressei pela sua história porque achava que deixe de ser um grande poeta, um escritor
ela ajudava a conhecer a história do Brasil. de paisagens extraordinárias, e que não te-
Comecei a estudar Zumbi dos Palmares, so- nha sido também o grande poeta da abo-
bretudo, para entender de onde veio aquela lição. Algumas pessoas dizem que quando
A l b e rto da C o s ta e S i lva   •  107

ele escreveu O navio negreiro já não havia de escravos. Você não tem adesão a ele,
navios negreiros operando. As pessoas leem mas você tem de olhar, pelo menos, com
mal o Castro Alves. O navio negreiro a que um olhar caridoso, porque ele foi um gran-
ele se refere é o Brasil! (fala com ênfase). O de homem de seu tempo. Para Chachá era
Brasil era o navio negreiro! O impacto que perfeitamente natural escravizar um seme-
esse poema teve sobre a vida brasileira foi lhante. Porque, veja bem, até o fim do sécu­
enorme. Também é um pouco difícil nós fa- lo 18, início do século 19, a maioria das pes-
zermos ideia de quem era aquele rapaz que soas e dos homens públicos defendeu em
morreu aos 24 anos, moreno, com cabelo certa medida a escravidão. No mundo todo
ondulado, bonito, todos diziam que era um muita gente defendeu a escravidão. Os ilu-
rapaz bonito, com a voz maravilhosa, com ministas, em geral, achavam a escravidão
um sentimento de palco que poucos atores um mal necessário. E argumentavam que
tiveram. Devia ser uma emoção extraordi- se Sófocles não tivesse escravos não teria
nária o que ele provocava. escrito suas tragédias, para escrever a Enei-
da Virgílio precisava ter escravos. Mas a vin-
culação da História com a literatura é muito
André Gonçalves  Antônio Carlos Secchin
forte. Há determinados textos literários que
disse que o senhor é um escritor que estu-
são parte da História. As páginas que Marcel
da História. Que relação o senhor poderia
Proust dedica ao affair Dreyfus valem tanto
fazer entre a escrita literária e a escrita do
quanto as que Zola escreveu. Na prática do
historiador?
historiador não deve haver falsidade, mas
ACS  Secchin está certo. Não sou um his- deve haver imaginação. A partir dos dados
toriador: sou um poeta que escreve sobre que lhe são fornecidos ele precisa imaginar
História. Sobre a História da África, sobre a um pouco qual é a atmosfera do tempo que
História das relações entre a África e o Bra- ele está tentando ressaltar. Minha paixão
sil. Eu escrevo sobre História naquela con- pela África, que não deixou de ter o ampa-
cepção antiga, como escrevia Capistrano de ro da influência do Brasil, deriva do fato de
Abreu. A História, para mim, sempre esteve que era, e é, ainda, uma história em que há
ligada à arte literária. Os grandes historia- muito lugar para a imaginação, porque, a
dores são grandes escritores. Se você não partir dos objetos, da arqueologia, da his-
for um bom escritor o seu livro de História tória tradicional, das lendas, dos poemas
não fica, a não ser para citações eruditas locais, das músicas, você vai tentando com-
de pé de página. O historiador tem que es- preender como eram essas pessoas. Em úl-
crever com paixão, com imaginação e com tima análise, o que me interessa na História
entrega. Escrevi um livro sobre Castro Alves é me reencontrar com aquele homem que
e escrevi outra biografia, sobre Francisco existiu antes de mim que eu não conheci, e
Félix de Souza, o Chachá, que foi o maior que, provavelmente, não teria conhecido se
negreiro de seu tempo. É fácil escrever so- tivesse vivido na mesma época dele. Reco-
bre Castro Alves, mas é difícil escrever sobre nhecê-lo e procurar refazê-lo, pô-lo diante
Chachá. Para escrever sobre Chachá você de mim, reconstruí-lo, senti-lo como pessoa
precisa ter até certa simpatia pelo traficante humana. Ver o que é que, dele, está em
108  •  E n t revist a co n c e d i d a à R ev i s t a R ev e s t r é s

mim, ou o que é meu que está nele. É con- Wellington Soares  O senhor tem um en-
templar o passado, o homem que se foi e saio também sobre Guimarães Rosa, em
não está mais aqui. Nesse sentido é que eu que o chama de poeta, quando a obra dele
diria que a História é sempre uma história é mais em prosa.
de homens, e não de fatos. Não é o enredo
ACS  Mas ele se considerava um poeta.
o que mais me interessa: o que mais me in-
Tanto é que no livro Corpo de baile, aquele
teressa é a personalidade das personagens.
livro de novelas, são poemas, poemas em
prosa. Os poemas do Rosa, naquele livro
Salgado Maranhão Considerando suas enor­­ dele,  Magma, são muito ruins. Ele não o
mes atividades como pesquisador, que tem- queria publicado, a família publicou de-
po você dedica à sua poética? pois que ele morreu. Ele não queria. Ago-
ra,  Campo geral, a história de Miguilim, é
ACS  O Ferreira Gullar me disse uma vez um texto mais fino, mais generoso, mais
que, depois dos sessenta anos, ele só se re- sofrido. É uma maravilha de texto! Tenho
petiu. O que não era verdade. Mas ele sen- para mim que é a coisa mais importante
tia que não tinha mais, como ele me disse, que o Rosa escreveu. E ele sabia disso, por-
o vigor da surpresa, que isso tinha passa- que em uma carta ele me disse: “Alberto,
do. Que ele conseguia escrever prosa muito o Miguilim é o que eu tenho de mais meu”.
bem e que só conseguia escrever versos que A linguagem do Rosa era a linguagem da
lembravam outros versos dele. Veja o caso poesia. E esse ensaiozinho meu sobre o Gui-
do Carlos Drummond de Andrade: os últi- marães Rosa poeta tem o seu interesse, por-
mos livros de poemas dele têm lembranças que nele descrevo como foi a posse do Rosa
do poeta que ele foi. Quer dizer que ele se na Academia Brasileira de Letras. Durante
tornou um mau poeta? Não, mas não tem três anos ele não foi tomar posse, porque
mais a grandeza que se espera dele. Eu achava que quem tomava posse morria. E
sempre escrevi poucos poemas. Três, quatro foi o que realmente aconteceu. Três dias
por ano. E às vezes destruía a metade, sem- antes de tomar posse ele me telefona na
pre fui muito exigente comigo mesmo. Não Secretaria Geral do Itamaraty e diz: “Alber-
quer dizer com isso que eu melhorei minha to, você está muito ocupado? Então venha
produção, devo continuar a ser ruim como aqui à minha sala”. Eu fui à sala dele, ele
era antes. Mas o fato é que fui diminuindo, fechou a porta para não ser interrompido e
aos sessenta já escrevia menos, aos setenta pôs um bloco na minha mão, e um lápis. E
escrevia um poema por ano, e agora não disse: “Eu vou ler o meu discurso, o que vou
escrevo nenhum, só escrevo prosa. Agora, fazer na Academia, que é a coisa mais im-
curiosamente, o poeta não se divorcia da portante, a última coisa importante que vou
prosa. Porque em meus dois livros de me- fazer na vida. Você, por favor, tome nota
mórias,  O espelho do príncipe e Invenção de todos os erros, pausas de respiração, o
do desenho, todos os críticos e leitores des- que tiver, mas não me interrompa para que
tacam a linguagem poética com que eles eu possa ir até o fim, e me faça as obser-
são escritos. De maneira que acho que o vações depois”. E começou a ler o discur-
poeta continua lá dentro. so: estava perfeito. Dois dias depois fui à
A l b e rto da C o s ta e S i lva   •  109

posse dele. Ele repetiu o discurso como tinha Que Lima Barreto era negro, Antenor Nas-
lido para mim, ele sabia o discurso de cor, centes, todos eles mestres nas suas áreas,
mas fingia que lia (risos). Essa é uma visão não há melhor geógrafo que Teodoro Sam-
de poeta, não é verdade? Telefonei para ele paio, e numerosos outros. Tem aqueles que
na véspera da morte perguntando se poderia hoje consideramos negros, mas eram con-
vir ao Itamaraty para dizer umas palavras no siderados, na época deles, mulatos, como
hasteamento da bandeira, cerimônia que se Machado de Assis, Nelson Carneiro, que foi
faz todos os anos no Dia da Bandeira. Ele me senador pelo Rio de Janeiro e ninguém se
disse: “Peça desculpas aos nossos colegas, lembra que era descendente de africanos;
mas não vou porque estou muito gripado”. mas ele se lembrava, tinha isso presente o
Morreu naquele dia. Morreu falando ao tele- tempo todo, porque o irmão dele, Edison
fone com a secretária dele: “Estou morren- Carneiro, grande antropólogo, era estu-
do, estou morrendo”, e ela “Rosa, desligue dioso dos negros da Bahia. Não basta que
o telefone para eu chamar o médico”. E ele esses tenham atingido o reconhecimento
respondeu: “Você está esquecendo que eu de seu tempo, porque essas foram pessoas
sou médico!” (risos). O Rosa era um per- excepcionais, grandes homens, gênios, per-
sonagem muito interessante. Era muito ele sonalidades sem competidores. É preciso,
próprio, sem disfarce, sendo todo ele disfar- sobretudo, que nem todas as pessoas pre-
ce, a começar pela gravatinha borboleta. cisem ser gênios excepcionais para serem
notadas em seu tempo e exercerem fun-
ções importantes na vida coletiva. À me-
Salgado Maranhão Apesar da enorme
dida que os negros não são incorporados
luta dos negros para ocupar espaços de ex-
na plenitude dos seus valores nós deixamos
celência na sociedade brasileira, você é es-
de ficar mais ricos, nos empobrecemos.
perançoso para um futuro próximo?
E veja bem: quando você anda pelas ruas
ACS  Eu sou esperançoso e confiante. Em- do Rio de Janeiro, ou de várias outras cida-
bora reconheça que os avanços conquista- des brasileiras, você vê que essa presença,
dos foram insuficientes. Que é preciso re- de descendentes de africanos, é marcante.
almente que os descendentes de africanos, Mas não é sentida como tal, é como se eles
mais caracteristicamente os descendentes passassem invisíveis nas ruas. Acho que os
de africanos, cheguem a todos os pata- descendentes de africanos já estão no mo-
mares da sociedade brasileira. Não vale só vimento para ocupar esses espaços, que são
lembrar que Juliano Moreira era negro, que deles. Mas ainda falta muito. Nós não so-
Teodoro Sampaio era negro, que Nilo Peça- mos uma democracia racial, nem nunca fo-
nha era negro… mos. Isso foi invenção do Estado Novo. Mas
nós aspiramos a ser uma democracia racial.
O brasileiro aspira a ser parte de uma so-
Wellington Soares  Machado de Assis era
ciedade sem discriminação por cor, origem
negro…
ou qualquer outro fator. Nós aspiramos,
ACS  Machado de Assis hoje é considerado mas não somos. Por enquanto nós somos
negro, na época dele não consideravam… um povo que, pode-se dizer, em que nos
110  •  E n t revist a co n c e d i d a à R ev i s t a R ev e s t r é s

divertimos juntos, mas trabalhamos separa- vamos esconder a escravidão: é preciso lem-
dos. Se você vai a uma torcida de futebol brá-la sempre como uma chaga terrível, a
não vai saber quem é branco, quem é preto, mais infame das maneiras de se subjugar e
se é mulato, você não discrimina. No car- conservar trabalho. O trabalho dos outros!
naval também. No geral as pessoas discri- Devemos, acima de tudo, ensinar às crian-
minam sem ter a consciência de que estão ças o quanto elas devem ao escravizado, o
discriminando. Discriminam em gestos sim- quanto elas devem a quem ensinou a fazer
ples. Por exemplo, ao entrar em um hotel, determinadas comidas, a quem ensinou a
se você é atendido por um funcionário ne- batear ouro nos rios, a quem primeiro pro-
gro pensa que ele é um subalterno, que ele duziu ferro no Brasil. É preciso que se veja o
é carregador, não que ele é o atendente do negro não só como alguém que sofre, mas
hotel. Ou se estranha que, em determinado alguém que sofre e constrói, que é cria-
ambiente, haja pessoas, digamos, coreanas, dor, que é inventivo, é inteligente, e foi um
descendentes de africanos. Muitas vezes há agente de mudança essencial nesse país.
o sentimento de estranheza. Você corrige,
mas já teve o sentimento. Você precisa es-
Wellington Soares  Uma cena que guardo
tar em um estado de correção permanente
na memória é do senhor, no relançamento
para corrigir seus desvios de discrimina-
do livro Zodíaco, em Teresina, recitando de
ção. O brasileiro não quer ser racista, mas
cor e bastante emocionado poemas de seu
é racista. Mas é, e por quê? Porque, desde
pai. De que modo Da Costa e Silva e obra
criança, ele foi ensinado.
marcam a sua vida? (a pergunta se refere a
um dos relançamentos do livro de Da Costa
Wellington Soares  “Escravidão, e não cor- e Silva; Zodíaco foi publicado pela primeira
rupção, define a sociedade brasileira”, diz vez em 1917).
Jessé Souza. O senhor concorda com isso?
ACS  Meu pai foi a coisa mais marcante
ACS  Culpa-se a escravidão por tudo, mas da minha vida. Deu toda a orientação da
ela já acabou há muitos anos. Somos nós os minha vida. Na minha vida fiz aquilo que
responsáveis pelas injustiças no país. Nossos ele gostaria de ter feito, se tivesse podido.
antepassados foram responsáveis pelas in- Ele, por exemplo, queria ser diplomata, e
justiças no país na época deles! Não adianta não foi. Eu fui! Ele não conseguiu se can-
ficar culpando nossos antepassados sem- didatar à Academia Brasileira de Letras, eu
pre. A culpa é nossa. A minha geração, por me candidatei. Toda a minha vida foi uma
exemplo, perdeu grandes oportunidades de perseguição de repetir o meu pai. Repetir
mudanças sociais. Nós não aproveitamos. não, repetir não é a palavra. Fazer aquelas
Eu tenho a impressão que, antes de mais coisas que ele teria gostado de fazer e não
nada, é preciso mudar a maneira de ensi- fez. Meu pai foi uma presença constante na
nar o Brasil às crianças. Que desde a escola minha vida desde menino. Ficou doente aos
as crianças aprendem a estimar os colegas 45 anos de idade. Porque era um homem
ditos “de cor” e a ter orgulho de sua histó- doente, tinha todo o tempo para o menino
ria, da história de seus antepassados. Não que eu fui. E ele passava horas conversando
A l b e rto da C o s ta e S i lva   •  111

comigo, lendo poemas em inglês, em fran- ACS  Recentemente um colega meu de


cês, em italiano, em português. Desenhan- Academia foi ao Piauí e, quando voltou,
do, ele desenhava muito bem, tinha um me disse: “Fiquei estarrecido com o cari-
traço muito bonito. Ele fazia os desenhos nho com que seu pai é lembrado no Piauí.
que eu pedia que fizesse. Quando passeava Não havia pessoa que não perguntasse por
comigo pelas ruas de Fortaleza, ia me di- você, por causa dele”. E eu acho que o povo
zendo os nomes dos passarinhos que canta- piauiense tem dado todo o carinho ao seu
vam, os nomes das plantas, ele sabia tudo. poeta. Porque Da Costa e Silva foi o poe-
Para o menino que eu era, ele era o senhor ta do Piauí, toda a poesia dele ressoa Piauí.
da palavra, o senhor da vida! Uma pessoa Da última vez que fui a Teresina fiquei um
que marcou toda a minha existência. Quan- pouco perplexo com o abandono da praça-
do ele se foi, quando ele morreu, foi um -monumento Da Costa e Silva. Aquela era
baque, que me deixou desarvorado, sem uma praça-monumento que era um exem-
saber o que fazer, uma casca vazia. Não ti- plo para outras cidades de como cultuar o
nha nada dentro de mim. O que mais existia poeta pelos seus versos. Lembro que, quan-
dentro de mim era a lembrança de meu pai. do foi inaugurada, ela não tinha o busto do
É muito difícil explicar uma relação tão es- poeta: ela tinha os versos do poeta. E nem
pecial. Ele me ensinou algumas das coisas isso sei se está preservado atualmente, e em
mais importantes que consegui aprender. que condições está. Eu não vou ao Piauí já
Com uma enorme paciência, ele tinha hor- há uns cinco ou seis anos, mas da última
ror a quem maltratava uma criança. Ele sa- vez que fui me deu tristeza ver a praça se-
bia, como poucos, o valor das palavras. Os miabandonada.
últimos 15 anos, 20 anos de vida ele passou
sentado em uma cadeira de braço, com um Wellington Soares A notícia boa é que
livro aberto, lendo, ou fingindo que lia. E foi em Amarante há um espaço dedicado a Da
pela voz dele que ouvi Mallarmé perguntar Costa e Silva (Amarante é a cidade natal de
se era um sonho o que ele amou, “estas Da Costa e Silva).
ninfas eu quero perpetuar”. Foi pela voz
dele que ouvi Whitman pela primeira vez. ACS  Esse eu vi. Da última vez que fui ao
Foi um professor de belezas. A presença Piauí já vi a casa, e até fui chamado para ver
dele é a coisa mais profunda que há na mi- a sala dedicada a meu pai. É difícil fazer um
nha poesia. No primeiro volume de meu li- museu sobre Da Costa e Silva porque Da
Costa e Silva não guardava nada. Não guar-
vro de memórias, Espelho do príncipe, você
dava papéis, não guardava provas de livros,
vai encontrar toda essa presença marcante
não guardava coisa nenhuma. Meia dúzia,
dele em momentos importantes da minha
uma dúzia de fotografias era o espólio da
vida de menino e de adolescente.
lembrança dele. Mas ele lembrava sempre
do Piauí. Lembro de uma vez, quando eu
Wellington Soares O Piauí tem dado ao era menino, em Fortaleza, que um grupo de
longo desses anos e governos o reconheci- rapazes do Piauí foi visitar meu pai. Quando
mento merecido ao poeta Da Costa e Silva? minha mãe os anunciou, meu pai: “rapazes
112  •  E n t revist a co n c e d i d a à R ev i s t a R ev e s t r é s

de minha terra!”, e correu para abraçá-los. minha vida em Fortaleza, depois no Rio
Embora estivesse em um processo de de- de Janeiro. Depois fui por esse mundo de
pressão enorme, que o vitimou, ele entre- Deus, em Portugal, na Venezuela, nos Es-
gou a esses rapazes do Piauí o melhor de tados Unidos, na Itália, na Espanha, na Ni-
sua ternura, o melhor de suas lembranças e géria, no Benim, em Portugal novamente,
o melhor de seu benquerer. na Colômbia, no Paraguai. Em todos esses
momentos eu me senti piauiense. Todas as
vezes que fui ao Piauí senti uma espécie de
André Gonçalves E Amarante está pre-
perfume no ar. Isso a gente traz no sangue.
sente na obra de Da Costa e Silva com
A gente sabe que é dali, que ali é a fonte
carinho…
de tudo.
ACS  Na primeira vez que fui a Amarante,
faz muitos anos, faz décadas, fiquei real-
Wellington Soares O senhor quer ser
mente deslumbrado com a beleza da par-
lembrado como embaixador, como poeta,
te antiga da cidade. Se fez muito claro em
ensaísta, africanista…
mim porque o poeta fez aqueles versos “A
minha terra é um céu, se há um céu sobre ACS  Eu não quero ser lembrado como
a terra; É um céu sobre outro céu, tão lím- nada. Talvez eu seja lembrado pelos meus
pido e tão brando”, porque é exatamente livros, como um velhote simpático que con-
isso. Aquele casario, aquela rua de casas versava sobre assuntos a respeito dos quais
antigas, é realmente um esplendor. Quando ninguém mais conversa. Como um avô que
veio aqui o Douglas Machado, apresentar conversa sobre as cantatas de Bach com os
o filme O retorno do filho, as pessoas que netos. Aquele velhote exótico, estranho,
assistiram à sessão, eram cerca de trezen- que tinha umas manias curiosas, se interes-
tas, disseram: “Amarante é bonita mas não sava por arte, se interessava por história, se
está nos guias turísticos, é tão bonita quan- interessava por mitologia, que se interessa-
to as cidades antigas de Minas Gerais”. E va, sobretudo, pelo bom uso das palavras.
felizmente foi preservada e está viva, por- O uso preciso e claro das palavras. Mas se
que não foi preservada com coisas mortas, alguém um dia quiser lembrar, lembrar que
continua viva. E a presença do poeta está houve o filho de um poeta piauiense que
ali, permanente. Nesta casa, quem está ali, também escreveu, que esse filho do poeta
além de um poeta, é o meu pai. piauiense foi também poeta. O melhor que
pôde foi ser poeta. Porque foi o destino
que lhe deu seu pai, quando ele nasceu.
Samária Andrade O senhor foi diploma-
E que está cansado de esperar por um Brasil
ta, embaixador, viveu em vários lugares di-
que não chega.
ferentes, no Brasil e mundo afora. Como o
senhor se relaciona com o Piauí?
Wellington Soares Muito obrigado pela
ACS  Eu me considero piauiense de co-
entrevista, poeta.
ração. Eu nasci em São Paulo, fui gerado
no Rio Grande do Sul. Vivi muitos anos de ACS  Serviu?
Antônio Torres

Entrevista concedida a Diego Mendes Sousa


Escritor, jornalista, advogado, indigenista, ambientalista e ativista cultural.

“Quando olho para trás, o que vejo é o um dos galardoados com o Prêmio Jabuti de
melhor lugar para um escritor ter nascido. ficção (2007), por melhor romance.
Pois do meio agrário e ágrafo de onde Antônio Torres publicou Um cão uivan-
vim o que não faltava era contador de do para a lua (1972); Os homens dos pés
histórias ao pé de um fogão de lenha, redondos (1973); Essa terra (1976); Carta
para espantar o medo em noites cheias de ao bispo (1979); Adeus, velho (1981); Ba-
fantasmagorias. Era como se as carências lada da infância perdida (1986); Um táxi
do nosso cotidiano nos levassem ao reino para Viena d’Áustria (1991); O centro das
da fabulação.” nossas desatenções (1996); O cachorro e o
lobo (1997); O circo no Brasil (1998); Meni-

A
13 de setembro de 1940, nascia o nos, eu conto (1999); Meu querido canibal
romancista Antônio Torres na cida- (2000); O nobre sequestrador (2003); Pelo
de de Sátiro Dias, na Bahia. Neste fundo da agulha (2006); Sobre pessoas
ano de 2020, comemoram-se os seus 80 (2007); Minu, o gato azul (2007) e Do pa-
anos de vida, coroados pela apresentação lácio do Catete à venda de Josias Cardoso
de um novo enredo ficcional, intitulado (2007).
Querida cidade, que sairá nos próximos me- Seus livros estão traduzidos em diversos
ses pela Record, casa editorial desse gaba- idiomas e espalhados por mais de vinte paí-
ritado Escritor. ses do mundo, como Argentina, Alemanha,
Com exclusividade para o Domingo com Bulgária, Croácia, Cuba, França, Estados Uni-
Poesia, o poeta piauiense Diego Mendes dos, Inglaterra, Itália, Portugal, Espanha, Ho-
Sousa dialoga com o universo literário de landa, Paquistão, Vietnã, Israel e Romênia.
Antônio Torres, imortal da Academia Brasilei- Testemunha Antônio Torres, que sua
ra de Letras (ABL), onde é o sétimo ocupante imaginação criativa flui do onírico. É através
da emblemática Cadeira 23. Autor seminal, do sonho, que o enredo dos seus escritos e
detentor do Prêmio Machado de Assis da o fio condutor dos seus temas afloram em
ABL (2000), pelo conjunto da obra, além de simbologias ficcionais.
Entrevista publicada no site www.domingocompoesia.com.br.
114  •  Entrevista concedida a Diego Mendes Sousa

Em uma conversa franca, aberta e di- suspenso, no qual tudo ficou imprevisível.
reta, Antônio Torres abre o seu baú de Como a comemoração dos meus oitentões
imagens, memórias, caminhos e esqueci- com o lançamento de um novo romance
mentos, sem jamais se afastar do compro- chamado Querida cidade, que a Editora Re-
misso com a realidade brasileira. Histórico e cord havia programado para agosto. Agora,
humano, Antônio Torres reconta a sua in- “é a espera debaixo deste céu descampa-
fância, faz retratos com os seus pares, fala do”, como está escrito em um romance de
dos seus projetos, revela os seus sentimen- 1976, chamado Essa terra.
tos, mas antes dispara: “Quer dizer, ia, até
entrar nesse tempo em suspenso, no qual
DMS  Em 2013, você foi eleito para a Aca-
tudo ficou imprevisível”.
demia Brasileira de Letras. Qual o significa-
do de estar na linhagem sucessória de Ma-
Entrevista chado de Assis?
Diego Mendes Sousa Em setembro de AT  Significa um legado histórico extraordi-
2020, será comemorado os 80 anos do seu nário. A Cadeira 23 da ABL, fundada pelo
nascimento. Como é saber-se reconhecido Bruxo do Cosme Velho – que a ocupou de
em um país de poucos leitores? 1897 a 1908 –, tem a seguinte linhagem
Antônio Torres  Pertenço a uma geração sucessória: 1 – Lafayette Rodrigues Pereira,
bem-lida, bem-criticada, bem-estudada, o conselheiro de D. Pedro II e autor de tra-
bem-traduzida, muito viajada. E que vai da balhos jurídicos notáveis, e que veio a dar
Porto Alegre de Moacyr Scliar à Manaus nome à cidade em que nasceu, em Minas
de Márcio Souza, passando pelo Paraná Gerais, e a uma rua de Copacabana, na
de Domingos Pellegrini Júnior, São Paulo qual morou o poeta Carlos Drummond de
– com Ignácio de Loyola Brandão e João Andrade. 2 – Alfredo Pujol, que foi um bri-
Antônio –, o Rio de Nélida Piñon, Ana Ma- lhante jornalista e advogado, o primeiro a
ria Machado e Sérgio Sant’Anna, as Minas fornecer uma visão abrangente da obra de
de Oswaldo França Júnior, Ivan Ângelo, Machado de Assis em 7 conferências publi-
Roberto Drummond, Wander Piroli e Luiz cadas em livro, hoje uma referência neces-
Vilela, a Bahia de João Ubaldo Ribeiro, só sária. 3 – Otávio Mangabeira, um homem
para citar alguns casos exemplares – e de de letras que foi ministro do Exterior e go-
ficcionistas –, e nesses não pode faltar ou- vernador da Bahia, tendo se destacado por
tro gaúcho, nascido em Santana do Livra- sua eloquência, habilidade política, dignida-
mento, o meu saudoso amigo Flávio Mo- de e honestidade. 4 – Jorge Amado, que
reira da Costa. dispensa apresentação. 5 – Zélia Gattai, que
Não me cabe dizer se estou ou não en- foi a companheira perfeita de Jorge, consa-
tre os que tiveram o seu quinhão de reco- grada na literatura a partir da publicação de
nhecimento. Ou melhor: entre os que ainda Anarquistas, graças a Deus. 6 – Luiz Paulo
o têm. Aqui e ali cruzo com alguém que me Horta, o jornalista e escritor que viveu na
acena simpaticamente, e vou em frente. música até morrer, encontrando nela as
Quer dizer, ia, até entrar nesse tempo em portas da transcendência.
A n t ô n i o T o r r es   •  115

Pronto. Está dado o peso da responsabi- no passado. Como em uma noite de sexta-
lidade que me coube. -feira, em São Paulo, para onde eu havia me
transferido do Rio de Janeiro, já casado com
a Sonia, que me pediu para lhe contar uma
DMS  O seu patrono é José de Alencar!
história da minha infância. Enquanto pu-
Que importância tem essa confluência do
xava pelas minhas memórias, via sinais de
destino para sua formação intelectual?
enternecimento em seu rosto. No sábado,
AT  Agora você me leva de volta a um lugar logo ao acordar, comecei a escrever um con-
esquecido nos confins do sertão baiano, to, intitulado Segundo Nego de Roseno –
sem rádio e sem notícias das terras civili- hoje incluído no livro Meninos, eu conto –,
zadas. Sem livros. Ali, em uma manhã en- e que viria a dar origem ao romance Essa
solarada, uma professora chamada Teresa terra. Em outras vezes, meu inconsciente
pôs os seus alunos em fila, para que cada trabalhou por mim enquanto eu dormia.
um lesse em voz alta um trecho de uma Foi assim em Um táxi para Viena d’Áustria,
Seleta escolar – que vinha a ser uma an- e no ainda inédito Querida cidade, que nas-
tologia de contos, crônicas, poemas e pe- ceram de um sonho.
quenos capítulos de romance. Um desses
trechos inundou a sala, fez o sertão virar os
DMS  Aos 32 anos de idade, você estreou
verdes mares bravios da terra natal de José
com o livro “Um cão uivando para a lua”
de Alencar, onde canta a jandaia, na fron-
(1972). O que esse livro representa para a
de da carnaúba. O efeito dessa leitura foi
sua trajetória enquanto escritor?
simplesmente fabuloso. À noite, viajei em
águas, faunas e floras de sonho. Além de AT  Lançado em uma quinta-feira em uma
não fazer a menor ideia de como era o mar, livraria de Copacabana, na segunda-feira
não conhecia a jandaia e a carnaúba, nem seguinte Um cão uivando para a lua viria
de pluma, nem de folhagem, pois perten- a ser saudado por Aguinaldo Silva, no jor-
ciam a outras paisagens, e distantes, como nal Opinião – um semanário de circulação
a do Ceará. Foi esse o primeiro impacto nacional pra lá de bom – como “uma feliz
que as linhas iniciais de um romance me estreia”. O entusiasmo do Aguinaldo aca-
provocaram, instalando-se como o lugar da bou levando praticamente toda a crítica
imaginação, e aqui se reinstalando como o a tomar conhecimento desse livro, o que
da memória. Quem sabe aquela leitura em por sua vez puxou os leitores. Registre-
voz gaguejante do começo de Iracema te- -se que eu não o conhecia. E de lá para cá
nha sido o marco zero do meu destino de só o vi uma única vez, e de raspão, sem
romancista? tempo para demonstrar a minha gratidão
pela porta gigantesca que ele abriu a um
ilustre desconhecido que adentrava a li-
DMS  Como nascem as histórias das suas
teratura sem qualquer apadrinhamento.
narrativas?
A minha sensação é a de que Um cão ui-
AT  Às vezes, de alguma coisa no presen- vando para a lua foi lançado no dia, mês
te que me remete a uma situação vivida e ano certos. Ou seja, deu sorte. O que,
116  •  Entrevista concedida a Diego Mendes Sousa

como dizia Jorge Amado, todos precisa- jovem, de ser poeta! O que lhe desvirtuou
mos. Portanto, muita sorte para os livros do caminho poético?
e seus autores.
AT  Foi um professor do Ginásio de Alagoi-
nhas, cidade a meio do caminho da capital,
DMS  Podemos considerar o romance Essa quem me fez mudar de rumo. – Você se ex-
terra (1976) como a sua obra-prima? pressa melhor em prosa do que em verso –
ele me disse, baseando-se em uns exercícios
AT  Há controvérsias. Ana Maria Machado,
por exemplo, lhe diria, como já fez de pú- de escrita que eu vinha publicando em um
blico, que esse pódio é de O cachorro e o jornalzinho feito pelos alunos que faziam
lobo. Que dá sequência ao Essa terra, abrin- parte do Grêmio Lítero-Recreativo Castro
do caminho para uma trilogia, fechada com Alves. Levei a sério aquela observação. Mas
Pelo fundo da agulha. sem jamais perder o meu fascínio pela poe-
sia. A falta de talento para ela acabou me
empurrando para a ficção.
DMS  Conte-me sobre a sua vivência no
Junco, o seu torrão natal no interior da
Bahia, e a relação com as imagens oriundas DMS  O jornalismo teve influência no seu
da sua infância. processo criativo? Os romances históricos
nasceram desse olhar investigativo?
AT  Quando nasci, o Junco já se chamava
Sátiro Dias. Era um distrito de Inhambupe, AT  Além de jornalista, fui redator publici-
no semiárido da Bahia, a apenas 210 qui- tário, com passagens por grandes agências
lômetros de Salvador, distância que parecia de São Paulo, do Rio e de Portugal, onde
enorme devido à precariedade da estrada vivi três anos. E se o jornalismo me ensinou
para a sede do município, dali a sete léguas, a ver o mundo, a publicidade me ensinou a
e a ausência de qualquer meio de comuni- contar isso rapidinho.
cação, a não ser o correio, que chegava de
oito em oito dias, no lombo de um burro.
DMS  Gosto muito do cronista Antônio Tor-
Hoje, é uma pequena cidade tão interligada
ao mundo quanto qualquer outra de maior res. Sobre pessoas (2007) foi um livro que
porte. Quando olho para trás, o que vejo é me marcou sobremaneira. Quem são essas
o melhor lugar para um escritor ter nascido. pessoas?
Pois do meio agrário e ágrafo de onde vim o AT  São figuras célebres das letras, da mú-
que não faltava era contador de histórias ao sica, do cinema, do esporte e da História:
pé de um fogão de lenha, para espantar o Fernando Sabino, Glauber Rocha, Garrincha,
medo em noites cheias de fantasmagorias. Monteiro Lobato, Jorge Amado, Faulkner,
Era como se as carências do nosso cotidiano Jorge Luís Borges, Dalton Trevisan, Tônia
nos levassem ao reino da fabulação. Carrero, João Saldanha, Tom Jobim, Miles
Davis (todos os trompetes havidos e a ha-
DMS  É sabida a sua admiração pelo poeta ver), Vinicius de Moraes, e muita gente
baiano Castro Alves e a sua ambição, desde mais, lendária ou não.
A n t ô n i o T o r r es   •  117

DMS  Meninos, eu conto (1999) é o seu “Agrégation”, concurso para professores


único livro de contos. Por que os romances de língua portuguesa nas escolas francesas.
predominaram no seu fazer literário? Quelle surprise!

AT  Comecei escrevendo contos. O primei-


ro foi publicado em uma revista, em São DMS  Seus livros estão traduzidos em diver-
Paulo, e o segundo em um jornal do Porto, sos idiomas. A que você atribui esse sucesso
onde vivi um ano e meio. Perdi os dois. A editorial no exterior?
ideia inicial de Um cão uivando para a lua
AT  Tenho romances e contos publicados
era a de um conto centrado num louco a
em mais de vinte países, o que não signifi-
bater papo consigo mesmo. Mas a história
ca sucesso editorial no exterior. Meu finado
avançou e deu no que você sabe: uma dú-
amigo Carlos Heitor Cony definia à perfei-
zia de romances, com apenas quatro contos
ção o espaço conquistado pelos escritores
pelo caminho. Três estão no livro Meninos,
brasileiros lá fora: um sucesso de estima. O
eu conto e o outro, que se intitula Atrás da
que já é bom, diga-se. Pior seria se nem isso
cerca, foi publicado na antologia Malditos
tivéssemos. Só Jorge Amado, ao seu tempo,
escritores!, organizada por João Antônio, e
e Paulo Coelho, no presente, foram além
também em Cuba, na revista da Casa de las
disso. Muito além, reconheça-se.
Américas, e, mais recentemente, em Portu-
gal, numa edição da Editora Teodolito com
DMS  Se lhe fosse dada uma oportunidade
a Fnac, para o Dia Mundial do Autor. Sem
de um reinício literário, o caminhar seria o
dúvida, minha produção de contos é pe-
mesmo?
quena. Mas é possível que no futuro eu ve-
nha a ser lembrado apenas pelo conto Por AT  Não dá para me ver reiniciando pela
um pé de feijão, incluído por Ítalo Moriconi mesma trilha. Até porque ao longo da ca-
entre os Cem melhores do século, e que minhada venho pegando atalhos variados,
não para de sair em livro didático, além de ao passear por cenários urbanos, rurais e
ter sido escolhido pelo Ministério de Edu- da História. O que virá daqui pra frente?
cação da França, em 2015, como prova do Aguardemos o próximo capítulo.
João Almino

Entrevista concedida a Diego Mendes Sousa


Escritor, jornalista, advogado, indigenista, ambientalista e ativista cultural.

“(...) há duas razões principais para situar (1987), Samba-enredo (1994), As cinco es-
histórias em Brasília, a primeira é que é uma tações do amor (2001), Livro das emoções
cidade como nenhuma outra; a segunda (2008), Cidade livre (2010), Enigmas da pri-
é que é uma cidade como qualquer outra, mavera (2015), Entre facas, algodão (2017).
onde existem angústias, desesperos, tristezas, Seus romances ganharam versões em in-
desgraças, ódios, tragédias, alegrias, glês, francês, italiano e espanhol. Dentre
esperanças, êxtase, amor, enfim todas essas os diversos prêmios, foi galardoado com o
emoções com que se constroem as ficções.” Casa de las Américas de Cuba.
Cidadão do mundo, João Almino é um

J
oão Almino de Souza Filho, o benja- cultuado ensaísta de literatura, além de um
mim de uma família de sete irmãos e teórico da filosofia, da política e da história,
alfabetizado em casa, cujo genitor era com pensamentos sobre utopia, autoritaris-
leitor de José Lins do Rego (1901-1957) e mo e democracia, tendo publicações semi-
de José Américo de Almeida (1887-1980), nais nos temas, como em Os democratas
chega aos seus setenta anos de vida neste autoritários (1980), Era uma vez uma cons-
ano de 2020. tituinte (1985), 500 anos de utopia (2017) e
Nascido em 1950, o escritor João Al- Dois ensaios sobre utopia (2017).
mino, embaixador e imortal da Academia Morou em outros países, como Estados
Brasileira de Letras (ABL), autor de sete fe- Unidos, México, França, Inglaterra, Portu-
cundos romances, pioneiro na elevação de gal, Espanha e, atualmente, reside no Equa-
Brasília, capital federal, como urbe literá- dor, onde exerce a função de Embaixador
ria, conversa com o poeta piauiense Diego do Brasil.
Mendes Sousa, em entrevista exclusiva para Andarilho, o seu olhar sobre a estética
o Domingo com Poesia, sobre a sua história literária possui contornos singulares. É de-
pessoal, intelectual e diplomática. tentor de um estilo próprio, que prima
João Almino é autor das narrativas de pela formalidade estrutural do romance, a
Ideias para onde passar o fim do mundo pontuar o tempo e as imagens de maneira
Entrevista publicada no site www.domingocompoesia.com.br.
120  •  Entrevista concedida a Diego Mendes Sousa

proustiana, com verossimilhança e com a onde eu e todos os sete filhos de Natália e


força técnica das mais esmeradas palavras. João nascemos. O mais velho, José, mor-
Sua linguagem é fotográfica, cinemato- reu antes de completar um ano. Sou o mais
gráfica e tecnológica. Suas personagens são novo. Minha irmã de idade mais próxima,
também ciganas e emblemáticas, transpor- Maria José, também já morreu. Os demais,
tadas de um romance a outro, sempre com meu irmão mais velho, Pedro, e três irmãs,
novas razões, a propósito de Paulo Antônio Salete, Fátima e Bernadete, vivem atualmen-
Fernandes e de Berta. te em Fortaleza. Durante minha infância, a
João Almino é um mestre da narrativa, rua era tranquila e, à exceção de um grupo
apurado, brilhante e definitivo, o que torna escolar, inteiramente residencial. Eu brincava
o seu universo ficcional encantador. nas calçadas ou nos terreiros das casas com
Neste diálogo com João Almino, conhe- os amigos. Brincadeiras de bola de gude, de
ceremos um escritor de inteligência privile- financistas trocando notas de carteira de ci-
giada, que teve a oportunidade de ser ami- garro Continental ou Hollywood. No final da
go dos excepcionais criadores Octavio Paz e tarde, as brincadeiras envolviam também as
Álvaro Mutis, bem como de ser discípulo de meninas, cantigas de roda, berlinda. Com os
Foucault, Barthes, Bourdieu e Claude Lefort. primos e primas, havia lutas de faroeste ou
Professor visitante de literatura em uni- batizados de bonecas. O grupo escolar na-
versidades importantes como Berkeley, Chi- quela nossa rua foi o primeiro em que es-
cago e Stanford, João Almino ainda nos tudei. Uma escola pública. Resisti a ir para
ensina que “a relação do homem com o a escola. Assim entrei já no segundo ano, e
tempo é algo que perpassa todas as nar- minha primeira professora foi minha irmã
rativas como uma obsessão, sob a forma mais velha, Salete, que já havia me ensinado
das camadas de história, do presente ou do a ler e escrever em casa. Depois fui transferi-
instante ou ainda do apagamento ou da re- do para uma escola particular, para onde eu
cuperação da memória”. caminhava a pé. Uma única sala, onde Dona
Maria Clotilde colocava todos os alunos do
Entrevista primário, do primeiro ao quinto ano.

Diego Mendes Sousa João Almino, nor-


destino, um potiguar de Mossoró! Conte- DMS  Aos doze anos de idade, você ficou
-me um pouco da sua infância sob as bên- órfão de pai e a sua família migrou do Rio
çãos de Santa Luzia, padroeira da sua casa Grande do Norte para o Ceará. Qual a re-
natalícia. presentatividade da presença paterna em
sua vida?
João Almino Bem lembrada a festa de
Santa Luzia, em dezembro. Em uma das pa- JA  A meu pai, João Almino de Souza, devo
redes de minha casa havia uma imagem da o meu nome e o amor pelos livros. Nunca
santa segurando um prato no qual se viam frequentou escola, foi autodidata, mas lia
dois olhos. Um tanto inquietante. muito, sobretudo histórias de santos e livros
Morei em Mossoró, até os doze anos, de história do Brasil e universal. Tinha uma
na Rua Dionísio Filgueiras e em uma casa pequena biblioteca na qual encontrei alguns
J o ã o A l m i n o   •  121

romances de escritores regionalistas nordesti- JA  Na época não havia concurso para o
nos. Elogiava minhas primeiras tentativas de Instituto Rio Branco em Fortaleza. Então me
escrever um livro, ou seja, os garranchos que aventurei. Decidi ir para o Rio com a ideia
eu fazia em um caderno de escola. E assim de me submeter ao concurso para a carrei-
foi quem primeiro me incentivou a escrever. ra diplomática. Não conhecia ninguém no
Rio. Mas, como em Fortaleza era diretor de
cursos e dava aulas de inglês no Instituto
DMS  A terra de José de Alencar é conside-
de idiomas Yázigi, consegui chegar ao Rio
rada berço de grandes escritores. Ter residi-
com um emprego na sede da Avenida Rio
do lá lhe inspirou a carreira literária?
Branco daquele Instituto. Tinha também o
JA  Não diretamente, mas tudo que a gente dinheiro ganho em um concurso nacional
vive de alguma forma pode se transformar sobre direito de autor e da venda de um sí-
em experiência literária, no meu caso não tio, a Santa Maria, nos arredores de Mosso-
através de uma transposição direta, porque ró e herdada de papai.
continuo preferindo a ficção à autoficção.
Em Fortaleza passei minha adolescência,
período sempre muito marcante na vida de DMS  Seu mestrado é em Sociologia, pela
cada um. Morando e estudando no Ceará, Universidade de Brasília (UnB). A mudança
e já que você cita José de Alencar, foi obri- do Rio de Janeiro para Brasília foi motivada
gatório entre os treze e os dezesseis anos pela carreira diplomática? Conte-me sobre
ler praticamente todos os seus romances. a sua pioneira visita ao Planalto Central e
Eu fazia resumos e espécies de resenhas sobre as suas andanças pelo mundo.
de cada um deles. Confesso que mais do JA  Minha mudança para Brasília se deu
que Iracema, cuja poesia vim a apreciar, ou depois que concluí o Rio Branco no Rio, já
O guarani, me encantava a leitura do diver- para começar a trabalhar no Itamaraty. Mas
tido A pata da gazela, de Senhora ou de havia estado em Brasília alguns anos antes.
Lucíola. Mais até do que Fortaleza, o sertão Uma irmã, Salete, justamente a que foi mi-
do Ceará me marcou muito. Ainda quando
nha primeira professora, então morava lá,
morávamos em Mossoró, os períodos de fé-
com o marido, funcionário do Ministério da
rias passávamos sempre no Benfica, fazen-
Agricultura. Naquela breve passagem por
da de meu avô onde mamãe tinha nascido
Brasília escrevi dois contos, que nunca fo-
e crescido. Ficava perto do Bom Jardim, de-
ram publicados, porém inspiraram persona-
pois Potiretama, de Ereré e de Iracema. É
gens de meu primeiro romance.
uma região sertaneja do Ceará próxima aos
De Brasília segui para Paris, em uma
limites do Rio Grande do Norte e da Paraí-
época de intensa efervescência cultural. De-
ba. Meu pai era potiguar, de Pau dos Ferros.
pois Beirute em plena guerra civil. No Méxi-
co tive o privilégio de manter contato com
DMS  Você se formou em Direito pela um círculo muito interessante de escritores
Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Octavio Paz, Álvaro Mutis, Enrique Fierro,
(UERJ). Como foi esse percurso de Fortale- Ida Vitale, Alberto Ruy Sanchez e tantos ou-
za para o Rio? tros). Um capítulo do que viria a ser meu
122  •  Entrevista concedida a Diego Mendes Sousa

primeiro romance foi publicado na revista rádio os discursos de sua inauguração. Mais
Vuelta, antes, portanto, de que fosse publi- adiante, quando comecei a publicar ficção,
cado no Brasil. A lista é longa: Washington, Brasília me atraiu como palco e persona-
Lisboa, Londres, Miami, Chicago, Madri. gem por ser território relativamente pouco
Em San Francisco fui quase vizinho do poe- explorado pela literatura (hoje em dia já
ta Michael Palmer, com quem colaborei em não mais) e por uma série de razões simbó-
alguns projetos. Destaco que me deu muita licas. Entre estas, o fato de que a ideia de
satisfação ser professor visitante de literatu- Brasília havia acompanhado toda a história
ra em Stanford, Berkeley e na Universidade do Brasil independente. Já José Bonifácio,
de Chicago. antes mesmo da independência, em 1821,
sugeria “Brasília” como um dos nomes pos-
síveis da “cidade central no interior do Bra-
DMS  As suas primeiras dicções ficcionais
sil para assento da Corte ou da Regência”
frutificaram à beira do Sena. Como foi essa
e Machado de Assis, nosso maior escritor,
sua vivência nessa ambiência?
comentava ainda no século dezenove a
JA  Foi um período rico em muitos aspectos. mudança da capital. Como era uma cidade
Vinha escrevendo um romance, que tardou de cruzamentos, um Brasil de Brasis, eu po-
a ser concluído, mas teve partes escritas em deria trazer para ali personagens de vários
Paris. Também foi uma época de intensa ati- lugares, entre os quais do Nordeste onde
vidade intelectual. Tive a oportunidade de nasci e cresci. Um contraste que sempre
frequentar cursos de grandes mestres, como me fascinou e explorei na minha literatura
Foucault, Barthes e Bourdieu. Mas sobretu- é aquele entre o projeto racional e a irracio-
do me aproximei do filósofo Claude Lefort, nalidade espontânea, presente por exemplo
que foi meu orientador de tese. E em Paris na proliferação de seitas místicas. Como
conheci minha mulher, a artista plástica Bia morei em várias cidades no exterior (hoje
Wouk, e com ela tenho duas filhas, Letícia somam doze), quis ter um único ponto de
Wouk Almino, arquiteta, e Elisa Wouk Almi- referência espacial para meus romances e
no, escritora, tradutora e editora. que ele fosse no Brasil. Até hoje há quem
ache que Brasília se presta pouco para a li-
teratura. Que é apenas a cidade do poder.
DMS  Em 1987, veio a lume o seu roman-
Que uma história que se passe em Brasília
ce de estreia Ideias para onde passar o fim
se limita aos porões do Congresso ou ao
do mundo, texto inovador e musical, que
dia a dia da burocracia. Uma vez disse o se-
inaugurou, historicamente, a fundação de
guinte: há duas razões principais para situar
Brasília através da ficção. Por que Brasília?
histórias em Brasília, a primeira é que é uma
JA  De fato Brasília aparece em meus sete cidade como nenhuma outra; a segunda é
romances, até mesmo no mais recente, En- que é uma cidade como qualquer outra,
tre facas, algodão. Há muitas razões para onde existem angústias, desesperos, tris-
isso. Foi a cidade onde morei por mais tem- tezas, desgraças, ódios, tragédias, alegrias,
po. E criança, ainda em Mossoró, acompa- esperanças, êxtase, amor, enfim todas essas
nhei a saga de sua construção e ouvi pelo emoções com que se constroem as ficções. 
J o ã o A l m i n o   •  123

DMS  Depois de Ideias para onde passar o essa volta ao passado, mas esse passado vai
fim do mundo, veio o quarteto de obras em sendo redescoberto ao longo da viagem.
que a tônica literária Brasília é intensificada. Seu presente vai lhe trazendo surpresas, e
Quais os retratos, os temas e o signos nar- seu futuro vai sendo reescrito. A viagem é
rativos desses romances? sempre e só de ida.

JA  São muito diferentes um do outro, mas


existe um universo ficcional próprio que DMS  Atualmente, você é Embaixador do
tentei criar para esses romances. Alguns Brasil no Equador. Vive em Quito, cidade
personagens migraram de um livro para o conhecida como la mitad del mundo e onde
outro, sendo vistos de ângulos ou a partir João Cabral de Melo Neto também serviu.
de momentos distintos. Em vários dos ro- O poeta pernambucano exerceu alguma in-
mances, existe um diálogo entre a lingua- fluência sobre o homem e sobre o escritor
gem literária e outras linguagens, a foto­ João Almino?
grafia, o cinema, o computador, o blog.
JA  Desde adolescente sou leitor de João
A relação do homem com o tempo é algo
Cabral. Ele e Graciliano Ramos são os dois es-
que perpassa todas as narrativas como uma
critores nordestinos que mais li e reli, princi-
obsessão, sob a forma das camadas de his-
palmente porque sempre admirei a força das
tória, do presente ou do instante ou ain-
linguagens que empregaram, com economia
da do apagamento ou da recuperação da
de palavras. O estilo da secura. No ano 2000
memória.
escrevi um longo ensaio sobre João Cabral,
fazendo uma leitura de sua poética de “A
DMS  Seu estilo é sofisticado, fluente e pedra do sono” até “A educação pela pe-
aberto. Enigmas da primavera (2015) pode dra.” Recentemente, quando vim para Qui-
ser considerada a sua obra-prima? to, me interessei particularmente por seus
poemas equatorianos. Em geral, quando se
JA  Deixo para os críticos decidir, se é que
pensa em associar a obra de João Cabral a
existe alguma. Isso foi dito a respeito de
lugares, com razão vem à mente imediata-
Cidade livre. E recentemente, pelo crítico
mente Pernambuco, sobretudo Recife, e a
Hans Gumbrecht, a respeito de Entre facas,
Andaluzia, especialmente Sevilha. No entan-
algodão. 
to, esses poemas equatorianos têm força e
qualidade à altura de sua obra, contendo vá-
DMS  Em que contexto foi escrito Entre fa- rias de suas características essenciais, como
cas, algodão (2017)? Há nele fragmentos são a ausência de retórica e a imagem con-
de uma infância reencontrada? Você foge creta, mineral, da palavra.
da autobiografia, mas sempre ficam as cen-
telhas de algo perdido...
DMS  Aprecio o seu olhar fotográfico ante
JA  A ideia era não escrever a clássica histó- o mundo. A fotografia imprime visões sim-
ria da volta às raízes. O personagem faz uma bólicas sobre os seus romances? De onde
viagem no tempo e no espaço procurando vem o insight para a arte da fotografia?
124  •  Entrevista concedida a Diego Mendes Sousa

JA  Desde adolescente tenho me interessa- mais distintas tradições, sendo portanto
do pela fotografia. Cheguei a fazer algumas plural, nunca sectária e sempre mantendo
exposições e a publicar um livro de fotos. sua independência. Por essas razões tenho
Talvez por essa razão exista uma visualidade muita satisfação em contribuir, na medida
nítida em meus romances ou pelo menos de minha capacidade, com seu papel histó-
em passagens deles. Um dos romances, rico e cultural.
O livro das emoções, é escrito através da
lembrança que um fotógrafo que ficou
DMS  Além de um brilhante romancista,
cego tem de fotografias que para ele têm
você é também um conceituado pensador
uma alta carga emocional. O leitor, ao “ler”
e ensaísta sobre utopia, autoritarismo e de-
as fotografias, que nunca vê, poderá com-
mocracia. O que ainda esperar do Brasil?
por as peças do romance.
JA  O Brasil surpreende para o bem e para
o mal. Uma vez, ao escrever sobre Machado
DMS  Você foi eleito em 2017 para a Aca-
de Assis, discorri sobre o “pessimismo como
demia Brasileira de Letras (ABL). O que sig-
método”. Um pessimismo que não significa
nifica ser um imortal em um país que pouca
abdicar de toda a esperança, mas apenas em
importância dá a sua cultura?
ter capacidade de enxergar os lados mais
JA  Acredito na importância das institui- negros da realidade, os riscos, os possíveis
ções. E a Casa de Machado de Assis é, no precipícios. Melhor não esperar nada e ten-
âmbito da cultura, uma longeva e sólida tar contribuir para manter e aprofundar a
instituição brasileira, tendo recolhido as democracia e para que o futuro seja melhor.
POESIA

William Soares dos Santos

W
illiam Soares dos Santos (1972) poesia e finalista do 3.o Prêmio Rio de Lite-
é carioca, professor da UFRJ e ratura no mesmo ano. Seu mais recente livro
escritor. Realizou várias publica­ de poemas é Três sóis (Editora Patuá, 2019).
ções. Dentre seus trabalhos literários, des- É finalista do prêmio Jabuti de 2020 com a
taca-se o livro Poemas da meia-noite (e do sua tradução do romance A Cidade do Vento
meio-dia) (Editora Moinhos, 2017), ganhador de Grazia Deledda. Página do autor: http://
do Prêmio PEN Clube do Brasil de 2017 para william­soaresdossantos.com.br/index.html
126  •  William Soares dos Santos

andarilho
Do livro Rarefeito, de 2015.

ando pela tarde,

sob o sol que me transborda,


sou jogado pelo vento
que insiste em me desnudar,

mas nada pode

findar a minha
marcha,
nem a dor mais intensa,

nem o ronco rouco do mar.


William Soares dos Santos   •  127

o frio
Do livro Rarefeito, de 2015.

às vezes,
quando chove, venta
e a noite é rara,
tenho de sair entre o vendaval,

até sentir prazer no frio que

abraça o meu coração.

o frio me inunda.

e, ao receber todo o

orvalho em meu corpo,

posso sentir que tenho

um coração quase meu.


128  •  William Soares dos Santos

Os elefantes
Do livro Poemas da meia-noite (e do meio-dia), de 2017.

Quem
defenderá a vida dos elefantes

quando a África sangrar?

Quem,
no meio da floresta adentro,
enfrentará a tormenta das noites
sem sono e dos dias sem lembrança?
Quem
preservará a memória dos elefantes?
Quem
ouvirá o seu canto inaudível e
fará revelar os antigos caminhos

pelos quais a matriarca da manada

guiaria seus filhos


ao antigo e derradeiro lugar
dos seus ancestrais?

Quem
chorará, como choram os elefantes,

diante do corpo sagrado da matriarca

a repousar em meio à relva que,

pouco a pouco, a resguarda


em seu irremediável
destino?

Quando
seremos como os elefantes
e arrancaremos de nós toda

a ganância, todo o ódio, toda a fúria

que nos faz infimamente pequenos

diante da grandeza,

perene grandeza, dos elefantes?


William Soares dos Santos   •  129

Deseo & alma


Do livro Raro, de 2018.

Deste-me
dois sachês
de chá
trazidos de seu
país distante.

Em um deles
estava escrito
deseo
e, no outro,
alma.

Era como se tu
me dissesses

“desejo a tua alma”,

simples assim.

Tomei o deseo
(ou fui tomado por ele,
já não posso dizer)
em uma tarde solitária,
quando eu buscava
abrigar alguma paz
em meu coração,
o que me lembrou de
um poema de
Leopoldo Lugones
que fala da tarde
que ilumina a
paz de uma
morada.

O chá me levou,
com os perfumes
que exalava,
aos pampas por mim
desconhecidos.
130  •  William Soares dos Santos

Confesso, tive vontade de


descortinar o teu corpo
distante naquele dia.

Pena que nunca tivemos


nem o tempo,
nem a oportunidade
do ocaso
que nos embalasse
na espuma de

Afrodite.
William Soares dos Santos   •  131

Boa Esperança
Do livro Três sóis, de 2019.

Estive em Boa Esperança


e ali,
em um dia no qual a
cerração intensa da manhã
cobria as copas das árvores,
por algum destino
não palpável,
remotas reminiscências
de uma infância perdida
se renovaram.
Vi ressurgirem imagens
antigas
de uma casa cheia
de primos
agora mortos,
agora esquecidos,
agora dispersos pelo mundo
e que,
no entanto,
insistem em permanecer em
minha lembrança
atroz.
Vi ressurgirem
imagens
de minha tia italiana,
que tinha na boca
um idioma distante que
entrou
(e não saiu mais)
em
meu coração,
e que trazia,
também,
suas receitas antigas
de polentas que espantavam
o gosto da miséria
daquele nosso pequeno
mundo.
132  •  William Soares dos Santos

Vi borbotarem
imagens
de minha tia cigana
que embalava meus
sonhos de conhecer
países distantes e
que me
fazia previsões
de um raro destino.
Vi renascerem
imagens
de minha tia negra
que evocava
(sempre às escondidas)
os espíritos de seus
ancestrais,
de uma África distante,
apenas
para me abençoar.
Vi materializar-se a imagem
mestiça de meu avô,
com sua força negra e indígena,
indecifrável para mim.
Vi brilharem
novamente os olhos azuis
de minha avó portuguesa
e a sua tez branca
que se fundia com a
luz da manhã.
Sobreveio-me o carinho,
agora distante,
de minha mãe
e o brilho apagado de seus
olhos verdes
em pele moura.
Tudo isso em um pequeno
canto do Brasil
que nunca se quis,
nem jamais quererá
ser
o país do
futuro.
Leonardo Antunes

L
eonardo Antunes (São Paulo, 1983) é UFRGS, tradutor do Édipo Tirano de Sófocles
autor de Lícidas (2019, Zouk) e de João (2018, Todavia), atualmente dedica-se a uma
& Maria – Dúplice coroa de sonetos tradução da Ilíada de Homero em decassíla-
fúnebres (2017, Patuá), que recebeu os prê- bos duplos e à composição de um poema
mios: AGES (melhor livro de poesia) e Aço- épico de sua autoria, Miríade. Os poemas
rianos (melhor livro de poesia e livro do ano). desta seleção pertencem ao livro Regressos,
Professor de Língua e Literatura Grega na a ser lançado em breve pela Editora Martelo.
134  •  Leonardo Antunes

Crer-se gênio malgrado todos os malgrados


Crer-se gênio malgrado todos os malgrados,
de modo altivo, prepotente, presunçoso,
porém discreto e extremamente elaborado,
senão irônico e talvez obsequioso,
com adereços afetados, circunlóquios,
virtuosismos excessivos e excrescentes,
eventuais depreciativos solilóquios,
mas de humildade exposta artificiosamente,
até que, seja por milagre ou competência,
se faça enfim alguma coisa quase nova,
alguma coisa grande, em autorreferência
(que pela referência o gênio se comprova),
   para entender ao fim de tudo, resoluto,
   que a novidade dura apenas um minuto.
Leonardo Antunes   •  135

Amor fati
Criatura de carne, putrescível,
plasmada nalgum ventre turvo e quente,
a fim de que do ventre te alimentes
de alheia criatura, deglutível,

se acaso te desejo, é permissível


chamar-te, à revelia do decente,
por todos os vocábulos somente
reservados ao mundo inteligível?

É fás que tua forma transitória,


fadada, contra o gosto da memória,
ao íntimo da terra e à sepultura,

evoque-se em meu verso perdurável,


do modo com que surge deleitável
aos olhos hoje em dia, com ternura?
136  •  Leonardo Antunes

A flor do campo
Não toques, filha, a flor do campo:
conquanto bela, dura nela
tão pouco tempo o seu encanto.

Ela amanhece assim, semelha


à estrela d’alva, sem ressalva
de ser inteiramente bela.

Mas ao cair da tarde é finda


a tinta de Hebe em que se embebe,
e como um sonho some, extinta.
Leonardo Antunes   •  137

vivendo aprendo coisas dolorosas


“vivendo aprendo coisas dolorosas”
seria um bom final de um bom poema
que há vários dias tento arquitetar,
mas não consigo; falta força, falta
fôlego, perspectiva, algum sentido –
afundo-me em profundo descaminho.

talvez alguém pudesse, gentilmente,


traduzir meu poema para o grego
e perdê-lo nalgum papiro roto,
quase todo ilegível à exceção
de um único brilhante verso meu:
“vivendo aprendo coisas dolorosas”.
138  •  Leonardo Antunes

Meus fracassos se erigem como monumentos


Meus fracassos se erigem como monumentos,
altivos, permanentes, sempre à vista.
São feitos de matéria artificiosamente
engendrada – conspícua e duradoura –
e lançam densa sombra sobre as silhuetas
incertas, fugidias, resignadas
do que talvez um dia, sobre a areia, alguém
houvesse registrado algum sucesso.
Leonardo Antunes   •  139

Décima de não ser gaúcho – poemeto de alteridade


Eu não nasci no Rio Grande.
Jamais andei a cavalo.
Por isso mesmo me calo
sobre a glória de quem ande.
Ver como o pampa se expande
infinito na campanha
dá uma vertigem estranha
em alguém que foi criado,
desde pequeno, amparado
nas encostas da montanha.

Aqui, a terra é um destino.


Se alguém puxa uma cadeira
e te diz que é da fronteira,
jamais duvides, menino,
do grande orgulho uterino
que nessa origem se imprime.
(Mesmo que penses nos crimes
com que esta terra foi feita,
existe terra perfeita?
Existem homens sem crime?)

Eu sou paulista de origem,


paulistano de nascença,
do tipo que não dispensa
pizza, garoa e fuligem.
Eis a causa da vertigem
que me causam as planuras.
Fui criado na lonjura
de Embu das Artes, caipira
lá das Chácaras Bartira.
Origem não se rasura.

Mas não sei dizer ao certo


a identidade que tenho.
Às vezes triste eu me empenho
a me olhar de peito aberto
e quando mais chego perto
de alguma definição
é se afirmo, com razão,
que ter nascido paulista
me dá somente uma pista:
a de eu não ser deste chão.
140  •  Leonardo Antunes

Carlos
I
quando eu nasci,
minha mãe chamou-me Carlos:
nome de poeta, ela dizia.

porém,
à exceção de minha avó,
que às vezes me chamava de Meu Carlos
(não Carlos simplesmente nome,
mas Carlos adjetivo,
sinônimo suspeito de tesouro),
em casa sempre fui Leonardo.

II
no primeiro ano do Colégio
– eterno trauma –
a professora fez-nos plaquetinhas,
cada uma com um nome.

peguei a de Leonardo,
que logo me acusou à professora
de ter-lhe arrebatado o nome.

já havia um Leonardo,
comunicou-me a mestra.
então,
pelos próximos dez anos,
seria Carlos.

III
mas na verdade não fui Carlos.
jamais fui Carlos,
nome de poeta:
fui Carlinhos,
nome de sambista ou traficante,
e fui Carlão,
o borracheiro.

mas, nesses dias frios,


inóspitos,
acordando cedo para trabalhar,
às vezes pensativo a mim me digo:
vai, Leonardo,
ser Carlos na vida!
Mariana Ianelli

M
ariana Ianelli nasceu em São do Jabuti (2006, 2008, 2013, 2017). Tem
Paulo em 1979. É autora de dez três livros de crônicas: Breves anotações
livros de poesia, entre eles Can- sobre um tigre (2013), Entre imagens para
ções meninas (2019) e a antologia Manus- guardar (2017) e Dia de amar a casa (2020). 
crito do fogo (2019) que marca 20 anos de Possui dois livros infantis: Bichos da noite
poesia. Em 2008, recebeu o prêmio Fun- (2018) e Dia no ateliê (2019). Escreve quin-
dação Bunge de Literatura (antigo Moinho zenalmente, aos sábados, na revista digital
Santista) na categoria Juventude, menção de crônicas Rubem. Desde agosto de 2018,
honrosa no prêmio Casa de las Américas é editora da página Poesia Brasileira do jor-
(Cuba) em 2011 e foi quatro vezes finalista nal Rascunho.
142  •  Mariana Ianelli

Terra natal

Para minha mãe

Haverá sempre você


Na substância do mistério desta casa
Que cultiva sombras nos recantos certos
Trepadeiras de domínio imparável
Águas que marulham e entorpecem.
A terra natal não morrerá por esperar.
Será por isso que invisivelmente
Todo o seu corpo treme, mal transpõe a entrada,
E outra face sobre a sua se afigura, plácida fera
De poderes não domados, mas adormecidos...será?
Melhor que as portas não se abrissem,
O relento lhe parisse asas.
Mas a casa o abraça com uma ternura insuportável
Lambe seus pés, fala em sinais às suas razões cegas
Se faz seu álibi em desculpas e fantasmas.
Então você não sabe? Não sabe
Que haverá sempre você na substância
Do mistério desta casa?
Nessa terra em que as jabuticabas brilham túrgidas
Sem pássaro que as devore,
Aqui onde o lobo da montanha
Adormece em cão de guarda,
E a maciez que você toca,
Fresca em suas idades sobrepostas,
Parece humana, parece viva, e é de mármore.
Mariana Ianelli   •  143

Verão com vento e García Lorca


O verão deste ano trouxe um bater de asas
À varanda. Vindo de onde? Vindo de antes.
Dos cata-ventos nas campas de pequenos anjos.
Do vazio de matas pasmas de haverem se tornado campo.
Há janelas que relutam em se apagar na noite
E não será impossível que uma hora
Nossas mais inconfessas angústias se encontrem.
Milhões de animais estão queimando.
Milhões de pequenos olhos alucinados
Estão cegando num fogo não muito longe.
Um poeta que cantava com palavras que gemiam,
Numa dessas janelas que há séculos amanhecem acesas,
Pôs voz no que sentimos sem dizer:
Há ossadas que ressoam. Assombros
Que não se resolvem, nuvens carregadas de meninos,
Calafrios que desovam no seio do verão um pranto azul.
Há uma revoada insana esta noite na varanda.
144  •  Mariana Ianelli

Dias felizes
Em seus melhores dias
Você acredita
Que se um coração subir à boca
Outros virão à tona.
Você se cansa do medo,
Não lhe franqueia mais terreno,
Suas mãos já não tremem.
Mesmo o fracasso tem seus dons
Como uma rara especiaria
Que você também saboreia
Em seus melhores dias.
Continuam a avassalar
Sua alma os olhos dos bichos
Mas sua memória quer rever
Os que viu uma vez e sorriam.
Você se lembra da santa menina
Que agradecia à ignorância
Os males que lhe poupou
E agradece à sorte a casa que tem
E nela poder estar
E morrer sem prejuízo
E tudo isso ser apenas
Uma das músicas do tempo.
Há cartas para serem lidas com urgência,
Outras escritas para daqui a três governos.
Você perde a pressa,
Engata um dia no outro, varando
A madrugada só com a roupa do corpo,
E não sobra um lamento.
Mariana Ianelli   •  145

Contrapeso
Esses, nos altos dos montes,
Que zelam pelos que sofrem
Até que os montes se cansem –
Não há no mundo quem mais se ocupe
Jamais sendo o bastante.
146  •  Mariana Ianelli

De passagem
Seremos os que perderam terreno
Só alargando o abrigo de seus mortos?
Novos jovens tomam a cidade,
Formam tsunamis, tudo lhes pertence,
As ruas, a praça, a poesia no muro,
Espetaculares explosões e seus pretextos.
Passamos num perfume imperceptível
Como livros fora de época.
Só os gatos da nossa memória, que passeiam
Transparentes, farejam esse nosso aroma
De horas maceradas. Só os gatos da nossa memória.
Ou será que numa ânsia de amnésia
Um dia desabrigaremos também eles, nossos mortos?
Mariana Ianelli   •  147

Oração das mariposas


Agradecemos pelo esquecimento concedido
Pelos dias que passamos iludidas
Pelos olhos de coruja que se abrem em nossas asas
Quando pousamos sobre um tronco para dormir
Na forma de uma calma assimilada
Sem que nos vejam olhos de caça ou de cobiça.
Pelo indeterminado da nossa hora
Por serem ainda remotos e escamoteáveis seus sinais
Por sermos subtraídas de nós mesmas tão gentilmente
Que ir morrendo ainda nos dói mais de beleza que de terror.
Agradecemos pela trégua, embora falsa,
Convincente para nós que permanecemos distraídas
Em sérias fugas, penteando, penteando a areia
No oco de um silêncio quase feito de bondade
Como de uma mãe que se finge alheia e longe
Só para ser cúmplice do nosso desejo de existir.
148  •  Mariana Ianelli

Ainda
Ainda alguém não deixa que você desapareça
Ainda existe em você uma Rússia desconhecida
Páginas a desenterrar de uma segunda vida
Das coisas ainda mal pensadas depois de acontecidas
Ainda não foi dito o mais importante nem o mais simples
Ainda de tocaia o grande tempo no tempo pequeno dos dias.
Mariana Ianelli   •  149

Escrevo para você


Ontem a chuva quis honrar velhos deuses
E fez subir os córregos sobre as ruas,
O dia virar noite dupla com as debandadas,
E agora dentro da palavra penumbra
Ressuscitada por estranhas circunstâncias,
No silêncio de um dia seguinte
Que não pôde se desgarrar da noite passada,
Escrevo para você de próprio punho, e sonho
Que uma chama muito fina mosqueia de luz
Esta página, e que, com apenas um gesto,
Meu ou seu, ela poderia lamber uma cidade.
150  •  Mariana Ianelli

Ao menos isto

Para Adri Jong

Esta hora, esta hora fosse nossa,


Iríamos abri-la com os dedos,
Chupá-la igual a uma laranja
E haveria tanto céu
Quanto há na ilha de Páscoa,
O céu e o som remoto de uma flauta,
Uma ave essencial aerando as palavras,
Esta hora fosse nem minha nem sua,
Tal como os furacões de longo alcance
Aos quais se dão nomes maravilhosos,
Daríamos a uma brisa pequena
O nome de Cecília
E à tarde um átomo da branca luz do Taj Mahal,
De espetacular apenas tudo de movediço,
Inumeráveis seres de nuvem
Se revezando,
Um estivemos aqui desenhando-se no ar
Em cristais de gelo,
Esta hora, esta hora fosse outra.
Mariana Ianelli   •  151

Sobre a mesa
Estação telepática
Lua cheia aureolada
Meia lua morena
O som de um sino
E um sabiá
Os ventos vindos do mar
Tanto a noite já me deu.
O luxo dos sobreviventes
Um café quente
Um copo d’água
O choro indecoroso da gata
O louco que passa
Na vez do seu reinado
Inseminando o sono do bairro
Com suas maldições,
Também isso a noite me deu.
Uma barca para o limbo
Ouvidos de morcego
O amor já sem deslumbre
O bendito esquecimento
A arte da demora
E não dizer mais o nome de Deus.
Tudo isso a noite me deu.
152  •  Mariana Ianelli

Os amantes de Wuhan
Até quando? É a pergunta que nubla
Uma cidade na clausura
Desolada pelo terror de um ar irrespirável.
O comércio foi suspenso.
Os abatedouros aquietaram-se.
Os que ainda se arriscam pelas ruas
Praticam a ciência dos fantasmas.
A espera tem cachos de olhos nas janelas
Mas, na casa dos amantes,
Todos os olhos já se fecharam.
Nunca foram tão obedientes
Às exortações das autoridades.
Ocupados feito monges
Justificados pela peste
Estão se percorrendo milimetricamente
Pelos poros, por noites encadeadas
Num único dia sem fim, eles estão se amando
E não têm tempo a esperar que o tempo passe.
Mariana Ianelli   •  153

Agora
Para ver cindida a vida
Me bastou uma menina
A me tomar pela mão,
Uma voz pequenina que não para
E rodopiam os átomos da casa.
Agora esqueço como se ri
O riso dos hipócritas
Agora descuro do medo
Me envergonha a Via Sacra
Nada pode ser mais decisivo
Nem a morte
Que translada, mas não mata
Se é para queimar
Será para falar com o alto céu
Se é para doer
Será por léguas submarinas
Um canto de baleia
Na memória da água.
154  •  Mariana Ianelli

Mais tarde
Há um prazer de infringir que vem mais tarde
Depois culpa e das desculpas consternadas
Um paraíso de pequenos desacatos formidáveis
Como sumir com vírgulas, questionar o cânone,
Deixar uma criança pintar sobre uma imagem santa.
Um infringir com perícia, com esmero, como uma arte.
Mariana Ianelli   •  155

Império do sol
A mãe reconhece ao primeiro olhar
É seu filho perdido
Reencontrado
É dela essa dor que ainda mal sofreu,
O filho tocando com os dedos
Sua mão, seus lábios,
Seus cabelos debaixo do chapéu
A relembrança
Num lento amanhecer
Só então ele a abraça, fecha os olhos,
Finalmente
Pode descansar de ver
E de esperar.
156  •  Mariana Ianelli

O mesmo amor
Tantas vezes foi dito seu nome
E agora que ele vem, real, doendo
De beleza, a mesma palavra
Parece outra. Nova. Clarificada
Na sua noite intrínseca.
O mesmo amor, como se agora
Em baixo som, cingindo músculo
E mente, se instalando para ficar.
Vem numa madrugada chuvosa
De fevereiro, a casa calma, ninguém ainda
Em quem provar os seus poderes.
Não parecem ridículos, agora, todos
Os planos para lhe preparar a hora?
Altares, cerimônias, dotes. Não parece
Loucura, agora, a dúvida se irá durar?
Mariana Ianelli   •  157

Serviço silencioso
Nossa noite fora do mapa
Nossa casa, nosso corpo
De selvagens alegrias
Nosso abrigo para refugiados
Como magos socorridos por estrelas
De um longo deserto até aqui,
Nosso posto sem licença
Nossa pupila de lobo
Nosso trunfo, nosso tráfico
De pequenas maravilhas
Necessárias feito pão
Nosso estado sanguíneo
Nossa ética, nossa paixão
Nosso trabalho impossível.
Emmanuel Santiago

E
mmanuel Santiago, nascido em São A Musa de espartilho: o erotismo na poesia
Lourenço/MG em 1984, é formado parnasiana brasileira, ambos pela Univer-
em Letras pela Universidade Federal sidade de São Paulo. Além disso, é autor
de Ouro Preto (UFOP), mestre em Teoria Li- dos livros de poesia A ave Lúcifer (Patuá,
terária com a dissertação A narração dificul- 2020) e Pavão bizarro (Patuá, 2014), crítico
tosa: “Cara-de-Bronze” de Guimarães Rosa literário, tradutor e professor de Literatura.
e doutor em Literatura Brasileira com a tese Atualmente, reside em Jacareí/SP.

Seis poemas retirados do livro de poesia A ave Lúcifer (Patuá, 2020).


160  •  Emmanuel Santiago


Negro neon,
a lua nova
não desvela
a beleza lisérgica
das nebulosas.
Emmanuel Santiago   •  161

Catástrofe

a Adriano Scandolara

A madrugada escorre
pelo horizonte, lenta
e viscosa, feito lesma,
e o céu, num atropelo
de planetas e estrelas,
avermelha-se feito prego enferrujado.

Tudo vibra sob


o silêncio elétrico
na luz da avenida
(cadáver dissecado
na mesa de autópsia)
e o sorriso cariado
da lua, escarninho,
paira sobre a cidade;
um acidente na estrada
o entretém: alguém
morre nas ferragens.

A cidade: monumental anfiteatro


de concreto, onde astros exercem
seu desprezo por nós; sem catarse
possível, qualquer tragédia é inútil.
162  •  Emmanuel Santiago

Mefistófeles
Numa curva da vertigem,
encontrei minha sombra:
tal espectro (aquele
estranho em tudo simétrico
a mim) revelou-me o segredo
das noites, a chave do labirinto
onde vagueia a lua nova, esse
sol de cinzas, astro subterrâneo.

Nada me disse: mostrou-me


mármores lunares, Saturno
(absurdo dervixe) e estrelas
girando incineradas no vazio.

Voamos, então, sobre a cidade


e, em cada prédio, recitava-se o mistério
das urnas funerárias; o céu fulgia
qual pálida opala; os que dormiam
compartilhavam sinistras histórias.

A noite era o fundo de um espelho,


onde meus olhos me encontravam,
mas não me viam: forma não
cristalizada, corpo fora da memória.

Com milhares de patas, quimérica


aranha, o delírio tecia uma galáxia
que era também minha face
vista ao contrário, indecifrável.

Era preciso recompor-me, juntar


o pó de antigas estrelas em torno
de meu nome, tudo aquilo que chamo
de carne com a língua feita
de chamas, futura matéria de câncer.

Mas a língua da carne, com seus


signos sanguíneos, era outra; nela,
não reconheci as palavras da tribo,
nenhum som que não fosse o eco
de vindouras ciências ancestrais.
Emmanuel Santiago   •  163

Mefistófeles de mim mesmo, coberto


do manto fosforescente da madrugada,
incendiei igrejas, arquitetei ruínas, liquidei
estrelas que se par
tiam como que
rubins de cris
tal.

E a noite se dilatava, ávida


das palavras dos insones,
mas não havia canto que
me desencantasse, apenas oblíquos
hieróglifos de constelações
naufragando na madrugada,

de s a g r e g a n d o - s e n a i m e n s i d ã o . . .

Sobre a cidade adormecida, a


madrugada apodrecia, decompondo-se
em cinzas na acidez da alvorada
e sua furiosa fanfarra de arcanjos.

E eu, Mefistófeles, satisfeito,


sorrio — está desfeito o feitiço.
164  •  Emmanuel Santiago

Construindo a madrugada (soneto cabralino)

a Antonio Carlos Secchin

Não se constrói do dia para a noite


a madrugada e seu frescor de sangue,
como qualquer coisa que viva, cresça,
hemorragia ou algo que se estanque;
brotação espontânea, feito um fungo,
a se espalhar num proceder de câncer
e que venha entranhar-se no horizonte,
remetendo ao que é pântano, mangue.

Constrói-se a madrugada por camadas


que vão se sobrepondo nos andaimes
e, sob o peso de milhões de estrelas,
sedimentam-se num rigor constante,
concentrando-se até chegar ao ponto
da estrutura compacta d’um diamante.
Emmanuel Santiago   •  165

Havendo paz, eu me rebelo (falso sirventês)


Said my name is called Disturbance
I’ll shout and scream
I’ll kill the King
I’ll rail at all his servants

Mick Jagger & Keith Richards, “Street fighting man”.

Havendo paz, eu me rebelo


E, então, empunho minha espada,
Terso dos pés até o cabelo,
Que neste mundo não há nada
De mais horrendo e de mais belo
Do que uma liça encarniçada.

Fiz destas armas o meu selo:


Manejo espada, escudo e lança,
E meu cavalo de atropelo
É bom corcel que não se cansa
E mais ninguém pode contê-lo;
Eis meu convite pra matança!

O jovem príncipe? Magrelo!


As suas tropas? No abandono.
E o velho rei, já amarelo,
A bocejar sempre de sono...
Pois meu dever, meu grande zelo,
É derrubá-lo de seu trono!

Toda a nobreza, em seus castelos,


Teme de mim que eu a machuque
E que lhe sirva de flagelo,
Mas esfolar um pobre duque,
Se mais corcunda que um camelo,
Não me requer nem um só muque.

Muito melhor, com um martelo,


Esmigalhar um camponês,
Então seus filhos, nus em pelo,
Queimá-los vivos um por vez;
Já a mulher, eu escalpelo,
Depois de dar-lhe a viuvez.
166  •  Emmanuel Santiago

Porém o meu maior anelo


É mergulhá-los na chacina,
Desde os senhores dos castelos
Até os servos nas campinas,
E todos eles envolvê-los
Em minhas tramas assassinas.

Eu não me rendo nem protelo,


E nem me fio pela sorte;
Em se tratando de duelo,
Sou o fanático da Morte,
O rompedor de todo elo,
O cavaleiro de Altaforte!

Havendo paz, eu me rebelo


Contra o covarde no castelo!
Emmanuel Santiago   •  167

Balada do capitão
Capitão, os negros estão roendo as cordas
do navio, estão esburacando a madeira,
emporcalhando tudo, suas correntes fazem
um barulho medonho, não deixam os homens
dormir, eles estão com medo de que os negros
escapem na calada da noite e cortem suas gargantas,
e rasguem as velas, e atirem seus cadáveres
ao mar, depois de violá-los, pois o chicote
não consegue mais intimidá-los, capitão,
esses negros estão ficando abusados,
capitão, estão com um brilho nos olhos
que parece coisa do Cão, cheios de ódio,
trincando os dentes, esses negros estão armando
alguma, capitão, são como ratos roendo o navio,
emporcalhando tudo com o ódio viscoso
que escorre deles, assustando os homens,
que não dormem há dias, agora estão cantando,
esses negros e suas bocarras cheias de dentes,
vamos moer os dentes deles na porrada, capitão,
vamos quebrar o que resta neles de gente, vamos
pisar na gente dentro deles até sobrar só o rato
assustado, vamos arrancar as unhas e furar
esses olhos do Cão, de onde o ódio escorre,
antes que esse ódio nos afogue a todos, capitão,
capitão, agora é tarde, os negros escaparam
e estão matando nossos homens, enforcando
cada um no mastro, eles estão rindo, mas não
tem alegria nenhuma: ódio só, um ódio salobro
como espuma do mar, eles estão matando os oficiais
à paulada, estão vindo para cá, o navio pegando
fogo, muita fumaça, foge, capitão, agora
o capitão despedaçado, estão me esfolando
vivo, o navio naufragando em tanto sangue.
C O N TO

Ladrão roubado

Angelo Davila
Escritor, jornalista e professor

J
oaquim entrou no boteco e acenou por contado e recontado, do serviço duro na
uma pinga. Nem falou, acenou ape- roça, amargado no cabo do guatambu.
nas, tão fechado ele estava. Olhou o Cada tostão uma gota de suor, costumava
povo de fora e não enxergou ninguém, que dizer para servir de exemplo aos filhos.
havia muitos conhecidos e não os saudou. Bebeu a dose. Se fez careta, foi instinti-
Sentou-se pesadamente no tamborete, os va, dada a acidez da pinga.
cotovelos na mesa e a cara entre as mãos. Joaquim concentrado, pensando como
O vendeiro logo acorreu com a dose, a chegaria em casa. A voz de João, o filho
garrafa na mão, serviu-o na mesa. Olhou, mais velho, ainda escutava lhe dizendo, lhe
analisou o Joaquim, esperou a reação dele, advertindo, lhe abrindo os olhos:
ficou perto por instantes, nada. – Óia, pai! Goiás não presta. Lá tudo
Joaquim nem se mexeu – não deu o ar é no pinguelo. Tem muito ladrão, muito
da graça. Então botou a pinga no copo, aventureiro... gente que foge daqui mes-
exclamou: mo, criminoso de toda a parte do mundo.
– Uai, homem! Ocê não tinha ido para O senhor mesmo já cansou de avisar pra
Goiás?!... gente, pra gente tomar cuidado, saber dis-
Joaquim talvez nem tivesse escutado. so. Vamo’ ficar por cá mesmo, pai! Vamo’
Tinha ido sim, respondeu mentalmente. E ponhar este dinheiro a juro com o Sô Inhô.
agora como justificaria sua volta tão já, se Sô Inhô é homem bom, homem honesto, o
não fazia mais do que algumas horas que que é dele, é dele; mas o que não é, não é.
dali mesmo despedira-se de todo o mundo, E isso, pai, até se vê o que pode aparecer por
naquele boteco, onde era muito conheci- aí. Esperar oportunidade, mais dias, menos
do. Propalara aos quatro ventos que estava dias, surge aí coisa no jeito, gente que tem
indo para Goiás comprar gado, que leva- precisão de vender, vende barato. Toda essa
va no bolso um pacotão de dinheiro, sua vida, a gente tem se dado muito bem com o
economia de toda uma vida de trabalho e Sô Inhô. Vamo’ ponhar este dinheiro a juro
segurança, tostão por tostão guardado, com ele, pai! É muito mais melhor.
170  •  Angelo Davila

Não escutara o conselho do filho. Agora tiraria a metade do leite, o pojão ficava para
fora roubado, voltava limpo feito buraco de os bezerros. Sô Inhô lhe arranjaria o pasto,
tatu, sem vintém tal como começara a vida o homem tinha invernada que não acaba-
há quarenta anos atrás. Lembrava-se bem va mais, tudo colossa, de terra massapé
quando pusera no bolso sua primeira diária preta e jaraguá bem-formado, pastama de
ganha com o suor do rosto, tinha doze anos primeira perdendo de vista. Gado seria até
de idade e já desenvolvia trabalho de ho- bom para cortar o capim e não endurecer o
mem, saía no eito junto com o pai puxando provisório.
sua enxada de duas libras, novinha, estreia- Em Goiás havia muita falta de dinheiro.
da naquela época, trazida pelo patrão. Lá se compraria gado pelas metades. Con-
Com que cara chegaria em casa? Como tava mentalmente as notas de quinhentos
iria se mostrar diante dos filhos, da mulher e trocava cada uma por uma vaca parida.
que ajudara toda aquela luta? Melhor se o Marruás não precisaria comprar, Sô Inhô
ladrão o tivesse morto lá no matinho onde emprestava, tinha de sobra, era só escolher
fora assaltado, que assim não precisaria na garrotada antes da castração.
explicar nada, explicar o quê? ... como iria Até os nomes das vacas Joaquim já es-
entrar no assunto? Aquilo era coisa de uma colhera. Uma boa-de-leite se chamaria Ga-
vida. O dinheiro na verdade lhe pertencia, meleira, tufa na cuia, leite que ia encher
ninguém podia negar esse fato, era seu, uma gamela. Teria que conseguir uma vaca
podia fazer dele o que quisesse. A econo- trouxada, dava sorte a todo fazendeiro que
mia do sacrifício era sua, um direito líquido tinha uma vaca dessas no curral, era o que
e certo que ninguém lhe tiraria. Mas acima diziam. Outra pintadona mestiça de gir, de
de tudo, Joaquim queria mais bem era mes- muitas cores, manchetada de roxo, se cha-
mo aos filhos, à família, do que o resto do maria Borboleta, e seria do Joaquinzinho, o
mundo. Via isso, sentia isso agora bem no caçula, dali ele formaria o seu gado – era
fundo... e sabia como todos iam sofrer. doido com vaca pintada.
– Tenho dez e não há nenhum sobran- Mas que diabo!... estava tudo tão fá-
do! – dizia com ênfase em suas conversas, cil!... o azar fora falar demais. Tinha sempre
quando entrava assunto de filho, lembrava, essa mania, de contar as coisas, até mesmo
e sentiu orgulho de si mesmo porque assim seus assuntos particulares como dissera, em
dizia – orgulho como um consolo que nem conversa com o bandido antes do assalto.
chegara a clarear de lampejo aquela sua “Boca fechada não entra mosquito” –
fossa, sua noite escura de ideias. era o ensinamento do seu falecido pai, do
Também se fora para Goiás, ora, toda a seu avô, do bisavô, tataravô... mas qual!
vida desejou criar um gadinho para se ter seguira o exemplo? Fez foi o contrário, fez
na hora um leite com fartura, um soro pra foi contar a Deus e a todo o mundo que
leitoada, uns queijinhos até para vender, e estava levando dinheiro, e lá mesmo no
uns merendeiros para o gasto. A bezerra- balcão mostrara o pacotão amarrado com
dinha de pelo liso esparramada no campo, barbante, ali cheio de gente, e ainda saíra
lumienta, bem-nutrida, porque cuia não, esparramando para todo o arraial de São
não teria coragem de cuiar a bicharada. Só Simão... como fora bobo!
Ladrão ro u b a d o   •  171

Nem pensara que aquilo ali não era mais esparramasse, assim sentia-se até reanima-
o ambiente de antigamente, estava agora do, já disposto a cortar a pé as duas léguas e
infestado de gente estranha com a serviça- chegar logo em casa, dizer tudo, desabafar.
ma da Usina nova. Gente de toda laia que Seu cavalo estava amarrado de fora de-
por ali aparecia, ladrões, assassinos, fugiti- baixo da sucupira, com certeza já sofren-
vos de toda parte, que o serviço era muito do de sede, exposto ao sol que virara com
e aceitava-se qualquer um, nem se cogitava tempo bastante já passado no interior do
de documento. A polícia nunca que dava boteco. Não pensava nele, pensava na bes-
batida para não atrapalhar, começou a Usi- ta do ladrão, na saída – outra margem do
na, a captura sumiu... rio, com certeza a roubara também, isso na
Aventureiros dos quatro cantos do Brasil certa, pertencia a um conhecido seu. Como
misturavam-se naquele movimentão. Todos fora ingênuo, não desconfiara de nada.
que chegavam, serviam. Não se cogitava Seria bem recebido em casa? – tinha
saber informação de ninguém, queriam era suas dúvidas. Era seu medo. Seria perdo-
gente para trabalhar, apressar a obra. Oh! ado? Ficariam do seu lado? Ou o recrimi-
como fora burro! Hoje aquilo ali, sua terra, nariam? Ou dariam graças a Deus por ter
mais era um covil de foragidos, isso mesmo, se safado com vida? – queria acreditar que
refugiados sob a escravidão do dinheiro, e sim. Naturalmente que levariam algum tem-
muito agradecia a Deus por não estar com po para esquecer o prejuízo e recomeçar de
a boca cheia de formiga uma hora dessa lá novo os antigos hábitos. Ah, sim! – Joaquim
no mato onde fora roubado. suspirou. – Aquilo que era vida! – inclusive
– Mais uma pinga? – era o vendeiro ele que precisava por sua vez, mais do que
puxando conversa. Perguntava e enchia todos, de ser consolado, era o que pensava
maquinalmente o copo, mesmo porque em consolar.
Joaquim nada dizia, ia só virando a péssima E se lhe perdessem o respeito? – os fi-
bebida. E gente chegando, fazendo roda, lhos. Ah, isso nunca! Jamais se tornaria um
notícia cismando, outra dose, mais outra, traste, jamais! – desviava o pensamento.
outra mais... ia virando de um trago e bo- Seus filhos não fariam tal, Mariazinha até
tava a cabeça de novo entre as mãos. Os tinha leitura, escutava novela no rádio e en-
lábios caídos parecendo beiços de porco, tendia toda aquela conversação difícil... ela
tonto já, que aquilo ali só poderia ser bei- ia todas as noites lá pra casa do Sô Inhô,
ços, assim lumientos, túmidos, sorvetentes. gostava de novelas. Joaquinzinho também,
Às vezes algo lhe vinha à mente, de a irmã estava ensinando leitura para ele, era
como iria pagar aquelas pingas se nos bolsos muito obediente.
não tinha vintém, de como contaria o caso Joaquim quis se levantar do tamborete,
para pedir a prazo... fiado pra pinga, isso fez menção, os filhos, a força da recordação
nunca!... jamais teria coragem de tal pro- o animava, mas se lembrou que não tinha
ceder. Ainda se fosse um pertence, coisa de dinheiro para pagar as doses – voltou, dei-
necessidade, alimentação etc., vá lá, pedia. xou-se cair novamente no assento, acomo-
Não, não contaria o caso. Falaria pri- dou-se e virou com mais sofreguidão outra
meiro em casa, depois que a estória se talagada. Todos o olhavam, espreitavam-no,
172  •  Angelo Davila

seu abafamento não encorajava ninguém a O que lhe aconteceu... porém assim
indagá-lo de mais coisa, mesmo o vendeiro com o álcool na cabeça, já tudo lhe parecia
não lhe fizera mais perguntas. Aquilo ultra- natural. Ora-ora! simplesmente fora rouba-
passava o limite de todos os amigos, ditos do, e daí? – essa era boa, o dinheiro não
amigos, as amizades muitas falsas, não era de ninguém, dele mesmo. Tanta gente
queria saber, havia perdido o interesse por não era roubada? Não fora o primeiro nem
qualquer conversa. seria o último.
Por isso continuaria bebendo enquanto Mas será que o chamariam de covarde?
houvesse gente espreitando, gente curiosa – sim, de fato era franzino, nunca covarde
que depois ia gozar o seu fracasso. Sabia que ou moloide, nem se considerava velho, usa-
se contasse o fato, sairiam dali locupletados do – dizia. Enquanto existisse pinga e lida, o
de achar bom, embora por fora no semblan- reumatismo não lhe pegaria as juntas como
te fingissem sentimentos. O mundo era as- fizera com o Manuelzinho que deixara de
sim – o povo, ninguém mudaria o povo. trabalhar e de beber, pronto – ficara entre-
Ia era servir de mofa e fofocas, de co- vado. Com ele não – isso não ia acontecer.
mentários maldosos, chamado de covarde, A pinga desembuchava as cordas do corpo
moloide por não ter resistido o bandido. e desemperreava o sangue nas veias. Serviço
Até o Larindo, poeta cantador, botaria seu era exercício, saúde, era-lhe a própria vida.
nome em cantiga de esculacho. Era mestre O que lhe aconteceu... tornou a lucu-
para fazer isso, fazia com gente que morria brar-se, pois que ainda lhe parecia escutar a
afogado no rio. voz do bandido, agora até mais sonante e
Aquela espiação era para saber novida- natural com os efeitos encorajadores do ál-
des. Os que sabiam de sua ida para Goiás cool. Parecia-lhe coisa de brincadeira, crian-
e agora seu estranho regresso, ali se plan- ça se fingindo de assaltante, não acreditava,
tavam querendo o segredo, o vendeiro de nunca fizera mal a ninguém, aquela ordem
novo com outros toques olhando ao mes- do homem, o homem dizendo...
mo tempo de banda para os presentes, de Tinham saído juntos de viagem desde a
maneira a querer arrancar a verdade sobre barranca do rio, encontraram lá. O bandido
a volta tão brusca do Joaquim, e este seu simulando camaradagem, companheirismo,
fechamento cada vez maior. – Pode ser até falava subserviente senhor pra cá, senhor
um caso de polícia – dizia, como se ali hou- pra lá, dizia que ia perto, muito sujo desa-
vesse polícia para resolver a situação... linhado, calça rasgada, chapéu cabanado,
– Mais uma dose, Joaquim? Fala, Joa- camisa nova – só a camisa, e bem montado,
quim, fala homem! A gente tá aqui pra te mula esperta, boa de sela, arreata firme.
ajudar... – Mal pergunta, esta mula não é a do
O vendeiro oferecia os préstimos, mas comprade Tiadora?
pinga não precisava oferecer, era só ir derra- O desgraçado aproveitou a deixa:
mando no copo e o Joaquim virava. – É, tou fazendo um mandado pra ele.
– O que te aconteceu, homem? Engoliu Vou de trabanda, na dobrada do morro.
a língua? Fala!... às vezes a gente pode te – Ah! lá mora um cunhado do com-
ajudar deveras... padre...
Ladrão ro u b a d o   •  173

Estava tudo dando certo para o bandido: – Passa cá o dinheiro! Me dá tudinho,


– É, vou lá... ou leva duas balas na cara. Pode escolher.
E prosa vai, prosa vem, o homem en- Te deixo friinho agorinha mesmo aqui no
trava com conversa palpadeira querendo chão, mode as formigas te comer. Tá que-
confirmação do dinheiro, informando onde rendo ver, demora apear deste cavalo.
tinha gado barato, passando o tempo para Joaquim não queria ver, apeou.
se distanciarem do povoado. Tinha tudo – Dá cá ou morre.
premeditado... e Joaquim acabou por con- Passou-lhe o pacote de dinheiro. Foi lá
tar novamente toda a estória da sua econo- embaixo no bolso fundo da calça, assim fei-
mia tostão por tostão guardado, contado e to para conduzir o dinheiro, e veio trazendo
recontado, o tempo que gastara para ajun- devagarinho o volume das notas amarrado
tá-lo, e agora das suas pretensões, soltara a com barbante. O remorso lhe pesava mais
língua, até casos particulares de família con- do que o peso do próprio dinheiro. O ladrão
tou. O homem caladinho, humilde, aceitan- pegou rápido o pacotão, meteu-o no bolso,
do tudo bonzinho de escutar, apoiando, afastou-se e abaixou a garrucha.
louvando, admirando, só dizendo sim-sior, Nisso Joaquim reagiu, quis reagir, falou
sim-sior, sior Joaquim... alto, gritou ladrão sem vergonha, que ia dar
– O amigo, mal pergunta, é nordestino? parte, bandido dos diabos, etc, mas teve logo
... pois vai ganhar dinheiro aqui na Usina que calar os bofes. Outra vez a bocuda voltou
nova. Firma aqui, o amigo vai ficar bem de arregaçada bem no rumo dos seus olhos, e
vida... ele fugia para sair da mira ou tirar a cara, mas
Achava que o companheiro estava gos- qual, aqueles dois canos escuros acompanha-
tando muito da sua prosa, porque na do- vam seus movimentos com precisão.
brada, solícito esporeou a mula, correu para – Fala mais uma coisa só, seu besta! –
abrir uma tranqueira de arame. Apeou, havia ameaçou o bandido – fala? Eu quero escu-
um matinho, amarrou a mula, garrou nas ré- tar uma coisa só, repete! que te solto um
deas do cavalo do Joaquim, nem pôs a mão tiro bem dentro da boca e outro no ouvido
no esteio da tranqueira, o Joaquim escutou: mode acabar de matar. Não me custa na-
– Vamo’pear, seu Joaquim, ligeiro! – o dinha, fala?... quero ouvir, tou esperando
homem dizia em tom de ordem. Joaquim mode puxar o pinguelo.
não entendera bem a situação. Insistiu de Joaquim não falou, nem boquejou, e se
novo: o homem não relou o dedo, era porque fu-
– Vamo’ entrar pro mato, seu Joaquim, gia do ponto, pensava agora.
ligeiro e já! Tomou o bandido:
Puxou seu cavalo pelas rédeas, obede- – E muito mais melhor eu te esfriar aqui
ceu, entrou. Joaquim porém só compreen- agora, que depois você sair batendo boca
deu o que estava acontecendo, quando viu por aí. Te mato, caboclo, à toa, à toa...
a bocuda de dois-canos apontada para ele, Daí passou a mão no cabresto da mula,
com os dois pinguelos arregaçados para ia montá-la, refletiu e voltou:
trás como duas presas de cobra venenosa. – Sabe de uma coisa. Vira a cacunda pra
Acrescentou o bandido: lá, anda ligeiro, bota as mãos na cabeça.
174  •  Angelo Davila

Deu-lhe a ordem e mostrou a garrucha a calça... foi quando Joaquim se recordou


ainda mais perto. Era uma bruta quarenta e e sentiu a mais terrível humilhação de sua
quatro, cano longo. vida, a de ter de chegar em casa daquele
Tais recordações surgiam, cresciam, de- jeito, e de ali, a de ser pixado de homem
pois diminuíam e se perdiam entre o vozerio que não honrava as suas calças, isso La-
do boteco. Joaquim deixava escapar o fio rindo botaria nos seus versos... isso sentiu
da memória e se mergulhava na confusão apesar do adiantado estado de embriaguez
alcoólica do pensamento. Desapareciam em que se achava... e mais os filhos? – o
as recordações, e só aos poucos as ideias que iriam pensar dele? Iriam tê-lo como um
vinham se reorganizando, reconstituindo o covarde? ... e fora naquela hora em que o
fato desde o começo. O que lhe aconteceu? bandido ia montar na mula, não montou:
... indagavam os presentes, aventavam hi- – Passa cá sua calça nova, ligeiro! Tou
póteses, seria bom chamar o delegado? – precisando de uma.
Será que o Joaquim ficou fraco, uai! – seria De fato era novinha de brim cáqui du-
bom chamar o farmacêutico? – Ainda há rável, confeccionada especialmente para a
pouco esse homem estava bom e saiu da- viagem.
qui para comprar gado em Goiás, atraves- – Toma a minha pra não passar descom-
sou a ponte do rio, tinham visto... será que postura em família!
o animal jogou ele no chão, mas o cavalo tá Jogou-lhe o trapo. Deu uma gargalha-
aí fora amarrado!... olha a calça dele, suja, da, montou na mula e dobrou a galope.
toda rasgada, grandona, nem parece dele, Vestiu depressa a calça jogada pelo ban-
cabe dois Joaquins dentro... tá esquisito dido, afobado querendo arreparar a fuga
esse homem, não responde a ninguém... dele, na esperança de que a mula desse um
Aí que a ideia lhe reorganizou mais cla- refugão e jogasse o miserável no chão com
ra. Lembrou-se que a calça não era sua. a cabeça quebrada, que assim nem precisa-
Contaria como isso acontecera? – iriam rir ria matá-lo.
dele, não contaria. Aquela gente ali queren- Nada acontecera. A danada picou o
do alguma coisa sua, um infortúnio, uma chão, virou nos pés atendendo as esporas,
desgraça. Gente má! – se pudesse vingaria banou o rabo, sibilou-o no ar nervosamen-
todo o mundo. Mas e o bandido? – aquele te, e rompeu a galope parecendo compac-
seria o primeiro, os outros não tinham nada tuar-se com o roubo.
com o caso. Afinal era mesmo o ladrão, só Calça... calça... Joaquim teve raiva da
ele a causa de toda aquela situação vexató- desgraçada. Era por isso que se chamava
ria, humilhante. mula, besta etc., porque era isso mesmo –
Ah, maldito! Cachorro dos Infernos! – uma burra. Teve raiva da falta de inteligên-
tomara que Deus cuidasse dele direitinho cia dos animais, e por fim se lembrou do
para entregá-lo bem vivo ao diabo. Desejou resto como as coisas se passaram, reviu-se
um diabo enorme, perverso, capaz de toda na cena do roubo, tirou conclusões, então
maldade inimaginável neste mundo. Olhas- que enfiou devagarzinho a mão no bolso
se o que mais lhe fizera aquele desgraçado, – há muito aquele volume estava ali lhe in-
não bastaria o dinheiro, e agora também comodando, mas pensara que fosse lenço
Ladrão ro u b a d o   •  175

sujo do bandido, ou outro pertence qual- tomar fôlego, e sempre com a mão enfiada
quer dele, e nunca o que realmente era. no bolso, agora as duas mãos envolvendo
Puxou lentamente a pontinha do volume o pacote, uma por fora, outra por dentro.
que estava entre seus dedos, reconheceu Alguém aludiu:
primeiro os barbantes, depois a fímbria das – Ele tá com acesso de riso, isso é peri-
notas, tirou-o de vez para a fora, observou- goso. Joaquim endoidou...
-o com os dois olhos, teve certeza absoluta, Lágrimas lhe rolavam nas faces. Dobra-
viu que era o seu dinheiro... e assim, com a va mais e mais a gargalhada, tanto, tanto,
pinga na cabeça e aquela gente ali asfixan- e não respirava, gargalhando sempre. Aliás;
do, Joaquim começou a rir. Um riso manso já nesse ponto começou a perder as forças,
a princípio para dentro de si, para ele mes- diminuía o riso, e foi parando de rir assim por
mo, seu sofrimento, sua própria alma... mas meio de engasgos entrecortados, a cabeça se
depois o riso foi se avolumando, saiu para debruçando sobre a mesa, a mão ainda en-
fora, tornou-se em gargalhada feroz, louca, fiada no bolso, os peitos arquejantes, foi pa-
espumante e gradativamente maior, sem rando, diminuindo, diminuindo até o silêncio.
O guarda-freios

Juan José Arreola


Escritor

O
forasteiro chegou quase sem fôle- – Mas eu não quero pousada, quero é
go à estação deserta. A mala enor- tomar o trem.
me, que ninguém quis carregar, o – Alugue um quarto rapidamente – se
deixara extremamente fatigado. Enxugou o é que ainda há algum vazio. Vá por mim.
rosto com um lenço, e, com a mão em vi- No caso de que possa consegui-lo, alugue-o
seira, observou os trilhos que se perdiam no por mês. Sairá mais barato e receberá maior
horizonte. Desalentado e pensativo, consul- atenção.
tou o relógio. Era a hora exata em que o – Você está louco? Eu preciso chegar a
trem devia partir. T. amanhã mesmo.
Alguém, saído não se sabe de onde, lhe – Francamente, eu deveria abandoná-lo
deu uma palmada muito suave. Ao virar-se, à sua sorte. Contudo, vou lhe dar algumas
o forasteiro se viu diante de um velhinho informações.
com vago aspecto de ferroviário. Levava na – Faça o favor.
mão uma lanterna vermelha, mas tão pe- – Este país é famoso por suas ferrovias,
quena que mais parecia um brinquedo. como bem o sabe. Até agora não tem sido
Observou sorridente o viajante, e este, possível organizá-las devidamente, mas
ansioso, lhe perguntou: tem-se feito grandes coisas no setor de pu-
– Me perdoe, o trem já saiu? blicação de itinerários, e na expedição de
– O senhor está há pouco tempo neste boletins informativos. Os guias ferroviários
país? compreendem e interligam todos os po-
– Necessito partir imediatamente. Devo voados da nação; expedem-se boletins até
estar em T. amanhã mesmo. para as menores e mais remotas aldeias.
– Vê-se logo que ignora completamente Falta somente que os comboios cumpram
o que ocorre. O que deve fazer, e já, é pro- as indicações contidas nos guias e que efe-
curar alojamento na pensão para viajantes – tivamente passem pelas estações. Os habi-
e apontou para o estranho edifício cinzento tantes do país assim o esperam; enquanto
que mais parecia um presídio. isto, aceitam as irregularidades do serviço, e
Tradução de Salim Miguel.
178  •  Juan José Arreola

o patriotismo os impede de qualquer mani- capital em passagens de ida e volta para um


festação de desagrado. trajeto ferroviário cujo plano, que inclui ex-
– Mas existe um trem que passa por esta tensos túneis e pontes, nem sequer foi ain-
cidade? da aprovado pelos engenheiros da empresa.
– Afirmá-lo, equivaleria a cometer uma – Mas o trem que passa por T. já se en-
inexatidão. Mas como o senhor pode obser- contra em serviço?
var, os trilhos existem, ainda que um tanto – Não só esse. Em verdade, existem
avariados. Em algumas povoações eles es- muitíssimos trens na nação, e os viajantes
tão simplesmente indicados no solo, através podem utilizá-los com relativa frequência,
de riscos de giz. Dadas as condições atuais, porém tomando em conta que não se trata
nenhum trem tem a obrigação de passar de um serviço formal e definitivo. Em outras
por aqui, mas nada impede que isto pos- palavras, ao subir ao trem, ninguém espera
sa acontecer. Eu tenho visto passar muitos ser conduzido ao local que deseja.
trens em minha vida e até conheci alguns – O quê?
passageiros que puderam tomá-los. Se es- – Em seu afã de servir aos cidadãos, a
perar pacientemente, talvez eu mesmo te- empresa se vê na obrigação de tomar me-
nha a honra de ajudá-lo a subir para um didas desesperadas. Faz circular trens por
formoso e confortável vagão. lugares intransitáveis. Estes comboios pio-
– E esse trem me levará até T.? neiros gastam às vezes anos em seu trajeto,
– E por que se empenha em que há de e a vida dos viajantes passa por algumas
ser precisamente a T.? Deveria se dar por transformações importantes. Em tais casos,
satisfeito se pudesse tomá-lo. Uma vez no não são raras as mortes, mas a empresa,
trem, sua vida tomará efetivamente algum que tudo prevê, adiciona a esses trens um
rumo. Que importância tem se este rumo vagão com câmara ardente e outro vagão
não for o de T.? cemitério. É motivo de orgulho para os con-
– É que eu tenho bilhete em ordem para dutores depositar o cadáver de um viajante
ir a T. Logicamente, devo ser conduzido a – luxuosamente embalsamado – no ponto
este lugar, não é! de estação que está inscrito no bilhete. Em
– Qualquer um diria que tem razão. muitas ocasiões, estes trens forçados per-
Na bodega para viajantes o senhor poderá correm trechos em que falta um dos trilhos.
conversar com pessoas que tomaram pre- Todo um lado dos vagões estremece violen-
cauções, adquirindo grande quantidade de tamente com os golpes que dão as rodas
passagens. Como regra geral, pessoas pre- sobre os dormentes. Os viajantes com bilhe-
videntes compram passagens para todos os te de primeira – é outra sábia medida da
pontos do país. Existe quem já tenha gasto empresa – se colocam do lado em que há
em bilhetes verdadeiras fortunas... trilho. Os de segunda, padecem os golpes
– Eu acreditei que para ir a T. me bastava com resignação. Mas há outros trechos em
um. Veja bem... que, de ambos os lados, faltam trilhos. Ali,
– O próximo trecho de ferrovia nacional os viajantes sofrem igualmente, até que o
vai ser construído com o dinheiro de uma trem acaba totalmente destruído.
só pessoa que acaba de gastar um imenso – Santo Deus!
O g ua r da - f r e i os   •  179

– Veja o senhor! a aldeia de F. nasceu – Mas eu devo chegar a T. amanhã


por causa de um destes acidentes. O trem mesmo!
foi dar num terreno impraticável. Lixadas – Muito bem! Me agrada que o senhor
pela areia, as rodas foram sendo comidas não abandone seu projeto. Vê-se logo que é
até os eixos. Os viajantes passaram tanto um homem de convicções. Acomode-se na
tempo juntos que, das contínuas conversa- bodega e tome o primeiro trem que passar.
ções triviais surgiram íntimas amizades. Al- Trate de fazê-lo logo; mil pessoas tentarão
gumas destas amizades se transformaram impedi-lo. Ao chegar um comboio, os pas-
em idílio, e o resultado foi F., uma aldeia sageiros, exasperados por uma espera inter-
progressista repleta de crianças travessas minável, saem da bodega em tumulto para
que brincam com os vestígios do que foi invadir ruidosamente a estação. Frequente-
um trem. mente provocam acidentes com sua incrível
– Deus meu, eu não fui feito para tais falta de cortesia e prudência. Em lugar de
aventuras! subirem ordenadamente, se põem a empur-
– Mas necessita ir se preparando; talvez rar uns aos outros, quando não, impedem-se
chegue a se converter num herói. Não pen- mutuamente a aproximação e o trem acaba
se que vão faltar oportunidades para que indo, deixando-os amontoados nas escadas
os viajantes demonstrem seu valor e sua ca- da estação. Esgotados e furiosos, os viajan-
pacidade de sacrifício. Numa certa ocasião, tes maldizem a falta de educação e passam
duzentos passageiros anônimos escreveram o resto do tempo se insultando e golpeando.
uma das páginas mais gloriosas de nossos – E a polícia não intervém?
anais ferroviários. Aconteceu que numa – Tentou-se organizar uma força policial
viagem de teste, o maquinista percebeu em cada estação, mas a chegada impre-
a tempo uma grave omissão dos constru- visível dos trens tornou tal serviço inútil e
tores da rede. Na rota faltava uma ponte extremamente oneroso. Além do mais, os
exatamente sobre um abismo. Pois bem, o membros desse corpo policial demonstra-
maquinista, em lugar de colocar marcha a ram, logo, sua venalidade, dedicando-se a
ré convocou os passageiros e obteve deles proteger a saída exclusiva dos passageiros
o esforço necessário para seguir adiante. endinheirados que lhes davam, em troca
Sob a sua enérgica orientação, o trem foi desse serviço, tudo o que tinham. Resolveu-
desmontado peça por peça e carregado nos -se, então, pelo estabelecimento de um tipo
ombros dos passageiros para o outro lado especial de escola, onde os futuros viajan-
do abismo, que, além do mais, lhes reser- tes recebessem lições de urbanidade e um
vava a desagradável surpresa de ter bem treinamento adequado, que os capacitaria
no fundo um rio caudaloso. O resultado da a passar suas vidas nos trens, ou a esperá-
façanha foi tão satisfatório que a empresa -los. Ali se lhes ensina a maneira correta de
renunciou definitivamente à construção da tomar um comboio, ainda que em movi-
ponte, conformando-se em conceder um mento e em grande velocidade. Também se
atraente desconto nas tarifas dos passagei- lhes proporciona uma espécie de armadura
ros que se atrevessem a afrontar este trans- para evitar que os demais passageiros lhes
torno adicional. arrebentem as costelas.
180  •  Juan José Arreola

– Mas, uma vez no trem, estamos a sal- desiludi-lo com suas histórias de viagens, e
vo de novas dificuldades? até poderia se dar o caso de o denunciarem.
– Relativamente. Só lhe recomendo que – Que está me dizendo?
observe muito bem as estações. Pode se dar – Em virtude do estado atual das coisas,
o caso de que o senhor creia haver chegado os trens viajam cheios de espiões. Tais espi-
a T., e ser apenas uma ilusão. Para ordenar ões, voluntários na sua maior parte, dedicam
a vida a bordo dos vagões demasiadamente suas vidas a fomentar o espírito construtivo
repletos, a empresa se vê obrigada a lançar da empresa. Às vezes a gente não presta
mão de alguns artifícios. Existem estações atenção no que diz, ou fala somente por
que são pura aparência; são construídas em falar, sem segunda intenção. Mas eles logo
plena selva e levam o nome de alguma ci- se dão conta de todos os sentidos que uma
dade importante. Mas basta um pouquinho frase pode conter, por mais simples que seja.
de atenção para se descobrir a burla. São Do comentário mais inocente podem extrair
como os cenários de teatro, e as pessoas uma opinião culposa. Se o senhor chega a
que participam delas sabem que é um jogo. cometer a menor imprudência, pode ser cha-
Os bonecos revelam facilmente os estragos mado às falas; passará o resto de sua vida
da intempérie, porém às vezes são uma em um vagão cárcere, no caso de que não o
imagem perfeita da realidade; demonstram obriguem a descer numa falsa estação perdi-
no rosto os sinais de um cansaço infinito. da na selva. Viaje confiante, consuma a me-
– Por sorte, T. não se encontra muito nor quantidade possível de alimentos e não
longe daqui. ponha os pés em terra antes que veja em T.
– Mas, no momento, não dispomos de alguma cara conhecida.
trens diretos. Contudo, bem se pode dar – Mas eu não conheço pessoa alguma
o caso de chegar a T. amanhã mesmo, tal em T.
como deseja. A organização das ferrovias, – Neste caso, redobre de precauções.
ainda que deficiente, não exclui a possibili- Terá, asseguro-lhe, muitas tentações pelo
dade de uma viagem sem escalas. Veja, há caminho. Se olha pelas janelas, está expos-
pessoas que nem sequer percebem o que to a cair no engano dos espelhos. As janelas
se passa. Compram um bilhete para ir a T. estão providas de um engenhoso dispositivo
Passa um trem, sobem, e no dia seguinte que cria toda classe de ilusões no ânimo dos
ouvem o condutor anunciar: “Chegamos passageiros. Nem é preciso ser-se fraco para
a T.” Sem tomar qualquer precaução, os cair nelas. Certos aparelhos, manipulados
viajantes descem e se encontram efetiva- desde a locomotiva, fazem crer, pelo ruído
mente em T. e os movimentos, que o trem se encontra
– Eu poderia fazer alguma coisa para em marcha. Contudo, o trem permanece
chegar a este resultado? parado semanas inteiras, enquanto os via-
– Claro que pode. O que não se sabe é jantes veem passar encantadoras paisagens
se lhe servirá de algo. De todas as maneiras, através das vidraças.
tente. Suba ao primeiro trem com a ideia – E isto que finalidade tem?
fixa de que vai chegar a T. Não converse – Tudo isto a empresa faz com o são pro-
com nenhum dos passageiros. Poderiam pósito de diminuir a ansiedade dos viajantes
O g ua r da - f r e i os   •  181

e de anular por completo a possível sensa- fazem em lugares adequados, muito longe
ção de mudança. Deseja-se que um dia se de toda a civilização e com riquezas naturais
entreguem plenamente ao azar, nas mãos suficientes. Ali se abandonam lotes seletos
de uma empresa onipotente e que já pouco de gente jovem, e acima de tudo com far-
lhes importe saber para onde vão, nem de tura de mulheres. Não lhe agradaria acabar
onde estão vindo. seus dias num destes lugares pitorescos e
– E você, tem viajado muito nos trens? desconhecidos, na companhia de uma jo-
– Eu, senhor, sou apenas um guarda- vem mulherzinha?
-freios jubilado, e só apareço aqui de vez O velhinho fez uma careta e se calou ob-
em quando para recordar os bons tempos. servando o viajante com picardia, sorrindo
Nunca viajei, nem tenho vontade de fazê-lo. e transpirando bondade. Neste exato mo-
Porém os viajantes me contam histórias. Sei mento ouviu-se um silvo longínquo. O guar-
que os trens possibilitaram a criação de mui- da-freios deu um pulo, inquieto, e começou
tas povoações, além da de F., cuja origem lhe a fazer sinais ridículos e desordenados com
expliquei. Ocorre às vezes que os emprega- sua lanterna.
dos de um trem recebem ordens misterio- – É o trem? – perguntou o forasteiro.
sas. Convidam os passageiros a descer dos O ancião pôs-se a correr pela estrada,
vagões, geralmente sob o pretexto de que desabaladamente. Quando se encontrava a
devem admirar as belezas de um determina- uma certa distância, voltou-se e gritou:
do lugar. Se lhes fala de grutas, de cataratas – O senhor tem sorte! Amanhã chegará
ou de ruínas célebres: “Quinze minutos para à sua famosa estação. Como disse que se
que vocês admirem a gruta tal ou qual” – chama?
diz o amável condutor. Uma vez descidos os – X – retrucou o viajante.
passageiros, e que se encontrem a uma certa Nesse momento o velhinho se dissolveu
distância, o trem dispara a todo vapor. na manhã clara. Mas o ponto vermelho de
– E os viajantes? sua lanterna continuou correndo e saltando
– Vagueiam desconcertados de um sí- por entre os trilhos, imprudentemente, ao
tio para outro durante algum tempo, aca- encontro do trem.
bando por congregar-se, e se estabelecem Vinda do fundo da paisagem, a locomo-
em colônia. Estas paradas intempestivas se tiva se aproximava ruidosamente.
O preso

Lewis Nkosi
Escritor e jornalista

C
omo os seus carcereiros, todos os George costumava dizer aos estadistas de
presos são basicamente iguais. Não visita, era a ‘mais dolorosa de todas as ci-
importa a cor da pele. Quando catrizes’. Mas mesmo assim, eu sentia um
lhes falam, tendem a ganir ignobilmente; certo orgulho na sua voz ao dizer isto; apre-
há qualquer coisa no timbre das suas vo- ciava muito ter-me como seu preso. De cer-
zes que me perturba profundamente. Não to modo, estou convencido de que Geor-
é fácil saber o que é. Se me pedissem uma ge se teria sentido limitado sem um preso
definição, diria que se trata de uma mes- a quem pudesse beneficiar com o seu tipo
cla de surpresa ofendida, uma mistura de especial de bondade; por isso, quando ele
protesto e escusa, muito indigna de um ho- increpava o destino por tê-lo nomeado meu
mem. É como se o preso amasse e odias- senhor, eu sabia o que devia pensar a esse
se ao mesmo tempo o seu papel, como se respeito.
respeitasse e desprezasse a um tempo seu Nessa altura era alto, forte e bronzeado
carcereiro; no seu conjunto, surpreende-me como todos os sul-africanos ware. Eu costu-
que o destino pusesse um ser humano em mava pensar então que o George emanava
tal posição. uma força peculiar. Tinha, pelo menos, o ar
Olho, por exemplo, para o George – de um homem nascido para comandar. Os
esfarrapado, mal-lavado, mal-alimentado, seus gestos eram fáceis, a voz desdenho-
com a pele um pouco pálida pela falta de sa, e havia um brilho de troça no seu olhar
sol – e fico com vontade de chorar. No fim que era extremamente fascinante. Eu cos-
de contas, o George foi em tempos meu se- tumava esconder-me na cozinha a inventar
nhor e carcereiro, embora hoje ninguém o alguns dos melhores pratos e doces que ha-
dissesse. Um branco com o destino de doze via de fazer para o George, tão persuasiva
milhões de pretos a seu cargo, e desse nú- era a sua personalidade, tão fortes eram os
mero George teve a infelicidade de me ter seus gestos; era verdadeiramente um pra-
a mim como seu preso especial. Isso, como zer obedecer às suas ordens. Agora vê-se
Tradução de Manuel de Seabra.
184  •  Lewis Nkosi

só a casca vazia do que costumava ser um para ele, Mulela?” pergunta ela, chegando-
homem imbuído de um rígido espírito de -se muito a mim. É estranho, dormir ao lado
comando. Aqueles olhos azuis estão agora da mulher do George enquanto ele está
cor de poeira, as suas mãos e pernas estão deitado na cela coberto de trapos e piolhos,
definhadas de modo irreconhecível. Bem, é torcendo-se na agonia de um desejo não
o que o Destino faz aos homens de destino. realizado nos últimos doze anos. Às vezes,
Pois eu costumava pensar que George era dói-me o coração só de pensar nisso. Tem
um desses. havido ocasiões em que eu próprio acabo
Bem vejo que faz uma careta. Suponho por chorar. O sofrimento de outro ser hu-
que não acredita que o Destino tenha al- mano, quer seja branco, preto, ou amarelo,
guma coisa que ver com isto. Talvez não não é uma coisa muito agradável de ver,
acredite no Destino. Como queira, ninguém muito menos para uma pessoa que costu-
é obrigado a acreditar em nada. No entan- mava ser seu criado, seu escravo, seu preso.
to, às vezes pensamos: pode ser, mas, pela Mesmo a taça de mel de Francisca não che-
graça de Deus, porque a qualquer momen- ga para mitigar o meu sentimento de triste-
to os papéis podem trocar-se, não é difícil za. Digo-lhe que não chega (embora ajude)
dar consigo a ferros, sem pão, sem vinho e para deter a grande onda de piedade. No
sem o corpo de uma bela mulher. Como o entanto, não há necessidade de me sentir
George! superior, não há necessidade de ter pena
Devia ter visto a mulher do George de George; porque quem é capaz de ser
quando se casaram. Ainda hoje me faz fer- suficientemente valoroso para se levantar
ver o sangue vê-la entrar aqui. Meu Deus, aqui e declarar para toda a gente ouvir, que
que vaca de concurso. Aos quarenta, ainda não precisa de piedade? Sim, pergunto-lhe
é rija e roliça, com uma pele viva e cor-de- eu. Ninguém. Todos precisamos de pieda-
-rosa. Nu, o seu estômago é uma taça de de – mesmo a Francisca, quente, de pernas
ouro. Não me pergunte como é que eu sei suaves, uma autêntica vaca de concurso,
estas coisas. Eu posso ser preto, mas mu- precisa de salvação.
lheres são mulheres e elas gostam de ho- Sabe que atualmente se ama sem se sen-
mens fortes. Para ser sincero, no entanto, tir amado? Temos a experiência da Graça
às vezes tenho a sensação de que ela vem sem nos sentirmos salvos. Sentimos mes-
cá menos para ver o George do que para mo um júbilo ocasional mas não conhece-
me ver a mim. Temos um quarto nas trasei- mos a verdadeira felicidade. Temos toda a
ras com paredes nuas caiadas e cobertores carne de que necessitamos, mas ficamos
de malha. Posso falar-lhe das muitas noites sempre insatisfeitos e ansiamos por mais.
que a Francisca e eu passámos ali deitados, É algum espanto que a filha durma com
preocupados com a posição de George no o pai e a mãe com o filho? Na realidade,
mundo. acho que estamos numa prisão pior do que
Francisca, que tem uma voz como uma a do George. Em comparação, a prisão do
cana ao vento, acaba sempre por choramin- George é um pequeno céu. Com um cor-
gar: “Como pode o destino ser tão cruel po já murcho, o seu desejo sexual está em
O p r e so   •  185

vazante. Às vezes tenho a sensação de que, se deixa enganar por notícias injustificadas
para George, exausto como está pela sua nos jornais. Todos nós sabemos como são
angústia muito especial, um peito nu, sucu- os jornais – caixotes de lixo de boatos e es-
lento, já não constitui problema. Nenhum cândalos, com um amor insaciável pela tra-
lampejo incandescente de coxa lhe pertur- gédia e por tudo o que tenha um pouco
ba o sono ou lhe rebenta os diques do cor- de mau gosto. Lendo os jornais, chega-se
po à inundação da luxúria que sempre nos a pensar que aqueles que lá escrevem têm
ameaça com a ruína. uma moral tão depravada que basta uma
Vou contar-lhe uma coisa. Dantes pen- baforada de cu de mulher para ficarem em
sava que a África era o melhor lugar que êxtase!
havia para viver. Pensava que aqui se podia Seja como for, acho que lhe posso dizer
ficar simplesmente sentado ao sol, a comer francamente, que além dumas ocasionais
mangas e a comer uma mulher quando a chicotadas com uma correia de cabedal,
necessidade vinha – uma espécie de Jardim que são permitidas pelo Código Prisio-
do Éden, percebe? Mas isso já não chega.
nal, George nunca foi torturado. É certo
Agora, um corpo já não nos chega: o que
que uma ou duas vezes me vi obrigado a
nos interessa é o invólucro vistoso. Um ma-
colocar-lhe o polegar num parafuso, quan-
milo embrulhado em seda e apoiado por
do se esquecia de me tratar, como é de-
fios elásticos e gaze é mais excitante do que
vido, por ‘senhor’. Nada de grave, como
a mama suada e caída de uma vendedeira.
digo. Por outro lado, no mundo moderno
Do Cabo ao Cairo, de Madagascar a Mo-
aprendemos já a viver com estas coisas e a
çambique, fomos todos lixados, estamos
considerá-las necessárias. George deu uns
irremediavelmente depravados e desprovi-
gritos horríveis, mas ele sempre foi muito
dos de verdadeira plenitude espiritual. Por
covarde. Enquanto era o mandão e carce-
isso, eu pergunto: o que somos nós para
reiro, protegido por uma pele branca, não
termos pena de George, o preso? Embo-
ra eu seja agora seu carcereiro, sou tam- se notava. Acho que também é preciso
bém um preso de circunstância, enfureço- mencionar o fato de que, quando George
-me na cela do meu corpo, mas quem me mandava aqui, era uma loucura esquecer-
libertará? mo-nos de o tratar por ‘bwana,’ ‘baas,’ ou
Bem sei que deve estar impaciente por qualquer outra forma dessa aborrecida no-
vê-lo de perto. Quer examinar o seu esta- menclatura. Quando se tratava de formas
do físico com o pormenor que lhe é devido. de tratamento, qualquer senso de humor
Gosto disso. Também os Serviços de Saúde, que George possuísse abandonava-o to-
não é assim?, estão preocupados com ele, talmente. Dava muita importância a essas
com todos esses horríveis boatos de tortu- convenções sociais. Por isso, não podemos
ras e outras brutalidades de que é melhor deixá-lo passar, temos de insistir em que
não falar, embora eu deva dizer que estou observe as mesmas obrigações sociais.
espantado pelo fato de haver gente nesses Houve momentos em que senti necessi­
Serviços (pessoas com a sua educação) que dade de lhe aplicar choques elétricos para
186  •  Lewis Nkosi

o despertar do que parecia ser um lapso de 2


memória fatal.
Claro que coisas destas acontecem numa Ah, eu sabia! Claro que sabia que você
prisão, não posso negá-lo. Na realidade, se a acabaria por chegar aí. Que havia de querer
memória não me engana, uma coisa dessas, saber como é que George e eu trocamos
muito desagradável, ocorreu o Natal passa- os papéis. Uma questão interessante. Muito
do. A fim de comemorar o nascimento do interessante. Poderia escrever livros inteiros
seu Senhor e Salvador, tivemos de manter sobre esta questão. No entanto, julgo que
George bem fornecido de álcool, mas, para não é possível uma só resposta.
nosso espanto, ficou terrivelmente embria- Há gente que, muito simplesmente, jul-
gado; não tardou a transformar-se num ma- ga que tinha chegado o momento de uma
níaco delirante. Estava, pode dizer-se, nas mudança, o que me parece um argumento
garras de uma desagradável nostalgia pelos insustentável seja de que maneira for, pois
velhos tempos em que era mestre e senhor. não há fatos que apoiem tal conclusão.
Completamente fora de si de excitação, Outros acham que o êxito – riqueza, poder
andava de um lado para o outro gritando e prestígio – provoca uma erosão do espí-
rito. Sinto-me muito inclinado a não levar
e espumando da boca; tinha o corpo todo
em conta sentimentalismos absurdos como
molhado de suor, os olhos saíam-lhe horri-
este. De qualquer maneira, admitir uma coi-
velmente, e as pernas emocionadas batiam
sa destas seria confessar que visualizo um
como paus no chão. Nunca tinha visto uma
momento em que eu próprio deixarei de ser
coisa daquelas. Esquecera-se completa-
carcereiro – uma coisa que só posso consi-
mente da posição humilde a que nos últi-
derar uma especulação ociosa.
mos anos o Destino o reduzira: agitava um
No entanto, acho que as sementes da
chicote, dava ordens (embora numa voz
destruição de George estavam na sua pró-
de cana rachada) e, de uma maneira geral,
pria natureza, no próprio sistema que ele
comportando-se de um modo bastante de-
lutava para manter, nas próprias assunções
sagradável.
metafísicas que ele afirmava tão energica-
Como deve compreender, foi tudo de mente. O edifício tinha de ruir mais tarde
muito mau gosto. Eu próprio tive de agir ou mais cedo. Bem vê, no âmago da civili-
rapidamente para fazer o George lembrar- zação de George havia uma loucura bem-
-se de que a sua posição tinha mudado. -concebida.
Uns quantos choques elétricos chegaram Toda a gente sabe que nós, Africanos,
para lhe restaurar a memória. Além destes nunca criamos um sistema metafísico que
pormenores insignificantes, nunca foi mal- separasse a Matéria do Espírito. Por isso,
tratado. Na realidade, sinto um certo orgu- nunca acreditamos que o Corpo fosse in-
lho no fato de sempre ter tratado George ferior à Alma, nunca detestamos os cha-
com considerável brandura – especialmente mados ‘apetites sensuais’ como uma coisa
levando em conta o fato de que ele fora em indigna de ser cultivada, o que suponho
tempos meu carcereiro. ser a principal razão porque George e os
O p r e so   •  187

seus compatriotas se odeiam tanto – não, desejo subconsciente de ser preso e puni-
se desprezam. Estão sempre a elevar o Es- do. Era a sua maneira de se vingar da Car-
pírito ou o Intelecto acima do Corpo. Já ne a que não podia renunciar e que não
os viu dançar? A maior parte das danças podia crucificar. Essa, como pode ver, foi
deles são uma abstração dos movimentos a primeira vantagem que me deu sobre a
do corpo numa linguagem simbólica. Ah, sua pessoa.
Mozart, Wagner! Acho que o único cum- Poderá dizer que a armadilha que a Zázá
primento que posso fazer a este tipo de e eu lhe armamos foi muito bem concebida
música é dizer que é ‘sublime’. É criada por – mesmo brilhante – mas duvido. Foi tão
gente que está já a abandonar os seus cor- fácil como esmagar uma casca de ovo. Por
pos, que odeia o próprio cheiro tímido dos outro lado, a única outra vantagem que
seus orifícios. estarei disposto a reconhecer foi a opor-
Por exemplo, estou convencido de que o tunidade que o George e a sua gente me
George perdeu toda a vontade de governar, ofereceram de os conhecer tão bem. Todo o
de dirigir, até de ser senhor, logo que pôs sistema educativo que eles criaram destina-
os olhos na Zázá, uma miúda africana. No -se a ensinar-me mais sobre o George do
dia em que deu por si na cama de Zázá, nu que o George teria alguma vez possibili-
ao lado da sua nudez, não mais o sublime dade de aprender sobre mim. Não admira
senhor, mas já reduzido à condição de um nada, portanto, que eu acabasse por lhe
inválido necessitando do cuidado e do calor conhecer todos os pontos fracos. George
que só aquele corpo escuro e tempestuoso deixou de ser um livro fechado para mim,
parecia poder dar, tornou-se inconsolável passou a ser como um volume velho para
com uma dor falsa. Começou a desprezar- quem o folheou durante anos.
-se e a desprezar tudo o que lhe fora caro O George caiu, pois, como é costume
até então. Tornou-se extremamente insu- dizer, em sentido bíblico. Viu uma mulher
portável e cruel para a Francisca, a mulher; negra que ele desejou. Em vez de manter
começou a beber até ficar meio idiota; a necessária mas errada noção da sua raça,
tornou-se zaragateiro, dominador, e julgo de que era superior, sucumbiu ultrajante-
que procurava expor-se ao ridículo público mente à fraqueza da Carne. Isso foi a sua
como uma maneira de se penitenciar pelos queda.
seus pecados e punir a Carne que o desen- Poderá perguntar-me, onde é que eu
caminhara. entro nisto? Como é que eu vim a ser pre-
Só se esqueceu de uma coisa. Na Áfri- so de George foi muito simples. De fato, os
ca do Sul, as leis contra a miscigenação pormenores, tais como são, pareceriam de
racial são muito rígidas; perdoa-se tudo menor importância para muita gente. No
menos enfraquecer aquilo que a imagina- entanto, eu conheço-o bem: uma geração
ção popular concebe como a raça pura. criada e alimentada por Fatos. Essa, devo
Por isso posso apenas chegar à conclusão avisá-lo, era também a paixão de George.
de que a maneira como o George andava Fatos. Nem por isso me vejo menos obriga-
publicamente com a Zázá se devia ao seu do a fornecer-lhe os fatos do caso. No ano
188  •  Lewis Nkosi

em que fui trabalhar para o George, fora audacioso. Alguns amigos brancos, que sa-
preso por uma acusação de ‘vadiagem’. biam que eu era uma espécie de rato de bi-
Nessa época, em vez de penas de prisão, blioteca com um apetite gargantuesco por
costumavam contratar presos para casa de livros, (amigos esses, que usavam os seus
pessoas no campo como ‘trabalho prisio- cartões para me trazer livros da Biblioteca
nal barato’. Claro que era uma forma de de Joanesburgo ‘só para brancos’) achavam
escravatura com outro nome. Seja como estranho o fato de eu não ter meios de vida
for, em poucas palavras, foi assim que conhecidos. Ficavam geralmente deprimi-
eu vim a ter o George por meu senhor e dos pelo fato de eu ter frequentemente
guardião até ao repugnante momento da de fugir à Brigada de Controle, que muitas
mudança. vezes prendia africanos desempregados nas
Imagine-me como eu era então – uma ruas de Joanesburgo.
figura viva, libertina, cultivada, possuída por Normalmente, ficava à porta da cerveja-
uma mente feliz. Eu era o que no Depar- ria da rua Von Welligh à espera que apare-
tamento de Controle de Entradas é conhe- cesse algum amigo bem-empregado e me
cido como um ‘nativo sem residência fixa’. pagasse uma umqombothi. Ficava à espera
A esta descrição pouco apropriada, acres- escondido à porta, com os bolsos do casa-
centavam: que eu não tinha ‘meios de vida co de fora na esperança de os envergonhar
conhecidos’. com a minha indigência. À noite, costuma-
Eu sentia realmente um certo orgulho va ir à Tia Peggy, onde encontrava gente
desta descrição oficial, dando a entender, mais importante: coristas caras, professo-
como dava, uma vida de completa irrespon- res, políticos e comerciantes.
sabilidade, muito diferente da vida bem-or-
denada do George, evocando a imagem de
um homem sem residência fixa, sem laços 3
filiais, um homem constantemente em mo-
vimento, uma ave de arribação, por assim Muitas vezes, a Helene costumava dizer-
dizer, como um marinheiro. Só precisava -me: “Mulela, diz-me cá, como é que tu
de uma miúda em cada porto para a ima- desperdiças uma oportunidade tão grande
gem ficar completa. Se a queda do George de ajudares o teu povo? Um homem com
se deveu à fraqueza da Carne, a minha é a tua cabeça devia ser mais qualquer coisa
provável que venha a dever-se a uma imagi- além de um palhaço nas festas dos Euro-
nação inconstante e a um senso de humor peus – sim, porque o que tu fazes é repre-
incerto. sentar – e excitar os egos da pequena-bur-
Tive sorte, de certo modo, em ter uma guesia!”
certa educação provisória. Acho que não Tenho vergonha de concordar que nes-
é pouco uma passagem pelo Fort Have ses momentos só tinha tempo para reparar
University College. Nessa época, eu tinha como o pescoço da Helene era fino e sua-
uma grande reputação, era considerado ve. Os ossos da Helene eram os ossos mais
uma espécie de ‘intelectual’ – um pensador finos que já tive o privilégio de ver numa
O p r e so   •  189

mulher, preta ou branca. Gostava que a festa em Lower Houghton, um homem


boca dela fosse tão fina e trocista. Embora novo, endurecido, seguiu-me até à casa de
os seus olhos pequenos, introspectivos, de banho para me murmurar envergonhado,
um azul acinzentado, fossem o fascínio de ao ouvido. “Diga-me,” disse ele, “quantas
todos os homens que a conheceram, tinha vezes é possível numa noite...” Depois pa-
a tendência para os endurecer desnecessa- receu perder o alento ou a coragem – não
riamente quando me dizia qualquer coisa. sei qual.
Acho que a Helene queria salvar-me, se eu Pode crer que estas festas eram uma
consentisse em ser salvo! As suas coxas cor chatice. As raparigas costumavam avistar-
de leite eram firmemente decididas contra -me a falar com alguém de quem eu real-
oportunidades perdidas. mente gostava; então cercavam-me, ofer-
De uma maneira geral, eu odiava festas tando os seus corpos tímidos, desajeitados
de brancos. Quando começavam a sério, como em sacrifício, embora fosse claro que
era sempre muito tarde, quando todos es- ninguém se aproveitaria daquela generosi-
tavam já bêbados demais para se poderem dade numa sala tão iluminada. Ainda pa-
divertir. Para começar, essas festas pareciam rece que estou a ouvir as vozes delas, com
serpear, pareciam tropeçar e cambalear em uma cantilena de sinos na noite alegre e
conversas pretensiosas, bombásticas. Havia assombrada.
raparigas de pé, encostadas à parede, mui- “Vá, Mulela,” e apertavam contra mim
to direitas, tesas e segurando firmemente as suas barrigas flexíveis, “ensina-me o kwe-
os copos contra ou entre os peitos estreitos, la! Oh, tu danças bestialmente bem!”
orgulhosos, temerosamente constrangidos, Ou: “Mulela, para, por favor! Por amor
falando com bocas trêmulas a rapazes an- de Deus, o que é que as pessoas vão pensar.
siosos por as largarem e voltarem em triun- Claro que nos podem ver pela porta!”
fo para as mães, para os berços. Essa era, Ou: “Mulela, espero que não penses
na altura, a gente que desejava saber, como que isto tem qualquer coisa de pessoal. Ou
eles diziam, o que acontecera às suas vidas seja, honestamente, se eu sentisse isso por
gloriosamente jovens. ti diria está bem, vamos já para casa. Mas
Lembro-me das solteironas descuidadas não sinto. Só gosto de conversar contigo.”
de meia-idade, dos acadêmicos e das an- Ou: “Mulela! Mulela! Por que é que
fitriãs melancolicamente inquirindo se era não me comes aqui mesmo, já? Violenta-
verdade o que tinham lido sobre os “acon- -me! Eu sei que é isso que tu queres! Oh, és
tecimentos excitantes nos bairros negros à tão bruto e cruel!” Isto acontecia normal-
volta de Joanesburgo”. É estranho que te- mente pelas três da madrugada, quando o
nham sempre assumido que eu sabia o que fim da festa estava a aproximar-se e o peso
elas queriam dizer com “acontecimentos”. do branco era talvez pesado demais para os
Sempre que eu perguntasse de que acon- seus ombros débeis.
tecimentos se tratava, elas apenas sorriam, Não, eu preferia festas negras, na maior
não acreditando no meu desconhecimento. parte cocktails ilegais, com os seus variega-
Talvez não acredite, mas uma vez, numa dos habitués de tipos hi-fi, assaltantes de
190  •  Lewis Nkosi

bancos, raparigas alegres e políticos sem es- Em consequência de tudo isto, tornei-
crúpulos. Nessa época, em que eu não fazia -me bastante popular entre os políticos e,
ideia de onde havia de vir o próximo almo- ao mesmo tempo, ganhei algum dinheiro.
ço, os políticos africanos eram uma grande Cheguei mesmo a pensar em estabelecer-
bênção para mim. Para ganhar uns tostes, -me com um negócio de escrever discur-
costumava escrever-lhes os discursos, que sos. Quantas mais leis de apartheid o go-
eles depois liam no largo em frente da Câ- verno publicava, mais comícios de protesto
mara, com centenas de cidadãos brancos havia e mais discursos eram precisos. Eu
espantados ouvindo-os com grande admi- considerava-me uma espécie de artista, re-
ração, embora eu me arrisque a dizer que almente um artesão da palavra, produzin-
se eles tivessem tempo para pensarem para do o tipo de prosa que unia um autêntico
além da linguagem bombástica ter-se-iam mérito literário com um apelo dramático às
sentido muito infelizes quanto aos senti- massas.
mentos expressos. Às vezes era quase divertido, porém,
Tinha notado há muito tempo que os receber encomendas de escrever discursos
políticos africanos preferiam uma sintaxe para comunistas africanos inexperientes
embrulhada, longos períodos enrolados e assim como para comerciantes ‘piratas’
frases ornadas e melífluas a fim de arrasta- transformados em políticos. Às vezes tinha
rem as massas. Desconfiavam dos discursos de os escrever ao mesmo tempo. Nessas
que pareciam comunicar algo concreto e ocasiões, o problema era não deixar que
prático. Acima de tudo, os políticos africa- a mão esquerda soubesse o que a direita
nos não tinham confiança na ação; daí não estava a fazer. Para os comunistas, tinha
lhes agradarem as frases concisas. No en- um bom estoque de frases ofensivas, já
tanto, para ser justo, devo explicar também prontas, como ‘instrumentos das potên-
que este amor pela linguagem florida deriva cias colonialistas,’ ‘imperialistas desenca-
do tradicional amor dos Africanos pela poe- deadores de guerras,’ e ‘parasitas capita-
sia. Os Africanos têm uma grande admira- listas’. Aos moderados negros ambíguos,
ção pela linguagem. Por isso, os comícios temperava-lhes os discursos com um cer-
das tardes de Sábado em frente da Câmara to absurdo inócuo, como ‘que os nossos
satisfaziam a necessidade de desabafar so- descendentes possam afirmar...’ ou a mais
bre o apartheid e ao mesmo tempo a fome segura: ‘para que todos, irrespectivamen-
de poesia. te de raça, cor ou credo, possam viver
Eu costumava ficar horas sentado a des- em paz!’ Esta provocava sempre muitos
cobrir palavras que se enchessem de vento, aplausos.
quanto mais coloridas melhor. Costumava Só uma vez fiz uma terrível confusão.
empilhar orações subordinadas umas sobre Trabalhava ao mesmo tempo em dois dis-
as outras até ao clímax de uma oração prin- cursos, um para Rabalala, o jovem comunis-
cipal aniquiladora, onde o orador se deteria ta, e o outro para uma espécie moderada
com um ar de dignidade aliviada, normal- de político africano que não queria gran-
mente para receber os aplausos. des sarilhos com o governo pois isso podia
O p r e so   •  191

fazer-lhe perder importantes concessões impressão que devia ter feito num homem
comerciais nas áreas brancas. Era o tipo de casado e feliz como o George, um homem
homem para quem eu gostava de escre- com razoáveis solicitações e também uma
ver discursos. Sentar-me à beira do abismo razoável repugnância por carne preta. Na
numa situação revolucionária parecia-me realidade, não basta dizer que a Zázá che-
uma coisa muito perigosa; mas, sendo uma gou. Não, ela tomou a casa de assalto. Uma
pessoa moderna, aprecio muito a ironia e a mulher pequena, viva e escura, de vinte e
ambiguidade. Como estes políticos africa- quatro anos, delicadamente musculada,
nos tinham de ter muito cuidado em não delgada como um bambu, cheirava a uma
ofender o governo, mas precisavam, ao vinha bem-cuidada, e, por baixo da saia
mesmo tempo, de conservar a popularida- simples de ganga e do suéter, escondia um
de junto das massas a fim de terem poder corpo que parecia escuro demais, quase
de negociação com o Conselho Branco, eu azulado com ameaça sexual.
tinha muitas vezes de escrever longos dis- Sim, lembro-me muito bem do dia em
cursos ponderosos com o ar de serem gra- que a Zázá chegou. O George estava a ler
ves e vagamente radicais, mas na verdade os jornais da tarde, sentado, como de cos-
sem dentes. tume, na sua cadeira de braços favorita,
Seja como for, enquanto estava a escre- falando para Francisca, que estava na cozi-
ver este discurso, não sei bem por que nem nha, enquanto eu me entretinha a arranjar
como, misturei-o com o de Rabalala, o jo- as flores à entrada. Era aquela hora suave
vem, comunista, e animei-o com algumas de cocktail de âmbar, em que o mundo pa-
frases marxistas muito ressonantes como: recia extremamente doce quando a Zázá
‘as inerentes contradições do sistema ca- entrou na sala de estar dos Hollingworth,
pitalista que provocarão o seu colapso to- o seu corpo astuto, incauto, assolando o ar
tal...” Isto declarou aquele mui digno po- parado, subtropical, a sua pequena boca
lítico numa reunião de Diretores aturdidos, atormentada, quase avinagrada de desdém
que se ergueram indignados e entregaram imerecido.
praticamente o pobre homem à polícia de George levantou-se, arranjou as roupas
Segurança de Joanesburgo. e voltou a sentar-se. “Por que é que não
Este foi o meu último trabalho, pois fui bate antes de entrar?” gritou. “Mas quem
preso pouco depois por “vadiagem e sus- é você? O que quer?”
peitas,” e entregue a George Hollingwrth “Sou a Zázá”, disse a nossa Vênus escu-
como ‘preso trabalhador’. ra. E a sua boca torceu-se com as preocupa-
Bem, cá está o George Hollingworth, ções tortuosas do mundo. “Esta é a casa do
um homem reduzido à poeira da infâmia e Sr. Hollingworth, não é?”
da ignomínia. Nessa altura, era um homem Naquele momento, parecia que na casa
asseado, trabalhador, empregado numa fá- havia demasiadas perguntas que só pode-
brica eletrônica; se não era feliz disfarçava riam ser resolvidas mais tarde. “Sou a cria-
muito bem. Isto é, até à chegada da Zázá. da,” disse a Zázá. “A Repartição mandou-
Você devia ver a Zázá para fazer ideia da -me.” E aquilo, como já disse, foi o início de
192  •  Lewis Nkosi

todos os problemas que, como diz a can- masculinidade europeia, que a sua espécie
ção, iriam cair sobre a cabeça do George considera investida com a mística da rique-
como chuva. za, do poder e do prestígio. Nessa altura,
a Zázá e eu tínhamos um plano – a arma-
dilha – muito bem organizado. Era a altura
4 de eu sair da prisão e instalar lá o novo
preso: George Hollingworth.
Agora vou ver o George. Espero que Tenho pensado muitas vezes que a
você não seja muito sensível. O corpo dele principal causa da queda de George – a ra­
não é muito agradável de ver. Sofreu mu-
zão da rápida desintegração que tem lugar
danças terríveis, que todos lamentamos
quando os homens da sua raça querem
muito.
qualquer coisa e se sentem frustrados – foi
Claro que você gostava de saber o fim
a ilusão que eles têm de que, mesmo mal-
da história. Já sabia que sim. Claro que
tratado, o escravo não só os ama, como
somos todos abutres, todos gostamos de
os auxiliará a manter o seu poder para
conhecer as desgraças alheias. Mas não
sempre. Como crianças pequenas, querem
há nada a perder. Em resumo, o George,
ser amados porque se julgam inexprimivel-
que sempre fora razoavelmente asseado e
mente belos e irresistíveis. Não importa as
trabalhador, levantando-se de madrugada
injustiças que cometam, criam fantasias de
para chegar a horas à fábrica, começou
ficarem para sempre nos braços de mu-
a sofrer umas mudanças perturbadoras.
lheres escravizadas, neste caso a escura
Os sintomas eram conhecidos: perda de
e monótona ama, amante e mãe, todas
apetite, mudanças cíclicas de uma extre-
numa só, para sempre entoando canções
ma depressão para uma extrema euforia,
uma expressão sonhadora e sempre dis- de embalar ao rapazinho de olhos azuis
traída. Começou a perder o interesse pelo sem idade.
emprego; ficava muito tempo em casa, Antes da Zázá o deixar passar a noite
talvez por não se sentir bem, embora isso com ela, tínhamos já preparado uma de-
não o impedisse de andar sempre à volta claração, aguardando só a sua assinatura,
da cozinha onde a Zázá trabalhava. Estava admitindo o crime, consentindo George em
sempre a chamá-la por tudo e por nada, o nos entregar a casa com tudo o que con-
que fazia a rapariga andar numa fona o dia tinha. A transferência foi feita através de
todo a entrar e sair do quarto do George. uma firma de advogados africanos. Tivemos
Como já esperávamos, não tardou a dar- o cuidado de que as fotografias ficassem ní-
-lhe prendas: comprava-lhe vestidos, roupa tidas para que as provas fossem irrefutáveis.
interior de seda, soutiens e meias de nylon. Um caso bem claro de chantagem, dirá o
Comprou-lhe joias e todos os tipos de bu- senhor. Bem, mas o mundo não é um lu-
gigangas. Era óbvio para mim que, com gar muito agradável para viver. Ou é? Foi
o tempo, a oferta à feminilidade africana isso o que nós tivemos de aprender à custa
seria o próprio George – esta esplêndida de muito sofrimento enquanto o George
O p r e so   •  193

alimentava a ilusão de que o mundo era Antes do senhor entrar para ver o Geor-
para ser conquistado e amado. ge, queria fazer-lhe uma pergunta que
O caso é que tive de manter o George sempre me preocupou. Quanto tempo acha
aqui preso. Estou convencido de que ele que eu vou ficar como carcereiro dele? Ah,
prefere as coisas assim. Não tem para onde não tem importância, por mim acho que
ir. Para a sua gente, o seu crime seria im- a minha posição é impregnável. Sim, acho
perdoável; os seus bens já não lhe perten- que sim: impregnável. Tomei todas as pre-
cem; e a Francisca... bem, eu admiro muito cauções. Acho que consegui evitar qual-
a Francisca. É mais uma prova de como as quer dos erros e armadilhas que fizeram cair
mulheres são adaptáveis e férteis em expe- George Hollingworth!
dientes. Estou convencido de que as mulhe- Ah, lá está a mulher dele, a Francisca!
res sempre sobrevirão a todos os impérios. Veja bem aquelas pernas de gazela, o poder
São salvas pelos seus instintos. daquelas coxas. Que vaca de concurso!
O menino de Copacabana

Marcos Konder Reis


Poeta

A
primeira vez que fomos juntos a Avenida Atlântica. Quando você a vir, tal-
Copacabana, logo à saída do Tú- vez compreen­da porque Manuel Bandeira
nel Novo, e no momento em que chamou-a de Atlântica, e então terá com-
sentimos entrar pelas janelas do lotação a preendido a metade de Copacabana.
claridade marítima, percebendo a contra- – Onde estão as montanhas? pergun-
ção de alegria na face do menino, como tou-me o menino.
se o ar da praia houvesse despertado nele – Por trás dos edifícios, respondi, a gen-
uma lembrança de amor, eu disse: o Leme te não as consegue ver.
é para lá. – Por trás dos edifícios, repetiu. E como
– Para lá? repetiu, como se não tivesse se chama o mar?
compreendido. – Ora, mas isto, francamente, você não
– Do lado do coração, insisti. pode deixar de saber.
– Você disse que o Leme fica do lado do – Pergunto se ele se chama Oceano.
coração? – Oceano Atlântico, retorqui irritado.
Calei-me. A pergunta, confesso, me pa- – Mar Oceano, disse o menino.
receu bastante tola. Dobramos na esquina – Ou Mar Atlântico, se você preferir.
da Rua Barata Ribeiro, e tornei-me a virar – Prefiro, respondeu-me, como quem
para ele, dizendo: isso é Copacabana, um constata pela primeira vez um sentimento
bairro de cimento armado, entre o mar e as de alegria.
montanhas. O tráfego intenso do feriado impedia o
– Entre o mar e as montanhas, repetiu, movimento livre dos veículos, mas o menino
permanecendo completamente sério. não parecia impacientar-se com a demora
– A praia, prossegui, é uma curva ele- do percurso, nem se punha curioso a olhar
gante, rara mesmo de tão elegante. Uma os lugares por onde íamos passando. Procu-
curva de vagas, de areia clara, e uma pa- rei romper o silêncio: um baita esqueleto de
rede vertical de arranha-céus. A faixa de cimento, como o de um monstro.
asfalto ao pé dessa parede curva chama-se – De um peixe, disse o menino.
196  •  Marcos Konder Reis

– Talvez, tão próximo da praia... co- amigos a afirmação de que era um bairro
mentei. desumano, mas nunca me haviam tentado
– De que peixe? perguntou-me o me- demonstrar a veracidade do teorema com
nino. tanta força nem com tanta convicção. E
– Ora de que peixe, fiz com raiva, de um quando atingimos a Avenida, bem defronte
baita de um peixe, sem dúvida. aos cinemas, e nos misturamos aos tran-
– De uma baleia, disse o menino. seuntes que passavam apressados pelos
– Não creio que pudesse ser tão grande. passeios e que pareciam procurar uma di-
– De uma baleia muito grande, disse o reção perdida ou perguntar por uma hora
menino. de encontro ao mesmo tempo receosos de
– Porque de uma baleia? Por causa... haverem perdido ambos ou de serem atro-
– Sim, disse o menino, por causa de pelados por um carro ou por uma lambreta,
Jonas. compreendi mais perfeitamente o que me
Resolvi topar a parada e disse: e onde haviam afirmado, e disse-lhe:
está o Profeta? Mas o menino não me deu – Você está achando-a desumana, não
resposta. Saltamos. A essa altura eu não sa- é?
bia mais o que dizer, nem o que me iria per- Mas o menino pareceu não me enten-
guntar, mas estava certo de que tudo faria der, e ficou a olhar, pela primeira vez curio-
para mantê-lo comigo até de madrugada. so, para meus olhos e os rostos dos que se
A tarde se fizera mais linda, e o crepúsculo aglomeravam à porta dos cinemas.
fluía, nas paredes, com brandura. São seis – Para que lado fica o cemitério? disse
horas, disse, como se falasse apenas para o menino.
mim. – Para lá, respondi, apontando com o
– Não são seis horas, afirmou o menino. braço na direção de Botafogo.
– Por quê? Você tem relógio? – Para lá, disse o menino.
– Não. Mas seis horas é estarem tocan- – Se você quiser, um desses dias, pode-
do levemente os sinos. remos tomar o lotação aqui mesmo.
– São exatamente seis horas, disse-lhe – E todos os enterros já passaram?
de novo, esfregando-lhe quase o meu reló- – Não passam por aqui, disse-lhe, me
gio de pulso no nariz. dando conta, pela primeira vez, de que não
– Ah, fez o menino com tristeza. E as vira nunca passar por aquela rua um carro
torres? fúnebre, acompanhado de uma fila de au-
– São muito baixas para que possamos tomóveis entre os quais os carregados de
vê-las no meio de arranha-céus. coroas.
– Copacabana é um lugar sem torres e – Por onde vão embora os que morre-
onde não pode anoitecer, disse o menino, ram? disse o menino.
como se afirmasse que um lugar sem ânge- – Não sei, respondi, mas não por esta
lus e torres era um lugar sem tempo e sem rua nem a esta hora. Você já pensou? Tal-
espaço; desumano. vez prefiram um caminho mais discreto ou
Desumano, pensei comigo. Quantas não queiram sofrer o espetáculo da univer-
e quantas vezes dissera e ouvira de meus sal indiferença que lhes dariam estes que se
O menino de C o pac a b a n a   •  197

atropelam nesta calçada. Você já pensou no – Pronuncie cinema, disse o menino.


que aconteceria? – Cinema, pronunciei, clara e vagarosa-
– Este lugar não tem memória, disse o mente, percebendo, mais uma vez, a ver-
menino. dade do que vinha dizendo. Pareceu-me,
– Ou não a queira possuir para tristezas. continuei, que seu rosto se transformava...
O menino limitou-se a sorrir de um – Na palavra cinema, disse o menino.
modo singular, como se começasse a cons- – No rosto de...
tatar um grande equívoco. Mas, depois de – É a mesma coisa, atalhou, mas com
uma pausa, falou: e desconhece a alegria. perfeita calma.
– Um dos meus amigos me disse que o – Por quê?
cinema é o ópio do século. – Estava me apaixonando pelos frequen-
– Como se chama ele? disse o menino. tadores...
– Rolando. Você vai conhecê-lo. – E transformou-se em cinema.
– O ópio do século, disse o menino. – E em que acha você que eu me deveria
– Você não concorda? transformar?
– E como é o teu amigo? perguntou-me. – Em nada.
– Como se tivesse uma corneta na boca e – Mas se de repente eu me estava apai-
as veias do pescoço arrebentando de soprá-la. xonando e eles se acotovelavam para entrar
– Já sei, disse o menino. num cinema?
– Que é que você sabe? perguntei-lhe – Você é um monstro de vaidade!
novamente um pouco irritado com o que – Diga um demônio e comece a se afas-
principiava a me parecer uma atitude. tar de mim. Ande, por que não o faz ime-
– Greta Garbo, disse o menino. diatamente?
– A qual das minhas perguntas você pre- – Porque!! respondi, como num desafio.
tende estar dando resposta?! – Porque sou um demônio, o seu demô-
– A nenhuma, disse o menino. Mas, nesse nio. Mas, para retê-lo, basta que me trans-
momento, reparei que seu rosto se transfor- forme...
mava, ele jogara sua cabeça para trás, e um – Cale-se, gritei, não quero que se enga-
sorriso de quem já estivesse morto, como se ne. Tudo que você me disse nesta tarde me
ela tivesse, por um instante, se apossado dele pareceu de um certo modo tão carregado
para renascer na força juvenil de sua carne. de sentido... Seria triste, neste momento...
– Vamo-nos daqui, disse-lhe bruscamen- – Você tem medo, disse o menino, es-
te. Creio que o movimento me está pondo tremecendo, mais pálido que a palavra
tonto. cinema.
– Você está pálido como a palavra do – E você não pode se transformar em
cinema, disse o menino. coragem.
– É que... penso que tive uma tontura; O menino não me respondeu. Afastou-
mas não sabia que as palavras pudessem, -se, impassível e sério, e tomou o primeiro
por exemplo, ser pálidas... lotação para a cidade.
Petit Trianon – Doado pelo governo francês em 1923.
Sede da Academia Brasileira de Letras,
Av. Presidente Wilson, 203
Castelo – Rio de Janeiro – RJ
PATRONOS, FUNDADORES E MEMBROS EFETIVOS
DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS
(Fundada em 20 de julho de 1897)
As sessões preparatórias para a criação da Academia Brasileira de Letras realizaram-se na sala de redação da
Revista Brasileira, fase III (1895-1899), sob a direção de José Veríssimo. Na primeira sessão, em 15 de dezembro
de 1896, foi aclamado presidente Machado de Assis. Outras sessões realizaram-se na redação da Revista, na
Travessa do Ouvidor, n.o 31, Rio de Janeiro. A primeira sessão plenária da Instituição realizou-se numa sala do
Pedagogium, na Rua do Passeio, em 20 de julho de 1897.
C a d e i r a P at r o n o s Fundadores Membros Efetivos
01 Adelino Fontoura Luís Murat Ana Maria Machado
02 Álvares de Azevedo Coelho Neto Tarcísio Padilha
03 Artur de Oliveira Filinto de Almeida Joaquim Falcão
04 Basílio da Gama Aluísio Azevedo Carlos Nejar
05 Bernardo Guimarães Raimundo Correia José Murilo de Carvalho
06 Casimiro de Abreu Teixeira de Melo Cicero Sandroni
07 Castro Alves Valentim Magalhães Carlos Diegues
08 Cláudio Manuel da Costa Alberto de Oliveira Cleonice Serôa da Motta Berardinelli
09 Domingos Gonçalves de Magalhães Magalhães de Azeredo Alberto da Costa e Silva
10 Evaristo da Veiga Rui Barbosa Rosiska Darcy de Oliveira
11 Fagundes Varela Lúcio de Mendonça Ignácio de Loyola Brandão
12 França Júnior Urbano Duarte Alfredo Bosi
13 Francisco Otaviano Visconde de Taunay Sergio Paulo Rouanet
14 Franklin Távora Clóvis Beviláqua Celso Lafer
15 Gonçalves Dias Olavo Bilac Marco Lucchesi
16 Gregório de Matos Araripe Júnior Lygia Fagundes Telles
17 Hipólito da Costa Sílvio Romero Affonso Arinos de Mello Franco
18 João Francisco Lisboa José Veríssimo Arnaldo Niskier
19 Joaquim Caetano Alcindo Guanabara Antonio Carlos Secchin
20 Joaquim Manuel de Macedo Salvador de Mendonça Murilo Melo Filho
21 Joaquim Serra José do Patrocínio Paulo Coelho
22 José Bonifácio, o Moço Medeiros e Albuquerque João Almino
23 José de Alencar Machado de Assis Antônio Torres
24 Júlio Ribeiro Garcia Redondo Geraldo Carneiro
25 Junqueira Freire Barão de Loreto Alberto Venancio Filho
26 Laurindo Rabelo Guimarães Passos Marcos Vinicios Vilaça
27 Maciel Monteiro Joaquim Nabuco Antonio Cicero
28 Manuel Antônio de Almeida Inglês de Sousa Domicio Proença Filho
29 Martins Pena Artur Azevedo Geraldo Holanda Cavalcanti
30 Pardal Mallet Pedro Rabelo Nélida Piñon
31 Pedro Luís Luís Guimarães Júnior Merval Pereira
32 Araújo Porto-Alegre Carlos de Laet Zuenir Ventura
33 Raul Pompeia Domício da Gama Evanildo Bechara
34 Sousa Caldas J.M. Pereira da Silva Evaldo Cabral de Mello
35 Tavares Bastos Rodrigo Octavio Candido Mendes de Almeida
36 Teófilo Dias Afonso Celso Fernando Henrique Cardoso
37 Tomás Antônio Gonzaga Silva Ramos Arno Wehling
38 Tobias Barreto Graça Aranha José Sarney
39 F.A. de Varnhagen Oliveira Lima Marco Maciel
40 Visconde do Rio Branco Eduardo Prado Edmar Lisboa Bacha
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