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Brasileira fa s e i x
• A B R I L - M AI O - J U N H O 2 0 1 9 •
a no i I • n . ° 9 9
A c a d e m i a B ra s i l e i ra R e v i s ta B ra s i l e i ra
d e L e t ra s 2 0 1 9
Diretoria Diretor
Presidente: Marco Lucchesi Cícero Sandroni
Secretário-Geral: Alberto da Costa e Silva
Conselho Editorial
Primeira-Secretária: Ana Maria Machado
Arnaldo Niskier
Segundo-Secretário: Merval Pereira
Merval Pereira
Tesoureiro: José Murilo de Carvalho
João Almino
Comissão de Publicações
Membros Efetivos Alfredo Bosi
Affonso Arinos de Mello Franco, Antonio Carlos Secchin
Alberto da Costa e Silva, Alberto Evaldo Cabral de Mello
Venancio Filho, Alfredo Bosi,
Produção Editorial
Ana Maria Machado, Antonio Carlos
Secchin, Antonio Cicero, Antônio Torres, Monique Cordeiro Figueiredo Mendes
Arnaldo Niskier, Arno Wehling, Cacá Revisão
Diegues, Candido Mendes de Almeida, Vania Maria da Cunha Martins Santos
Carlos Nejar, Celso Lafer, Cicero Sandroni, Projeto Gráfico
Cleonice Serôa da Motta Berardinelli, Victor Burton
Domício Proença Filho, Edmar Lisboa Bacha,
Editoração Eletrônica
Evaldo Cabral de Mello, Evanildo Cavalcante
Estúdio Castellani
Bechara, Fernando Henrique Cardoso,
Geraldo Carneiro, Geraldo Holanda Academia Brasileira de Letras
Cavalcanti, Helio Jaguaribe, João Almino, Av. Presidente Wilson, 203 – 4.o andar
Joaquim Falcão, José Murilo de Carvalho, Rio de Janeiro – RJ – CEP 20030-021
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Vilaça, Merval Pereira, Murilo Melo Filho, Fax: (0xx21) 2220-6695
Nélida Piñon, Paulo Coelho, Rosiska Darcy E-mail: publicacoes@academia.org.br
de Oliveira, Sergio Paulo Rouanet, Tarcísio site: http://www.academia.org.br
Padilha, Zuenir Ventura. ISSN 0103707-2
Os artigos refletem exclusivamente a opinião dos autores, sendo eles também responsáveis
pelas exatidão das citações e referências bibliográficas de seus textos.
Transcrições feitas pela Secretaria Geral da ABL.
CI CLO C ADEIRA 41
Evanildo Cavalcante Bechara
Antenor Nascentes, um tardio na Cadeira 41 9
Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti
Luzia Homem, de Domingos Olympio: criação de um mito mulher 13
Hugo Almeida
Osman Lins, 40 anos depois, mais atual 19
EN S AIO
Arnaldo Niskier
Castro Alves, o poeta do amor 97
Antonio Cicero
Poesia e música a partir de Homero 103
Simon Schwartzman
Os dilemas do novo ensino médio 113
Sandra Bagno
Da civilização cordial de Ribeiro Couto ao homem cordial de Sérgio Buarque de Holanda 119
José Carlos de Azeredo
Língua e educação – uma relação óbvia, uma interação mal compreendida 137
CONTO
Juarez Barroso
Doutora Isa 141
Cicero Sandroni
Ocupante da Cadeira 6 na Academia Brasileira de Letras
O
panorama cultural e literário brasi- e também palestrante, encontram-se textos
leiro descortinado nesta edição da do jurista Joaquim Falcão, da socióloga Ma-
Revista Brasileira é múltiplo e su- ria Cecília Londres Fonseca, da arquiteta e
gere ampla visão dos temas apresentados. urbanista Marcia Sant’Anna e do professor
Do ciclo de palestras Cadeira 41, criado Ulpiano T. Bezerra de Menezes. E do ciclo
pela acadêmica Ana Maria Machado para Presenças Fundamentais, as conferências
lembrar aqueles que, embora com grande dos acadêmicos Evaldo Cabral de Melo e
destaque nas letras nacionais por vários Celso Lafer.
motivos e razões passaram ao largo da Aca- O leitor ainda encontrará nesta edição
demia Brasileira, publicamos textos/ensaios textos de Arnaldo Niskier, Antonio Cicero,
do professor Evanildo Bechara sobre Ante- Simon Schwartzman, José Carlos Azeredo e
nor Nascentes, filólogo e lexicógrafo de vas- Sandra Bagno, e também o resgate do con-
ta obra; da socióloga Maria Laura Viveiros to do escritor cearense Juarez Barroso.
de Castro Cavalcanti sobre o romance Luzia E em destaque especial para a memória
Homem do romancista Domingos Olympio; literária, o texto de Alceu Amoroso Lima,
e do jornalista Hugo Almeida estudo sobre “A evolução do conto no Brasil”. Alceu,
o romancista Osman Lins, quando de seus sempre é bom lembrar, segundo Otto Maria
primeiros passos na literatura. Carpeaux exerceu “incomensurável influên-
Do Ciclo Patrimônio Cultural Brasileiro, cia nas letras brasileiras”.
coordenado pelo historiador Arno Wehling Boa leitura.
CICLO CADEIRA 41
Antenor Nascentes, um
tardio na Cadeira 41
de amar as coisas, tenho certeza de que era ajudar aqueles que precisavam ser aju-
este primeiro caminho percorrido vai ter as dados. Os trabalhos dele revelam isso.
suas falhas. Mas ele, se não for aberto por A turma de professores do Colégio Pe-
mim, não encontrará sucessores meus que dro II daquela época era constituída de no-
venham aplainar o terreno, corrigir as falhas mes que poderiam ser professores univer-
de observação e apresentar este caminho sitários em qualquer universidade europeia
como digno de ser estudado.” Ele dizia es- ou americana. Eram pessoas de grande ta-
tas palavras e acentuava com ênfase entre lento, e a turma teve, somente para exem-
dentes: “se as dificuldades existem, elas de- plificar, como professor de Grego, Ramiz
vem ser vencidas”. Galvão; como professor de Alemão, Manuel
O Professor Nascentes só chegou ao Co- Said Ali; como professores de Língua Portu-
légio Pedro II porque sua professora primá- guesa, Fausto Barreto, Carlos de Laet e Silva
ria sentiu no jovem aquelas centelhas de in- Ramos; como professor de História, João
teligência e achou que ele, pobre, precisava Ribeiro e como professor de Literatura, José
de um empurrão para poder abrir a estrada Veríssimo. Para enfronhar-se na bibliogra-
vitoriosa da vida. Foi o que aconteceu. Fez fia técnica dos textos de Teoria Linguística,
o primário com essa professora, que lhe pa- Antenor Nascentes exibia um bom conhe-
gou a matrícula para fazer do admissão ao cimento de línguas estrangeiras, pois fala-
primeiro ano ginasial da época. Ele corres- va perfeitamente o francês e o espanhol, e
pondeu às expectativas da sua professora, traduzia, igualmente, o inglês e o alemão,
e, durante os cinco anos do curso, esteve além de boa formação em latim e grego.
no panteon dos primeiros lugares da tur- Enquanto o Professor Nascentes se for-
ma, na companhia de ilustres colegas como mou em Direito, Sousa da Silveira concluiu
Manuel Bandeira, Sousa da Silveira e Artur Engenharia e pertenceu ao primeiro grupo
Moses. de profissionais que traçou as novas linhas
Terminado o curso, conta a lenda que para o subúrbio do Rio de Janeiro.
optou por fazer a faculdade de Direito por- Desde cedo Nascentes começou a publi-
que estava instalada nas dependências do car trabalhos na área do Direito, como por
Colégio Pedro II, para não se afastar daque- exemplo, o Resumo Histórico da Legislação
la casa de ensino que ofereceu a ele e aos Penal Brasileira, saído em A Época, nos nú-
seus companheiros tudo o que aprendeu meros de setembro e outubro de 1906, e
de melhor para a vida. De modo que Nas- as Ligeiras Notas sobre Redação Oficial, que
centes fez a Faculdade de Direito. Era um em 1941 atingiram a 5.a edição pela Livraria
homem preocupado em abrir os caminhos Francisco Alves. Sousa da Silveira, depois de
àqueles que precisavam de uma orientação. sua investida na área de engenharia, se trans
O Professor Nascentes, antes de escrever so- feriu para o magistério de Língua Portugue-
bre língua portuguesa, fez alguns trabalhos sa. Por essa época, pediu orientações ao Pro-
para orientar as pessoas que precisavam de fessor Said Ali, que lhe recomendou a leitura
informações jurídicas, e escreveu um pe- do livro clássico de Ferdinand de Saussure.
queno manual para tirar dúvidas sobre es- Nascentes também se voltou para o ma-
ses assuntos. Sua preocupação permanente gistério de Língua Portuguesa, pretendendo
A n t e n o r N a sce n t e s , u m ta r d i o n a C a d e i r a 41 • 11
um dia ingressar no seu Colégio Pedro II. À frente do ensino de Língua Portugue-
No horizonte próximo do jovem apareceu sa no Colégio Pedro II, Antenor Nascentes
a oportunidade de exercer atividade na ca- teve oportunidade de escrever muitas obras
deira de língua grega, idioma para o qual sobre a disciplina, entre as quais cabe espe-
já antes apresentara traduções de Menipo cial lugar a série em cinco volumes intitu-
(de Luciano), publicado em A Época em ju- lada Idioma Nacional, iniciada em 1926 e
nho de 1908. Preparou-se para o concurso terminada em 1929 com as Noções de Esti-
impondo-se à tarefa de traduzir diariamen- lística e Literatura, que mais tarde passou a
te 150 versos da Ilíada e da Odisseia. Frus- constituir o 5.o volume de O Idioma Nacio-
trado o sonho, surgiu-lhe a oportunidade nal. Cumpre lembrar que o 4.o volume da
de prestar concurso para a cadeira de Es- série compreendia uma excelente gramática
panhol, para o que apresentou a tese de histórica.
concurso Um ensaio de fonética diferencial Alargando o campo de conhecimento
luso-castelhana, em 1919, saindo vitorioso de língua portuguesa aos seus alunos, em
do pleito ao qual concorreu com o profes- 1930 prepara uma edição escolar de Os
sor David Perez. Lusíadas e imagina constituir uma equipe
Porém, a grande meta dele era a cadeira de professores para dotar o português de
de Língua Portuguesa na qual tinham bri- um novo Dicionário Etimológico. Frustra-
lhado os seus antigos mestres. Ocorrendo a da a ideia da equipe, ele mesmo, sozinho,
vaga por esse mesmo tempo em virtude da tomou sobre os seus ombros essa hercúlea
aposentadoria de Carlos de Laet, como Ca- tarefa, e depois de dois anos de intenso
tedrático de Língua Portuguesa, Nascentes trabalho, consegue editar seu Dicionário
pleiteou e conseguiu a transferência para Etimológico da Língua Portuguesa, tomo I
essa nova Cátedra, o que lhe foi concedido. (primeira e única edição): Nomes Comuns,
Na atividade de ensino, escreveu livros em 1932, epopeia que lhe custou grande
que se tornaram clássicos na bibliografia de prejuízo na visão. Este Dicionário Etimoló-
Língua Portuguesa, entre os quais cabe citar gico lhe valeu muitas resenhas elogiosas
Método Prático de Análise Lógica (depois no mundo científico, mas também muitas
substituído por Método Prático de Análise críticas, porque se servira da segunda edi-
sintática, 1920); Método Prático de análise ção do Romanisches Etymologisches Wör-
gramatical (1921); Apostilas de português terbuch, de Meyer-Lübke, que lhe prefaciou
(1923). a obra. Em 1955 saiu uma segunda tiragem
Em 1922 o Professor Nascentes envereda da primeira edição para fazer companhia ao
para o campo de investigação da geografia Tomo II dedicado aos Nomes próprios, saído
linguística publicando, em 1922, O Linguajar em 1952.
Carioca, não só estimulado pela saída no ano Na década de 40, a convite de Afrânio
anterior de O Dialeto Caipira, de Amadeu Peixoto, então Presidente da ABL, o Pro-
Amaral, mas também para responder a per- fessor Nascentes preparou o Dicionário da
guntas do grande romanista alemão Meyer- Língua Portuguesa da Academia Brasilei-
-Lübke, que lhe pedira por carta informações ra de Letras, com a colaboração de Olavo
sobre o português do Brasil. Nascentes e Celso Cunha. Este Dicionário
12 • Evanildo Cavalcante Bechara
Taciturna e forte, solitária e boa, (...) Teresinha de Crapiúna, Luzia é por ele ataca-
a Luzia Homem é dos tipos mais complexos da em tentativa de estupro. Na luta ela tom-
e misteriosos de nossa ficção (...). ba mortalmente esfaqueada, tendo na mão
L ucia M iguel P ereira crispada um dos olhos de Crapiúna que, ur-
rando de dor, despenca num precipício.
L
uzia Homem conta a história de Lu- Publicado em edição do autor no Rio de
zia – a cabocla que chega a Sobral, Janeiro em 1903, o romance foi calorosa-
Ceará, na enxurrada de retirantes que mente saudado pela imprensa. Advogado,
atravessam a cidade em busca do mar, na jornalista literário e político, republicano que
grande seca de 1877-79. Ela traz consigo fora ativo abolicionista, Domingos Olympio
Josefa, a mãe enferma e, ao trabalhar po- Braga Cavalcanti participava ativamente da
tente e forte na construção da nova cadeia vida política e cultural do país. Nascido em
local, ela se torna, no dizer do coro popular Sobral, Ceará, em 1850, formara-se bacha-
de vozes femininas maledicentes, a macho- rel em direito na Faculdade do Recife em
-fêmea, a virago. Dissonante dessas vozes, 1873. De volta a Sobral naquele mesmo
Teresinha, a moça branca prostituída, a de- ano, exercera o cargo de promotor público
fende e torna-se sua amiga. Luzia é dese- até setembro 1878, quando se mudou para
jada por dois homens – Crapiúna, o asse- Belém do Pará até vir para o Rio de Janeiro
diador, segurança da obra, e o respeitoso em 1891. Três anos depois da publicação
Alexandre, que lhe propõe casamento. A do romance, sua morte súbita em outubro
história de Luzia é também a da descoberta de 1906 provocou comoção.
de uma sexualidade que permanecerá irre- Em homenagem póstuma no último
alizada. Quando o apaixonado Alexandre número do periódico semanal Os Annaes,1
se liberta da prisão injusta arquitetada pelo Olavo Bilac asseverava ser Luzia Homem:
diabólico Crapiúna, e Luzia enfim se deci- “um tão belo e ruidoso triunfo, que esse
de pelo casamento que ele lhe oferece, ela 1Criado e dirigido por Domingos Olympio em 1904, o
será tragicamente assassinada. Ao defender periódico publicou 102 números.
Conferência pronunciada na Academia Brasileira de Letras em 9 de agosto de 2018.
14 • Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti
livro forte, humano e profundamente ‘na- da terrível seca que assolou o Ceará. A ci-
cional’ deu ao autor, em todo Brasil, uma dade de Sobral transforma-se em ponto de
celebridade que perdurará, enquanto for- parada dos retirantes cujo movimento em
mos um povo, e enquanto tivermos lite- busca do mar está suspenso: “A população
ratura”. As tentativas de ingresso de Do- da cidade triplicava (...). Casas de taipas,
mingos Olympio na Academia Brasileira de palhoças, latadas, ranchos e abarracamen-
Letras, contudo, haviam sido infrutíferas e tos do subúrbio, estavam repletos, a trans-
o romance caiu no esquecimento até sua bordarem (...)”.5 O romance certamente
reedição em 1929, prefaciada por Gustavo traz um sensível testemunho desse fato
Barroso. O interesse pelo livro retornou e, a histórico, pois até setembro do mesmo ano
partir dos anos 1940, Luzia Homem ingres- Domingos Olympio residia na cidade, onde
sou no panteão dos clássicos da literatura atuava como promotor público. Sua inten-
brasileira. sa vivência revela-se em muitos detalhes e
Sua força dramática e sua singularidade episódios do livro, que desenha uma socie-
têm desafiado a crítica. Gustavo Barroso, ao dade econômica e culturalmente heterogê-
considerá-lo “uma obra regionalista verda- nea que luta por se organizar e sobreviver à
deira e bela”, já indicava sua “demasiada tragédia da seca.6
personalidade”.2 Lúcia Miguel Pereira, ao Tudo isso, entretanto, está posto a ser-
considerá-lo “uma das melhores manifesta- viço da prosa de ficção. No romance, o so-
ções [do regionalismo] entre nós”, chamou frimento humano e o da terra seca e estéril
atenção para seus aspectos simbolistas e contrastam todo tempo com a intensa be-
universalistas.3 Carlos Nejar, por sua vez, viu leza do céu diurno ou noturno. Esse con-
no romance dimensões míticas,4 “planos da traste entre a indiferente beleza do “alto”
imaginação que se cruzam, enriquecendo e o sofrimento do “baixo” (a terra com sua
seus significados (...)”. Luzia Homem insiste gente) instaura a dimensão mítica7 e o fun-
em sobrepor-se a suas múltiplas leituras e do trágico de Luzia Homem. Entre a grande
convida o leitor de qualquer tempo a rever distância que aparta céu e terra, emerge o
mundo humano, diverso e complicado do
preconceitos, a abrir o horizonte de suas re-
espaço social próprio da narrativa. Como
ferências culturais. A leitura aqui proposta
que acompanhando um olhar que chega do
enfatiza a renovadora abordagem do am-
alto, o leitor pousa a meio caminho:
biente popular retratado no romance e a
“O morro do Curral do Açougue emergia
percuciente reflexão acerca do sexo-gênero
em suave declive da campina ondulada. Es-
de Luzia, a fascinante personagem central. corchado, indigente de arvoredo, o cômoro,
A narrativa de Luzia Homem transcorre enegrecido pelo sangue de reses sem conto,
no ano de 1878, quando do agravamento deixara de ser o sítio sinistro do matadouro e
2 BARROSO, Gustavo, “Prefácio”. Em Domingos Olym- 5 OLYMPIO, Domingos. Luzia Homem. São Paulo: Três
pio, Luzia Homem, Rio de Janeiro: Editor J. Castilho, Livros e Fascículos, 1984. p.35.
1929. pp. 4-16. 6 Ver FREITAS, Nilson Almino, de. “A ‘Macho e fêmea’ e
3 PEREIRA, Lucia Miguel, em Prosa de Ficção. Belo Hori- a família: Luzia-Homem e o sertão cearense.” Revista de
zonte: Ed. Itatiaia, 1952. p. 205. Ciências Sociais. Vol. 38, n.2. 2007. pp. 26-39.
4 NEJAR, Carlos. História da Literatura Brasileira. Ed. 7 Ver LEITE JR., José. O pictórico em Luzia Homem. For-
Unisul: 2014. pp. 228-229. taleza: Links Artes Gráficas e Editora, 1997 .
L uz i a H o m e m , de D o mi n g os O lym p i o : c r i a ç ã o d e u m m i to m u l h e r • 15
nas ausências de Luzia. Teresinha – a “arguta resposta imediata, aflita entre os cuidados
rapariga, afeita ao vício e ao crime”, dorme exigidos pela doença da mãe e o temor de
próxima à rede de Luzia “estirada na esteira, perdê-la, premida entre o desamparo trazi-
seminua, num abandono ingênuo, debuxan- do pela prisão de Alexandre e o obsessivo
do-se-lhe as formas graciosas”.17 A intimida- assédio de Crapiúna, Luzia duvida consigo
de compartilhada entre elas, entretanto, não mesma das boas intenções matrimoniais de
se sexualiza, é sobretudo sensual. Permite Alexandre. Desconfia da ideia do matrimô-
que emerja em Luzia uma sexualidade em nio como uma opção de proteção para a
estado de latência, quando a fisicalidade do mulher naquele ambiente social. Afinal, ele
desejo não traz necessariamente a definição poderia “(...) como tantos outros abando-
de sua orientação sexual. ná-la, infligir-lhe a objeção de ser preterida
A sexualidade de Luzia irrompe em es- por outra mulher, crime que os homens
tado puro – para ela mesma e para os ou- cometem como um direito do sexo (...)”.
tros – no capítulo 7, quando, ao adentrar E recusa esse lugar imaginado do feminino,
o armazém em defesa de Alexandre, ela sentia-se: “incapaz de amar; carecia-lhe (...)
expõe-se perante o promotor, os delegados essa languidez atributiva da função da mu-
e a Comissão de Socorros: “Meu corpo não lher no amor, a passividade pudica, ou avil-
tem pechas, nem pecados a minh’alma”, tante da fêmea submissa ao macho, forte
ela diz com “as roupas em desalinho (...) o e dominador, irresistível (...) Não, não fora
cabeção de renda emoldurando o seio nu e destinada à submissão (...). Seu destino era
palpitante (...)”. Dando-se conta do efeito penar no trabalho, fora marcada com o es-
produzido ela se recompõe, e apenas então tigma varonil (....)”.19
se apresenta: “Eu me chamo Luzia Maria Porém, tudo se modifica quando Luzia
da Conceição. Meu pai, que Deus haja, era pergunta para Teresinha: “Queria você mui-
vaqueiro das Ipueiras, do major Pedro Ribei- to bem ao Cazuza?”. Por Cazuza, Teresinha
ro...”. E todos se extasiam “com a força e a deixara a família. Com a morte dele, ficara
beleza da admirável criatura”.18 “rolando à toa pelo mundo” até encontrar
Numa conversa noturna com Teresinha, um homem violento, que a surrava, mas
narrada nos caps. 11 e 12, Luzia reflete “que para falar a verdade não era de todo
sobre o destino que desejaria dar a sua se- mau”, afinal “maridos, casados na igre-
xualidade, que começa a aceitar. Teresinha ja, batem nas mulheres, quando mais...”.
chegara acabrunhada do responsório de A história do fim desse amante violento e
Santo Antônio, com o que buscara a reve- apaixonado narrada por Teresinha é de ex-
lação milagrosa do verdadeiro culpado do traordinária vivacidade e a escuta de Luzia é
roubo do armazém ao qual se devia a injus- transformadora.20 No capítulo seguinte, Lu-
ta prisão de Alexandre. Seu transe não lhe zia revê preconceitos. Embora julgue mons-
permitira discernir com clareza os vultos vi- truosa “essa escravidão da mulher desbriada
sualizados. As duas conversam no alpendre ao senhor do seu corpo, essa passividade de
da casa. Frustrada na expectativa de uma animal, de coisa a mudar de dono” vê força
17 OLYMPIO, Domingos, op. cit., pp 70-77. 19 Idem. Ibidem pp. 98, 99.
18 Idem. Ibidem p. 65. 20 Idem. Ibidem pp. 101-107.
18 • Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti
e beleza em Teresinha.21 E Luzia – Alexan- Teresinha no atalho que indica para Luzia:
dre na prisão e Crapiúna à espreita – retorna “Se apertar o passo ainda a pega”. O ata-
ao trabalho “em plena florescência suntuo- lho desce por uma grota e Luzia ouve o gri-
sa”, e vê-se encaminhada para a oficina das to de Crapiúna que, tendo fugido da prisão,
costureiras. Luzia havia perdido “a energia ataca Teresinha: “Foi o diabo que te atra-
inflexível, que a preservara até então, como vessou o meu caminho. É a última vez que
invulnerável couraça”.22 Ela ainda oscila, en- me empatas, peitica do inferno!” Luzia se
tretanto, entre o destino de Teresinha, trazi- interpõe: “Pensas que tenho medo de Luzia
do pela voz do tentador demônio Crapiúna, Homem? Desgraça pouca é bobage”, diz
e a escolha de Alexandre como companheiro Crapiúna “ébrio de luxúria (..)” ao atacá-la.
de vida. Mas então Teresinha descobre ser Na batalha em defesa de sua honra, Luzia
Crapiúna o verdadeiro culpado do crime crava-lhe as unhas no rosto, e Crapiúna, a
imputado a Alexandre e ele é preso com faca em seu peito. Luzia jaz seminua, tendo
a evidência do roubo. Teresinha, radiante, na mão crispada um dos olhos de Crapiúna
responde a Luzia que a chama de anjo com que, urrando de dor, despenca em precipí-
uma dança frenética: “Que anjo, que nada! cio próximo. Raulino, que não chega a tem-
... Sabe o que sou!? Mulher e bem mulher, po de socorrê-la, encerra o romance com a
de cabelo na venta. (...) Viva o glorioso Santo unção dos moribundos: “Seja contigo, Je-
Antonio! Vivô, vivo!”.23 sus, Maria e José!”. Raulino, o contador de
Superados os melindres, Alexandre e Lu- causos extraordinários, como extraordinária
zia se reencontram. Numa explosão de ter- é a história de Luzia Homem.25
nura, ele lhe estende “os braços para ampa- Luzia morre a meia altura entre o vale
rá-la, porque ela vacilava”.24 Alexandre é a do rio Acaracu, onde se situa Sobral e o
ordem, entendida como a possibilidade de cume da Serra da Meruoca, perto de onde
diálogo entre homem e mulher, num amor iniciaria sua nova vida de mulher sexuada
que abarca a sexualidade heteroafetiva. De dentro do casamento. Sua sexualidade mor-
sua parte Teresinha reencontra, em verda- re com ela, irrealizada.
deira redenção, sua família também retiran- Por essa razão, sempre que reabrimos as
te em busca de novo pouso. Rumam todos, páginas de Luzia Homem, a Luzia que vive
finalmente, para a serra da Meruoca a duas dentro delas, é para sempre as muitas pos-
léguas de Sobral: a família de Teresinha, Jo- sibilidades de ser mulher por ela experimen-
sefa, e Luzia que vai ao encontro de Alexan- tadas: a máscula virago; a mulher insubmis-
dre, que foi na frente para arrumar a nova sa ao jugo sexual masculino dentro e fora
casa. O amigo Raulino, com mais seis pos- do casamento; aquela que teme a atração
santes rapazes, vai levando Josefa na rede. que exerce sobre (e sente por) o assediador;
No sopé da montanha, o séquito separa- que experimenta a possibilidade do amor
-se, Raulino e a turma seguem até a “Cova com Alexandre. Incerta em sua orientação,
da onça”. Raulino enxerga a pegada de hesitante entre a pura atração e o afeto
amoroso, Luzia é a sexualidade em processo
21 Idem. Ibidem p. 110.
22 Idem. Ibidem p. 134.
de descoberta. Luzia-homem, mito-mulher.
23 Idem. Ibidem pp. 170,171.
24 Idem. Ibidem p. 232 25 Idem. Ibidem pp. 245-248.
Osman Lins, 40 anos depois,
mais atual
Hugo Almeida
Escritor e jornalista. Doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP)
1. P
ôr do sol e primeiros Aos nove anos, escreveu uma redação
com o título de “Regresso”, em harmoniosa
passos
caligrafia, e que começa assim:
Osman Lins partiu em 8 de julho de “Ao regressarem naquele dia da escola,
1978, três dias depois de ter completado Paulo e Donato encontraram um telegrama do
54 anos. Escrevia um novo romance, que a Dr. Silva Ramos comunicando que, em compa-
doença o impediu de terminar. Em um de nhia da família, se embarcara no expresso que
devia chegar a S. Paulo às 7 horas da noite.
seus últimos textos, Marcha fúnebre, caso
A notícia encheu-os de intensa alegria.”
especial para TV, há uma oração premonitó-
ria: “Quero um lugar permanente, na terra Nove anos, um menino de nove anos.
que amei e onde passei uma jornada tão Filho de um alfaiate de nome grego,
breve que, quando pensei que o dia come- Teófanes, que significa “manifestação divi-
çava, a noite já descia...”. Frase similar apa- na”, e de uma jovem que não conheceria
rece na novela Domingo de Páscoa, publica- sequer em foto, Maria da Paz Melo Lins,
da na revista Status em abril de 1978, três Osman da Costa Lins nasceu em Vitória do
meses antes da morte do escritor: “Sinto- Santo Antão, Pernambuco, em 5 de julho
-me inquieto e assustado devido à viagem de 1924. Ficou órfão aos 16 dias. O escritor
iminente”. diria na maturidade: “Morreu aquela garota
Não apenas sua partida foi precoce. para que eu nascesse. Não podia fazer de
Aos oito anos, escreveu um poema com minha vida uma trouxa, um papel servido,
o seguinte título: “Beduíno regenerado pela jogá-la por aí. Nunca vi um retrato seu. Ela
Lua”. Ao fazer essa revelação numa entre- não gostava de fotografias, embora conste
vista, aos 49 anos, disse: “Que significava que fosse bem bonita”.
esse tema estranho? Como se eu já soubes- A busca de um rosto marcou sua obra.
se que a poesia salva o homem. Fui cen- A ausência da imagem materna e a pro-
surado pela minha família, porque os meus cura desesperada aparecem no romance
versos não tinham rima nem métrica.” O fiel e a pedra e na narrativa “Perdidos e
Conferência pronunciada na Academia Brasileira de Letras em 30 de agosto de 2018.
20 • Hugo Almeida
Eder Rodrigues Pereira, que defendeu tese Osman Lins cumpre rigoroso programa
sobre Avalovara à luz da crítica genética, faz cultural: visita museus, igrejas (encanta-se
pós-doutorado na USP sobre o livro inédito, com os vitrais), assiste a dezenas de peças,
que talvez seja publicado em breve. filmes e concertos, entrevista autores do
A estreia se dá em 1955, com O visi- nouveau roman, como Michel Butor e Rob-
tante, romance laureado por esta Acade- be-Grillet. Na volta da experiência europeia,
mia com o Prêmio Coelho Neto. José Lins escreve Marinheiro de primeira viagem, lan-
do Rego atestou: “Neste romance, Osman çado em 1963.
Lins nos dá a medida de um autêntico cria- Em dois de seus livros, Poéticas em con-
dor”. Em setembro de 78, num artigo em fronto: Nove, novena e o novo romance, de
homenagem ao escritor falecido três meses 1987, e Transfigurações, de 2010, Sandra
antes, Autran Dourado, que em 55 já tinha Nitrini analisa em profundidade a importân-
três livros publicados, escreveu: “Eu me cia do período europeu na obra de Osman
senti provinciano e pequeno diante da se- Lins.
gurança, da maturidade, do rigor e audácia Em 1962, o escritor se muda com a fa-
do estreante Osman Lins.” mília para São Paulo. No ano seguinte, o
Em 1956, começa a escrever artigos so- casal se separa. Mulher e filhas voltam para
bre arte e cultura para o Suplemento Literá- o Recife. Mas Osman Lins nunca foi um pai
rio do jornal O Estado de S. Paulo, colabora- ausente. Ao contrário: foi sempre presente,
ção que se estende até o início dos anos 60. dedicado, afetuoso, como atesta a assídua
Em 57, publica seu primeiro livro de contos, correspondência com as filhas. É possível
Os gestos, Prêmio Monteiro Lobato, de São conhecer e saborear um pouco dessas car-
Paulo. tas na bela crônica “Seu pai”, que o escritor
Ainda nos anos 50, escreve o romance pernambucano José Luiz Passos publicou na
O fiel e a pedra (lançado em 1961) e a peça revista Continente, do Recife, em agosto do
Lisbela e o prisioneiro. Também em 61, a ano passado. O texto está disponível na in-
peça estreia aqui no Rio, com Tônia Carrero ternet.
e Paulo Autran nos papéis principais. A crí- Sozinho em São Paulo, Osman Lins es-
tica Barbara Heliodora considera Lisbela e o creve peças e narrativas de Nove, novena.
prisioneiro “a melhor comédia do ano”. Essa Em 64, casa-se com a escritora e publicitá-
é sua obra mais conhecida, graças à adap- ria Julieta de Godoy Ladeira, que conheceu
tação de Guel Arraes para a TV e o cinema. por intermédio de Ricardo Ramos, filho do
mestre Graciliano. Julieta exercia “uma in-
fluência das mais benéficas” em sua obra,
3. Anos 60 e 70 afirmou o romancista numa entrevista em
Na década de 60 começa nova etapa 1974.
na vida de Osman Lins. Em fevereiro de 61, Em 77, o casal escreve um livro a quatro
o escritor faz a primeira viagem à Europa, mãos, La Paz existe?, sobre uma atribula-
para seis meses de estudos em Paris, como da viagem ao Peru e à Bolívia. Julieta, que
bolsista da Aliança Francesa. Já está casado morreu em 1997, deixou um livro inédito,
e tem três filhas. A família fica no Recife. Acompanhante, sobre os últimos meses
22 • Hugo Almeida
ensaios: Guerra sem testemunhas – o es- visão errônea da política da Casa em rela-
critor, sua condição e a realidade social, ção à Cultura”. Esse episódio está registra-
lançado em 1969, reeditado em 74 e hoje do numa biografia sobre o autor, de 1988,
infelizmente fora das livrarias. Esse livro tem e depois foi divulgado na imprensa.
feito enorme falta às novas gerações de es- Surge aqui uma questão bem interes-
critores. sante. Há alguns anos, numa roda de os-
Osman Lins aposenta-se em 1970 do manianos em São Paulo, Elizabeth Hazin,
Banco do Brasil, enquanto escrevia Avalo- da Universidade de Brasília, levantou uma
vara, e passa a dar aulas na Faculdade de hipótese: será que o CCBB não foi criado
Letras de Marília, hoje Unesp, Universidade em consequência da carta de Osman Lins?
Estadual Paulista. Em 11 de setembro da- É possível. Desde a criação, em 1989,
quele ano, escreve “Registro”, relato sobre o Centro Cultural do Banco do Brasil tem
o dia anterior, o último de trabalho no ban- apoiado a cultura. Em sua variada progra-
co em São Paulo. Afirma no parágrafo final: mação, já exibiu até Lisbela e o prisioneiro.
“Ganhei a rua, dei uma olhada de baixo Escritor de trajetória ascendente, Osman
para o edifício do B.B., símbolo de uma orga- Lins publica em 1973 o seu trabalho mais
nização potente e gigantesca – que, em mais arrojado, Avalovara, que chegou ao topo
de 27 anos, não conseguira absorver-me ou das listas de best-sellers na época. No Brasil,
esmagar-me entre seus dentes –, desci a rua,
o livro teve recepção semelhante à de Gran-
apanhei um táxi e fui embora. Perto de casa,
de sertão: veredas, de Guimarães Rosa, em
saltei, entrei numa mercearia e comprei uma
1956. Muita gente torceu o nariz. O que é
garrafinha de vinho para tomá-lo no jantar, à
noite, com J. [Julieta], comemorando o fim da diferente sempre incomoda. (Aliás, uma das
minha servidão.” funções da arte é incomodar os acomoda-
dos.) Leitores médios e críticos apressados
Esse texto está no livro póstumo Quero consideraram o romance de Osman Lins di-
falar de sonhos, publicado em 2014. É im- fícil e hermético.
portante registrar que Osman Lins foi um Hermético? O poeta João Cabral de
funcionário de competência reconhecida Melo Neto disse numa entrevista: “O her-
pela direção do banco, como lembra seu ex- metismo depende mais do leitor do que do
-colega de trabalho e grande amigo, Lauro autor.” Em outro romance, A rainha dos
de Oliveira, no artigo publicado em O sopro cárceres da Grécia, o narrador osmaniano
na argila e em outro texto no livro dele, Os- cita uma frase de Sartre – a obra só existe
man Lins: vocação ética, criação estética. no nível de capacidade do leitor.
Dois anos depois de aposentado, o es- Pois bem, um crítico enxergou “bana-
critor é convidado pelo BB a participar de lismos” (banalismo é uma palavra que não
uma exposição de trabalhos de funcionários existe em nenhum dicionário, nem no Volp,
e ex. Na carta de recusa, Osman Lins afir- daqui da Academia) em Avalovara e viu eru-
ma que seus livros não foram escritos por dição em “a glande dos iólipos é gélida”.
ser funcionário do banco, mas apesar de o (Ele disse bobagem – porque iólipos são se-
ser. Acrescenta “não ter o mínimo interesse res inventados por Osman Lins como metá-
em contribuir para oferecer ao público uma fora do opressor.) Em artigo sob o maldoso
24 • Hugo Almeida
título de “Siga a bula”, outro crítico tentou Avalovara foi escrito em plena ditadura
desqualificar o livro por causa do encarte militar. Por meio de Abel, narrador e perso-
“A magia de Osman”, elaborado por José nagem, Osman Lins expressa sua posição:
Paulo Paes, sobre os fios narrativos e a ge- “Preciso ainda saber se na verdade existe a
nial estrutura do romance. Um quadrado indiferença: se não é – e só isto – um disfarce
(limite do espaço) e uma espiral (o tempo da cumplicidade. Busco as respostas dentro da
noite e é como se estivesse nos intestinos de
infinito) abrigam o palíndromo latino Sator
um cão. [...] Ouço: ‘A indiferença reflete um
Arepo Tenet Opera Rotas (“O lavrador man-
acordo, tácito e dúbio, com os excrementos’.
tém cuidadosamente a charrua nos sulcos” Não, não serei indiferente.”
ou “O criador mantém cuidadosamente o
mundo em sua órbita”). Cada uma das oito No prefácio ao livro, Antonio Candido
letras diferentes da frase de 25 letras – que pergunta: “Romance? Poesia? Tratado de
se repetem no giro da espiral – corresponde narrativa? Visão do mundo?”. Ele comple-
a um tema. ta: “No universo sem gêneros literários da
Na França, Avalovara encantou os crí- literatura contemporânea, o livro de Osman
ticos de imediato. Viram logo tratar-se de Lins se situa numa ambiguidade ilimitada.”
um livro “ambicioso”, de “intensa poesia”, E conclui: “Avalovara representa na literatu-
“deslumbrante”, “uma verdadeira obra- ra brasileira atual um momento de decisiva
-prima”, como Gaby Kirsch registra em modernidade.”
artigo sobre a recepção da obra osmania- Já é bastante conhecida a frase de Julio
na na Europa incluído em O sopro na ar- Cortázar sobre esse romance, mas vale a
gila. Também em universidades do Brasil e pena repeti-la: “Se eu tivesse escrito Ava-
do exterior, estudiosos de Osman Lins em lovara não teria por que escrever durante
pouco tempo começaram a desvendar esse 20 anos.”
romance inovador, repleto de belezas e se- Três anos depois, Osman Lins, obstina-
gredos. E os estudos não cessam. do, publica mais dois livros. Sua tese de
Avalovara não trata apenas de Abel, es- doutorado, Lima Barreto e o espaço roma-
critor inédito que escreve um ensaio, A via- nesco, e A rainha dos cárceres da Grécia,
gem e o rio, e que ama três mulheres, em romance “mais complexo ainda que Avalo-
épocas diferentes: Anneliese Roos, compos- vara”, segundo Maryvonne Lapouge, tra-
ta por cidades, símbolo do espaço; Cecília, dutora de sua obra para o francês.
que tem o corpo formado por homens, e Em História Concisa da Literatura Brasi-
a mulher cujo nome é um símbolo gráfico, leira, o professor, e acadêmico desde 2003,
síntese de carne e verbo. O romance se des- Alfredo Bosi (tive a felicidade de ter sido seu
dobra ao infinito. aluno), refere-se a Avalovara e a A rainha
Em sinfônica modulação, há inúmeras dos cárceres da Grécia como “dois roman-
histórias e camadas no texto: arte, música, ces sustentados por um forte empenho
o erudito e o popular, o sagrado e o profa- construtivo e estilístico”.
no, o tempo mítico e o histórico, a Terra e o Massaud Moisés aplaude os dois ro-
universo, a transcendência e o cotidiano, a mances no volume dedicado ao Modernis-
questão política e social. mo de sua História da Literatura Brasileira.
O sma n L i n s , 40 a n os d e p o is , m a is at ua l • 25
para o cinema por Joel Yamaji, cineasta for- Lins: o romance que ele deixou inacaba-
mado pela Escola de Comunicações e Artes do, A cabeça levada em triunfo, poderá ser
(ECA), da USP; Maria Teresa Dias, doutora publicado em breve, resultado do trabalho
em Letras pela mesma universidade e auto- com os originais desenvolvido por Francis-
ra de Um teatro que conta, sobre a drama- co José Gonçalves Lima Rocha, em pós-
turgia osmaniana, e o produtor Davi Heller. -doutorado na USP; e Nelson Luís Barbosa,
Em 1977, um ano depois de A rainha, também em pós-doutorado na USP, prepa-
Osman Lins organizou e publicou a pio- ra a edição crítica da correspondência entre
neira e bonita homenagem a Machado de Osman Lins e Hermilo Borba Filho. E há 15
Assis, Missa do galo – Variações sobre o dias, a Editora da Universidade Federal de
mesmo tema, reunião de contos dele, de Pernambuco relançou Do ideal e da glória
Julieta, Antônio Callado, Autran Dourado, e Evangelho na taba num só volume, com
Lygia Fagundes Telles e Nélida Piñon. No o título de Problemas Inculturais Brasileiros,
mesmo ano, lançou a divertida história in- organizado por Fábio Andrade.
fantil O diabo na Noite de Natal, uma festa É cada vez mais vasta e rica a bibliografia
de personagens como Super-Homem (de sobre o autor. Além dos livros já menciona-
voz fina), Chapeuzinho Vermelho, Capitão dos, preciso lembrar mais alguns: Cabeças
Gancho e um capetinha penetra e medro- compostas: a personagem feminina na nar-
so. Esse livro foi reeditado em 2005 e está rativa de Osman Lins, de Ermelinda Ferreira,
esgotado. Também em 77, lança Do Ideal e que ainda organizou o volume de ensaios
da Glória, artigos sobre “problemas incultu- Vitral ao Sol. Juntamente com Zênia de Faria,
rais brasileiros”. Por enquanto, são quatro Ermelinda organizou também Osman Lins:
os livros póstumos. Em 78, pouco depois da 85 anos, a harmonia de imponderáveis.
morte do escritor saiu o volume Casos espe- De Odalice de Castro e Silva, A obra de
ciais de Osman Lins. (Julieta me contou que arte e seu intérprete – Reflexões sobre a
ele chegou a ver a capa do livro no hospital, contribuição crítica de Osman Lins. Elizabe-
mas não deu tempo de ver o livro pronto. E th Hazin tem enriquecido os estudos osma-
ele perguntou sobre um quarto caso, então nianos com vários livros coletivos, como O
ela acha que ele tinha ideia de escrever mais nó dos laços; Linscritura; Palindromia; e Nú-
um episódio para televisão.) Evangelho na meros e nomes: o júbilo de escrever. Com
taba, como já disse, foi publicado em 1979. Leny da Silva Gomes e Odalice de Castro,
Em 2013, Ana Luiza Andrade organizou Elizabeth organizou também No reverso do
a edição trilíngue (português, espanhol e tapete – a escritura de Osman Lins.
inglês) da novela Domingo de Páscoa. Em Dois estudos sobre Avalovara: A gargan-
2014, saiu Quero falar de sonhos, de arti- ta das coisas, de Regina Dalcastagnè; e O
gos críticos anteriores a Avalovara, organi- voo da criação literária, de Harley Farias Dol-
zado por mim e Rosângela Felício dos San- zane, livro publicado neste ano e que tive o
tos (e quase todos artigos foram publicados privilégio de prefaciar. (E hoje tenho a sorte
no Estadão, nos anos 50 e 60). de contar com a presença dele na plateia.
Além do filme em produção, mais três Veio de Belém, ele estuda na Universidade
boas notícias a respeito da obra Osman Federal do Pará.)
O sma n L i n s , 40 a n os d e p o is , m a is at ua l • 27
começam em uma das duas epígrafes: uma em duas páginas. Além disso, eliminou-se
estrofe do poema “O engenheiro”, de João a simetria, “o esplendor da ordem”. A pa-
Cabral, está em forma de prosa (nas primei- lavra Lã, no centro do texto, uma embai-
ras edições, o poema está certinho lá). xo da outra, ficou desalinhada e perdeu o
Além disso, nota de pé de página incluí- destaque do negrito, bem como as outras
da no posfácio de José Paulo Paes, “Pala- palavras em letras maiúsculas (todas ligadas
vra feita vida”, afirma que o texto citado ao ato de fiar, tecer ou bordar).
por ele, “Nove, novena novidade”, de João Isso é tudo?
Alexandre Barbosa, foi publicado em 1975 Não; infelizmente, não. O início do tex-
como prefácio de... A-va-lo-va-ra. Parece to também foi alterado. E de tal maneira
coisa de pequena monta, mas é uma in- absurda, arbitrária, que ficou sem sentido.
coerência que o próprio título do texto de Algo inacreditável. Na primeira linha do ori-
João Alexandre – repito, “Nove, novena no- ginal, podemos ler:
vidade” – já evidencia. Como no caso dos “Os que fiam e tecem unem e ordenam
versos de João Cabral, um equívoco reim- materiais dispersos que, de outro modo, se-
presso cinco vezes, desde 1994! riam vãos ou quase.”
Isso não é tudo. Há problemas muito
Vejam o que a frase virou na reedição
mais sérios no miolo do volume, especial-
(até dói ler isso):
mente na narrativa central, “Retábulo de “Os que fiam-se unem e ordenam mate-
Santa Joana Carolina”. Logo nela... riais dispersos que...”
Vejamos a abertura do Sétimo Mistério
nas três primeiras edições. É um texto orna- Fiar, de preparar o fio, do texto original,
mental, simétrico, em que o autor aproxima virou confiar em si mesmo (sem falar na co-
a tessitura de uma narrativa do trabalho de locação pronominal dessa nova frase que
rendeiras e bordadeiras. Nas edições ini- mutila a arte de Osman Lins). E para onde
ciais, o bloco que abre o Sétimo Mistério foi a palavra “tecem”?
está inteiro numa única página. Não pode- Osman Lins morreu em 78, esse livro
ria ser diferente. saiu em 94. Certamente, ele não autorizaria
Atento às lições de Horácio e Pitágoras, a edição com esses problemas. E talvez as
Osman Lins buscava a beleza no texto. Qual filhas dele e a Julieta tenham se queixado
o conceito de belo em Horácio?, pergunta com a editora, mas pelo jeito não foram
Dante Tringali no prefácio à sua tradução ouvidas.
de A arte poética do poeta e filósofo latino. Há reparos a fazer ainda na narrativa
Ele mesmo responde: “É o belo pitagórico, “Os confundidos”, de Nove, novena, e no
matemático, que se funda no esplendor da romance A rainha dos cárceres da Grécia.
ordem, a unidade na multiplicidade, onde Se não houver o máximo de rigor nas re-
nada fica fora de lugar.” edições, em poucos anos a obra de Osman
Vamos ver agora como ficou a abertura Lins estará bastante desfigurada. Os leito-
do Sétimo Mistério do “Retábulo” na quar- res de futuras reedições não vão conhecer
ta edição de Nove, novena – cinco vezes a beleza do seu texto. Aí, sim, muita gente
reimpressa! O bloco do texto foi dividido vai poder dizer – nesse caso de mutilações
30 • Hugo Almeida
– que a literatura dele é difícil, complicada, Leyla Perrone-Moisés afirma que o ro-
etc. Mas não será o texto que o autor es- mancista “foi quase um solitário, por índole
creveu. e escolha”. No artigo “O lugar de Osman
Agora, a lista dos livros de Osman Lins Lins na literatura brasileira”, publicado em
(os quatro últimos são póstumos): O visi- Nove, novena, noventa, organizado por
tante, romance, 1955; Os gestos, contos, Sandra Nitrini, Leyla acrescenta: “Como es-
1957; O fiel e a pedra, romance, 1961; Lis- critor, não se sentia integrado em nenhum
bela e o prisioneiro, peça, 1961 (estreia); projeto coletivo”; [...] “fazia questão de iso-
Marinheiro de primeira viagem, 1963; lar-se”. Ela destaca ainda que Osman “não
Nove, novena, narrativas, 1966; Capa-Ver- gostava de ser associado a nenhum movi-
de e o Natal, peça infantil, 1967; Guerra do mento, brasileiro ou internacional”.
“Cansa-cavalo”, peça infantil, 1967; Guerra É verdade. Contudo, é preciso dizer que
sem testemunhas, ensaio, 1969; Avalovara, o fato de Osman Lins não querer integrar
romance, 1973; Santa, automóvel e solda- correntes ou grupos literários não significa,
do, teatro, 1975; A rainha dos cárceres da de modo algum, distância de seus pares.
Grécia, romance, 1976; Lima Barreto e o Osman Lins cultivou sólidas e duradouras
espaço romanesco, ensaio, 1976; Do ideal amizades com escritores e intelectuais. Em
e da glória, ensaios, 1977; La Paz Existe?, Guerra sem testemunhas, foi enfático: “Inu-
relato de viagem (com Julieta de Godoy La- tilmente buscará o homem nas coisas o que
deira), 1977; O diabo na noite de Natal, in- só pode encontrar no convívio humano”.
fantil, 1977; Casos especiais de Osman Lins, Disse numa entrevista: “Tudo o que eu escre-
para TV, 1978; Evangelho na taba, organi- vo, por mais abstrato que possa parecer, está
zado por Julieta de Godoy Ladeira, 1979; intimamente ligado a meus semelhantes”.
Domingo de Páscoa, novela, 2013; e Quero Osman Lins na ABL? Para chegar à respos-
falar de sonhos, artigos, 2014. ta, não posso fazer conjecturas. Tenho de me
basear na sua conhecida personalidade e no
testemunho de quem conviveu com o escritor.
5. Osman Lins na Academia? A resposta, indireta, ouvi de uma pessoa
Bem, entro agora no quinto e último bem próxima a Osman Lins. Ela me disse
tópico, o tema deste Ciclo de Conferên- que ele não gostava nem de ouvir falar em
cias, a Cadeira 41. É dez mil vezes louvável, uma eventual candidatura...
Ana Maria, sua iniciativa de lembrar, nes- Osman Lins tinha bons amigos nesta
sa homenagem póstuma, autores ausentes Casa, apoiava e respeitava todo esforço em
da Academia Brasileira de Letras. Repito a defesa das letras e certamente aplaudiria
pergunta-título desta parte: Osman Lins na este Ciclo de Conferências, mas não creio
Academia? que se candidataria...
Não resta um grão de dúvida, como di- Entretanto, isso não o impede de tam-
ria Machado de Assis, que Osman Lins me- bém ser imortal. O autor de Nove, novena;
recia um lugar nesta Casa. Avalovara e A rainha dos cárceres da Grécia
Mas, avesso a grupos, será que ele que- está vivo nos livros, porque sua obra, como
ria ser acadêmico? toda grande arte, é imperecível.
CICLO PATRIMÔNIO CULTURAL
Arno Wehling
Ocupante da Cadeira 37 na Academia Brasileira de Letras.
A
s perdas do patrimônio cultural da com seu culto erudito e estético da Anti-
humanidade foram diversas ao lon- guidade, mas não seria justo ignorar o in-
go da história, muitas vezes a ponto teresse pela tradição cultural demonstrada
de comprometer o conhecimento sobre de- nos mosteiros medievais e pelos intelectuais
terminadas culturas. Tais perdas se deveram, bizantinos e da Espanha muçulmana.
como sabemos, a fatores diversos, catástro- A consciência do valor do passado como
fes naturais muitas vezes e também ainda patrimônio, no entanto, emerge mais re-
mais frequentemente situações provocadas centemente, na Revolução Francesa, ante o
pelo homem, por ação ou omissão. Destas, risco de perdê-lo. O profundo antagonismo
talvez a mais antiga seja a destruição mútua ao Antigo Regime, acentuado na radicali-
de monumentos e documentos no Egito fa- zação do processo revolucionário em 1792,
raônico realizada pelos seguidores de Amon com a extinção da monarquia e o regime da
e de Aton e determinada pelos respectivos Convenção, fez com que seus símbolos se
sacerdotes. O incêndio da biblioteca de Ale- tornassem alvo de destruição. A estátua de
xandria no I século a.C. provavelmente é Luís XIV foi derrubada na insurreição popu-
o marco mais emblemático, mas não ficou lar de agosto de 1792, e logo a assembleia
atrás a destruição da biblioteca de Constan- legitimou a erradicação de monumentos da
tinopla em 1453 e em nossa própria época monarquia, argumentando:
o que ocorreu às bibliotecas nacionais de Sa- “os princípios sagrados da liberdade e da
rajevo, em 1992, Bagdá em 2003 ou as su- igualdade não mais permitem deixar por mais
tempo ante os olhos do povo francês monu-
cessivas destruições de monumentos histó-
mentos erguidos ao orgulho, ao preconceito
ricos no Afeganistão, Síria, Iraque e Mali. O
e à tirania.”
Brasil, infelizmente, consta da relação com a
perda do acervo, ainda não dimensionada, A destruição continuou frequentemen-
do Museu Nacional. te associada ao saque, até que dois anos
Na cultura ocidental a consciência do va- depois, em agosto de 1794, o abade Gre-
lor do passado enraíza-se no Renascimento, gório liderou um movimento em favor do
Conferência pronunciada na Academia Brasileira de Letras em 4 de outubro de 2018.
32 • Arno Wehling
Joaquim Falcão
Ocupante da Cadeira 3 na Academia Brasileira de Letras.
à condição de manifestação cultural nacional e de pa- pios promoverão e incentivarão o turismo como fator
trimônio cultural imaterial”. de desenvolvimento social e econômico”
A c o ns t i t u i ç ã o e o pat r i m ô n i o c u lt u r a l • 39
4. O
direito de ler, de ver, e cional foi a proibição da exposição “Que-
ermuseu”, que começou em Porto Alegre.
a proteção dos menores
Depois em São Paulo e em seguida no Rio
O Colégio Santo Agostinho no Rio de Ja- de Janeiro.
neiro adotava, há anos, o livro de ficção Meni- Uma característica desta neocensura é
nos sem pátria que contava as dificuldades de que ela não é estatal. É da sociedade tam-
um menino brasileiro para, como emigrante, bém: como museus, escolas privadas, pa-
adaptar-se em outro país. Para onde seus pais trocinadores privados, bancos, igrejas.
foram morar por questões políticas. E é exercida não em nome da preserva-
No caso, os pais emigraram do Brasil por ção da força política estatal, mas em nome
causa do regime militar não democrático de de valores culturais constitucionalmente
1964. protegidos.
Recentemente, em 2018, um grupo de Como a proteção dos menores, à famí-
pais pressionou o colégio para não mais lia, à religião, e por aí vamos.
adotar o livro, por motivos político-ideo- No fundo, a antinomia jurídica quase
lógicos. O livro induziria críticas ao regime sempre materializa latente conflito de valo-
militar. Não queriam que seus filhos fossem res culturais.
expostos a tanto. No Rio de Janeiro, em 2017, o cartaz
A direção do Colégio Santo Agostinho da exposição sobre o patrimônio histórico
cedeu à pressão dos pais e deixou de adotar na Caixa Cultural foi censurado pelo Face-
o livro. book, que julgou haver material de “nudez
Eis outro exemplo de antinomia. Entre e conteúdo sexual” no cartaz.
a liberdade de expressão do artigo 5.° da
Constituição, e a proteção ao menor do ar-
tigo 227, que os pais pretendiam exercer.
Estariam proibindo crianças de ler livros
sobre o Brasil? Antônio Cândido dizia que
um dos direitos humanos era o direito ao
prazer da leitura, da literatura.
A Constituição abrigaria uma espécie de
censura ideológica praticada em nome da
proteção ao menor?
Fato similar ocorreu em festival de Gara-
nhuns, Pernambuco, em 2018.
O governo de Pernambuco cede à pres-
são e proíbe uma peça de teatro que ele
próprio financiara. Uma encenação cujo pa-
pel de Jesus Cristo foi conduzido por uma
atriz transexual. Figura 2. Peca de divulgação da exposição
O episódio recente mais simbólico de “A construção do patrimônio”, sediada na
ameaça à liberdade de expressão constitu- Caixa Cultural.
40 • Joaquim Falcão
6. O
constitucionalismo proteção aos menores, inexiste ainda uma
decisão clara em nível constitucional.
de realidade
A resolução desta antinomia tem sido
Retomo o desenrolar da antinomia não judicial, mas tem prevalecido a disputa
constitucional – patrimônio versus fauna – sobre quem detém o poder e a competên-
presente na Vaquejada. cia legal inicial para, de fato, decidir.
O Ministro Marco Aurélio apontou para Explico. O patrocinador privado decide
a crueldade aos animais. Entre a crueldade se quer ou não apoiar uma exposição com
e o patrimônio cultural, o Supremo deveria seus direitos de propriedade – recursos fi-
defender o primeiro. nanceiros ou imóveis culturais dentro de
A crueldade intrínseca à vaquejada não seu livre convencimento.
permite a prevalência do valor cultural como
O prefeito, dentro da competência ad-
resultado desejado pelo sistema de direitos
ministrativa de gerir os museus municipais,
fundamentais da Carta de 1988.
decide se é conveniente ou não para sua po-
A Vaquejada foi considerada inconsti- lítica cultural. Ou estabelece, por exemplo,
tucional. O Estado do Ceará e a sociedade idade mínima para o acesso de menores.
reagiram. Propuseram ao Congresso Emen- Os pais se responsabilizam por levarem
da Constitucional ao artigo 225, reiterando ou não seus filhos às exposições como “La
a prática como “bem de natureza imaterial” Bête”, no MAM de São Paulo.
e prevendo regulamentação por lei que ga- Os pais exercem o direito de escolher a
ranta o bem-estar dos animais. escola, e a direção da escola de indicar ou
Foi aprovada. proibir livros.
Mas em seguida, a Procuradoria-Geral Novos tempos, novas antinomias. Novas
da União foi ao Supremo pedir que esta decisões que a sociedade tem que fazer.
emenda fosse considerada inconstitucional. A primeira de todas é: quem resolve a
Aguarda-se julgamento. antinomia de normas conflitantes? O Esta-
O que podemos dizer numa análise ba- do ou a Sociedade?
seada no constitucionalismo de realidades? O estado através de quem? Do Judiciário?
A antinomia – patrimônio versus meio Do Executivo, do ministro da Justiça? Ou pelo
ambiente, fauna – passou a ser além de um Congresso, através de emendas ou novas leis?
conflito entre normas, materializou-se um Quem protege o menor? O estado, atra-
conflito entre os poderes normativos: Con- vés dos conselhos. Os pais? As escolas?
gresso e Supremo. E a disputa continua. Até Quem decide o que é arte e o que é por-
quando? nografia, e o acesso dos cidadãos?
Não vejo na democracia harmonia entre Até que ponto a sociedade deve sempre
poderes. Vejo permanente e inconclusiva judicializar suas próprias responsabilidades
tensão entre poderes. No máximo, como para o juiz?
Verdi e Nélida Piñon partilham, de uma re- Vivemos tempos interessantes. O mono-
côndita harmonia. Fugaz, acrescento eu. pólio cultural das decisões simples e óbvias
No que se refere à outra antinomia en- está se desfazendo.
tre o direito de ler, ver, e se expressar e a Se é que algum dia existiu.
Uma breve trajetória do patrimônio
cultural brasileiro: políticas, atores,
perspectivas
N
este artigo, serão apresentadas con- constatar que essa suposta relevância pare-
siderações feitas com base não ape- ce se restringir ao reconhecimento da im-
nas em leituras e pesquisas, como portância desses bens culturais como sím-
também em já longa experiência no campo bolos de uma identidade coletiva, mas sem
das políticas nacionais de patrimônio cul- um compromisso mais profundo e presente
tural no Brasil. Esse é – para usar uma ex- no quotidiano por parte dos cidadãos.
pressão da moda – o meu ”lugar de fala”. Como entender a noção de “patrimô-
E o meu propósito, portanto, é abordar o nio”, termo a que as pessoas em geral se
patrimônio cultural enquanto objeto de po- referem com reverência e admiração, cujo
lítica pública, com foco no papel do Estado sentido, porém, parece distante de suas
e, sobretudo, da sociedade nesse processo, vivências, e, sobretudo, de suas necessi-
como também no lugar desse tema na vida dades? Afinal, a que se refere exatamente
dos cidadãos brasileiros. esse termo?
Pois acontecimentos recentes1 vieram Se buscarmos a via da etimologia como
demonstrar, de forma trágica, que, embora ponto de partida, veremos que o termo
no nível dos discursos e das intenções, não “patrimônio” remete a propriedade fami-
apenas de autoridades e de políticos, como liar (pater) e a memória, fazer lembrar (mo-
dos cidadãos em geral, o tema do patrimô- nere), também raiz da palavra monumento.
nio cultural e de sua preservação seja con- À ideia de posse é acrescentada a de trans-
siderado uma pauta positiva, importante, e missão, herança, no sentido de uma relação
que mobiliza todos em momentos de evi- entre gerações mediada por determinados
dente crise – quando essa causa passa a ser bens que são transmitidos ao longo do tem-
defendida no interesse de toda a sociedade po. Nesse sentido, patrimônio não é só o
– no nível da atuação continuada e da roti- que se recebe, mas também o que se deseja
na dessa política podemos, por outro lado, transmitir. E, nesse sentido, é fundamental
1 Refiro-meao incêndio nas dependências do Museu Na-
que esse compromisso seja assumido a cada
cional da UFRJ, ocorrido em 2 de setembro de 2018. geração.
Conferência pronunciada na Academia Brasileira de Letras em 11 de outubro de 2018.
44 • Maria Cecilia Londres Fonseca
medida em função dos constantes cataclis- participação dos diferentes grupos na pre-
mas climáticos que abalam essas ilhas do servação, como a consideração de suas
Pacífico, desenvolveu outras orientações concepções próprias de “patrimônio”, no-
para a preservação de sua cultura material, ção entendida por essa disciplina como “ca-
que foram expressas em trecho abaixo cita- tegoria de pensamento” comum a qualquer
do da Carta de Nara, de 1994, em evento grupo humano, e não “simplesmente uma
organizado pela UNESCO nessa cidade, an- invenção moderna” (GONÇALVES, p. 22).
tiga capital do império nipônico. Nela está No Brasil, várias experiências na identi-
situado o templo de Todai-ji, até 1998 a ficação, documentação e reconhecimento
maior construção em madeira do mundo, e do valor cultural de bens que Aloísio Ma-
que foi reconstruído duas vezes, com base galhães (1985, p. 53), nos anos oitenta,
em conhecimentos tradicionais preserva- denominou como “patrimônio não con-
dos na figura de mestres artífices, categoria sagrado”, subsidiaram os trabalhos da
que, logo após a Segunda Guerra Mundial, Constituinte, e foram fundamentais para
passou a ser reconhecida e apoiada pelo a formulação dos artigos 215 e 216 da
governo japonês, visando a apoiar a trans- Constituição Federal de 1988, modificando
missão desses saberes. radicalmente o tratamento dado ao tema
Todos os julgamentos acerca de valores nas constituições brasileiras anteriores, na
atribuídos às propriedades culturais, bem como medida em que se amplia a noção do agora
a credibilidade das correspondentes fontes de
denominado “patrimônio cultural brasilei-
informação, podem diferir de cultura para cul-
tura, e mesmo dentro de cada cultura. Não é,
ro” e se diversificam os instrumentos para
por isso, possível basearem-se os julgamentos sua preservação.
de valores e de autenticidade de acordo com Já em 1986, dois tombamentos “fora
critérios fixos. Pelo contrário, o respeito devido da curva” – o do Terreiro da Casa Branca, o
a todas as culturas exige que as propriedades de mais antigo terreiro de candomblé em Sal-
património sejam consideradas e julgadas den- vador e, em seguida, o da Serra da Barriga,
tro dos contextos culturais a que pertencem.
em Alagoas, onde se situou o Quilombo
Essa iniciativa da UNESCO veio viabilizar dos Palmares – haviam trazido, para a es-
a inscrição, na Lista do Patrimônio Mundial, fera nacional da proteção do patrimônio,
de bens antes não considerados enquanto bens de matriz afro-brasileira. Entretanto,
patrimônio cultural passível de ser reconhe- não se vislumbrava possibilidade de inclu-
cido por esse organismo, o que resultou são no patrimônio cultural nacional, pelos
em um avanço significativo na qualificação instrumentos legais disponíveis, das cultu-
desse repertório em termos de retrato da ras indígenas, e de grande parte das mani-
diversidade cultural da humanidade. Para festações das culturas populares. Por outro
a adoção dessa noção ampla e flexível de lado, a Constituição Federal de 1988, em
patrimônio por parte de políticas públicas seus artigos 215 e 216, veio reconhecer
ocidentais tem sido fundamental a contri- para todos os cidadãos brasileiros os direi-
buição da antropologia, que trouxe uma tos culturais, assim como a necessária par-
base teórica e metodológica para essa ticipação da comunidade como parceira do
nova abordagem, que exige não apenas a Estado na proteção do patrimônio cultural.
U ma breve trajetória do patrimônio cultural brasileiro : políticas , atores , perspectivas • 49
Marcia Sant’Anna
Doutora em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Bahia, Professora da Faculdade de
Arquitetura e Professora Permanente do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFBA.
Minas Gerais assinalavam, nesse contexto, isolados foram protegidos nesses contextos
o momento de construção da brasilidade urbanos. O tombamento de cidades, até o
como forma de ser, viver, criar e construir, final dos anos 1950, ficou restrito a núcleos
e funcionavam, ainda, como testemunhos urbanos menores, que estavam mais ou
históricos da sua formação, cultura e arte. menos à margem da dinâmica socioeconô-
Os valores cognitivos e estéticos atribuí- mica da época. Nesses núcleos, contudo, o
dos a elas foram sintetizados na expressão desejo de modernização também impera-
“cidade-monumento”, correntemente utili- va, o que colocava as municipalidades em
zada pelos fundadores do IPHAN nos anos conflito com o IPHAN. Além disso, esses
1930 e 40. Uma expressão que transmite tombamentos eram feitos sem diálogo, o
uma visão dessas cidades como obras de que afastava ainda mais as instâncias muni-
arte unitárias e íntegras, vinculadas ao ur- cipais e os habitantes das tarefas de preser-
banismo que floresceu no interior do Brasil vação. O resultado geral foi uma crescente
no século XVIII. Essa noção orientou a prá- atuação do Instituto em tarefas municipais,
tica de preservação do patrimônio urbano como controle, licenciamento e fiscalização
naqueles tempos e ecoa até hoje, expres- de intervenções, mas sem as competências
sando-se concretamente no aspecto integro e os instrumentos urbanísticos e de política
e homogêneo que essas cidades adquiriram urbana adequados.
a partir da própria atuação do IPHAN.
Mas essa cidade-monumento não fun-
Uma nova função para o
cionava necessariamente em sintonia com
a cidade real. Desde cedo, o IPHAN foi obri-
patrimônio das cidades
gado a lidar com dinâmicas urbanas de cres- Esse modo centralizado de atuar na ges-
cimento e transformação com instrumentos tão das cidades tombadas entrou em crise
inadequados. O instituto do tombamento, nos anos 1950 com o avanço da indus-
por exemplo, não explicita em seu texto trialização do país e com novas dinâmicas
nem um só efeito direta ou claramente apli- que emergiram nessas cidades, devido à
cável ao contexto urbano. A ideia inicial de instalação de indústrias que tornaram algu-
que as prefeituras atuariam como execu- mas delas polos de atração populacional.
toras e gestoras das ações de preservação, Além disso, novas formas de utilizar e gerir
mediante os instrumentos urbanísticos de o patrimônio nos países europeus, após a
que dispõem, malogrou no nascedouro. Segunda Guerra, vinculadas ao turismo cul-
Os anos 1930 foram também marcados tural e ao planejamento urbano, ecoam no
pela ascensão e a progressiva hegemonia da Brasil nos anos 1960, levando a mudanças
noção de “moderno” como ideologia orga- significativas.
nizadora do cenário social, cultural e artís- No final dos anos 1960, como resulta-
tico. Ser “moderna” era, assim, uma meta do de uma cooperação estabelecida com
de cada cidade, e os fundadores do IPHAN a UNESCO, novas diretrizes para a preser-
a acolhiam principalmente nas grandes ca- vação do patrimônio urbano foram estabe-
pitais. Por isso, nessas primeiras décadas lecidas com consequências importantes na
de atuação institucional, apenas edifícios seleção de cidades a serem protegidas, no
P olíti c a u rb a n a e pat r im ô n i o : m o n ume n to , d o cu m e n to e e s p e t ác u l o • 55
e sua conservação adquiriu objetivos mais centralizada e mesmo, por vezes, autoritária
paisagísticos e menos atrelados à restaura- que o IPHAN ainda mantinha com relação ao
ção ou recomposição de cenários históricos. que tombar e como gerir a coisa tombada,
A interpretação modernista do nascimento embora, no que toca ao patrimônio urbano,
identitário e cultural do Brasil nas cidades alguns avanços devam ser registrados. Nes-
mineiras foi sendo, assim, superada pela se sentido, cabe ressaltar a emergência de
valorização econômica e pragmática dos uma nova concepção de patrimônio urbano
cenários pitorescos do Nordeste. que valorizava as cidades como documen-
tos da consolidação do território nacional e
dos processos históricos de formação, de-
Uma revolução conceitual
senvolvimento e produção do espaço urba-
e política no. Essa concepção, que proponho denomi-
Os anos 1980 foram marcados pelo fim nar de “cidade-documento” (SANT’ANNA,
da ditatura militar, pelas consequências da 2014, pp. 261-321), promoveu impactos
crise econômica e financeira dos anos 1970 significativos na seleção de cidades para
e pelo processo de redemocratização do tombamento e também na conservação das
país. Nesse processo, a cultura foi afirmada que já estavam tombadas. As áreas urbanas
como um direito fundamental dos cidadãos deixaram de ser selecionadas apenas com
brasileiros, surgindo na Constituição de base em seus atributos estéticos e paisagís-
1988 uma nova concepção de patrimônio ticos, passando a ser escolhidas em função
cultural, que, conceitualmente, colocou por dos elementos e informações que contêm
terra aquela praticada desde os anos 1930. sobre esses processos históricos. Com isso,
O patrimônio cultural foi redefinido em suas os elementos associados ao patrimônio ur-
dimensões material e imaterial e nas suas bano se estenderam para além das edifica-
variadas expressões, a partir de um vínculo ções, incorporando-se as características do
fundamental estabelecido com os “grupos sítio físico, da trama viária, do parcelamen-
formadores da sociedade brasileira”.1 Esses to, das formas tradicionais de ocupação do
grupos, oriundos de várias matrizes cultu- solo e das relações entre o construído e o
rais, foram, por sua vez, definidos como não-construído, em seus traços originais
sujeitos e intérpretes do patrimônio, além e também naqueles transformados pelo
de agentes fundamentais para sua conser- processo histórico. Setores urbanos, antes
vação e gestão. A competência, antes ex- definidos como “feios”, heterogêneos ou
clusiva do Estado e seus representantes, de fragmentados, cuja proteção, até então,
determinar o que é patrimônio desloca-se era impensável, surgem valorizados como
para a sociedade. Ao poder público, cabe documentos fundamentais para a memória
agora, principalmente, a função de apoiar urbana e social.
esse processo de construção social. A conservação dessa cidade-documento
Essa nova e mais ampla concepção de deixou de ter, assim, objetivos estéticos e
patrimônio pouco repercutiu na forma de recomposição de cenários do passado.
Passa-se a defender a preservação das mar-
1 Artigo 216 da Constituição Federal. cas deixadas pelo tempo no espaço urbano,
P olíti c a u rb a n a e pat r im ô n i o : m o n ume n to , d o cu m e n to e e s p e t ác u l o • 57
como São Paulo, para o surgimento e forta- explica o surgimento dos mesmos produtos
lecimento de movimentos sociais que pas- imobiliários em áreas centrais, zonas de ex-
saram a reivindicar permanência e moradia pansão e em vazios urbanos das mais distin-
nas áreas centrais e, ainda, para o surgi- tas cidades do mundo.
mento de programas voltados para a pro- Na última década, diversos autores
dução habitacional nessas áreas, destinados (HARVEY, 2011; PIKETTY, 2014; JAPPE,
a faixas de menor renda.3 Essas iniciativas, 2015) têm apontado o esgotamento da ca-
contudo, esbarraram na fragilidade e na pacidade do sistema capitalista de produzir
inadequação da política e dos instrumentos crescimento econômico e de absorver exce-
de financiamento habitacional no Brasil e dentes de capital, bem como de incorporar
em entraves diversos de natureza urbana, à produção e, principalmente, ao consumo,
fundiária, tecnológica e política, o que pre- todo um contingente populacional margi-
judicou o seu desenvolvimento e resultados, nalizado. A exploração de mercados con-
a despeito de focalizarem demandas reais e sumidores emergentes mediante ampliação
de promoverem um uso socialmente mais do crédito para aquisição de imóveis e para
significativo do patrimônio urbano. produção do espaço urbano, assim como
a procura de taxas adequadas nos merca-
dos financeiros, têm sido as saídas mais
Desdobramentos
constantemente buscadas para essa crise
contemporâneos de acumulação. No que toca ao ambiente
Os acontecimentos da última década construído, essa busca por acumulação se
têm demonstrado a continuidade, no Bra- torna especulativa e tenta lucrar com a ex-
sil, desses processos de apropriação do pectativa de transformação, não importan-
patrimônio urbano deslanchados nos anos do se ela vai ou não se realizar. O espaço
1990. Em grande parte, porque a produção construído provê, assim, um conjunto de
do espaço urbano manteve-se, neste início ativos passíveis de exploração ou de títulos
do século XXI, como uma das principais negociáveis no mercado financeiro, que não
formas de acumulação de capital (HARVEY, têm vínculos necessários com demandas re-
2011, p. 143). Como aponta Raquel Rolnik ais de produção imobiliária ou de provisão
(2015, pp. 143-155), os sistemas de crédito de novas estruturas urbanas (Harvey, 2011,
que a apoiam têm como principal finalidade pp. 137-147).
a remuneração dos capitais investidos e isso Nos anos 1980 e 90, os projetos urba-
tem transformado os processos de reestru- nos esttratégicos, como visto, mantinham
turação urbana – inclusive os que envolvem um vínculo importante com o patrimônio
o patrimônio – em fronteiras abertas para urbano, mas o que se verifica agora é uma
o capital financeiro e imobiliário, o que relativa perda de importância desse aspecto.
Apesar de a paisagem urbana histórica per-
3 São exemplos o Programa de Revitalização de Sítios
negativamente por essas intervenções não GALIZA, Helena Rosa dos Santos. Reabilitação de Áreas
Centrais sem Gentrificação. (Tese de Doutorado). Rio
são mais, portanto, espectadores passivos, de Janeiro: UFRJ/FAU, 2015.
HALL, Peter. Cidades do Amanhã: uma história intelectual
mas sim, cada vez mais, atores fundamen-
do planejamento e do projeto urbanos no século XX.
tais das conjunturas nas quais essas novas São Paulo: Ed. Perspectiva, 1995.
HARVEY, David. O enigma do capital: as crises do capitalis-
atrações/explorações urbanas buscam se mo. São Paulo, SP: Boitempo, 2011.
enraizar. Só nos resta esperar que, na con- JAPPE, Anselm. We Gotta Get Out of This Place – In Con-
versation with Alastair Culture, September 8th, 2015.
juntura política atual, esses movimentos Disponível em: http://www.brooklynrail.org/2015/09/
field-notes/anselm-jappe-with-alastair-hemmens.
sociais possam continuar se expressando e
Acesso em 13/4/2016.
defendendo uma apropriação mais justa e MAGALHÃES, Aloísio. E Triunfo? A questão dos bens cultu-
rais no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; [Brasília]:
socialmente mais significativa do patrimô- Fundação Nacional Pró-Memória, 1985.
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Abr. 2016, vol.24, n.o 1, pp.15-58. 2017.
As falsas dicotomias do
patrimônio cultural
mãos é que o homem era a mais inteligente além de contarem com o complemento
das criaturas. Embora ele próprio, Aristóte- indispensável de artefatos, só atuam por
les, preferisse inverter o enunciado (mais ra- vetores sensoriais, corporais. Com aquele
cional é dizer que o homem tem mãos por- mesmo corpo que, como se viu, transita en-
que é o mais inteligente), a importância na tre as pessoas e as coisas.
controvérsia é que ambos expressam uma Na produção do patrimônio, de fato, os
postura neutralizadora da polaridade entre processos são sempre conservados como
a mão e a mente. Postura mais extraordiná- virtualidades e visíveis no imaterial; no pa-
ria, ainda, se considerarmos que a socieda- trimônio material, por sua vez, estão em-
de grega preponderantemente desprezava butidos no produto. Assim, acredito que,
a atividade manual que provocasse depen- neste último caso, não basta preservar os
dência, incompatível com o pleno domínio produtos, como se os processos estivessem
de si para o exercício da política. Marcel encerrados, mas levar em conta os proces-
Mauss, ecoando os antigos, consolida uma sos de sua produção, no sentido mais am-
linha de convergência na Antropologia con- plo – abrangendo aqueles, injustamente
temporânea: “o homem é um animal que desprezados, que continuam atuando no
pensa com os dedos.” presente e se projetam no futuro. Lembrar-
-se, por exemplo, de que o habitar faz a
habitação, tanto quanto a habitação faz o
Processo e produto (ou vivo
habitar. Com mais razão, “habitar um pa-
versus morto) trimônio” implica condições processuais
Na formulação da antropóloga M. Ma- específicas, que continuam ignorados sem
nuela Carneiro da Cunha, “a diferença en- qualquer justificativa, no caso de tomba-
tre ambos [patrimônio material / imaterial] mento de áreas urbanas ou cidades inteiras.
está na atitude que comandam, nas medi- Ignoramos, inclusive, as boas práticas que
das que elicitam. Conservar o patrimônio se multiplicam mundo afora.
material é, sobretudo, conservar objetos já Não há produto sem processo, nem
produzidos. O “imaterial”, contudo, não processo sem produto (inclusive no fracas-
consiste em objetos, mas sim na virtualida- so, como demonstra Timothy Carroll, em A
de de objetos, sua concepção, seu plano, cultura material do malogro). O processo no
o saber sobre eles. Conservar virtualidades, patrimônio material, insisto, está embutido
ou seja, o imaterial, é conservar processos”. na produção realizada – com todas as mo-
Com precisão, ela definiu a diferença, tivações, recursos, forças, saberes, valores
que é relevante. Todavia, julgo valer a pena etc. interagindo – e se encontra implícito
prevenir o caráter excludente que poderia ser nos usos (materiais e simbólicos) e apropria-
atribuído a essa diferença entre processo e ções no passado e no presente, inclusive
produto, e que, entre o patrimônio material nas representações sociais que alimentou e
e o imaterial, é sobretudo de escala e de vi- alimenta.
sibilidade. Convém lembrar, também, a função
Hábitos, práticas, manifestações, cele- de gatilho presente em certos artefa-
brações, saberes do patrimônio imaterial, tos, como acontece nos objetos afetivos,
As fa lsa s d ic oto m i as d o pat r i m ô n i o c u lt u r a l • 69
de algodão que chegou? Não. O reconhe- que David Lowenthal comenta. A resposta
cimento social da continuidade na alteração teria que partir da consideração de uma refe-
(eixo de referência) permitiu reconhecer a rência básica: forma ou substância? A auten-
mesma meia “de seda” de Sir John. ticidade depende de se aceitar a identidade
A identidade, nesta instância, não diz do barco como um equipamento de nave-
respeito a uma essência imutável, mas a gação morfologicamente específico (no caso
uma equivalência socialmente atribuída e ainda mais específico por vínculo a Teseu) ou
sancionada. Pessoalmente acredito que é em como uma coleção de pranchas, substâncias
nossas transformações corporais ao longo fragmentárias e efêmeras?
do tempo que temos a melhor ilustração da No Ocidente industrializado a tendência
identidade preservada a despeito das mu- dominante é fetichizar as coisas, na sua ma-
danças. Ainda que muitíssimo transformado, terialidade, o que leva a crer erroneamente
coincido com o mesmo bebê que nasceu que os significados e valores seriam ima-
muitas décadas atrás, embora as células de nentes às coisas. No confronto entre ter e
meu organismo tenham passado por subs- ser, a cultura consiste na posse efetiva ou
tituição radical, assim como minha aparên- simbólica de um lote de objetos materiais.
cia, com as cicatrizes e os variados efeitos Ora, nas sociedades e grupos tradicionais,
do correr dos anos, que mudaram minha as coisas podem servir apenas de caminho
anatomia, fisiologia, personalidade etc. Con- para práticas, como se viu.
tinuo, porém, o mesmo eixo de referências No Oriente, sabemos, contam mais as
socialmente (e pessoalmente) aceito e que práticas, os processos – como ocorre na re-
me singulariza. Pelo menos é o que diz meu facção cerimonial periódica de certos tem-
documento de...identidade (permanente). plos de ritual shintoísta.
Fico imaginando o que aconteceria com mi- Seja como for, é tempo de convocar, de
nha identidade se eu fosse submetido a um novo, os sujeitos. E a história. Eles é que for-
restauro em que, como às vezes ocorre no necerão o critério para qualificar um certo
patrimônio material, escolhe-se a opção de tipo de relação com as coisas. Nesse cami-
retroceder a um estado de origem... nho, mas ainda insuficientemente, Lucie
Recorro ainda a uma outra aporia (beco K.Morisset , trilhando rumo inspirado no dos
filosófico sem saída) semelhante à de Sir “regimes de historicidade” de François Har-
John, que ilustra outros paradoxos da auten- tog, formula a necessidade de investigar os
ticidade. É a história de Teseu, herói mítico “regimes de autenticidade” envolvidos, isto
ateniense, narrada por Plutarco (historiador é, os padrões sociais de relação dos objetos
grego da época imperial romana). O navio e atos com o tempo, o espaço, o outro, nos
do grande marinheiro Teseu, necessitando quadros da “memória patrimonial”.
de reparos foi trazido ao porto, cada pran- De certa forma no mesmo horizonte
cha velha sendo progressivamente substituí- (em que podem surgir necessidades espe-
da por novas pranchas. Quando deixou de cíficas de contexto), vale anotar a distinção
ser o barco original? Quando se substituíram que faz Dennis Dutton (válida não só para a
100% das pranchas, 70%, 50%, 30%? Ou obra de arte, seu tema principal), entre au-
nunca? Há variantes modernas desta aporia, tenticidade expressiva – relativa ao caráter
As fa lsa s d ic oto m i as d o pat r i m ô n i o c u lt u r a l • 73
P
roponho-me ocupar-me de duas obras Joseph de Maistre. Vizinhos da Rua marquês
fundamentais de Joaquim Nabuco, O de Olinda, três pernambucanos, Nabuco,
Abolicionismo e Um estadista do Im- João Alfredo Correia de Oliveira e Francisco
pério, sugerindo as conexões entre ambas, de Carvalho Soares Brandão, ex-ministro e
a despeito de que, redigidas em períodos ex-senador do Império, enchiam suas noites
diversos da sua existência, elas podem pa- desocupadas trocando intermináveis remi-
recer à primeira vista serem mutuamente niscências de suas carreiras políticas sob o
estranhas ou até opostas. Na perspectiva regime recém-abolido, numa atmosfera nos-
puramente biográfica, elas têm em comum tálgica do passado recente e pessimista do
o fato de serem o produto do ostracismo futuro imediato.
político, O Abolicionismo, de sua estada em Tratemos, pois, de fazer a ponte entre O
Londres em 1883 quando purgava a derrota Abolicionismo e Um estadista do Império,
parlamentar das primeiras eleições diretas da entre o exílio em Londres e o exílio em Bota-
nossa história; e Um estadista do Império, à fogo; ou dito de outro modo, ler a biografia
raiz da proclamação da República, que lhe do pai contra o pano de fundo da crítica
proporcionaria dez longos anos de produção do filho ao sistema escravocrata. Para com-
intelectual. Na preparação de O Abolicio- prender a importância de O Abolicionismo,
nismo, Nabuco trabalhou quotidianamente cumpre fazer de início uma qualificação
no Museu Britânico, assim como já fizera o importante. Ele não tem a ambição teóri-
autor de O capital, com quem poderia ha- ca inerente a um livro de sociologia nem se
ver cruzado, não houvesse Marx falecido há considera tal. Nabuco dedicou-se apenas a
pouco. Na produção de Um estadista do Im- produzir uma obra de propaganda. Daí que,
pério, Nabuco se valeu do arquivo paterno por um lado, sua visão da sociedade brasi-
e das publicações do Segundo Reinado bem leira teve de ser vazada numa prosa de feitio
como da sua condição de frequentador do literário ou até jornalístico, sem pretensões
que ele mesmo denominou de “soirées de científicas ou preocupações terminológicas;
São Petersburgo”, título do livro famoso de por outro, que o autor não aprofundou a
Conferência pronunciada na Academia Brasileira de Letras em 28 de março de 2019.
76 • Evaldo Cabral de Mello
análise do sistema de mediações entre o re- Graças a essa relativa desinformação teó-
gime servil e os demais fenômenos da nossa rica, Nabuco escapou ao destino de escrever
formação histórica, não escapando, portan- um livro destinado ao envelhecimento preco-
to, a certo reducionismo. Ao que se saiba, ce, como aconteceu com tanta produção pa-
Nabuco tampouco jamais cogitou de dar à ra-sociológica do tempo da República Velha.
sua obra o desenvolvimento que ela com- Nas artes, como nas ciências humanas, certo
portava, capaz de conferir-lhe idoneidade grau, não diria de arcaísmo, mas de desatu-
científica aos olhos do nosso modestíssimo alização pode ser saudável. Ninguém duvida,
establishment sociológico da época. Destar- por exemplo, de que a formação científica
te, na sociologia brasileira, O Abolicionismo de Comte era imensamente superior à de
jamais desfrutou do status privilegiado de Tocqueville, mas ninguém põe em questão
que desfruta, digamos, Os sertões, embora que a influência do autor da Democracia na
o escopo da análise de Euclides não seja na- América tornou-se, ao cabo dos anos, bem
cional, mas regional. mais profunda que a do professor do Cur-
De Os sertões, cumpre também assinalar so de filosofia positiva. Na medida em que
que tanto se apegou às teorias sociológicas a formação de Tocqueville era basicamente
da Europa de finais do século XIX que cor- histórica, tratava-se de limitação evidente
reu o risco de envelhecer com elas. As no- em época, como a sua, em que se ambicio-
vidades científicas, doutrinárias ou estéticas nava, à maneira de Comte, erguer o sistema
costumam cobrar um alto preço àqueles que das ciências que incluísse desde a matemáti-
as adotam por espírito de sistema. No caso ca e a física até a sociologia. Contudo, o que
de Euclides como no de outros autores, o era passivo no século XIX transformar-se-ia
dernier cri sociológico os desviou de veredas em ativo posteriormente, ao se proclamar a
posteriormente reputadas mais promissoras, irredutibilidade do objeto das ciências huma-
como era a do modelo, implícito em O Abo- nas aos métodos consagrados pelas ciências
licionismo, baseado não no meio físico ou da natureza. Foi assim que a desatualização
na raça, mas na forma da organização eco- oitocentista de Tocqueville metamorfoseou-
nômica e social. É inegável que, comparado -se em título de modernidade.
a Euclides, cuja prosa lhe dava a impressão O Abolicionismo constitui o primeiro
de ser escrita com um cipó, Nabuco estava texto, muito antes da voga dos chamados
relativamente desinformado das tendências “explicadores do Brasil”, a articular uma vi-
predominantes na sociologia europeia, ou são totalizadora da nossa formação históri-
do que se julgava no Brasil serem elas, pois ca, fazendo-o a partir do regime servil. Nesta
as que inspiraram a concepção de Os sertões perspectiva, a escravidão não constituiu um
tampouco eram rigorosamente novas quan- fenômeno a mais, inegavelmente relevante,
do ele foi redigido. Nos derradeiros anos de mas devendo ser levado em conta como vá-
Oitocentos, Buckle ou Taine haviam ficado rios outros. Para Nabuco, o Brasil é o produto
para trás; um Tönnies ou um Durkheim eram da escravidão, que é a instituição que ilumi-
os gurus da nova sociologia que se elabora- na nosso passado como nosso presente e
va na Alemanha e na França, às vésperas do nosso futuro mais poderosamente que qual-
aparecimento do gênio de Max Weber. quer outra. Sobre as bases do escravismo,
N a bu co : sua v i s ã o d o pa ss a d o b r as i l e i ro • 77
é que se definiram entre nós a organização no interior para fazer o seu dinheiro render
social e a estrutura de classes, o Estado e o acima de 12%”. Dos proventos da escravi-
poder político, a própria cultura, função que dão, viviam as profissões liberais.
na obra de um Gilberto Freyre caberá ao pa- O próprio Estado não poderia ser com-
triarcalismo ou na de um Raymundo Faoro, preendido sem referência à função de absor-
ao patrimonialismo. É assim que Nabuco ver pelo emprego público os representantes
contrasta a escravidão norte-americana com da ordem escravocrata que não encontravam
a brasileira, para concluir que, ao contrário meio de vida no setor privado. O funcionalis-
dos Estados Unidos, onde “a escravidão não mo público era com efeito “o viveiro políti-
afetara a constituição social toda”, no Brasil co”, “o asilo dos descendentes das antigas
“a circulação geral, desde as grandes arté- famílias” que ela arruinara, como (exemplo
rias até aos vasos capilares, serve de canal às que não ocorreu a Nabuco), a grande diás-
mesmas impurezas”. pora dos bacharéis nortistas que, no decur-
Com referência à escravidão, definiram- so do Segundo Reinado, espalhara-se pelas
-se inclusive os grupos e as classes que in- províncias do Sul em busca dos cargos da
clusive viviam à sua margem, como a popu- magistratura. Asseverava Nabuco:
lação livre mas pobre dos “lavradores que Faça-se uma lista dos nossos estadistas
não são proprietários”, dos “meeiros”, dos pobres, de primeira e segunda ordem, que
“moradores do campo e do sertão”. Defi- resolveram o seu problema individual pelo ca-
niram-se atividades que não lhe estavam samento rico, isto é, na maior parte dos casos,
diretamente ligadas ou ocupavam diferente tornando-se humildes clientes da escravidão;
espaço físico, como a criação de gado no e outra dos que o resolveram pela acumulação
de cargos públicos, e ter-se-ão, nessas duas
interior do Nordeste ou na campanha gaú-
listas, os nomes de quase todos eles.
cha, mas que tinham seu principal mercado
nas aglomerações de mão de obra escrava A relação funcional entre a escravidão
das cidades, fazendas de café e engenhos e o Estado, Nabuco a resumiu numa con-
de açúcar. Devido à presença asfixiante do ferência pronunciada no Recife, uma das
trabalho escravo, retardara-se entre nós o páginas mais esclarecedoras que já se escre-
desenvolvimento das “classes operárias e veram sobre o Segundo Reinado:
industriais”. A escravidão impedira igual- A lavoura, porém, não sustenta somente
mente, em benefício dos imigrantes por- os que lhe emprestam dinheiro a altos juros,
tugueses, a nacionalização do comércio a sustenta diretamente a sua clientela, que a
retalho. Quanto ao grande comércio, não serve nas capitais. Isso não é tudo e é nor-
passava de “um prolongamento da escravi- mal. Mas o Estado tem um aparelho especial
chamado apólice, do que os bancos são as
dão, ou antes, o mecanismo pelo qual a car-
ventosas, para sugar o que reste à lavoura de
ne humana é convertida em ouro e circula,
lucro líquido. Essas sobras, ele as distribui pelo
dentro e fora do país, sob a forma de letras
seu exército de funcionários, os quais, por sua
de câmbio”. Através da usura, a escravidão vez, sustentam uma numerosa dependência
reduzira o fazendeiro de café ou o senhor de todas as classes. Temos assim que a lavou-
de engenho a um “empregado agrícola que ra, pelo pagamento de juros, pelo pagamento
o comissário ou o acionista de banco tem de serviços e pelos empréstimos incessantes
78 • Evaldo Cabral de Mello
que faz ao Estado, sustenta todo esse número à boa vontade da Coroa, os ministros, à do
imenso de famílias que absorvem a nossa im- Presidente do Conselho, e assim por diante.
portação e pagam os impostos indiretos. Nabuco enxergava “ministros sem apoio na
De modo que se o Estado amanhã fizesse
opinião que ao serem despedidos caem no
ponto, ver-se-ia que ele tem estado a tomar os
vácuo; presidentes do Conselho que vivem
lucros da escravidão aos que produzem para dis-
tribuí-los entre os que ela impede de produzir”. noite e dia a perscrutar o pensamento eso-
térico do Imperador”. Por sua vez, os par-
Por outro lado, ao frustrar o desenvolvi- tidos políticos reduziam-se a “sociedades
mento de classes e grupos atuantes, isto é, cooperativas de colocação ou de seguro
ao aniquilar a possibilidade de uma estrutura contra a miséria”. O regime representativo
pluralista, a escravidão tornou o sistema po- tornara-se destarte “um enxerto de formas
lítico do Segundo Reinado insensível às rei- parlamentares num governo patriarcal”.
vindicações sociais, graças também ao poder A crítica ao “poder pessoal”, a qual, com
pessoal do Imperador, o que constitui um exceção de José Bonifácio, o Moço, limita-
traço fundamental dos sistemas de coopta- ra-se a argumentos de natureza político-
ção em que a máquina estatal funciona de -constitucional, adquiriu em Nabuco nova
modo relativamente impermeável às pressões dimensão explicativa.
vindas seja de classes, seja de regiões. Con- Não me parece, portanto, procedente
tudo, ao fazê-lo, a escravidão condenava-se a crítica de que a historiografia de Nabuco
como forma de organização econômica, pois ignorou as novas forças sociais, nascidas à
será precisamente este desequilíbrio entre ilharga da sociedade escravocrata. Afinal de
Estado e sociedade que habilitará a Coroa a contas, Um estadista do Império não pre-
desferir os golpes que puseram o regime ser- tende ser a história do Segundo Reinado;
vil por terra, especialmente a lei Rio Branco, ele aspira, no máximo, a ser sua história po-
cuja inspiração não partiu, como se dera com lítica, esta mesma vista através das lentes da
a abolição do tráfico em 1850, por pressão carreira do velho Nabuco. É certo que suas
inglesa, mas como as leis Dantas e João Alfre- páginas estão repletas da ação dos homens
do, do encorajamento discreto e contínuo do de Estado, mas não se pode deduzir daí que
próprio Imperador. É a relativa autonomia do Nabuco realmente acreditasse que a histó-
sistema político produzido pela escravidão, ria política se resume a eles. O sistema polí-
que habilitará a Coroa a aliar-se, desde 1880, tico do Segundo Reinado é que de fato vivia
a grupos sociais substancialmente menos só deles, e, sobretudo, da vontade do Im-
poderosos, em termos socioeconômicos, do perador. Não havia, por conseguinte, como
que os interesses escravocratas e do comércio conferir uma dimensão permanente à luta
de exportação a estes ligados. dos grupos sociais pelo poder, a não ser no
Sendo o emprego público a única saída interior da camada governante gerada pelo
para os rebentos da grande família rural, a sistema político. Se quisermos saber como
vida política converteu-se na “triste e degra- Nabuco encarava as inter-relações entre sis-
dante luta por ordenados”, o que reforçava tema político, de um lado, e sistema socio-
o chamado “poder pessoal” de D. Pedro II. econômico, de outro, há que abandonar as
O Presidente do Conselho sobrevivia graças páginas de Um estadista do Império pelas
N a bu co : sua v i s ã o d o pa ss a d o b r as i l e i ro • 79
ideia de escravidão não se reduzia à relação por quê, mas seu pressuposto parece ser o
senhor-escravo, mas abrangia também as re- de que uma colonização tardia da América
lações do escravismo com o meio físico, o portuguesa se teria processado no quadro
sistema de propriedade da terra, o comércio, de uma conjuntura internacional bem diver-
a indústria, a cultura, o regime político e o Es- sa, em que os interesses econômicos e o po-
tado. Em função deste caráter orgânico, hoje der da Inglaterra e os valores dominantes do
diríamos, sistêmico, da escravidão é que, a Iluminismo e da Revolução francesa teriam
seu ver, o abolicionismo constituía a reforma tornado inviável a implantação de um regime
nacional por excelência. Para compreender a escravista no Brasil, ao menos na escala que
escravidão, ele recorre à sua história compa- adquirira no passado. É certo que o nosso
rada na Antiguidade clássica e no velho Sul desenvolvimento não teria sido tão acelera-
dos Estados Unidos. Mas entre nós a escra- do como o das colônias de língua inglesa, de
vidão adquirira um traço diferencial, o qual vez que Portugal não dispunha dos recursos
consistira em que, através da miscigenação, materiais de uma grande potência. É certo
ela formara a nação. Daí que, do ponto de também que a população seria substancial-
vista da engenharia política, o problema se mente menor, embora com a vantagem de
tornasse duplamente complicado para nós, apresentar-se culturalmente homogênea,
de vez que a cidadania devia ser conquistada sem falar em que os efeitos colaterais da es-
não apenas pelo escravo, mas pelo próprio cravidão, bem como a grande propriedade e
senhor. Esta a razão pela qual, na América a depredação do meio ambiente, não teriam
portuguesa, a instituição servil operara de avançado a ponto de prejudicar a economia
modo incomparavelmente perverso, tornan- e a esterilizar o trabalho. O que Nabuco ti-
do impossível identificar qualquer setor da nha em vista era o argumento de Oliveira
vida nacional que não tivesse sofrido suas re- Martins, que, em O Brasil e as colônias por-
percussões ao longo de três séculos. A escra- tuguesas, pretendera que o trabalho escra-
vidão afetara o desenvolvimento de todas as vo fora o preço a pagar pelo povoamento,
classes sociais, sem fazê-lo, contudo, numa pois sem aquele este não teria sido possível.
única direção, pois ora atuou para impedir- “!sso é exato”, admite Nabuco, “mas esse
-lhes ou retardar-lhes o crescimento, ora no preço quem o pagou e está pagando não foi
sentido de promovê-lo precoce e artificial- Portugal, fomos nós; e esse preço a todos os
mente, o que era ainda mais prejudicial. respeitos é duro demais e caro demais para o
Na sua análise do impacto global da ins- desenvolvimento inorgânico, artificial e exte-
tituição servil sobre a vida brasileira, Nabuco nuante que tivemos”.
não hesita mesmo em aventurar-se pelo exer E num julgamento tanto mais insuspeito
cício do que hoje chamaríamos história virtu- quanto, ao contrário de muitos intelectuais
al ou contrafatual. Segundo ele, “ninguém brasileiros da época, Nabuco nunca cedeu à
pode ler a história do Brasil no século XVI, tentação do antilusitanismo, ele assinalava:
no século XVII e em parte do século XVIII [...] “A africanização do Brasil pela escravidão
sem pensar que a todos os respeitos houve- (pela escravidão, note-se bem, não pelo
ra sido melhor que o Brasil fosse descoberto africano) é uma nódoa que a mãe-pátria
três séculos mais tarde”. Nabuco não explica imprimiu na sua própria face, na sua língua
82 • Evaldo Cabral de Mello
e na única obra nacional verdadeiramente o primeiro a esta hora seria uma nação mui-
duradoura que conseguiu fundar”. Poder- to mais robusta do que é o último”. É sa-
-se-ia supor que, sem a escravidão e sem a bido que a doutrina da desigualdade inata
economia monocultora de que fora a base, entre as raças exerceu duradoura influência
o Brasil teria sido perdido para sempre por sobre o pensamento brasileiro dos finais do
Portugal, de vez que não lhe teria sido pos- Segundo Reinado e no decurso da República
sível repelir os ataques exteriores, como du- Velha. Ela forneceu as bases reputadas cien-
rante a guerra holandesa, mas é provável tíficas para nossas atitudes modernizadoras
que ele estivesse “crescendo sadio, forte e até a publicação de Casa-Grande & Senzala,
viril como o Canadá e a Austrália”. nos anos 30 do século XX. Nabuco, porém,
Ao contrário também da grande maioria nunca embarcou nessa canoa, embora sua
dos brasileiros cultos do seu tempo, Nabu- oposição ao frustrado plano de imigração
co tampouco acreditava no argumento da chinesa do gabinete Sinimbu possa insinuar
inadaptação do europeu aos trópicos, tanto uma dúvida a respeito.
mais, lembrava, que as populações da Eu- Tanto em O Abolicionismo quanto nos
ropa meridional haviam recebido ao longo discursos de campanha eleitoral no Recife,
de sua história dose considerável de sangue o essencial para ele não é a raça, mas a or-
mouro e africano, argumento que Gilberto ganização social. Já vimos que, ao se referir
Freyre aprofundará em Casa-Grande & Sen- à “africanização do Brasil”, Nabuco tivera o
zala. E Nabuco concluía: “Ninguém pode cuidado de acrescentar a qualificação “pela
dizer o que teria sido a história se aconte- escravidão”. É certo que, noutro trecho, ele
cesse o contrário do que aconteceu”, de assinalara que “muitas das influências da es-
vez que entre um Brasil holandês ou francês cravidão podem ser atribuídas à raça”. Mas
explorado por mão de obra escrava, e um quando examinamos os exemplos que dá,
Brasil português igualmente escravocrata, constata-se que a palavra “raça” é empre-
“ninguém sabe o que teria sido melhor”. gada sem rigor conceitual, desleixadamente,
O que, contudo, não lhe parecia duvidoso se é que ela possa jamais ser empregada de
é que, entre um Brasil lusitano e escravo- maneira precisa. A prova é que Nabuco enu-
crata e um Brasil lusitano sem a instituição mera sob essa etiqueta caractarísticas que
servil, “a colonização gradual do território hoje seriam reputadas de natureza cultural,
por europeus, por mais lento que fosse o como a influência da religiosidade africana
processo, seria infinitamente mais vantajosa ou a corrupção da língua portuguesa através
para o destino dessa vasta região”. da escravidão doméstica.
Nabuco examina outro par de alterna- O ceticismo com que Nabuco encarou
tivas que, à primeira vista, poderia parecer a eficácia das reformas políticas dos finais
acadêmico, mas que ilustra uma vantagem a do Segundo Reinado decorria da convicção
mais da sua desatualização relativamente às de que, devido ao regime escravocrata e
teorias raciais em voga naquela altura: “En- instituições ancilares, tais reformas estavam
tre o Brasil explorado por meio de africanos fadadas a produzir efeitos perversos. Da lei
livres por Portugal, e o mesmo Brasil, explo- Saraiva, que criara o voto direto para con-
rado com escravos também por portugueses, ferir representatividade ao sistema político,
N a bu co : sua v i s ã o d o pa ss a d o b r as i l e i ro • 83
pode concluir daí que Nabuco acreditasse havendo também reservado a sua para as
que a história se resumia a eles, como dei- sociedades primitivas do Brasil central, des-
xam transparecer as citações feitas acima. O creveu o círculo de intelectuais paulistas
sistema político é que se resumia a eles, e so- com que privou nos anos 30 com a imper-
bretudo ao Imperador. Não havia, por con- tinência, bem pouco antropológica, de um
seguinte, como conferir dimensão perma- intelectual da rive gauche.
nente à participação de grupos sociais que A preferência de Nabuco por certas pai-
não fossem os próprios grupos dirigentes. sagens europeias é um gênero de emoção
Aliás, o reproche que se faz ao elitismo estética tão legítima quanto sua contrária,
de Nabuco não se limita a Um estadista do a admiração pelo espetáculo da natureza
Império, mas alcança também Minha for- virgem ou quase intocada pelo trabalho
mação. Dela, escreveu há anos certo antro- humano. Daí que, em termos estritamente
pólogo populista: “Autobiografia clássica e brasileiros, o poeta Joaquim Cardozo pre-
chata de um alienado”. E citava o trecho ferisse a visão do alto da Sé de Olinda no
que ofendera sobremaneira seus brios começo do verão à visão do campos gerais
nacionalisteiros: “O sentimento em nós é de Guimarães Rosa. Na verdade, Nabuco
brasileiro, a imaginação, europeia. As pai- não foi carente de tais emoções brasileirís-
sagens todas do Novo Mundo, a floresta simas. Bastaria lembrar outros trechos de
amazônica ou os pampas argentinos não Minha formação, que o nosso antropólogo
valem para mim um trecho da Via Appia, aparentemente não leu, como aquele onde
uma volta da estrada de Salerno a Amal- revela que, havendo contemplado a Criação
fi, um pedaço do cais do Sena à sombra de Miguel Ângelo e a de Rafael, não logra-
do velho Louvre”. Chamar de alienado o va “dar a nenhuma o relevo interior do pri-
autor de O Abolicionismo é uma manifes- meiro paraíso que fizeram passar diante dos
tação deplorável de leviandade intelectual. meus olhos em um vestígio de antigo mis-
Para quem acredita que, populista ou não tério popular”, provavelmente na capela do
nas suas opções políticas, o essencial da engenho onde se criara. Havendo escutado
atividade de um antropólogo reside na ca- o Angelus em plena campanha romana, seu
pacidade de compreender valores culturais “muezin íntimo”, seu “Millet inalterável”,
diversos dos seus, a afirmação destoa clara- continuou a ser o toque do sino da casa-
mente das regras do ofício. Temos o direito -grande de Massangana, convocando os
de esperar de um antropólogo que em vez escravos para a ladainha diária. Malgrado
de reservar sua empatia às tribos indígenas, a travessia repetida do Atlântico, a imagem
a aplicasse também a um autor brasileiro do oceano que se lhe gravou na retina ficou
de finais de Oitocentos que, à maneira de sendo sempre “a da primeira vaga que se
muitos dos seus compatriotas, preferia es- levantou diante de mim, verde e transpa-
pontaneamente a visão de uma paisagem rente como um biombo de esmeralda”, no
europeia. Mas a compreensão dos antro- dia em que, excursionando a certa praia das
pólogos parece, por vezes, estranhamente redondezas do engenho da madrinha, re-
especializada. E a isto não escapam sequer cebeu “a revelação súbita, fulminante, da
os mestres do ofício como Lévi-Strauss, que terra líquida e movente”.
86 • Evaldo Cabral de Mello
Por outro lado, boa parte do interesse Walt Whitman, também contaram com cer-
de Minha formação consiste em exprimir a tos intelectuais, geralmente da costa leste, a
antiga sensibilidade brasileira do tempo da exemplo de Henry James, que conheceram
Monarquia e da República Velha, repudiada igualmente o mesmo dilema. Dessa contradi-
pela sua sucessora, a cultura que se tornou ção, nascia, segundo Nabuco, “a mais terrível
hegemônica a partir dos anos 20 e 30 e que das instabilidades”.
atualmente ainda é a nossa. Daí que muitos A explicação é mais delicada e mais pro-
trechos do livro soem de maneira estranha funda: é a atração de afinidades esquecidas
aos ouvidos do brasileiro de hoje, como foi mas não apagadas, que estão em todos nós,
o caso do nosso antropólogo. É óbvio que da nossa comum origem europeia. A instabili-
dade a que me refiro provém de que na Amé-
toda a anglomania de Nabuco parece de-
rica falta à paisagem, à vida, a tudo o que nos
fasada numa conjuntura em que o império
cerca, o fundo histórico, a perspectiva huma-
transferiu-se para a outra margem anglo-sa-
na; e que na Europa nos falta a pástria, isto é,
xônica do Atlântico. Mas um brasileiro que a fôrma em que cada um foi vazado ao nascer.
tenha visitado a Nova York dos anos 50 ou
60 compreenderá a impressão que causou E numa antecipação do personagem
em Nabuco o descobrimento da Londres do sul-americano da novela de Valéry Larbaud,
tempo da rainha Vitória, impressão que des- Nabuco encapsula: “De um lado do mar,
creveu nestes termos: sente-se a ausência do mundo; do outro, a
Londres foi para mim o que teria sido ausência do país”. E aduzia:
Roma se eu vivesse entre o século II e o sécu- Não quero dizer que haja duas humanida-
lo IV, e um dia, transportado da minha aldeia des, a alta e a baixa, que nós sejamos desta
transalpina ou do fundo da África romana última; talvez a humanidade se renove um dia
para o alto do Palatino, visse desenrolar-se aos pelos seus galhos americanos; mas no sécu-
meus pés o mar de ouro e bronze dos telha- lo em que vivemos, o “espírito humano”, que
dos das basílicas, circos, teatros, termas e pa- é um só e terrivelmente centralista, está do
lácios; isto é, para mim, provinciano do século outro lado do Atlântico; o Novo Mundo para
XIX, foi como Roma para os provincianos do tudo o que é imaginação estética ou histórica
tempo de Adriano ou de Severo: a Cidade. é uma verdadeira solidão.
O que Minha formação articula certeira- Ora, sem compreender o dilema do ma-
mente é o que se poderia chamar o dilema zombo, é a própria cultura brasileira dos
do mazombo, isto é, do descendente de eu- nossos dias que se torna inintelegível, pois
ropeu. Nas palavras de Nabuco, “nós, bra- ela foi deliberadamente criada com vistas
sileiros, o mesmo pode-se dizer dos outros a cicatrizar nossa grande ferida narcisista,
povos americanos, pertencemos à América mediante a invenção, desde a década de
pelo sedimento novo, flutuante do nosso es- 1920, de uma identidade destinada a rom-
pírito, e à Europa, por suas camadas estratifi- per com a Europa. O predomínio dos valo-
cadas”. “Desde que temos a menor cultura, res herdados do Modernismo simplesmente
começa o predomínio destas sobre aquele”. nos impede de imaginar, graças à fórmula
Ambivalência que não foi só latino-america- simplista que a estigmatiza como alienação,
na. Se os Estados Unidos da segunda meta- outra sensibilidade que não seja a consa-
de do século XIX produziram Mark Twain ou grada a partir dos últimos cem anos.
Dimensões da atualidade
do legado de Rui Barbosa
Celso Lafer
Ocupante da Cadeira 34 na Academia Brasileira de Letras
Foi com A vida de Rui Barbosa que Luis por Bolivar Lamounier no seu livro-ensaio
Viana Filho iniciou o seu percurso de grande sobre Rui, de 1999. Em síntese, aponta
biógrafo, que foi a marca da sua identidade Bolivar que a obra e o legado de Rui en-
intelectual. João Neves da Fontoura foi um frentaram depois da sua morte uma dupla
notável orador que marcou a cena pública desqualificação, que se aguçou com o clima
do nosso país; compreensivelmente escreveu político e intelectual abastecido pelos des-
Rui Barbosa, Orador. Miguel Reale, meu an- dobramentos da Revolução de 1930. Uma
tecessor na Cadeira 14, esclareceu “A posi- proveio do pensamento autoritário da Di-
ção de Rui Barbosa no mundo da filosofia” reita, outra, do pensamento autoritário da
em consonância com o seu recorrente inte- Esquerda, ambas coadjuvadas pela ciência
resse pela história das ideias no Brasil. Elma- social acadêmica. Todas têm em comum
no Cardim foi jornalista e diretor do Jornal a deslegitimação do Direito como instru-
do Commercio e escreveu, como seria de se mento de ação política que caracterizou
esperar, Rui Barbosa, o jornalista da Repúbli- Rui, cujo pensamento foi tido como um
ca. Nosso confrade Alberto Venâncio Filho, expressão de um formalismo liberal e juri-
grande estudioso do pensamento jurídico dicista, desconhecedor das diferenças que
brasileiro, dedicou-se à analise de Rui Barbo- separam o Brasil real do Brasil legal, o ser
sa, como advogado e jurista. do dever-ser, a dinâmica das forças sociais e
O legado de Rui Barbosa, como se vê, econômicas da infraestrutura que moldam
estimulou e inspirou muitas gerações. Qual a superestrutura.
é hoje a sua atualidade? Esta desqualificação deixou na som-
Há uma certa dificuldade no acesso à bra um dos grandes legados de Rui, que
sua mensagem, pois o seu estilo de gran- foi o de ter se dedicado no correr da sua
de orquestrador das palavras não se amol- vida e da sua atuação, como registra Boli-
da com facilidade aos que têm preferência var, “à formação da esfera pública e à cria-
pela palavra sintética. Esta dificuldade se ção institucional da democracia no Brasil”.
magnificou na era digital, seja por parte dos É esta vertente e a sua atualidade que vou
que apreciam o sincopado não argumenta- explorar neste texto, indicando igualmente
tivo do “twitter”, seja pelo instantâneo do sua coerência com a atuação internacional
metabolismo incessante das mídias sociais, de Rui que foi episódica, mas muito signi-
que não abrem espaços para os nexos do ficativa.
enquadramento que caracterizou o modo
de argumentar de Rui.
Na defesa destes nexos afirmou em A
II
Imprensa e o dever da verdade: “O discurso Inicio com a Oração aos Moços – o dis-
não entra a cair no vício de sobejo, senão curso de paraninfo com que Rui Barbosa
quando excede a matéria do seu tema. Só brindou a turma de 1920 da Faculdade de
principia a superabundância, onde se co- Direito do Largo São Francisco, registrando
meça a descobrir a superfluidade.” que fazia parte do meu “léxico familiar”.
Há, porém, uma outra razão no plano A turma de 1920 foi a de Horácio Lafer,
das ideias que cabe mencionar, destacado que integrou a comitiva dos estudantes que
D i me n sõ es da at ua l i da d e d o l e g a d o d e R u i B a r bo s a • 89
foi ao Rio convidar Rui para o paraninfado. ”pela eloquência na tribuna, pela mocidade
Meu pai assistiu a formatura e guardou a na cátedra, pela controvérsia na imprensa,
lembrança do impacto que sentiu ao ouvir pela política no parlamento”.
A oração aos Moços, que foi lida – porque Rui dá o seu testemunho do magistério
Rui, adoentado, não pôde comparecer à ce- de José Bonifácio, dizendo que graças a ele
rimônia – pelo Prof. Reinaldo Porchat, que como professor teve “pela primeira vez a
veio a ser o primeiro reitor da USP. Soares revelação viva da grandeza da ciência que
de Melo, que foi denodado artífice de Rui abraçávamos.” É um dado relevante de sen-
como paraninfo da sua turma, relata em sibilidade e memória, explicativa do porquê
sua circunstanciada História da Oração aos inicia a Oração aos Moços afirmando a im-
Moços a qualidade da leitura que Porchat portância que os seus “cinquenta anos de
fez da mensagem de Rui. consagração ao Direito viesse a receber no
Aponto preliminarmente, também na templo do seu ensino em São Paulo, o selo
condição de professor da Faculdade na qual de uma grande bênção.”
Rui estudou, que um grande marco da sua
trajetória de orador, vincula-se à sua vida de
estudante na Faculdade. Foi seu discurso de
III
8 de dezembro de 1868 – uma admirável A Oração aos Moços pode ser considera-
“oraison funèbre” pronunciada na sessão da o testamento político de Rui. Nela fez uma
cívica em São Paulo, em homenagem a José avaliação do seu meio século de trabalho na
Bonifácio, o moço. José Bonifácio, que tinha jurisprudência que se conjugou aos seus cin-
sido seu professor e de Joaquim Nabuco na quenta anos de serviços à Nação. Observou
Faculdade de Direito de São Paulo, foi uma que atuou sem os meios e manhas da política
grande personalidade pública do Império, tradicional, mas que “em compensação tudo
com o qual Rui subsequentemente convi- envidei por inculcar ao povo os costumes da
veu no parlamento e na vida política. Era de liberdade e à república as leis do bom gover-
cariz radical, guiado pela “ideia a realizar” no, que prosperam os Estados, moralizam a
da participação popular das massas ativas sociedade e honram as nações”.
da população – como mostrou nosso con- Entre os serviços à nação cabe destacar
frade Francisco de Assis Barbosa na intro- a ativa participação, que compartilhou com
dução do seu Perfil Parlamentar publicado Joaquim Nabuco, na campanha abolicio-
pela Câmara dos Deputados. nista. Rui sublinhou que a questão da es-
José Bonifácio, o moço, foi notável cravidão era a questão das questões, a que
orador e admirável liderança da mocidade todas as outras se subordinavam pois “en-
acadêmica da Faculdade de São Paulo no carna em si o começo da solução de todas
século XIX, como relatam Almeida Noguei- as demais”. Afirmou: “É no direito cienti-
ra, em Tradição e Reminiscências, e Spen- ficamente real de nossa época e de nossa
cer Vampré, nas Memórias para História da nacionalidade que nos firmamos contra a
Academia de São Paulo. José Bonifácio foi legalidade caduca do cativeiro.”
um paradigma que influenciou Rui ao lidar, Rui participou com destemor e precisão
como disse, com a sociedade do seu tempo jurídica do movimento abolicionista brasileiro;
90 • Celso Lafer
por isso é figura de relevo do recente livro de linhagem socialista. Desta matéria tratou
de Angela Alonso, Flores, votos e balas, que em texto de 1983 de maneira circunstan-
desse movimento trata com originalidade, ciada e abrangente, como era do seu feitio,
baseada em abrangente pesquisa. nosso saudoso confrade Evaristo de Moraes
As limitações do tempo só me permitem Filho, inspirado pela ação e pelo convívio do
apontar que entre os serviços prestados à seu pai, Evaristo de Moraes, com Rui.
nação por Rui estão: seus inovadores pare- Em Figuras do Direito, que recolhe dois
ceres sobre ensino apresentados na Câmara admiráveis estudos sobre Rui, San Tiago
dos Deputados do Império como relator da Dantas observou que transfundir na história
Comissão de Instrução Pública e que es- a força operativa de um pensamento está
tão lastreadas na sua visão do papel rege- fora do alcance da vontade individual. Rui,
nerador da educação no desenvolvimento no entanto, exprimiu na trajetória da sua
material e moral do nosso país e de nossa vida e obra, com efetiva ressonância na-
gente. Conjugam-se com sua subsequente cional, a trama dos problemas políticos da
preocupação em propiciar à economia da sociedade brasileira, não só do seu tempo,
República, a melhoria das condições de vida mas as dos nossos dias, com destaque para
e progresso do povo, indo além da sua base os desafios da consolidação e vigência das
agrícola e abrindo espaço para o desenvol- instituições democráticas.
vimento da indústria, o que não ocorreu no Rui tinha a capacidade de sacrifício e
Império por muitas razões, dentre elas a es- sempre soube perder, lembra Oswald de
cravidão. Andrade. Assim, nas palavras do grande
Rui também em conferência de 1919 modernista “como a semente do Evange-
na sua segunda campanha presidencial, foi lho que precisa morrer para frutificar, ele
atento à questão social. Reconheceu pro- sempre soube morrer pelo dia seguinte do
gressos em matéria de direitos humanos Brasil.” Por isso a árvore da liberdade está
mas propugnou pela sua abrangência por subjacente ao seu legado. É o que vou a
meio de sua necessária extensão aos direi- seguir destacar.
tos sociais.
João Mangabeira, que foi seu discípulo
e teve o prazer da sua intimidade, afirmou:
IV
“na questão social ninguém no Brasil viu O Direito representou para Rui o cami-
tão cedo, tão largo e tão longe quanto Rui nho do seu empenho político. Este foi o de
na sua época.” Foi o único, dentre os líde- ser “o mais irreconciliável inimigo do gover-
res brasileiros, como realça Mangabeira em no do mundo pela violência, o mais fervoro-
Rui, o Estadista da República, que se decla- so predicante do governo dos homens pelas
rou pela democracia social. Mangabeira foi leis”. (Discurso de 18 de maio de 1911 no
uma destacada figura pública brasileira, de Instituto dos Advogados) e um defensor do
orientação socialista e cariz democrático. civilismo que norteou as suas duas campa-
Daí o relevo de sua afirmação, reiterada por nhas presidenciais. O programa do civilis-
Hermes Lima, que foi nosso confrade e tam- mo, para Rui, estava voltado para a obser-
bém como João Mangabeira figura pública vância das condições de justiça, e requer “o
D i me n sõ es da at ua l i da d e d o l e g a d o d e R u i B a r bo s a • 91
edição de Cartas da Inglaterra, que nele – para dela extrair uma lição de civilismo,
identifica uma “autópsia do militarismo”, apontando que na França foi “crucificada a
válida também para o Brasil de Floriano Pei- justiça na pessoa de um soldado pelas intri-
xoto, que postergou na experiência de vida gas da política de fações”, destacando no
de Rui, a vigência das garantias legais. contexto, a importância do direito, da justi-
O texto de Rui também corrobora a de- ça e da legalidade.
fesa que fez em 1920 sobre o dever da ver- Em 1985 Rui fez verter para o francês o
dade – nos debates, nos atos, no governo, seu texto, que foi publicado no Rio de Ja-
na tribuna, na imprensa – e da transparên- neiro. O texto chegou às mãos de Dreyfus
cia do espaço público, pois, como afirmou, depois de sua liberação, mas antes de sua
“o poder não é um antro: é um tablado. A plena reabilitação pela Corte de Cassação,
autoridade não é uma capa, mas um farol”. em 1906. Dreyfus, no seu livro Souvenirs et
“A política não é uma maçonaria, e sim Correspondences registra que leu o texto
uma liça.” Daí a inaceitabilidade da falsifica- de Rui em 1900 identificando “no autor um
ção e da mentira nas instituições (A Impren- discernimento notável e uma grande liber-
sa e o dever da verdade). Estas foram as que dade de espírito.”
permearam o processo e a condenação de O caso Dreyfus foi um caso rumoroso,
Dreyfus. de alcance internacional, cuja relevância
Rui escreveu o seu texto no calor da hora Rui anteviu desde o primeiro momento.
e com base nas informações hauridas na im- Dividiu e mobilizou a opinião pública da
prensa inglesa. Foram suficientes, como o França da 3.a República com repercussão
tempo demonstrou e a revisão do processo na Europa. Hannah Arendt sublinha o seu
Dreyfus comprovou, para Rui demonstrar, alcance histórico para o século XX, consi-
de maneira inequívoca, que Dreyfus fora ví- derando-o uma cristalização antecipatória,
tima de uma flagrante denegação da justiça explicativa das origens do que veio a ser o
por total carência de devido processo legal, totalitarismo.
tendo realçado que a clandestinidade do Na defesa de Dreyfus alinharam-se no
processo o inquinava de suspeita. Entreviu tempo as correntes liberais e democráticas.
que a verdadeira causa da condenação de Neste sentido cabe lembrar que a posição
Dreyfus foi o antissemitismo. Apontou que de Rui, que estava em sintonia com essa
o processo correu no segredo de um tribu- corrente, repercutiu favoravelmente na di-
nal militar e “era pleito sentenciado pela plomacia aberta, caracterizadora da Con-
opinião pública”, registrando que esta, na ferência de Haia de 1907, que deu espaço
França daquele momento, vivia “o espasmo ao papel da imprensa na cobertura de suas
do ódio insaciável” que agitava contra o atividades. O influente jornalista William
acusado todas as classes da população. Stead, que escreveu sobre o Brasil em Haia,
Em 1919, na sua segunda campanha apontou que Rui como chefe da delegação
presidencial, Rui, em conferência de 24 de brasileira não só se impôs no âmbito mul-
maio, referiu-se a seu texto em defesa de tilateral, pelo seu conhecimento e comba-
Dreyfus – como registra o primeiro arrazoa- tividade em relação aos demais delegados.
do jurídico escrito na discussão de sua causa Sua pioneira defesa de Dreyfus, atestada
D i me n sõ es da at ua l i da d e d o l e g a d o d e R u i B a r bo s a • 93
pelo próprio Dreyfus, a ele deu “um cunho o papel do Direito na democratização do
de distinção”, que conferiu a Rui prestígio espaço internacional.
perante a opinião pública esclarecida que A autonomia do jurista em relação ao
acompanhou de perto a Conferência. poder, que caracterizou a maneira de ser de
Haia foi o primeiro grande ensaio da di- Rui, também marcou a sua atuação na Haia.
plomacia multilateral no século XX e o mo- Nela encontrou o tom certo para afirmar a
mento inaugural da presença brasileira nos posição independente do Brasil, cuja espe-
grandes foros internacionais. cificidade era distinta, como observou, dos
Nela, Rui atuou com informações sobre que imperavam na “majestade de sua gran-
a cena internacional que lhe foram previa- deza” e dos que se encolhiam “no receio da
mente dadas por Joaquim Nabuco e em sua pequenez”.
estreita coordenação com o Chanceler Rio Rui manteve a posição independente
Branco. Foi bem-sucedido porque tinha to- do Brasil em relação aos EUA quando este,
das as qualidades para a diplomacia parla- como potência em ascensão, se alinhou
mentar do multilateralismo: o pleno domí- com as demais grandes potências. Rele-
nio dos assuntos, a vocação de infatigável vante, neste sentido, a propósito das rela-
trabalhador e a capacidade de exprimir-se, ções do Brasil com os EUA, o que Rui, mais
inclusive de improviso e com perfeição, em adiante, disse na sua Conferência, A Im-
francês – a língua oficial da Conferência – prensa e o dever da verdade: “Não quero,
a que se conjugou a combatividade, que nem quererá nenhum de vós, que o Brasil
sempre o caracterizou, como advogado, viesse a ser o símio, o servo ou a sombra
político e parlamentar. dos Estado Unidos. Não acho que devemos
Rui em Haia contestou a igualdade ba- nos entregar de olhos fechados à sua polí-
seada na força e sustentou, no âmbito do tica internacional, se bem haja entre ela e
Direito Internacional Público, a igualdade a nossa, interesses comuns bastante gra-
dos Estados. A posição do Brasil, pela sua ves e legítimos, para nos ligarem na mais
voz, representou uma primeira formulação inalterável amizade, e nos juntarem intima-
brasileira da tese da democratização do mente em uma colaboração leal na política
sistema internacional e, nesta linha, uma do mundo. Tal é o meu sentir de ontem, e
contestação ao exclusivismo, até então pre- amanhã.”
ponderante, do papel da gestão da vida in- Na sua avaliação dos resultados de Haia,
ternacional atribuída às grandes potências. Rui em discurso de 31 de outubro de 1907,
Assim, da mesma maneira que em nosso fez uma observação que antecipou o tema
país a sua prática de homem público e de “soft power”, que é de grande relevância
publicista essteve voltada para a construção para o mundo interdependente em que es-
de um espaço público democrático, e neste tamos envolvidos: ”Hoje, com efeito, mais
contexto, o Direito foi o meio para o seu do que nunca, a vida assim moral como
perseverante fazer político , assim também econômica das nações é cada vez mais in-
em Haia, na sua prática diplomática, voltou- ternacional. Mais do que nunca em nossos
-se coerentemente para os males das imper- dias os povos subsistem de sua reputação
feições do sistema internacional, indicando no exterior”.
94 • Celso Lafer
O tempo não me permite explorar o al- Rui extraiu da sua avaliação sobre a
cance de uma subsequente ação diplomáti- guerra um papel diverso do que teve a
ca de Rui que foi a Embaixada em Buenos neutralidade no passado, como examina
Aires, de 1916. Nela representou o Brasil no circunstanciadamente na sua Conferência.
centenário da independência da República Nas suas palavras: “A imparcialidade na
Argentina. Os documentos desta missão fo- justiça e solidariedade no Direito, a comu-
ram reunidos no volume XLIII, 1916, Tomo nhão na manutência das leis escritas pela
1 das Obras Completas de Rui, publicados comunhão, eis aí: a nova neutralidade, que
em 1981 pela Casa de Rui Barbosa, prece- se deriva positivamente das Conferências
dida de um notável prefácio de Evaristo de da Haia, não flui menos imperativamente
Moraes Filho. das condições sociais do mundo moderno.”
Em Buenos Aires, Rui destacou em mais Haia e Buenos Aires resultam do empe-
de uma oportunidade a relevância do po- nho de Rui em arguir no plano externo os
tencial de cooperação entre o Brasil e a Ar- méritos da domesticação pelo Direito da
gentina em uma vasta construção na ordem força e dos benefícios da juridicidade nas re-
política, na ordem econômica e na ordem lações internacionais. A posição de Rui está
jurídica. É assim um dos importantes patro- em consonância com dispositivos que regem
nos da parceria argentino-brasileira que veio as relações internacionais do Brasil, contem-
a ser, com grande atualidade, um dos temas pladas no art. 4.º da Constituição Federal,
fortes da agenda diplomática de nosso país. entre eles a defesa da paz e a solução pa-
Rui também proferiu uma importan- cífica de controvérsias. O empenho de Rui
te Conferência na Faculdade de Direito de internacionalista guarda total coerência com
Buenos Aires sobre os conceitos modernos a sua dedicação no plano interno em sub-
do Direito Internacional, também conheci- meter a razão de Estado à razão do Direito.
do como o dever dos neutros, nela anali- São muito significativas as iniciativas e
sado à luz da violência que caracterizou a contribuições de Rui na construção insti-
1.a guerra mundial. A Conferência de Rui tucional do país, e que perduram com os
teve larga repercussão, inclusive na França. ajustes do tempo até os dias de hoje. Rui foi
Desta substanciosa conferência permito-me desde o tempo do Império um defensor do
destacar como Rui, com presciência obser- federalismo. Entendia que o sistema federa-
vou que dada a “interdependência em que tivo era o único adaptável ao Brasil. Avaliou
até as nações mais remotas vivem umas que a autonomia federativa dos Estados,
das outras, a guerra não pode isolar-se nos republicanizava o país mais depressa e mais
estados entre os quais se abre o conflito”. seriamente do que se imaginava, substi-
Sua comoção, estragos e misérias repercu- tuindo a inércia das antigas províncias. Daí
tem sobre a fortuna dos povos mais distan- a importância do seu papel na modelagem
tes. Neste sentido, Rui antecipou o tema da jurídica do federalismo brasileiro desde o
indivisibilidade da paz que posteriormente governo provisório até a feição que assumiu
veio a ser consagrada, depois do término da na Constituição de 1891.
1.a guerra mundial, pelo Pacto de Socieda- A criação e o papel do Supremo Tribu-
de das Nações. (Art. II). nal Federal tiveram em Rui o seu grande
D i me n sõ es da at ua l i da d e d o l e g a d o d e R u i B a r bo s a • 95
para todos os cidadãos, não obstante sua no pensar. Vulgar é o ler, raro o refletir. O
diversidade e conflitos político-ideológicos, saber não está na ciência alheia, que se
uma plataforma comum na qual possam absorve, mas, principalmente, nas idéias
encontrar-se enquanto integrantes de uma próprias, que se geram dos conhecimentos
comunidade política democrática. absorvidos, mediante a transmutação, por
Concluo com uma das grandes lições de que passam, no espírito que os assimila.
Rui na Oração aos Moços: que ele seguiu na Um sabedor não é armário de sabedoria ar-
sua vida, obra e percurso: “os que madru- mazenada, mas transformador reflexivo de
gam no ler, convém madrugarem também aquisições digeridas”.
ENSAIO
Arnaldo Niskier
Ocupante da Cadeira 18 na Academia Brasileira de Letras
segunda vez com a viúva Maria Ramos Gui- Eugênia fazia, então, o papel-título do dra-
marães, mudando-se para o Solar do Sodré, ma “Dalila”, e Castro Alves saudou-a:
onde hoje é o Colégio Ipiranga.
Ergueste a voz em Dalila
Já nesta época, despertava a vocação Contigo a artista adorei;
poética de Castro Alves. No dia 3 de julho Depois em Lúcia choraste,
de 1861, ainda no ginásio, o poeta decla- Contigo Lúcia chorei.
mou sua primeira poesia, na festa de co-
Pode-se afirmar que Castro Alves é o
memoração da liberdade da terra baiana,
poeta do amor. Eugênia não resistiu e en-
graças aos heróis de Pirajá:
tregou-se a ele com toda a paixão. Mais
Se o índio, o negro, o africano, tarde, outra grande atriz, Adelaide Amaral,
E mesmo o perito hispano disputava com Eugênia as preferências do
têm sofrido servidão; poeta, no Recife.
Ah! Não pode ser escravo
Castro Alves continuou sua carreira
Quem nasceu no solo bravo
poética até chegar à glória máxima de ser
Da brasileira região!
exaltado nos braços do povo, quando sua
Apesar de jovem, Castro Alves impres- poesia social tinha a finalidade ostensiva de
sionava as mulheres por sua beleza e fascí- propaganda política e mesmo revolucioná-
nio: alto, vasta cabeleira negra, fisionomia ria. Por isso mesmo, o bardo era também
pálida. Em Recife, foi morar numa “repúbli- conhecido como “a tuba sonora”.
ca” de estudantes, onde fez novos amigos Foi uma carreira curta e brilhante, mar-
e conheceu a vida boêmia. Pouco tempo cada por dois fatos importantes da campa-
depois, ele, o irmão e Luís Cornélio dos San- nha abolicionista no Brasil: de um lado, a
tos, seu colega de colégio, alugaram uma Lei Eusébio de Queirós, de 1850, reprimin-
pequena casa, às margens do Capibaribe. do o tráfico africano e, do outro, a Lei do
Estudava e fazia versos. Ventre Livre, sancionada em 28 de setem-
O Jornal do Recife começou a divulgar bro de 1871, dois meses depois da morte
vários de seus poemas, e a popularidade foi do poeta, que ocorreu a 6 de julho de 1871.
crescendo: o adolescente baiano vestia-se Quando Castro Alves apareceu, a lite-
bem, no rigor da moda, e provocava suspi- ratura no Brasil era conflitante – as ideias
ros nas mocinhas. Quando saía às ruas, cos- inovadoras eram vítimas de resistência e
tumava dizer para sua imagem no espelho, custavam a triunfar. O Romantismo, em-
ajeitando a gravata: bora combatido, tinha como magníficos
– Tremei, pais de família, pois Don Juan representantes Gonçalves Dias (o poeta dos
vai sair! índios), Álvares de Azevedo e os seus fantas-
Em Recife o destino lhe reservara a pri- mas, Casimiro de Abreu e a nostalgia, além
meira paixão. Em 1863, no Teatro Santa Isa- de outros, e prolongou-se por mais de uma
bel, conheceu aquela que seria o mais signi- geração. Ainda em 1883, o quadro da poe-
ficativo amor da sua vida: Eugênia Câmara, sia brasileira era constituído de sentimenta-
vinda de Portugal, mulher inteligente, vi- listas, liristas puros, condoreiros e realistas.
brante, sedutora, atriz das mais festejadas. Castro Alves estava aí configurado, desde o
C a s t ro A lv e s , o p o e ta d o a m o r • 99
caçar, ao pular um regato, sua arma dis- professora de canto e piano. Passava as tar-
parou, ferindo-o num dos pés. O acidente des com ela no farol da Barra. A professora
comoveu o povo paulista. Já estando tuber- resistia ao poeta, preocupada com os co-
culoso e fraco, teve uma recuperação pro- mentários da sociedade baiana. Mais tarde,
longada. Mesmo assim ainda pensava em ela confessou sua frustração:
Eugênia: Nenhuma mulher poderia ter resistido a
tanto talento, a esse gênio sobrenatural, fora
Penso em ti nas horas de tristeza. sua beleza física. Mas eu pertencia a essa so-
Ai! Volve! volve peregrina estrela! ciedade baiana nobre...
O “Cantor dos Escravos” quis morrer
Em 10 de fevereiro de 1871, contra-
em solo baiano e embarcou para Salvador
riando sua família, Antônio de Castro Alves
onde, no velho Solar do Sodré, reencontrou
declamou pela última vez em público, na
o carinho de suas irmãs. Quase não saía
Associação Comercial, onde se realizava um
de casa, traduziu Byron e leu Casimiro de
ato de solidariedade às vítimas francesas da
Abreu. A recordação do vapor que lhe trou-
guerra franco-prussiana. Pela última vez viu
xe à Bahia, as espumas do mar, acendeu em
Agnese, dedicando-lhe o poema “Noite de
sua mente a ideia de reunir seus versos num
maio”. No dia 5 de julho, olhando um es-
livro, a que deu o nome de Espumas Flu
pelho, pediu:
tuantes. Já não sou mais o mesmo... ninguém mais
Mesmo cansado e triste, resolveu voltar pode entrar em meu quarto. Quero que se
ao sertão que tanto amou. Foi para Currali- lembrem do que fui, não do que sou!
nho, antiga fazenda de seus avós maternos.
Castro Alves, às 10 horas do dia 6 de
Lá quis recitar, mas a voz lhe fugiu, morren-
julho de 1871, quando sua irmã Adelaide
do na garganta. Logo a seguir, concluiu A
lhe enxugava a testa, disse-lhe:
Cachoeira de Paulo Afonso, a epopeia da
Guarda esse lenço... com ele enxugaste o
liberdade negra.
suor de minha última agonia.
Sempre conjugando seus amores com
a paixão pela causa abolicionista, em Anjos Pediu para abrirem a janela, queria olhar
da meia-noite, cantou suas musas: Idalina, o mar, vislumbrar os escravos livres, o con-
Leonídia, Esther, Eugênia, e lembrou as for- dor republicano nos ares, suas mulheres
mosas cariocas Cândida e Maria Cândida. queridas. As três e meia da tarde morreu,
Castro Alves, voltando a Salvador, apai- diante do lamento dos amigos e admirado-
xonou-se mais duas vezes: Brasília de Sousa res e a gratidão de uma raça.
Vieira e, logo em seguida, Virgínia Hugo, O mito não morre assim. Ele continua
que dizem ter lhe dado uma filha, Virgínia presente na memória dos negros brasileiros
Hilda de Castro Alves Gonçalves. e nos suspiros das meninas morenas que, até
Surgiu para o poeta baiano a última hoje, depositam rosas vermelhas em sua se-
paixão: Dona Agnese Trinci Murri, italiana, pultura, na Praça Castro Alves, em Salvador.
Poesia e música a partir de Homero
Antonio Cicero
Ocupante da Cadeira 27 na Academia Brasileira de Letras
E
m grego antigo, a palavra , de enquanto cantos, do que por escrito. Trata-
onde “poeta”, significava aquele que -se do que se chama de “poesia oral pri-
faz alguma coisa, e a palavra , mária”. Ora, é evidente que, em virtude da
de onde “poema”, significava aquilo que grande extensão da Ilíada e da Odisseia, te-
foi feito. É apenas nesses sentidos originais ria sido impraticável uma apresentação inin-
que Homero empregava tais palavras, e não terrupta, do começo ao fim, de uma dessas
no sentido contemporâneo, em que a pala- obras. Como cada uma das apresentações
vra “poeta” significa sobretudo um artista de cada trecho desses poemas era consi-
que produz obras a partir de palavras, e a derada a apresentação de um epos, então,
palavra “poema” significa sobretudo uma dado que o plural de “epos” é “êpea”,1
obra de arte tradicionalmente composta de podemos dizer que tanto a Ilíada quanto
palavras dispostas em formas de versos. O a Odisseia são compostos de vários êpea.
vocábulo que ele usava para o que hoje cha- Fisicamente, esses poemas não puderam,
mamos de “poeta” é “ ”, de onde portanto, constituir unidades senão quan-
“aedo”, que quer dizer cantor; e as palavras do, tendo sido todos os êpea da Ilíada, por
que usa para o que chamamos de “poema” um lado, e todos os êpea da Odisseia, por
são , que quer dizer canção, ou , outro, escritos e reunidos por alguém, eles
“epos”, que quer dizer um discurso que se assumiram a forma de livros.
reitera, como uma palavra, um provérbio, Assim, o escritor e professor de retórica
uma reza ou uma canção. e erudito romano Aeliano, que viveu no sé-
Supõe-se que os poemas homéricos culo III d.C. e escrevia em grego, conta que
tenham sido compostos no século IX a.C..
Ora, foi mais ou menos nessa época que antes os antigos cantavam separada-
os gregos apenas começaram a produzir o mente os êpea de Homero. Chamavam-
seu alfabeto, tomando por base a escrita -se, assim, “A batalha ante as naves”,
fenícia. Sendo assim, é certo que os poe- “Dolonia”, “A vitória de Agamêmnon”,
mas homéricos existiram antes oralmente, 1 .
104 • Antonio Cicero
“O catálogo das naves”, a “Patróclea”, aprendeu palavra por palavra e linha por
a “Lytra”, “Os jogos instituídos para Pá- linha, e, no entanto, as duas canções são
troclo”, e “A quebra dos juramentos”. versões reconhecíveis da mesma estória.
Isso, quanto à Ilíada. Quanto à Odisseia, Não são, porém, tão parecidas que possam
“As ações em Pylas”, “As ações na Lace- ser consideradas ‘exatamente iguais’”.5 Na
demônia”, “A caverna de Calipso”, “O verdade, segundo Lord,
barco”, “Os discursos de Alcínoo”, “As
qualquer canção particular é diferente na
Ciclópias”, “A Necuia” [...]. Muito depois,
boca de cada um dos seus cantores. Se
Licurgo, o lacedemônio, pela primeira vez
a considerarmos no pensamento de um
trouxe para a Hélade a poesia de Homero
único cantor durante os anos em que ele a
em conjunto. Essa carga, ele transportou
canta, descobriremos ser diferente em di-
da Jônia, por onde viajou. Finalmente, Pi-
ferentes estágios de sua carreira. A clareza
sistrato2 compilou a Ilíada e a Odisseia.3
dos contornos de uma canção dependerá
Nos tempos modernos, as mais impor- de quantas vezes ele a cantou; se é uma
tantes descobertas sobre a natureza da parte estabelecida do seu repertório, ou
poesia oral primária são as que o estudio- apenas uma canção que canta ocasional-
so esloveno Matija Murko e os america- mente. A extensão da canção também é
nos Milman Parry e Albert Lord fizeram, importante, pois uma canção curta por
a partir de seus estudos sobre a tradição natureza tenderá a tornar-se tanto mais
oral nos Bálcãs modernos. “Os cantores”, estável quanto mais for cantada.6
conta Murko sobre os poetas pertencen-
Para poder improvisar, o cantor épico
tes à tradição épica oral da Iugoslávia, na
necessita dispor de certos recursos linguís-
primeira metade do século vinte, “não têm
ticos que lhe permitam, obedecendo a mé-
texto estabelecido, recriam sempre as suas
trica tradicional, improvisar fluentemente.
canções, embora afirmem fazê-las sempre
A poesia épica grega emprega o hexâmetro
iguais ou apresentá-las como as ‘capta-
datílico, em que cada verso contém seis pés,
ram’ ou ‘ouviram’.”4 Falando a respeito de
cada um dos quais sendo composto por uma
dois cantores da mesma tradição, Zogic e
sílaba longa, seguida por duas sílabas breves
Makic, Lord mostra que ambos “enfatizam
ou, ocasionalmente, por outra sílaba longa.
que cantariam a canção exatamente como
Um desses recursos linguísticos são as
a ouviram, Zogic jactando-se até de que,
fórmulas. Trata-se de sintagmas ou, como as
vinte anos depois, cantaria a canção do
define Parry, de expressões que, usadas sob
mesmo modo (‘palavra por palavra, linha
as mesmas condições métricas, exprimem
por linha’)”, e explica que “Zogic aprendeu
uma ideia essencial.7 Assim, por exemplo,
de Makic a canção em questão […] Não a
em vez de empregar simplesmente, como
2 Pisistrato
foi tirano em Atenas no século VII a.C. de hábito, a palavra para dizer “de
3 AELIANUS, Claudius. “Varia historia”. In:_____. De
natura animalium libri xvii, varia historia, epistolae, 5 LORD, A.B. The singer of tales. Cambridge, Mass.:
fragmenta, ex recognitione Rudolphi Hercheri. Lepzig: Harvard U. Press, 1997, p.28.
Teubner, 1866, ovol.XIII, cap.XIV. 6 Ibid., p.35.
4 Apud FRANKEL, H. Dichtung und Philosophie des 7 PARRY, Milman. The making of homeric verse. Oxford:
madrugada”, Homero muitas vezes prefe- esquema métrico. Tal idioma9 possuía a pe-
re o verso culiaridade extraordinária, sublinhada por
, (“mal raiou a filha da manhã, Barry Powell, de ser falado por poucos mem-
Aurora de róseos dedos”), frase que signifi- bros da comunidade, embora fosse entendi-
ca a mesma coisa, porém consiste num he- do por todos.10 Pois bem, os futuros poetas
xâmetro datílico. Ou, tendo que preencher aprendiam desde muito cedo – alguns, des-
um hexâmetro dactílico, ele frequentemen- de crianças – esse idioma, de modo a falar
te, no lugar de dizer simplesmente o nome fluentemente em hexâmetros datílicos.
de um deus ou um herói, usa um de seus Depois da difusão da escrita na Grécia,
famosos epônimos. Assim, por exemplo, no no século V a.C., tonara-se relativamente
lugar de (Odisseu) tout court, comum a memorização da Ilíada e da Odis-
ele pode preferir, se lhe for metricamente mais séia. Uma memorização dessa natureza, po-
conveniente, usar, ao final do verso que está rém, não é típica das culturas orais primárias
pronunciando, como a de Homero ou dos aedos que ele
(atribulado, divino Odisseu). descreve, mas de culturas que já dispõem da
No princípio do século XX, a observação escrita. Na Grécia, eram os rapsodos, que co-
da poesia oral iugoslava ocasionou a elabo- nheciam a escrita, como Íon, personagem do
ração do conceito de composition in perfor- diálogo homônimo de Platão, que a pratica-
mance, “composição durante a recitação”, vam. Ao contrário da palavra aedo, a própria
ou, se quisermos, durante a apresentação, palavra rapsodo é pós-homérica e posterior à
que manifesta o fato de que não há diferen- introdução da escrita.
ça entre o ato através do qual o cantor apre- Segue-se que os poemas homéricos, tais
senta determinada canção e o ato através como se apresentam hoje, devem consistir
do qual ele a compõe, pois a apresentação em textos orais ditados. Como diz Lord,
consiste numa recriação.8 Cada vez que o
cantor canta uma canção, ele a recompõe; as canções sempre estiveram em fluxo e
e o compositor não compõe senão quando se cristalizavam por cada cantor somen-
canta uma canção. Quando o cantor diz que te quando ele se sentava ante uma au-
vai apresentar a canção X ou uma canção diência e lhe contava a estória. Era uma
sobre X, ele quer dizer que, empregando as velha estória que ouvira de outros, mas
fórmulas tradicionais que lhe possibilitem fa- aquela maneira de contar era dele mes-
lar fluentemente na métrica tradicional, dis- mo... Ele deve tê-la cantado muitas ve-
correrá sobre o – o mito – é, isto é, zes antes e muitas vezes depois daquelas
o tema, X. É como se o cantor falasse uma ocasiões momentosas que nos deram a
Kunstsprache, um idioma artificial sobrepos-
Ilíada e a Odisséia. E então ocorreu um
to ao idioma cotidiano, composto de versos
dos grandes eventos na história cultural
hexamétricos datílicos e cujo vocabulário se
do Ocidente, a escritura da Ilíada e da
compusesse não somente das palavras atô-
Odisséia de Homero.11
micas deste, mas também das palavras, por
assim dizer, moleculares, que são as fórmu-
9 Ibid., p.35.
las, que lhe facilitassem o emprego desse 10 POWELL, B.B. Homer and the origin of the Greek alpha-
disso, uma viagem que devia ter sido curta A quem a Musa muito amava. Dera-lhe
acabou por durar dez anos. tanto o bem como o mal.
O canto VIII da Odisseia conta como Privara-o da vista dos olhos; mas um
Ulisses, chegando à ilha dos Feácios, foi re- doce canto lhe concedera.
cebido pelo rei, chamado Alcínoo. Este lhe Para ele colocou Pontónoo um trono
ofereceu um banquete em seu palácio. Eis com embutidos de prata
como Alcínoo, na tradução de Frederico No meio dos convivas, recostando-o
Lourenço, convidou os nobres de sua corte contra uma alta coluna.
para o banquete: Num prego pendurou a lira de límpido
som, perto da cabeça
[...] Vinde agora ao meu belo Do aedo; mostrou-lhe depois o arauto
Palácio, para que mostremos ao estran- como a ela chegaria
geiro a nossa estima. Com as mãos. E junto dele colocou um
Que ninguém se recuse! E chamai ainda belo cesto e uma mesa,
o divino aedo, Assim como uma taça de vinho, para
Demódoco, pois a ele concedeu o deus que bebesse quando desejasse.
o apanágio de nos
E todos lançaram mãos às iguarias que
Deleitar, quando aquilo canta que lhe
tinham à sua frente.
inspira o coração.16
Mas depois de afastarem o desejo de
[...]
comida e bebida,
Eis agora a descrição do que ocorreu no A Musa inspirou o aedo a cantar as céle-
palácio: bres façanhas de heróis:
era um canto cuja fama chegara já ao
Os pórticos, os pátios e os edifícios esta- vasto céu –
vam repletos de homens a contenda entre Ulisses e Aquiles, filho
Que ali se reuniam: eram muitos, tanto de Peleu.17
novos como velhos. [...]
Em sua honra Alcínoo degolou em sacri-
17 Ibid., vs. VIII.57-73. Original grego:
fício doze ovelhas,
Oito javalis de brancas presas e dois bois
de passo cambaleante.
Esfolaram e esquartejaram os animais;
fizeram um aprazível festim.
líricos não estão em si quando com- Creio que o que Sócrates/Platão está
põem esses belos poemas; mas, logo dizendo corresponde perfeitamente ao que
que entram na harmonia e, no ritmo, a maior parte dos poetas pensa sobre sua
são transformados e possuídos como arte, desde a antiguidade até hoje. Não é
as Bacantes que, quando estão possuí- apenas com a razão, o intelecto e a técni-
das, bebem nos rios o leite e o mel, mas ca que se produz um poema. Nele, entram
não, quando estão na sua razão, e é as- em jogo todas as faculdades humanas: a
sim a alma dos poetas líricos, segundo emoção, o sentimento, a sensação, a sen-
eles dizem. sualidade, a imaginação, o desejo, o humor,
[...] o inconsciente e o próprio acaso. De certo
modo, é como se, a partir de certo ponto, o
Com efeito, o poeta é uma coisa leve, poema produzisse a si próprio.
alada, sagrada, e não pode criar antes Tendo lido trechos da Odisseia, que
de sentir a inspiração, de estar fora de é um dos dois primeiros poemas gregos
si e de perder o uso da razão. Enquanto que se conhecem – de caráter épico – le-
não receber este dom divino, nenhum rei agora dois poemas bem mais tardios, de
ser humano é capaz de fazer versos ou caráter lírico, que pertencem ao conjunto
de proferir oráculos. Assim, não é pela de poemas intitulado “Anacreontea”. Du-
técnica que dizem tantas e belas coisas rante muito tempo, eles foram atribuídos
sobre os assuntos que tratam, como tu ao poeta Anacreonte, do século VI a.C.. A
sobre Homero, mas por um privilégio di- partir do século XIX, porém, passaram a ser
vino, não sendo cada um deles capaz de considerados, pela maior parte dos helenis-
compor bem senão no género em que a tas, como não tendo sido escritos antes do
Musa o possui.20 século I a.C.. De todo modo, alguns deles
são belíssimos. Começo pelo seguinte poe-
No diálogo Fedro, Sócrates diz, em de- ma lírico, ou canção, que aqui apresento na
terminado ponto: minha tradução:
que a relva e tenho a impressão de esperar e, com ela, a dor mais per-
de quase morrer.26 sistente, mais profunda, mais desespe-
rançosamente incurável de saber que
Traduzi também o “fragmento 168b”, toda luz há que se pôr, que a vida e
que diz: o amor declinam, declinam inexoravel-
mente rumo ao ocaso e à escuridão: to-
Mergulharam a lua
das essas coisas são implicadas – quão
e as Plêiades: meia-
completamente! – nas linhas de Safo.
noite, a hora passa
As palavras continuam como que a
e eu durmo sozinha.27
ecoar e re-ecoar ao longo de corredo-
Para terminar, leio o que o grande es- res cada vez mais remotos da memória,
critor inglês Aldous Huxley disse sobre esse com um som que jamais pode comple-
“fragmento”: tamente morrer (tal é o estranho poder
da voz do poeta) até a morte da própria
Nem mesmo o melhor dos chineses
memória.
poderia ter dito mais em compasso tão
estreito. A noite, o desejo, a angústia Concordo inteiramente.
Simon Schwartzman
Doutor em Ciências Políticas pela Universidade da Califórnia, Berkeley,
e membro da Academia Brasileira de Ciências
“tudo” leva a um ensino raso e fragmenta- os níveis cognitivos mais altos, e os domínios
do, que não permite o estudo aprofundado afetivos e psicomotores, de efetiva incorpora-
em poucos temas, a partir dos quais podem, ção e uso dos conhecimentos, sem uma base
inclusive, decidir depois explorar outros con- cognitiva sólida. Isto significa, na prática, que
teúdos e áreas de conhecimento. não se deve ficar somente arranhando a su-
A crítica à educação tradicional, descrita perfície dos diferentes temas, é necessário
como elitista, etnocêntrica e machista, dos concentrar e aprofundar. É isto que fazem os
“homens brancos e mortos”, levou muitas ingleses quando avaliam os estudantes ao fi-
vezes a teses relativistas extremas, como de nal do ensino em três ou, no máximo, quatro
que todas as culturas são equivalentes, que áreas no “A Level”, ou os franceses quando
não existe distinção entre cultura erudita e permitem que os estudantes optem por di-
cultura popular, que todo conhecimento é ferentes áreas do Baccalauréat – literário,
relativo, de que tudo depende da “narrati- econômico e social, científico, e as diversas
va”, que o hermetismo das ciências não se- modalidades do Bac tecnológico.
ria mais do que mais um truque das elites A abertura de opções de formação no En-
dominantes contra os demais. Não é preciso sino Médio coloca a questão de quais seriam
endossar este relativismo extremo para reco- os conhecimentos comuns que todos os es-
nhecer a natureza elitista e em grande parte tudantes deveriam ter – e o consenso é que
arbitrária dos currículos tradicionais, que não esta parte comum inclui pelo menos o domí-
podem mais ser tomados como válidos sem nio da língua culta e do raciocínio matemá-
maior consideração. tico, podendo também incluir um repertório
Um outro questionamento óbvio ao currí- de conhecimentos gerais sobre a sociedade
culo tradicional é que a ciências naturais e so- e o mundo. A suposição, nos países em que
ciais se expandiram de tal maneira desde me- a educação pública funciona melhor, é que
ados do século passado que torna qualquer esta parte comum deveria ser dada no nível
tentativa de proporcionar uma “formação secundário inferior, que, no Brasil, corres-
integral” um projeto inviável. A conhecida ponde aos últimos quatro anos da educação
“taxonomia de Bloom” (Bloom, Krathwohl, fundamental, dos 11 aos 15 anos de idade.
& Masia, 1984), amplamente utilizada na or- Na elaboração da nova lei do Ensino Médio
ganização de currículos escolares, distingue brasileiro, no entanto, prevaleceu a tendên-
três grandes domínios no processo de conhe- cia a ampliar ao máximo esta parte comum,
cimento – cognitivo, afetivo e psicomotor –, que acabou ficando como uma miniatura do
e, dentro do domínio cognitivo, seis níveis – antigo curso médio tradicional.
conhecimento, compreensão, aplicação, aná-
lise, síntese e avaliação. Existem muitos ques- Terceiro dilema: educação
tionamentos e adaptações desta taxonomia,
vocacional integrada ou
mas, discussões à parte, ela deixa claro que,
por um lado, a educação que se limita ao pri-
diferenciada
meiro ou máximo segundo nível dos proces- Na grande maioria dos países, os estu-
sos cognitivos é necessariamente muito po- dantes que chegam ao Ensino Médio têm a
bre, e que, segundo, não é possível trabalhar possibilidade de se matricular em cursos que
116 • Simon Schwartzman
organização dos cursos por disciplinas, e do que ficou conhecido como o “Natio-
substituí-las por extensas listas de “compe- nal Vocational Qualifications Framework”,
tências” e habilidades, organizadas em qua- como isto não funcionou, e ela mesma foi
tro grandes “áreas de conhecimento”: “lin- uma das principais responsáveis por fazer
guagens e suas tecnologias”, “matemática com que esta orientação fosse mais tarde
e suas tecnologias”, “ciências da natureza abandonada (Wolf, 1995). Ela tem tam-
e suas tecnologias” e “ciências humanas bém questionado na Austrália, aonde há
e sociais aplicadas”. Na primeira, o docu- uma preocupação crescente com a ênfase
mento lista sete “competências específicas” em capacidades mais gerais (Wheelahan;
compreendendo 28 “habilidades”. A língua Wheelahan & Moodie, 2011). Mas a educa-
portuguesa é só uma entre as linguagens ção por competências passou a ser adotada
contempladas, que incluem também a arte, também em muitas partes para a educação
o inglês e a educação física. Além disto, o geral e a educação superior, com diversas
documento identifica cinco “campos de perspectivas e abordagens. É um movimen-
atuação” (vida pessoal, práticas de estudo to que tem sido fortemente criticado por
e pesquisa, jornalístico-mediático, de atua- ignorar os conteúdos formativos e culturais
ção na vida pública e o campo artístico). No que vêm associados às diversas disciplinas
total, o documento lista cem habilidades es- pedagógicas, científicas e profissionais que
pecíficas que deveriam ser objeto da parte devem fazer parte de qualquer processo
de formação comum do Ensino Médio na educativo, e substituí-los por uma visão
área de linguagem (Ministério da Educação, estritamente comportamentalista (Preston,
2017). O mesmo formato é aplicado para as 2017). Quando melhor formulado, como
outras três “áreas de conhecimento”, assim em documento recente da OECD sobre
como para os cinco diferentes “itinerários a educação do futuro, termos de conhe-
formativos” definidos por lei, resultando cimentos, habilidades, atitudes e valores
em diretrizes pedagógicas altamente com- (OECD, 2018), o conceito de educação por
plexas e de implementação extremamente competências não é muito diferente da ta-
duvidosa (Ministério da Educação, 2019). xonomia de Bloom citada acima.
O conceito de educação por competên-
cias tem origem na área de educação vo-
cacional nos Estados Unidos nos anos 70,
O processo e o resultado
e a ideia principal é identificar com clareza Nestes três anos desde que a primei-
as aptidões que os trabalhadores deveriam ra versão da reforma do Ensino Médio foi
adquirir para o desempenho de ativida- encaminhada ao Congresso Nacional como
des específicas no mercado de trabalho, medida provisória, não houve um documen-
concentrando a capacitação no desenvol- to que expressasse com clareza um enten-
vimento das competências e habilidades. dimento de como estes diversos dilemas
Em uma análise que se tornou clássica, a deveriam ser entendidos e tratados em uma
socióloga inglesa Alyson Wolf mostra como transformação tão profunda como esta.
esta ideia foi adotada entusiasticamente na Desde o primeiro momento, passou-se dire-
Inglaterra nos anos 80 para a elaboração tamente para a elaboração de um texto legal
118 • Simon Schwartzman
carregado de cláusulas destinadas a lidar entanto, vão poder e ter que tomar muitas
com questões específicas, que mais obscu- decisões próprias, e isto pode ser que venha
recia do que esclarecia como o novo sistema para o bem, se o Ministério da Educação
deveria funcionar. O Ensino Médio de tempo não atrapalhar.
integral, de interesse especial do Estado de
Pernambuco, ganhou destaque, mas o Ensi- Referências
no Médio noturno, que ainda absorve 25% BARBER, M.; MOURSHED, M. How the world's best-perfor-
ming school systems come out on the top. McKinsey
da matrícula, não foi mencionado; e o atual & Company. 2007
BLOOM, B. S.; KRATHWOHL, D. R.; MASIA, B. B. Bloom
Exame Nacional do Ensino Médio, cujo for- taxonomy of educational objectives. In: (Ed.). Allyn and
mato é totalmente incompatível com o novo Bacon: Pearson Education, 1984.
CUNHA, F. et al. Interpreting the Evidence on Life Cycle Skill
regime escolar, sequer foi tocado. A elabora- Formation. In: HANUSHEK, E. e WELCH, F. (Ed.). Hand
book of the Economics of Education: North Holland,
ção da Base Nacional Curricular feita inicial- 2005.
mente pelo Ministério e posteriormente pelo DARLING-HAMMOND, L. Teacher quality and student
achievement. Education policy analysis archives, v. 8,
Conselho Nacional de Educação, passou por p. 1, 2000. ISSN 1068-2341.
HANUSHEK, E. A. et al. Returns to Skills around the World:
um amplo processo de consultas, sem que, Evidence from PIAAC. European Economic Review,
no entanto, objeções fundamentais ao pro- v. 73, p. 103-130, 2015. ISSN 0014-2921.
MINISTÉRIO da EDUCAÇÃO. Base Nacional Curricular Co-
jeto inicial, como a escolha equivocada dos mum, Ministério da Educação. Brasilia. 2017
itinerários formativos, fossem claramente _____. PORTARIA N.o 1.432, DE 28 DE DEZEMBRO DE
2018 – Estabelece os referenciais para elaboração dos
consideradas e discutidas. itinerários formativos conforme preveem as Diretrizes
Nacionais do Ensino Médio. Diário Oficial Seção 1,
O resultado deste processo é que o Bra- n 66: 94-96 p. 2019.
sil, aparentemente, entra no terreno desco- OECD. The Future of Education and Skills – The Future we
want. Paris: OECD, 2018.
nhecido de um novo sistema mal alinhavado PRESTON, J. Competence Based Education and Training
(CBET) and the End of Human Learning – The Existen-
e pouco entendido. Existe, no entanto, um tial Threat of Competency. Palgrave Macmillan, 2017.
mérito, que é existência de muitas cláusulas SECRETARIA DO TESOURO NACIONAL. Aspectos fiscais da
educação no Brasil. Ministério da Fazenda. Brasilia. 2018
de flexibilidade, que dá aos sistemas esta- WHEELAHAN, L. Not just skills: what a focus on knowledge
means for vocational education. Journal of Curriculum
duais e escolas bastante liberdade em esco- Studies, v. 47, n. 6, p. 750-762, 2015.
lher seus próprios caminhos. Os educadores WHEELAHAN, L.; MOODIE, G. Rethinking skills in vocatio-
nal education and training: from competencies to ca-
brasileiros não estão acostumados a isto, já pabilities. NSW Department of Education, v. 13, 2011.
que tendem sempre a aguardar as normas WOLF, A. Competence-based assessment. Buckingham En-
gland; Philadelphia: Open University Press, 1995. xvi,
que vêm de cima; no atual contexto, no 156 p.
Da civilização cordial de Ribeiro
Couto ao homem cordial de
Sérgio Buarque de Holanda
Sandra Bagno
Università degli Studi di Padova
1. 1
898-2018: 120 anos do literária, o poeta penumbrista seria lembra-
do, como recorda Elvia Bezerra, pela teoria
nascimento de Ribeiro
do homem cordial esboçada numa carta
Couto enviada em 1931 ao diplomático mexicano
Em 1898 nasceu em Santos Rui Esteves Alfonso Reyes, e em que afirmava:
Ribeiro de Almeida Couto, escritor, jorna- […] Nossa América, a meu ver, está dando
lista, magistrado, diplomático, membro da ao mundo isto: o Homem Cordial. […] Essa
atitude de disponibilidade sentimental é toda
Academia Brasileira de Letras de 1934 a
nossa, é ibero-americana... Observável nos
1963, ano de sua morte.1 Além de sua obra
nadas, nas pequeninas insignificâncias da vida
1 Cf. Academia Brasileira de Letras. Ribeiro Couto. Em de todos os dias, ela toma vulto aos olhos do
http://www.academia.org.br/academicos/ribeiro-couto crítico, pois são índices dessa Civilização Cor-
[última consulta 25/02/2018] ARINOS FILHO, Afonso.
dial que eu considero a contribuição da Amé-
Ribeiro Couto e Afonso Arinos; Adeuses / Ribeiro Cou-
to. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 1999. rica Latina ao mundo. […].2
BEZERRA, Elvia. A trinca do Curvelo: Manuel Bandeira,
Ribeiro Couto e Nise da Silveira. Rio de Janeiro: Top- Letras, 1998. MARIZ, Vasco (org). Maricota, Baianinha e
books, 1995. BEZERRA, Elvia. Três retratos de Manuel outras mulheres. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de
Bandeira (Introdução, cronologia e notas de Elvia Bezer- Letras, Topbooks, 2001. RAMOS, Carolina. Ribeiro Cou-
ra. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2004. to: vida e obra. São Paulo: Ed. Graf. São Paulo, 1989.
COUTO, Ribeiro. Poesias reunidas. Rio de Janeiro: José RÓNAI, Paulo. Encontros com o Brasil. Rio de Janeiro,
Olympio, 1960. FILHO, Rodrigo Octávio. Simbolismo e Batel, 2009 (2.a ed.). TEIXEIRA, Milton. Ribeiro Couto,
Penumbrismo. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1970. ainda ausente. Santos: Universidade Santa Cecília dos
FILHO, Rodrigo Otávio. “Sincretismo e transição: o Bandeirantes, 1982. VENÂNCIO Filho, Alberto. Melhores
penumbrismo”. In: COUTINHO, Afrânio (org.). A lite- contos: Ribeiro Couto. São Paulo: Global Editora, 2015.
ratura no Brasil. São Paulo: Global, 2004. GOLDSTEIN, 2 Para o texto da carta de Ribeiro Couto, cf. BEZERRA,
Norma. Do Penumbrismo ao Modernismo. São Paulo: Elvia. “Ribeiro Couto e o homem cordial”. Apud Revista
Ática, 1983. LIMA, Nestor dos Santos. Ribeiro Couto. Brasileira. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras,
1998. LINS, Vera. Ribeiro Couto, uma questão de olhar. Fase VII, Julho-Agosto-Setembro 2005, Ano XI, N. 44,
Rio de Janeiro: Fundação Casa de Ruy Barbosa, 1997. pp. 123-130.
MARIZ, Vasco. A poesia de Ribeiro Couto. Convivência. Em http://www.academia.org.br/abl/media/prosa44c.
Rio de Janeiro: PEN Clube do Brasil, ano 10, n. 9, 1992. pdf [último acesso 6/1/2018]. Vale lembrar que have-
MARIZ, Vasco; TEIXEIRA, Milton (org.). Ribeiro Couto: ria atestações da locução homem cordial anteriores às
30 anos de saudade. Santos: UNICEB, 1994. MARIZ, de Ribeiro Couto, cf. MONTEIRO, Pedro Meira. Signo e
Vasco; TEIXEIRA, Milton (org.). Rui Ribeiro Couto no desterro: Sérgio Buarque de Holanda e a imaginação do
seu centenário. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Brasil. São Paulo: Hucitec, 2015. eBook.
120 • Sandra Bagno
Cordial1, s.m. qualquer bebida que restau- Vale então salientar desde já como, em
ra as forças: o vinho velho é um bom cor- meados da década de 50, as definições
dial. //F. lat. Cor, cordis. nas duas línguas se pareciam bastante, em
princípio confirmando a tradutibilidade, ao
Cordial2, s.m. adj. Do coração. // Afectuo-
máximo grau, da locução o homem cordial.
so, íntimo: Era… interesse de amigo cordial
Pois a primeira acepção de cordial2 no Cal-
e ingênuo? (Ferreira de Castro, Selva, c. 11,
das Aulete (1948) é, como vimos, a denota-
p. 246, ed. bras.). //Peitoral, béquico; que
robustece: remédio cordial. tiva “Do coração”, conceito implicitamen-
te reforçado pela etimologia (“F. lat. Cor,
Cordialidade, s. f. afeição do íntimo da cordis”), registrada em cordial1. Enquanto
alma, modos afectuosos e francos de tratar na língua italiana, de acordo com o Palazzi
algumas pessoas: Maria Eugénia abraçou e (1954), as primeiras acepções são “di cuore,
beijou Teresinha com terníssima cordialida- che viene dal cuore”, seguidas pela expres-
de (Alberto Pimentel, Lobo da Madragoa, II, são “saluto cordiale”.
c. 24, p. 331, ed. 1904).5
1.2. O fio condutor ab origine: o
Ora, ao traduzir para o italiano Raízes
do Brasil, quem folheasse um dos dicioná-
“human heart” da epígrafe
rios de italiano mais autorizados da época, suprimida
o Novissimo Dizionario della Lingua Italiana A questão de como interpretar – numa
de Ferdinando Palazzi [Palazzi], encontraria fase histórica internacionalmente marcada
as seguintes definições: por lógicas políticas nacionalistas – a leitu-
ra buarquiana de homem cordial tornou-se
cordiàle agg. di cuore, che viene dal cuo-
dirimente para compreender, entre outras
re: saluto cordiale ||di persona, che parla e
novidades do ensaio, um específico pa-
opera con sincerità d’affetto || sm. bevanda
radigma: o do político que continuava a
confortativa || N. affettuoso, amorevole, te-
ser protagonista de processos, ao invés de
nero, sviscerato, sincero, corale.
avanço, de inércias sociais e econômicas. E
cordialità sf. l’essere cordiale ||N. AMORE- o papel fulcral no V capítulo, após as ar-
VOLEZZA, espansione. gumentações dos capítulos anteriores, de
uma peculiar acepção de cordial torna-se
cordialménte avv. Affettuosamente, con
ainda mais reconhecível de uma perspeti-
tutto il cuore ||detto iron.: cordialmente an-
va genética da história do ensaio, como se
tipatico.
pode depreender das afirmações de Meira
cordialóne sm. (f. -óna) persona molto cor- Monteiro:
diale e alla buona. [Palazzi: 1954, 306] O coração é dotado de força extraordiná-
ria no corpo deste ensaio, ou talvez mais pro-
5 Estes conceitos são confirmados por: Cordialmen-
te, adv. afectuosamente, com franqueza e cordialida- priamente conjunto de ensaios, que é Raízes
de: levantando-se foi apertar-lhe cordialmente a mão do Brasil. Como divisa de tal força, uma epí-
(Bern. Guimarães, Lendas, p. 78, 1.a ed.); em AULETE, grafe acompanha o capítulo sobre “o homem
F. J. Caldas. Dicionário Contemporâneo da Língua Por-
tuguesa. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1948, cordial” na primeira edição do livro, e seria
Vol. I, p. 670. suprimida em edições posteriores. Trata-se
122 • Sandra Bagno
processo tradutório interlingual, no caso, – assim como “L’uomo cordiale” seria, ob-
do português para o italiano? viamente, no metatexto italiano – daque-
Resolver previamente a questão de acep le que tornar-se-ia o pluricitado capítulo
ções potencialmente antitéticas do concei- V. [Holanda: 1954] Mas, no momento em
to de cordial e que levariam a duas opostas que o Brasil estava celebrando os 500 anos
teorias de homem cordial, é indispensável do descobrimento, seria publicada uma
para podermos focalizar uma outra ques- segunda tradução, com um aparato para-
tão. Ou, talvez, a questão de fundo: quan- textual bem mais rico que o da primeira.
to umas elites brasileiras, especialmente [Hollanda: 2000] Analisaremos, portanto,
as que levaram o Modernismo aos rumos alguns aspetos dos dois paratextos, tendo
do Integralismo, estariam a fim, na década em conta que, no entanto, iam crescendo
de 30, de investigar sua identidade nacio- as ocorrências no português do Brasil das
nal sem se deixarem iludir pela tendência, palavras cordial e cordialidade – e das lo-
como estava acontecendo em outros paí- cuções o homem cordial, civilização cordial,
ses, por exemplo, na Europa, a oferecer aos valores cordiais, mentalidade cordial – em
respetivos povos slogans confortáveis para princípio como polissêmicas, dada também
a autoestima nacional(ista)? a variedade de analistas que têm tratado da
Para procurar respostas a estas perguntas questão. Mas cuja tradutibilidade ao máxi-
seguiremos o caminho indicado por Buarque mo grau para a língua italiana poderia vei-
de Holanda – quer dizer, o do leque semân- cular as mesmas ambiguidades semânticas
tico reconhecível na acepção, antes de mais, já documentadas no Brasil. Ambiguidades
denotativa da palavra cordial – mas testan- parecidas àquelas que a tradutibilidade ao
do-a através do processo tradutório interlin- máximo grau, do italiano para o português,
gual. E para tanto, as definições dos dicioná- de uma locução como uomo d’onore (ho-
rios da época, respetivamente de português mem de honra) poderia gerar. Tanto que,
e italiano, serão usadas como as primeiras e para evitar uma aparente monossemia, em
indispensáveis ferramentas para a tradução nível tradutório intralingual (e, por conse-
dos diferentes conceitos expressos pelo poe- guinte, interlingual), na fraseologia do Vo-
ta e pelo historiador ao recorrerem àquela cabolario Treccani lê-se:
mesma locução, o homem cordial.
onóre s.m. […] Nel linguaggio della mala-
vita (e di qui passato anche nell’uso com.),
2. D
uas traduções para o uomo d’o., l’affiliato alla camorra, alla ma-
italiano, a uma distância fia o ad altre associazioni a delinquere, cui
de cerca de 60 anos esso è legato da un giuramento che lo im-
pegna alla difesa dell’onore comune e alla
Um dos paradigmas mais significativos osservanza di una stretta omertà.[…]7
da história do debate sobre a brasilidade
7 Para a sequência histórica das acepções, além que
chega relativamente cedo na Itália graças à no presente verbete onóre, em Vocabolario Treccani,
tradução, após a Segunda Guerra Mundial, Istituto della Enciclopedia Italiana. Apud http://www.
treccani.it/vocabolario/onore/ [último acesso 3/3/2018],
do ensaio de Buarque de Holanda em que cf. Onóre, em BATTAGLIA, Salvatore. Grande Dizio-
a locução “O Homem Cordial” é o título nario della Lingua Italiana. Torino: UTET, 1981. Vol. XI
124 • Sandra Bagno
Già nell’adolescenza aveva raggiunto scrittore, oltre che di una solidissima prepara-
una certa notorietà, attraverso l’assidua zione, ha saputo animarla, renderla vivace ed
collaborazione a giornali e riviste che si avvincente, evitando con indiscutibile perizia il
rischio di riuscire arido o pesante per eccessiva
pubblicavano nella sua città natia. Trasferi-
erudizione. [Id., Ibid.]
tosi a Rio de Janeiro per concludervi gli studi
universitari, nel 1922 prese larga parte ad É razoável supor, enfim, que os tons en-
un movimento “modernista” che ebbe una tusiasmados da apresentação – pela qual,
notevole influenza riformatrice sull’arte e la no começo da década de 50, o “protago-
letteratura brasiliane. Qualche anno dopo, nista eccezionale” de “un romanzo, sia
si recò all’estero, incaricato di missioni cul- pure ‘sui generis’” é o próprio Brasil – não
turali che gli consentirono di visitare nume- derivariam somente de um intuito comercial
rosi paesi stranieri, tra i quali la Germania, visando dinamizar o setor editorial, inclusive
la Francia, l’Italia, la Svizzera, gli Stati Uniti, depois de os dois países terem atuado como
e di arricchire in tal modo la propria espe- inimigos durante o conflito há uns anos
rienza. [Id., Ibid.] acabado. Percebe-se, portanto, uma aber-
Seguem informações bibliográficas (que tura ao Brasil com importantes implicações
transcrevemos segundo a grafia originária): políticas confiando no futuro do “protago-
Fu durante un lungo soggiorno in Germa- nista eccezionale”. Pois quando Alle radici
nia che si destò in Sergio Buarque de Holan- del Brasile foi publicado, em abril de 1954
da il più acuto interesse per gli studi storici.
como vimos, a morte de Getúlio Vargas,
Ne nacquero Raizes do Brasil, pubblicato nel
que aconteceria em 24 de agosto de 1954,
1944 [sic!], e una Historia do Brasil scritta
nello stesso anno, in collaborazione con Oc- e a forte instabilidade política que se segui-
tavio Tarquinio de Souza. Successivamente, ria no contexto da guerra fria e que levaria,
Buarque de Holanda pubblicò altre opere: após uma década, à ditadura militar, ainda
Cobra de vidro; Fontes primarias para a his- estavam no porvir.
toria da expansâo paulista nos seculos XVI e Desta reduzida dimensão peritextual
XVII; e infine Indios e Mamelucos na expan- podem-se depreender, ao menos, dois da-
sâo paulista. [Id., Ibid.]
dos interessantes a respeito do viés analítico
O autor (anônimo) destas breves linhas da nossa pesquisa. O primeiro é que nada
acaba a sua apresentação rapidamente sin- há no cólofon sobre a edição do prototexto
tetizando: escolhida por Rivelli para a sua tradução. Já
Come si può desumere dal titolo, Raizes o segundo dado é que não há elemento al-
do Brasil (Alle radici del Brasile) che qui pre- gum acerca das controvérsias sobre as duas
sentiamo nella forbita traduzione di un gior- teorias, a do poeta e a do historiador, de
nalista italiano vissuto a lungo sotto la Croce homem cordial. E este silêncio é por si uma
del Sud, è uno studio sulla evoluzione della resposta à nossa pergunta sobre como,
società brasiliana, dall’epoca coloniale fino ai
no paratexto da primeira tradução (agora
nostri giorni. La materia, piuttosto inconsue-
ta per noi, si rivela subito oltremodo appas-
sabemos que não) foi colocada a questão
sionante. Quanto alla trattazione, non appa- de equívocos possivelmente veiculados, no
re certamente da meno. Sergio Buarque de contexto italiano, pela mera tradução literal
Holanda, fornito di considerevoli qualità di de o homem cordial para l’uomo cordiale.
126 • Sandra Bagno
Um silêncio, dizíamos, que é por si expressi- “l’uomo cordiale” [nossos os grifos]. [Ho-
vo, especialmente se relacionado à história landa: 1954, 145] E, sempre pela nota, o
da receção do ensaio, como vimos, primei- leitor apreendia que “L’espressione è dello
ramente no Brasil. scrittore Ribeiro Couto, in una lettera di-
retta ad Alfonso Reyes e da questi inserita
2.2. A “felice espressione” nella sua pubblicazione Monterey. […]”
de Ribeiro Couto [Idem, Ibidem]
De fato, ao ler o “Indice” (no fim do Portanto, graças ao primeiro metatexto
volume) o leitor encontra a palavra cordiale italiano já integrado pelo paratexto de Buar
seja no título do cap. V seja nos núcleos te- que de Holanda, o leitor italiano apreendia
máticos que o compõem, assim resumidos da existência dos significantes concebidos
(p. 212): pelo poeta (l’uomo cordiale) segundo a
Antigone e Creonte. – Pedagogia moder- acepção do adjetivo cordial em princípio
na e le virtù anti-familiari. – Patrimonialismo. – mais atestada no português (e no italiano)
L’uomo cordiale. – Avversione ai ritualismi; come da altura. Mas significantes em que o histo-
essa si manifesta nella vita sociale, nel linguag- riador reconheceria também – obeserve-se,
gio, negli affari. – La religione e l’esaltazione dei
não somente – outros bem menos confor-
valori cordiali [Nossos os grifos].
táveis significados. E significados diferentes
E é passando à leitura do cap. V que daqueles atribuídos por outro intelectual
(mesmo que não orientados pela já recorda- brasileiro, Cassiano Ricardo:
da epígrafe) podia-se de vários trechos infe- Non sarebbe necessario ripetere ciò che
rir a sequência de acepções intrinsecamente è già implicito nel testo, ossia che la parola
ambivalentes de cordiale a que Buarque de “cordiale” dev’essere presa, in questo caso,
Holanda se refere, com ambas as expressões nel senso esatto e strettamente etimologico,
se non fosse stata diversamente interpretata
“L’uomo cordiale” e “l’esaltazione dei valori
in un’opera recente, in cui si parla dell’uomo
cordiali”. Uma ambivalência semântica logo
cordiale degli aperitivi e dei “cordiali saluti”,
após explicada pelo próprio historiador. Pois che sono i “modi di chiudere le lettere tan-
a edição escolhida por Rivelli para a sua tra- to amabili quanto aggressivi”, e si antepone
dução já levava o importante esclarecimen- alla cordialità così intesa il “capitale senti-
to, introduzido em Raízes do Brasil desde mento” dei brasiliani, che sarà la bontà e
1948 [Bezerra, cit., 128], e aprofundado na addirittura una certa “tecnica della bontà”,
ampla nota ao pé da página: pelo qual o lei- una “bontà più avvolgente, più politica, più
assimilatrice”. Cfr. Cassiano Ricardo, Marcha
tor apreendia que, na realidade, fora o poe-
para Oeste, II, Rio de Janeiro, 1940, p. 211.
ta Ribeiro Couto, antes que o historiador
[Id., Ibid.]
valorizasse toda a potencial ambivalência
semântica da locução, a esboçar uma teoria Quem lesse Alle radici del Brasile seria
tão instigante como a do homem cordial. portanto informado de que Buarque de Ho-
Mas Buarque de Holanda se expressava nos landa, ao escolher o “senso esatto e stret-
seguintes termos: “Fu già detto”, con felice tamente etimológico” de cordiale, se dis-
espressione, che il contributo brasiliano alla tanciava dos posicionamentos também de
civiltà sarà di cordialità – daremo al mondo Cassiano Ricardo:
Da civilização cordial de R ibeiro C outo ao homem cordial de S érgio B uarque de H olanda • 127
Fatto questo chiarimento e per meglio sot- Enfim, já na década de 50 o leitor italó-
tolineare la differenza, in verità fondamenta- fono fora informado do alerta de Buarque
le, tre le idee sostenute nella citata opera e de Holanda sobre teorias e slogans que
i suggerimenti proposti dal presente lavoro,
defendessem narrações potencialmente
occorre dire che, con l’espressione “cordiali-
incautas do ponto de vista político (“inten-
tà”, si eliminano qui, deliberatamente, i giudizi
etici e le intenzioni apologetiche verso le quali zioni apologetiche”). Assim favorecendo,
sembra inclinare il sig. Cassiano Ricardo quan- talvez, uma outra associação de ideias: pois
do preferisce parlare di “bontà” o di “uomo se uma (suposta) cordialità e/ou (supostas)
buono”. [Id., Ibid.] tecniche della bontà seriam … peculiares
dos brasileiros, o que dizer da conhecida
Procurando desambiguar, de maneira locução Italiani, brava gente que, depois
definitiva, afirmava ainda Buarque de Ho- da queda do fascismo, com certeza ainda
landa: circulava no contexto linguístico e cultural
Bisogna ancora aggiungere che tale cor- italiano da altura?12
dialità [nossos os grifos], estranea, da una Ora, não sabemos qual terá sido a re-
parte, ad ogni formalismo e convenziona- ceção deste alerta buarquiano, na fase
lismo sociale, non contiene, dall’altra solo
histórica de um pós-guerra em que ain-
ed obbligatoriamente, sentimenti positivi e
da bem clara devia ser a lembrança dos
di concordia. L’inimicizia può essere tanto
cordiale quanto l’amicizia, in quanto l’una militares brasileiros no território italiano.
e l’altra nascono dal cuore, provengono, Resta, porém, tomar nota de que, pelo
quindi, dalla sfera dell’intimo, del familiare, prisma das definições de cordiale do Pala-
del privato. Appartengono, effettivamente, zzi (1954), o leitor do metatexto italiano
per ricorrere ad un termine consacrato dalla poderia também ser legitimamente levado
moderna sociologia, al dominio dei “gruppi a propender, antes pelas interpretações de
primari” la cui unità, come osserva lo stes-
cordiale de Ribeiro Couto e/ou de Cassiano
so elaboratore del concetto, “non è soltanto
di armonia e di amore”. Cf. CHARLES HOR-
Ricardo, que pelas de Buarque de Holan-
TON COOLEY, Social organization, New York, da. Pois seria confirmado até pelo exemplo
1929, p. 23. [Id., 145-146]11 citado pelo Palazzi (1954), “saluti cordia-
li”, que se correspondia àquele citado por
Cassiano Ricardo, “cordiali saluti”, como
11 Portanto, também o leitor do texto italiano era in- mencionado (e contestado) por Buarque
formado de que Buarque de Holanda, confirmado que de Holanda. Quer dizer, é razoável supor
a aceção de cordialità a que aludia era outra, intro-
duzira uma outra oposição lexical e semântica, entre que enquanto, graças a Raízes do Brasil, ia
“amicizia”, “inimicizia” e “ostilità”: “L’amicizia, dal crescendo o debate que levaria à fixação,
momento in cui abbandona l’ambito circoscritto dai
sentimenti privati o intimi, diviene, a dir molto, bene- no contexto linguístico e cultural brasileiro,
volenza, dato che l’imprecisione del vocabolo ammet- de uma substancial divaricação semântica
ta una maggiore estensione del concetto. Così come
l’inimicizia, se pubblica o politica, non “cordiale”, si pela palavra cordial, uma verificação das
chiamerà più propriamente ostilità. Carl Schmitt ha definições de cordiale e cordialità em um
formulato in modo chiaro, ricorrendo al lessico latino,
la distinzione fra inimicizia e ostilità: “Hostis is est cum
quo publicae bellum habemus (…) in quo ab inimico 12Para o conceito de Italiani, brava gente, cf. DEL
differt, qui est is, quocum habemus privata odia…”. BOCA, Angelo. Italiani, brava gente? Un mito duro a
[Idem: 146]” morire. Vicenza: Neri Pozza, 2010.
128 • Sandra Bagno
autorizado dicionário italiano poderia ain- por um clássico de nascença, segundo a de-
da confirmar no leitor de Radici del Brasile, finição de Raízes do Brasil de Antônio Cân-
ao invés de definitivamente desambiguar, dido13 – e debate que levaria a comunidade
umas dúvidas interpretativas acerca, antes linguística brasileira, como acreditamos, a
de mais, do adjetivo cordial, e por conse- compartilhar a estabilização, após mais de
guinte da locução l’uomo cordiale. Dúvi- oito décadas de análises, de uma divarica-
das que a “felice espressione”, segundo a ção semântica da locução – implica pelo
definiu Buarque de Holanda, resumiria de menos duas questões.
maneira paradigmática, mas que não dei- Primeiro, na hora de repropor uma
xariam de ser veiculadas, no contexto ita- nova tradução italiana de Raízes do Bra-
liano, também no caso da outra locução sil, como seria enfrentada a questão não
de Ribeiro Couto, “civiltà cordiale”: pois é mais de uma potencial ambivalência ou
lógico supor que este sintagma possa ter polissemia implícitas na denotação, mas
sido entendido também pelos italófonos sim de uma já arraigada divaricação se-
como soma das acepções das duas compo- mântica, na altura, para as palavras cor-
nentes, civiltà e cordiale, pela comunidade dial/cordialidade no português do Brasil?
linguística compartilhadas como conven- Segundo, em que medida as definições
cionalmente conotativas positivas. Assim de mais recentes autorizados dicionários
como é razoável supor que possa ter acon- monolíngues brasileiros procederiam, no
tecido no Brasil a quantos – também (ou verbete cordial, à transposição da divari-
principalmente?) porque lisonjeados pela cação semântica? Elas já permitem, por
teoria em si – tenham assumido que Ribei- exemplo, pragmaticamente, na fraseolo-
ro Couto lançara seja o homem cordial seja gia, a imediata decodificação intralingual
civilização cordial como soma, em cada lo- – e por conseguinte interlingual – de duas
cução, de duas componentes a serem ob- expressões em particular, civilização cor-
viamente interpretadas como conotativas dial e o homem cordial, que representam,
positivas. Como, aliás, no caso da locu- em perspetiva histórica, de um lado, a teo-
ção cordiali saluti lembrada por Cassiano ria de Ribeiro Couto, imprescindível para
Ricardo. se entender, do outro, aquela de Buarque
Entretanto, as ambiguidades depende- de Holanda? Ao averiguar estes dados
riam de aceções que é razoável supor terem partiremos do Novíssimo Aulete Dicioná-
sido as mais compartilháveis no português rio contemporâneo da Língua Portuguesa
da altura, mas que o Caldas Aulete (1948), [Caldas Aulete (2011)] e do Grande Dizio-
segundo uma correta metodologia lexico- nario Garzanti della Lingua Italiana 2009
gráfica como vimos, colocara por segundas. Garzanti Italiano [Garzanti 2009]; quer
Aspectos estes que, evidentemente, não fo- dizer, das definições, respetivamente, de
ram valorizados por quem não atentara às
13Cf. CÂNDIDO, Antônio. “O significado de Raízes do
várias potencialidades semânticas implícitas Brasil”, Apud HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do
na denotação, “do coração”. Brasil, cit., p. XL: “Livro curto, discreto, de poucas cita-
ções, atuaria menos sobre a imaginação dos moços. No
Ora, o animado debate sobre quem se- entanto, o seu êxito de qualidade foi imediato e ele se
ria, em verdade, o homem cordial, gerado tornou um clássico de nascença.”
Da civilização cordial de R ibeiro C outo ao homem cordial de S érgio B uarque de H olanda • 129
cordial e cordialidade14 e de cordiale e seus sentimentos; tb.: que age movido mais
cordialità15. pelos sentimentos que pela razão”) [nossos
Posto que não há, na estrutura das de- os grifos], evoca potencialmente as acepções
finições do Caldas Aulete (2011), nenhuma conotativas negativas aludidas por Buarque
fraseologia, e que somente a aceção de de Holanda; vamos averiguar, então, se este
cordial3 (“Diz-se de quem não esconde padrão de definição se revela suficiente
para uma eficaz tradução intelingual, tendo
14 Cf. GEIGER, Paulo. Novíssimo Aulete dicionário con- em conta as aceções registradas pelo Gar-
temporâneo da língua portuguesa Caldas Aulete. Rio zanti 2009.
de Janeiro: Lexicon, 2011, p. 401:
cordial […] a2g. 1 Ref. Ao coração 2 fig. que vem do
coração, ou que expressa os sentimentos genuínos;
EFUSIVO; FRANCO; SINCERO: votos cordiais de paz e 3. A tradução italiana de
felicidade. 3 Diz-se de quem não esconde seus senti-
mentos; tb.: que age movido mais pelos sentimentos
Giunti Editore
que pela razão. 4 p. ext. Que tem, demonstra ou des-
perta bons sentimentos ou boa disposição em relação Desde seu articulado paratexto, como
aos outros; que é espontâneo e caloroso: Comoveu-se dizíamos, a edição de 2000, Radici del Bra-
com tantas manifestações cordiais de apoio. 5 Mar-
cado por demonstrações de cortesia, simpatia, bons sile – cuja capa propõe a célebre pintura
sentimentos, ou por ausência de tensão, conflito, ou Café (1934), de Cândido Portinari, e anun-
animosidade (negociação cordial; relações cordiais);
AFÁVEL; CORTÊZ; GENTIL: Recebeu tratamento cordial cia a “Introduzione e cura di Nello Avella”
mas sem efusividade. sm. 6 Preparação (bebida alcoó- – demonstra o abandono das lógicas implí-
lica, ou produto medicamentoso) que ativa a circulação
do sangue e dá ânimo, vigor: Deram-lhe um cordial que citas na anterior tradução. O leitor italiano
lhe ergueu o ânimo. 7 Medicamento que estimula ou é desta vez acolhido, além de por duas es-
tonifica o coração [Pl.: -ais.] [F.: Do lat. cordialis.]
critas de Avella, “Ringraziamenti” (p. 9) e
cordialidade […] sf. 1 Característica do que ou de
quem é cordial 2 Comportamento ou temperamen- “Il ritorno del ‘Maestro cordiale’” (pp. 11-28),
to de quem é cordial 3 tratamento afável, gentil, ou por uma “Prefazione” (traduzida para o
afetuoso: foram recebidos com toda a cordialidade [F.:
cordial + –(i)dade.] italiano por Rita Desti, pp. 5-8) da autoria
15 Cf. PATOTA, Giuseppe. Il Grande Dizionario Garzanti
de um ilustre intelectual e, na época, Presi-
della Lingua Italiana 2009. Novara: Garzanti Linguistica,
2008, p. 612: dente da República, o sociólogo Fernando
cordiale1 […] agg. m. e f. [pl. -i] 1 che viene dal cuo- Henrique Cardoso.
re, spontaneamente affettuoso: amicizia, accoglienza
c. |detto di persona gentile, affabile: è stato cordiale Se na orelha posterior da capa é rapi
con tutti 2 che è radicato nel cuore: vivamente sentito: damente sintetizado um perfil biobibliográ-
una cordiale antipatia; cordiale nemico, nemico davve-
ro, profondamente 3 (non com.) che fa bene al cuore, fico de Buarque de Holanda, naquela an-
tonico, ristoratore: una medicina cordiale 4 (ant. Lett.) terior é adiantado, assinado por Henrique
del cuore palpitazione cordiale (D’Annunzio) ▪ cordial-
mente avv. […] Deriv dal lat. cŏor cŏrdis, cuore COR- Cardoso, o que retornará como primeiro
DIALI SALUTI n. formula di saluto usata nella corris- parágrafo de sua “Prefazione” (p. 5). E esta
pondenza […]
intervenção na posição de maior realce, em
cordiale2 […] bevanda specialmente alcolica che si ri-
tiene abbai affetto corroborante, tonificante […] termos paratextuais, é por si um sinal im-
cordialità […] n.f. invar. 1 l’essere cordiale; affabili- portante: por toda a relevância dada, ma-
tà: trattare qualcuno con cordialità 2 in formule usate
nella corrispondenza, saluto cordiale: tante cordialità
terialmente logo no começo, ao conceito
alla sua famiglia […] Dal lat. mediev. cordialitate(m), buarquiano (que, do ponto de vista históri-
deriv. di cordiālis. ▪ SIN. Affettuosità, affabilità, calore,
cortesia, espansività CONTR. freddezza, ostilità, indi-
co, sabemos ter aparecido por segundo) de
fferenza. homem cordial.
130 • Sandra Bagno
3.1. As palavras cordiale e nel definire gli aspetti della nostra eredità cul-
cordialità na “Prefazione” turale che riteneva poco affini alla modernità,
e che avrebbero inibito l’affermazione di valori
de Radici del Brasile
democratici” [Id., Ibid.]. Entre tais valores ha-
Observemos os trechos em que Henri- via uma “[…] avversione per i principi astratti,
que Cardoso cita o adjetivo cordiale com o impersonali […]” contra uma “valorizzazione
alvo, obviamente, de ajudar o leitor italiano delle virtù del carattere unico e insostituibile
dell’esperienza individuale”; atitude compor-
a não equivocar a tese de Radici del Brasile.
tamental cujas implicações, analisadas por Bu-
Primeiro, ele contextualiza o ensaio na viva-
arque de Holanda, são por Henrique Cardoso
cidade do debate desencadeado por várias resumidas nos seguintes termos: “Sul piano
obras entre o final do século XIX e as pri- sociale, questo orrore per l’astrazione sarà il
meiras décadas do século XX (p. 5): punto nevralgico della critica contundente
Radici del Brasile fa parte di quella tradi- [de Buarque de Holanda] al personalismo, alla
zione saggistica che, nei decenni precedenti, “mentalità cordiale” [nossos os grifos], alla
aveva caratterizzato l’attività intellettuale nel prevalenza di modelli affettivi su norme gene-
Paese. Sérgio Buarque venne ad affiancar- rali, impersonali.” [Id., Ibid.]
si a nomi come Joaquim Nabuco, Euclides
da Cunha, Manoel do Bomfim, Paulo Prado, Condicionado por essa “mentalità cor-
Oliveira Viana, Alcântara Machado e Gilber- diale”, o País não poderia progredir:
to Freyre nell’impegno di rivelare il Brasile ai Niente di più consistente, in questo stato
brasiliani. Si devono a questi saggisti molti dei di cose, che l’immagine del brasiliano come
concetti, delle immagini, dei miti e dei poli “uomo cordiale”, guidato dal linguaggio
narrativi che ancora oggi sono usati per de- dell’“emozione”, che avrebbe attenuato le di-
finire il Paese, per spiegare la specificità brasi- fferenze, abolendo riti e creando un’ipotetica
liana. Ciascuno a suo modo, furono essi i veri “informalità democratica”. Si trattava di un
inventori del Brasile, una definizione attribuita modello sbagliato, denunciava l’autore. Non
in passato a Sérgio Buarque. si sarebbe mai costruito un ambiente de-
mocratico partendo da questa “cordialità”.
O ensaio delineia, escreve Henrique Car- [Id.,Ibid.]
doso,
[…] un ampio panorama della nostra socie- Pois, uma tal “cordialità” seria funcional
tà, lanciando uno sguardo penetrante su alcu- à preservação do atraso, segundo sintetiza
ne delle caratteristiche più peculiari della vita Henrique Cardoso:
sociale brasiliana, dal rapporto dell’individuo L’attenuarsi di regole avrebbe solo offer-
con il lavoro fino all’organizzazione dello spa- to spazio a coloro che erano capaci di usare
zio umano, dal rapporto fra il privato e il pub- la mancanza di ordine o il tedio per il proprio
blico fino ai riti di cortesia (o alla resistenza a personale profitto. I “meno uguali” si sareb-
essi). [Idem, Ibidem] bero trovati abbandonati dalla legge. Di qui
Mas, continua Henrique Cardoso, além de l’insistenza del saggista nel difendere il rispetto
interpretar os processos que levaram à “for- delle norme, senza il quale non vi sarebbe sta-
mazione nazionale”, Buarque de Holanda per- to modo di dare fondamento all’uguaglianza.
cebe “[…] nuove direzioni, sensibile com’era [Id., Ibid.]
agli indizi, per quanto sporadici fossero, di
trasformazione storica” [Idem, 6]. É nesta óti- Ora, é evidente que, sem estas prévias
ca que o historiador brasileiro “[…] era incisivo explicações, tampouco a outra locução
Da civilização cordial de R ibeiro C outo ao homem cordial de S érgio B uarque de H olanda • 131
mencionada por Henrique Cardoso, “men- A ciò avrebbero contribuito alcuni attributi
talità cordiale”, poderia ser devidamente quali l’inconsistenza in Brasile dei preconcetti
interpretada em termos conotativos nega- di razza e di colore, il cosmopolitismo e il va-
lore attribuito all’autonomia dell’individuo. La
tivos. Pois, se por um lado a definição de
garanzia maggiore della democrazia, tuttavia,
cordial do Caldas Aulete (2011) não leva
sarebbe stato l’ingresso delle masse nel pro-
o leitor a interpretar as duas locuções em cesso politico. Il popolo sarebbe stato il prota-
termos claramente conotativos negativos gonista principale dei tempi nuovi. E avrebbe
(segundo a linha tida como óbvia e adian- agito non mediante l’epurazione, bensì amal-
tada por Henrique Cardoso); pelo outro gamando gli strati superiori in una “buona e
lado, o leitor italófono que se apoiar nas onesta rivoluzione”. [Id.,7-8]
definições de cordiale do Garzanti (2009)
Portanto, logo das páginas introdu-
pode ser legitimamente levado a entender
tórias desta segunda tradução italiana, o
o sintagma mentalità cordiale (como já
leitor é levado a atentar à peculiaridade se-
l’uomo cordiale) como soma de acepções
mântica de locuções compostas com o ad-
em que a segunda componente acaba por
jetivo cordiale (l’uomo cordiale, mentalità
necessariamente orientar a primeira em
cordiale) e, enfim, do próprio substantivo
sentido positivo.
cordialità, sendo ambos de fato apresenta-
dos como um núcleo semântico específico.
3.2. A “felice espressione” Mas “específico” somente no sentido bu-
de Ribeiro Couto arquiano, ou num sentido mais amplo e já
arraigado no contexto linguístico e cultural
Mas retornemos à “Prefazione” de Hen-
brasileiro como soma de uma estratifica-
rique Cardoso, pois ele não deixa de adian-
ção semântica historicamente complexa?
tar ao seu leitor que “[…] l’epilogo di Radici
Vamos ver.
del Brasile è ottimista”:
Sérgio Buarque parla delle sue aspettative, Orientado de tal maneira, ao chegar
della rivoluzione che sarebbe stata in atto fin ao “Capitolo V L’uomo cordiale” (pp. 155-
dall’abolizione della schiavitù. La città sarebbe 168), bem menor que na anterior edição
stata in procinto di assumere il ruolo principa- italiana resulta o estranhamento do leitor
le nel processo storico, mettendo in scacco il ao ler uma outra locução, “valori cordia-
mondo rurale, l’eredità iberica, i suoi valori e li” [Hollanda: 2000, 155]. E neste capítulo
le sue prassi. Il saggista definisce il nuovo Bra-
o leitor encontra explicações, entre texto
sile “americano”, come tributo al continente.
e paratexto buarquianos, já presentes na
[Id.,7]
anterior edição [Holanda: 1954, 161-162]
E se bem que a transição não estivesse acerca de quem, primeiramente, esboça-
acontecendo “in modo lineare, ma dialetti- ra a teoria do homem cordial. Pois, logo
co”, pois o próprio “apparato politico” não após a afirmação “Già è stato detto, con
conseguira se renovar, a democracia iria un’espressione felice, che il contributo bra-
prevalecer “come sintesi finale”; segundo siliano alla civiltà sarà quello della cordiali-
escreve Henrique Cardoso preanunciando tà: daremo al mondo l’uomo cordiale”, de
as conclusões de Raízes do Brasil: novo, a nota 197 chama a atenção do leitor
132 • Sandra Bagno
daquela que, ao nosso ver, deveria ser hoje ambivalências semânticas, e, entre elas, as
reconhecida como uma divaricação semân- que levaram o historiador a teorizar, na dé-
tica estabilizada, no português brasileiro, cada de 30, o perfil de homem cordial que,
para as palavras cordial e cordialidade? em perspetiva histórica, prevaleceria. Mas
Uma clara resposta, em sentido negativo, que, pela própria vontade de Buarque de
pode ser encontrada no Dicionário Houaiss Holanda, não cancelaria o perfil de homem
da Língua Portuguesa, em que, coerente- cordial teorizado pelo poeta Ribeiro Couto.
mente com a linha teórica aplicada pelos Segundo dado: o grande debate desenca-
lexicógrafos, nada aparecia em 2001 a esse deado ao longo de décadas por Raízes do
respeito.17 Mas o fato de, hoje em dia, esta Brasil já levou, ao nosso ver, a implicitamen-
se revelar uma lacuna é demonstrado por te aceitar como convencionalmente parti-
um dado: após tantas décadas de debate lhada, no português do Brasil, a divaricação
no Brasil, as definições dos verbetes, cordial semântica entre o homem cordial de Ribeiro
/ cordialidade nos dicionários de português Couto e o de Buarque de Holanda. E, ter-
e cordiale / cordialità nos dicionários de ita- ceiro dado, seria também graças a Raízes
liano, continuam parecidas demais. Entre- do Brasil que não menos importante per-
tanto, elas deveriam divergir nos campos maneceria, numa perspetiva histórica, pelo
da fraseologia e da datação, devido àquilo menos uma outra locução de Ribeiro Cou-
que, desde 1931, tem acontecido no Brasil. to, civilização cordial, núcleo teórico sem
Frente a tais elementos, podem-se de- o qual não existiria o do homem cordial
preender os seguintes dados. Primeiro, a buarquiano.
denotação, “do coração”, já registrada na Portanto, por estas razões propomos
definição do Caldas Aulete (1948), permi- uma única resposta às várias questões que
tiu manter, obviamente implícitas in nuce, surgiram. Quer dizer, que a definição do
como sempre possíveis as polissemias e/ou verbete cordial seja enriquecida, nos cam-
17 Cf. HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles;
pos da fraseologia e da datação dos dicio-
FRANCO, Francisco Manuel de Mello. Dicionário Hou- nários de português brasileiro para o sécu-
aiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva,
lo XXI, por ambas as locuções: o homem
2001, respetivamente pp. XIV-XV e p. 836:
cordial adj, 2g. (sec. XV cf. IVPM) 1 que demostra afa- cordial (1936), com conotação negativa,
bilidade, sinceridade; caloroso, franco <abraço c.> <pa-
por ter-se tornado paradigmática da teoria
lavras c.> 2 que revela disposição favorável em relação
a outrem <um chefe c. mas rigoroso> 3 em que há boa de Buarque de Holanda; e civilização cor-
vontade ou convergência de pontos de vista <reunião
c.> <relações c.> 4 p.us. referente a ou próprio do co-
dial (1931), com conotação positiva, por ter
ração (´orgão’) ▪ adj. 2g. s.m. FARM. 5 diz-se de ou me- permanecido a mais paradigmática das lo-
dicamento ou porção que ativa a circulação sanguínea,
que restaura as forças, que robustece <elixir c.> <os c.
cuções da teoria de Ribeiro Couto.
eram muito empregados na terapêutica antiga> ▪ s.m. Mas uma vez integrado o verbete com
6 bebida alcoólica com as mesmas propriedades <o vi-
nho do Porto é considerado um excelente c.> ○ ETIM
ambas as locuções por já pertencerem ao
lat. medv. cordiālis ‘relativo ao coração’; ver cor(d) – ○ português brasileiro standard, como defini-
SIN/VAR como adj. s.m.: ver antonímia de malvado ○
HOM cordiais (pl.) / cordeais (f. cordear)
-las para pragmaticamente permitir uma
cordialidade s.f. (1836 cf. SC) 1 qualidade de cordial 2 decodificação i. e. uma imediata tradução
manifestação explícita de afeto e simpatia <recebeu-o
com viva c. > ○ ETIM cordial+ –i– + dade; ver cor(d) – ○
seja intralingual seja interlingual? Uns indí-
SIN/VAR ver sinonímia de familiaridade cios neste sentido podem ser depreendidos
Da civilização cordial de R ibeiro C outo ao homem cordial de S érgio B uarque de H olanda • 135
das diferenças observadas entre a primeira Ora, vale lembrar que, sempre neste
e a segunda edição italiana do ensaio bu- mesmo ensaio, o próprio Antônio Cândido
arquiano. Quer dizer, pela evidente neces- afirmara pouco antes:
sidade, de acordo com a organização de O “homem cordial” não pressupõe bonda-
Nello Avella, de evitar logo do começo, de, mas somente o predomínio dos compor-
através de um rico paratexto em Radici del tamentos de aparência afetiva, inclusive suas
Brasile, aquelas que, em perspetiva histórica manifestações externas, não necessariamente
aparecem como ambiguidades ou mal-en- sinceras nem profundas, que se opõem aos
ritualismos da polidez. O “homem cordial” é
tendidos deixados sem solução na primeira
visceralmente inadequado às relações impes-
tradução, Alle Radici del Brasile. soais que decorrem da posição e da função
De fato, se a locução Maestro cordiale do indivíduo, e não da sua marca pessoal e
citada por Avella evoca conotações somen- familiar, das afinidades nascidas na intimidade
te positivas, inequivocamente reconhecíveis dos grupos primários. [Idem, Ibidem]
como tais (também) no contexto cultural
Portanto, numa ótica pragmática de
italiano (língua em que Avella escreveu seu
tradução intralingual, seja a primeira que
texto), já não é possível dizer a mesma coi-
a segunda frase poderiam eficazmente ser
sa, além de l’uomo cordiale, nem de men-
utilizadas como abonação da buarquiana
talità cordiale. Pois, traduzida do português
locução o homem cordial. E quanto àque-
mentalidade cordial e usada por Henrique
la de civilização cordial, poder-se-ia recor-
Cardoso no seu prefácio para explicar como
rer ao conceito tal como formulado pelo
raciocina, em verdade, a mente do uomo
próprio Ribeiro Couto. De fato, anterior
cordiale buarquiano, suas acepções devem
do ponto de vista cronológico se bem que
ser interpretadas como conotativas negati-
colocada na sombra pelo homem cordial
vas. Assim como fizera Antônio Cândido no
buarquiano, a ideia da civilização cordial
citado “O significado de Raízes do Brasil”,
como contribuição da América Latina ao
ensaio muito conhecido também por apare-
mundo permanece o outro ponto de par-
cer em várias edições de Raízes do Brasil, e
tida do processo que levaria à posterior di-
em que lemos:
Ao que se poderia chamar de “mentali- varicação semântica. Comprova, de resto, a
dade cordial” [nossos os grifos] estão ligados importância também do conceito ribeirino
vários traços importantes, como a sociabilida- de cordialidade a abonação registrada no
de apenas aparente, que na verdade não se Dicionário de usos do Português do Brasil
impõe ao indivíduo e não exerce efeito po- por Francisco S. Borba:
sitivo na estruturação de uma ordem coleti-
va. Decorre deste fato o individualismo, que cordialidade Nf [abstrato de estado] afa-
aparece aqui focalizado de outro ângulo e se bilidade; afeição: falamos com cordialidade
manifesta como relutância em face da lei que vulgar da hospitalidade sertaneja (ROM);
o contrarie. Ligada a ele, a falta de capacidade
para aplicar-se a um objetivo exterior. [Cândi- edições do ensaio, afirma Monteiro [2015, cap. 1, nota
do apud Holanda: 1987, XLVI]18 11]: “Escrito em dezembro de 1967, em São Paulo, o
prefácio foi incluído na quinta edição de Raízes do Bra-
sil, publicada no Rio de Janeiro, em 1969, pela editora
18 Acerca da importância de “Significado de Raízes José Olympio. Desde então, ele é parte inseparável do
do Brasil” de Antônio Cândido integrado em muitas livro de Sérgio Buarque.”
136 • Sandra Bagno
C
omo qualquer educador, tenho usual, enraizada no senso comum, nos diz
procurado me inteirar da proposta que a língua é um recurso natural de comu-
de reforma do Ensino Médio, que nicação. Comparando as duas formulações,
me parece resgatar o espírito do modelo dei o desconto do tom eloquente da frase
dos anos 1960. Terminado o curso ginasial do meu professor e procurei incorporar o
– correspondente ao segundo segmento que nela me pareceu uma novidade.
do atual Ensino Fundamental –, o estudan Há algum tempo, gosto de remoer esse
te tinha três opções: um curso profissiona- lugar-comum. Vejo nisso uma boa estraté-
lizante, que o formava, por exemplo, em gia para ultrapassar o nível das aparências,
“técnico de contabilidade”; ”o curso cientí- como convém à finalidade formativa do
fico”, indispensável para os que pretendiam processo pedagógico. Estou convencido
ingressar nas faculdades de engenharia e de que, por mais que seja uma proprieda-
de medicina e no magistério dos domínios de óbvia e inquestionável, a utilidade como
conexos a estas especialidades; e o “curso meio de comunicação está longe de poder
clássico”, recomendado para as carreiras explicar em que sentido a posse da palavra
relacionadas com as ciências humanas em representa uma singularidade da espécie
geral – a sociologia, a filosofia, as letras e, humana.
naturalmente, o magistério de línguas es- O caminho que escolhi para explorar
trangeiras e de língua materna, bem como essa ideia parte da distinção entre corpo e
o direito e a diplomacia. mente. Como tema filosófico, a formula-
Foi por esta grande área das “humani- ção mais conhecida dessa dicotomia encon-
dades” que optei em 1963. Eu estudava no tra-se na obra de René Descartes, no século
Liceu Nilo Peçanha, de Niterói, onde conheci XVII. O “dualismo cartesiano” – como é
um professor de português que gostava de conhecida a tese – propunha uma indepen-
frases de efeito. Uma delas, repetida como dência radical entre as duas coisas. Esse di-
um refrão, era esta: “a palavra é uma chave vórcio foi sempre posto em xeque, mas só
que abre muitos tesouros”. A formulação a ciência cognitiva moderna foi capaz de
138 • José Carlos de Azeredo
porque o ser humano dispõe da capacidade que, mal cumprida e malfeita, compromete
simbólica, cuja expressão universal e, entre toda a educação.
todas, mais versátil é, justamente, a palavra, As autoridades da educação e seus agen-
a língua. tes, em especial os professores, precisam se
É fundamental ter claro que a língua conscientizar do papel transversal da língua
não é só o veículo, mas é a própria fonte na formação de um cidadão. Precisam se con-
dos múltiplos estilos de relacionamento que vencer de que a principal causa do fracasso
permeiam a vida cultural em toda a sua escolar é a pouca familiaridade do estudante
complexidade. Por meio dela e graças a ela com a diversidade de recursos de compreen-
conhecemos, revelamos e compartilhamos são e de expressão oferecidos pela palavra.
um mundo sem limites, que só existe para É lidando com as formas da língua e explo-
a espécie humana. Esse mundo tanto se re- rando alternativas para a expressão que des-
vela nos enunciados já produzidos e catalo- cobrimos novos sentidos, os sentidos que a
gáveis em um corpus, quanto se descortina mesmice das fórmulas repetidas não deixa
nos textos que, para usar a palavra do poe- perceber. Portanto, é tarefa de todos promo-
ta, ainda esperam ser escritos. ver o domínio da língua – não no sentido con-
Em função dessa reflexão, meu foco é o servadoramente clássico de adoração de relí-
papel decisivo da palavra no fazer pedagó- quias léxicas e gramaticais – mas no sentido
gico em geral. Não conheço um educador, de uma competência que habilita o estudante
um só professor que negue isso. Mas é raro a utilizar recursos cognitivos e instrumentos
que a importância da palavra seja reconhe- técnicos para ler e produzir uma variedade de
cida nos seus devidos termos. A mídia, fa- textos com autonomia. Tenhamos, portanto,
lada e impressa, dá o tom do que se pensa clareza de uma coisa: tendo em vista os bene-
fora do núcleo formado pelos especialistas. fícios transdisciplinares da competência verbal
Chega-se ao cúmulo de confundir compe- de uma pessoa, essa tarefa é grande demais,
tência ortográfica e competência linguísti- decisiva demais, envolvente demais para ser
ca, como se constata na popularidade de cobrada de uma só e única disciplina.
algumas gincanas televisivas. Muitos dirão que ajo como um Quixote,
O domínio da língua para o fim de ler mas a única profissão que exerci ao longo
e escrever com autonomia e desenvoltu- de 50 anos consolidou em mim esta cer-
ra inclui o domínio da norma gramatical teza: a qualidade da educação tem tudo a
e das convenções ortográficas, mas estes ganhar quando o professor, independen-
são apenas – digamos – os aspectos mais temente de sua área de conhecimento, lê
óbvios. O domínio da língua é muito mais e comenta textos com seus alunos. Não se
do que isso. Como uma soma de atividades está pedindo aos professores de história,
produtivas e autônomas, as habilidades da de biologia ou de matemática que ensinem
leitura e da escrita precisam ser reafirmadas sintaxe ou pontuação a seus alunos, mas
e tratadas como o objetivo maior do Ensino que pratiquem em aula o hábito saudável
Fundamental, e permanecer como um dos de usar textos, lendo-os e interpretando-os
principais objetivos do Ensino Médio. É uma com seus alunos, para incentivar a desco-
tarefa que requer conjugação de esforços e berta e a construção de conhecimento.
C O N TO
Doutora Isa
Juarez Barroso
Ficcionista, jornalista, escritor e ensaísta de música popular
J
uarez Barroso nasceu em Pernambu- 1972, crítico musical do Jornal do Brasil.
quinho, na serra de Baturité, Ceará, em Apaixonado por música popular brasileira,
1934. Seus primeiros trabalhos literá- fez inúmeras pesquisas sobre o assunto,
rios foram publicados na imprensa de For- produziu o último disco de Cartola e dei-
taleza, a partir de 1955. Em 1968, seu livro xou, em fase de impressão, um ensaio sobre
de contos Mundinha Panchico e o Resto do música popular, Estácio – Os professores do
Pessoal ganhou o almejado Prêmio Literário Samba.
José Lins do Rego, da Editora José Olympio, Seu falecimento prematuro, em 1976,
que o publicou no ano seguinte. coincidiu com o lançamento de seu segun-
Trabalhou como jornalista no Diário Ca- do livro, Joaquinho Gato, no Rio de Janei-
rioca, Correio da Manhã e na revista Fatos ro. Em 1978, o romance Doutora Isa foi
e Fotos, do Rio de Janeiro, sendo, desde publicado.
142 • Juarez Barroso
D
outora lsa. Assim mesmo: doutora carrada de gente pra se receitar de doença
lsa. Foi com este nome, nome santo ou aflição do juízo. E ela dava o remédio,
na bondade e na delicadeza da cria- dava o conselho, dava de tudo, sem querer
tura, que a lembrança dela ficou nestas pa- um tostão de ninguém. E se muito cabra
ragens. Doutora Isa. E sabia de fato traba- está hoje aí, vivo e faceiro, bebendo cacha-
lhar no ofício de doutora, bem verdade que ça, dançando em samba, correndo atrás de
sem a ciência dos livros, ciência do povo de boi, só deve isto à doutora, embora nin-
anel, feito os senhores. Mas com a ciência guém não reconheça. O mesmo povo que,
do mundo, ciência de quem navegou pelo naquele tempo, chegou até a dizer que ela
luxo e pela pobreza, pelo direito e o torto, era santa, coisa que eu sei que ela não foi,
ciência estrumada na vontade e na precisão meus cidadãos, que eu nunca vi santa de
de servir, tudo com a graça de Deus, que lhe seis meses. Mas que trabalhou de santa,
guiou a mão e as palavras naqueles seis me- trabalhou. Curou doença de morte, casou
ses. Enquanto se chamou lsa, Deus Nosso gente amigada, fez pai de família largar
Senhor olhou por ela, podem me crer, que mão de xodó, fez mulher quente largar. de
de outra forma também não encontro expli- botar chifre no marido, como também fez
cação pra tanto acerto. Mostrava o remédio marido aguentar com paciência a sua sina e
ao vivente ou escrevia o nome no papel, e o peso na cabeça, pois quando chifre de ho-
ele, só de espiar pro vidro ou pra receita já mem enraiza muito não dá mais pra arran-
ia melhorando, dois, três dias mais tarde já car de jeito nenhum. Fez moça feia casar e
estava bonzinho. Diante de uma ferida, es- até mesmo devolveu as forças de homem a
tivesse ou não arruinada, fosse malina ou um cidadão, um pobre que estava na moda
fosse de estrepada, não havia diferença. de quem tem fome e não pode engolir, per-
A força maneira das mãos de princesa, fini- dida a sustança pra coisa melhor que Deus
nhas, alvinhas, segurando um algodão com botou nesta terra.
água, os dedos que ninguém sentia, só a Tudo em seis meses, sem tempo de cum-
presença deles, mimo e formusura guer- prir sua sina no sertão, tempo marcado por
reando a feiura da carne arruinada. Tenha seis acontecidos, que seis é o número que
medo não, isto num instante fica bom. E se governa esta história, como percebi mais
era no pé, como me aconteceu, o cristão já tarde, conforme o ensinamento do profe-
saía pisando aprumado, esquecido da dor, ta e advinhão Moisés do Lagedo. E outra
no ponto de correr atrás de um bicho numa coisa lhes digo, cidadãos. Se ela, na cidade,
capoeira ou de até jogar futebol. Mulher na pessoa de Margô, foi madame de puta,
nenhuma morreu de parto nas mãos dela, viveu no banquete e na safadeza, obrando
nenhuma precisou de doutor da cidade ou o mal e ensinando o pecado, aqui no ser-
perdeu o menino. tão, na pessoa da doutora Isa, foi o anjo da
Meus cidadãos, aqui o doutor meu com- salvação e só ensinou a nós todos a estrada
padre sabe que eu sou desmantelado mas do bem. Seis meses na exata, como deter-
não sou homem de mentira. Pois digo que minava a lei daquele encantamento. Depois
teve um tempo em que se fez até romaria do que ela retornou pra sua vida alegre, pra
lá em casa, caminhão vindo de longe, com sua riqueza ainda maior, pro seu vinho e
D o u to r a I s a • 143
seu licor, pra orgia e a esculhambação, es- meninota, sem influência de namoro, ino-
quecido o tempo de doutora, à moda de cente das coisas. Se sabe nunca me falou
um sonho. Mas sonho não foi, eu garanto. ou cobrou nada. Estas coisas eu só conver-
E ainda lhes digo mais. Se existe hoje uma so aqui no alpendre do doutor, porque ele
Margô no inferno, existe igualmente uma puxa, na força desta cachaça que somente
Isa no céu, muito embora sejam elas uma só ele possui. Lá em casa não tem praça pra
pessoa. E ninguém me pergunte como isto tal assunto.
é possível, pois aí já se entra nos terrenos Tenho que principiar no começo, mas
de Deus Nosso Senhor, que sabe virar-se em o ano nem me perguntem que eu não me
três, sem deixar de ser um só e verdadeiro. lembro ao certo. Sei bem que eu já era rapaz
Como Margô, mulher da cidade, de erro, feito, embora nem sonhasse em me casar.
bebida e orgia, tirando seu sustento da fra- Como sei bem que principiou em setembro,
queza da carne, veio bater aqui encantada por causa da festa do ltapebuçu, que eu
em doutora e anjo dos pobres? Doutor, tem perdi naquele ano. Deu-se que no começo
coisa que eu nunca contei ao senhor, como daquele mês, eu botei a sela no meu bur-
nunca cheguei a contar nem ao meu irmão ro, aqui no sertão, e toquei-me pra Serra
Bonato ou ao Zezão. Estes seus convidados da Palmácia, onde a gente possuía uma
de hoje ainda não escutaram? Sem pabula- herançazinha de terra, coisa pouca, já mui-
gem, só lhes posso dizer que tudo sucedeu to dividida, mas que dava uma bananinha,
por via aqui deste criado dos senhores. Fui uma cana que garantia a nossa rapadura,
eu quem trouxe Margô pra cá, fui eu quem um feijão de arrancar, umas três saquinhas
assistiu a sua passagem de puta a douto- de café pro nosso gasto. Hoje tudo está em
ra. Margô ou doutora lsa, presenciei ela no poder do meu irmão, que comprou até as
sofrimento e na glória, suas horas de gran- partes de outros herdeiros, primo da gente,
deza ou de fraqueza, só eu presenciei as ho- fez daquilo um brinco. Mas como eu dizia,
ras que ela quis fraquejar, imaginando em madrugada botei a sela no burro, um burro
morrer, se sumir no oco do mundo, e eu, castanho que eu possuía naquela ocasião,
aguente firme, doutora, se sustente na sela, animal possante, galope macio, burro mes-
domine as rédeas da vida, que Deus toma mo de viagem, mas servindo também pra
conta do resto. E assim ela fez. E só aqui a campo, pois entendia de gado. Esse burro
este seu criado ela pediu e deveu favor, isto eu apanhei do Alfredim Estadual, irmão ca-
num tempo em que todo mundo pagava çula do meu camarada Zezão, em troca de
pra lhe servir. Se a minha mulher sabe des- uma bezerra, de um relógio de algibeira,
ses acontecirnentos? Olha, pra lhes dizer a Omega, bicho relógio, que não atrasava e
verdade, sei não. Nesse tempo ela ainda era nem adiantava, e mais cem mil-réis.
H O M E N A G E M A A lceu de A moroso L ima
A
lceu Amoroso Lima (1893-1983) Ele é, sem dúvida alguma, um dos princi-
foi crítico literário, professor, pen- pais protagonistas da cena intelectual do sé-
sador, escritor e líder católico bra- culo XX. Caracterizou-se por um esforço per-
manente de compreensão da cultura e da vida,
sileiro. Foi Conde Romano, pela Santa Sé.
fundado num tripé cada vez mais abalado, ou
Adotou o pseudônimo de Tristão de Ataíde.
mais distante: a liberdade, a justiça e a ética.
Sua obra, no ano de 1965, foi indicada ao
prêmio Nobel de Literatura. É por isso que hoje e sempre devemos
O Acadêmico Eduardo Portella, em ses- rememorar e render o nosso tributo, o nos-
são de homenagem ao 20.º aniversário de so respeito e a nossa admiração a Alceu
falecimento de Alceu, registrou: Amoroso Lima.
* Em 28 de Junho de 1956.
pode ser muito empírico, mas é muito, ver- pede a elasticidade do estilo. O conto, a sua
dadeiro. É o único realmente positivo. Não intensidade.
há, naturalmente, qualquer norma métrica Essas e outras são manifestações quali-
que determine a fronteira entre o conto e tativas que fazem do conto, dentro da reali-
a novela, e entre esta e o romance. É uma dade e da tenuidade do conceito, um gêne-
apreciação puramente relativa e impossível ro à parte, mais próximo da oratória ou do
de ser reduzida a qualquer medida rigorosa. teatro do que do próprio romance, como
Tanto assim que os povos de língua inglesa bem observou Josué Montelo em relação
empregam o termo novel para o romance, ao teatro, exatamente porque no palco e na
eliminando, pois, a distinção entre romance tribuna a lei que rege é a da ação, ao passo
e novela, que os latinos, entretanto, esta- que no romance é a da narração e, portan-
tuem com toda razão, desde que, com isso, to, da ação diluída na descrição. A caracte-
não pretendam restabelecer qualquer rigi- rização do conto foi, aliás, admiravelmente
dez na diferenciação dos gêneros ou qual- desenvolvida pelo sr. Herman Lima, nas suas
quer excesso de sutileza, sempre prejudicial Variações sobre o conto (1952), onde há
como quem corta cabelos em quatro ou uma síntese magnífica da história do conto
na América Latina e especialmente no Bra-
se perde nos arcanos dos “abstracteurs de
sil, às quais remeto o leitor para uma me-
quintessence”, de que falava Rabelais.
lhor informação sobre o assunto.
A diferenciação genérica do conto, por-
Eis aí, a meu ver, os limites dentro dos
tanto, é apenas quantitativa?
quais é sempre legítimo tratar do conto
Não creio. A meu ver, essa diferenciação
como um tipo literário à parte e objeto de
quantitativa, que é primacial, arrasta consi-
várias localizações, como será o caso neste
go, dentro de seus limites, uma diferencia-
programa estabelecido pela Academia Bra-
ção qualitativa. Embora mantendo o critério
sileira para o curso de 1956. Eis aí, também,
da máxima elasticidade, para que a forma
as notas que me parecem características do
não prejudique a forma, como na aurora da
gênero, ao qual pertencem as obras que
revolução modernista advertiu o precursor
serão oportunamente estudadas analitica-
Manuel Bandeira, acredito em um reflexo
mente e nesta introdução vamos considerar
qualitativo no conto proveniente de sua ca-
apenas em conjunto e com citações apenas
racterística de narrativa pouco extensa.
exemplificativas.
Esse reflexo qualitativo se traduz de vá-
rias maneiras. Enquanto no romance o tem-
po domina o espaço, no conto a primazia Período colonial
pertence ao espaço sobre o tempo. O conto Se o teatro, a poesia, a oratória, a histo-
é uma narrativa por natureza rápida. O ro- riografia e o próprio romance floresceram,
mance é naturalmente lento. No romance entre nós, embora modestamente, durante o
deve predominar o espírito analítico. No período colonial, não aparece o conto senão
conto, o espírito sintético. O romance se sob a forma anônima e popular. No gênero,
desenrola em extensão. O conto, em pro- a literatura oral antecipou-se à literatura es-
fundidade. O romance, por isso mesmo, crita, a obra anônima (quanto é possível o
A e vo l u ç ã o d o c o n to n o B r a si l • 149
regionalista entre nós: Afonso Arinos e Valdo- Dois anos antes, estreara, ainda no Rio
miro Silveira. Este, só a partir de 1920, reuniria Grande, outro contista regional, que se
os seus escritos há muito já divulgados: Cabo- inspira ainda no seu ambiente local, Alci-
clos (1920); Nas Serras e nas furnas (1931); des Maia, com Ruínas vivas (1910); Tapera
Mixuangos (1937); Lereias, (1945), de modo (1911); e Alma bárbara (1922).
que só recentemente ficou seu nome consa- O gênero “pegou”, como se diz, do
grado junto ao de Afonso Arinos. Norte ao Sul. A busca da originalidade local,
Este último, porém, desde 1898, com tanto na paisagem como na linguagem, vai
o seu pequeno volume Pelo Sertão se con- constituir o elemento principal não só dos
sagrou como um exímio cultor do conto mestres do conto, mas ainda dos pequenos
sertanejo, de um regionalismo, aliás, muito imitadores, já que o público respondeu com
pouco realista e num estilo próprio, por ve- agrado ao gênero novo, misto também de
zes oratório mas em geral realizando uma realidade e fantasia, mas acentuando os as-
particular transposição da linguagem popu- pectos exteriores e verbais da expressão.
lar para o estilo clássico, que lhe é peculiar, Quando surge, portanto, Monteiro Loba-
sem perda da simplicidade e do pitoresco to, em 1918, depois do período de incubação
exigidos pelo gênero. local, só então revelado ao grande público, o
Já no início do século XX, como que es- conto regionalista já é um gênero absoluta-
timulado pelo êxito imenso dos Sertões, de mente vitorioso, em todas as zonas culturais
Euclides da Cunha, (1902) o Regionalismo do Brasil. De modo que os Urupés, ao conse-
toma vulto e nos dá alguns grandes con- guirem o êxito retumbante e merecido que
tistas novos, como Alberto Rangel, com os alcançaram, não vêm abrir novos horizontes,
seus novos contos amazônicos, retomando mas alimentar – com o talento próprio do
a tradição de Veríssimo e Inglês de Sousa: In- autor e o seu realismo romântico, inspirado
ferno Verde, 1908; Sombras n’água, 1914; em Camilo Castelo Branco, e, acima de tudo,
que mais tarde se desdobrariam em livros na sua vivência local do homem e da paisa-
menos regionais, mas sempre marcados por gem das margens do Paraíba – uma corrente
uma forte dose de nacionalismo literário. que já então se tornara nacional e constante.
Gustavo Barroso, em 1912, publica a sua E já se tornara, nesse período inicial do sécu-
lo XX, anterior ao advento do Modernismo,
Terra de Sol, um dos livros mais afamados
pode-se dizer que a nota dominante e mais
da época, todo ele imbuído da realidade
original de nossas letras, trazendo-nos a voz
cearense, seguido mais tarde de novas pá-
do extremo Oeste, pelos contos goianos das
ginas de análoga inspiração, como A Balata
Tropas e boiadas, de Hugo de Carvalho Ra-
(1913); Praias e várzeas (1915); Mula sem ca-
mos, ou de novo a voz do sertão mineiro de
beça (1922); Alma sertaneja (1923) etc.
Alberto Deodato, nos Canaviais, ambos de
Ao passo que no extremo Sul, e na mes-
1916, se não me engano.
ma data, estreia outro regionalista, Simões
Lopes Neto, que recolhe o conto popular
como seu instrumento de expressão literá- O conto simbolista
ria, com os Contos Gauchescos, de 1912, e O conto simbolista não ia ter, nem de
as Lendas do Sul, de 1913. longe, a repercussão e a fecundidade, tanto
154 • Alceu de Amoroso Lima
do conto realista como do conto regionalis- – com a sua prosa do Missal e, no ano da
ta. O Simbolismo ia constituir uma corrente sua morte tão prematura, com a de Evoca-
marginal em nossas letras, dominadas, des- ções (1898), que deu ao conto um senti-
de o seu aparecimento, na última década mento lato, uma forma inédita, que o iria
do século XIX, pela nota típica do Realismo distinguir radicalmente do realismo domi-
e do Regionalismo. nante. Essa forma mista, de poesia e prosa,
De modo que não encontramos entre iria diluir os contornos próprios do conto e
os simbolistas a mesma messe relativamen- diferenciá-lo ainda da tradição romântica.
te abundante que os seus colegas das duas Não era apenas o primado da imaginação
outras tendências nos oferecem. Mas o e do sentimento, ou mesmo da imaginação
conto simbolista tem as suas particularida- lúgubre ou satânica, da tradição hoffmania-
des próprias. E acima de tudo a impregna- na. Era, realmente, uma diluição dos limites,
ção da prosa pela poesia, que lhe é absolu- uma abolição dos contornos da realidade
tamente típica e distingue esse gênero de e do estilo, e até o início do “monólogo”
conto, dos que o Realismo e o Regionalis- interior, como Eugênio Gomes e Andrade
mo inspiraram. Ao passo que o prosaísmo Murici apontaram com razão em Adeli-
era intencionalmente cultivado pelo conto no Magalhães (Casos e Impressões, 1916;
dominante naquela época, os simbolistas Visões, Cenas e Perfis, 1918; Tumulto da
reagiam e acentuavam, pelo contrário, o vida, 1920 etc.) – que o conto simbolista
ambiente poético, o estilo etéreo, a dilui- vinha trazer como contribuição nova à tra-
ção da realidade ao sonho. De modo que dição romântico-realista do nosso conto.
o conto simbolista – que apesar de escasso A messe foi pequena. Além das páginas
ainda domina de muito o romance simbolis- da Rocha Pombo e Cruz e Souza, como ini-
ta – representa de certo modo aquela fusão ciadores do novo tipo de conto, até as de
da poesia e da prosa, com que sonharam Adelino de Magalhães, já em pleno pré-
alguns românticos. E procuraram na som- -Modernismo, só encontramos algumas
bra o caminho para o conto mais moderno, cenas de Virgílio Várzea, o companheiro de
inspirado sobretudo em Tchecov, como o Cruz e Sousa mas tão inferior a ele (Mares e
conto realista se inspirara em Maupassant. campos, 1893; Contos de amor, 1895; Histó-
Desde 1892, Rocha Pombo, que afinal rias rústicas, 1904 etc.) e as páginas efême-
só ficou como historiador em nossas letras, ras de Gonzaga Duque (Horto de mágoas,
publica no Paraná, contos de tipo simbo- 1914) e Lima Campos (Confessor supremo,
lista, embora só em 1905 nos desse o seu 1004). As histórias do bem e do mal (1936)
estranho romance O hospício e em 1911 os de Tristão da Cunha, que de certo modo se
seus Contos e pontos de idêntica inspira- prendem a essa tradição simbolista, já se
ção, sem repercussão alguma no ambiente apresentam em outro momento de nossas
realista ou mundano daquele fim do bur- letras e talvez, por isso mesmo, igualmente
guesismo literário. abafadas pelo novo espírito dominante, de-
Foi Cruz e Sousa, entretanto, desde o pois da revolução modernista, como os seus
ano de sua estreia em 1893 – que ia marcar antecessores o tinham sido antes da revolu-
o advento do Simbolismo em nossas letras ção... Pouco antes de morrer, aliás, e com ele
A e vo l u ç ã o d o c o n to n o B r a si l • 155
francês e a paixão “literária” que iriam de- o realismo com o simbolismo, tanto o con-
terminar o estilo dos seus primeiros contos, to urbano como o conto regionalista iriam
na fase do “Conselheiro XX”. O nome de prosseguir, pois representam modalidades
contos aplicados a essas anedotas mais ou de expressão, tanto individual como am-
menos picarescas, inspiradas no libertinis- biental, que se repetem indefinidamente.
mo e nas “marivaudages” de França e no Mas o clima do mundo ia mudar comple-
alexandrinismo helênico – pode ser con- tamente. E as mesmas correntes anteriores
testável, mas cabe também a esse tipo de já não seriam as mesmas depois da guerra.
prosa curta de ficção. E o espírito urbanista, Esta já aparecia, aliás, no título de um
representado pelos costumes cosmopolitas contista do Norte, que iria contribuir para o
de uma civilização requintada ou deca- gênero, com vários volumes. Era o contista
dente, é que neles domina. Bem diferente, e romancista pernambucano Mário Sette,
portanto, seja do urbanismo social de Lima que estreava em 1917, com o conto Ao
Barreto, seja do urbanismo galhofeiro de clarão dos obuzes, cujo título bem traduz
Artur Azevedo. Aliás, como se sabe, o estilo a tragédia universal que ia mudar o clima
de Humberto de Campos iria mudar radical- intelectual do mundo moderno.
mente depois de 1928 e particularmente da E com isso entramos em plena luta mo-
revolução de 30, e seus dois últimos livros dernista.
de contos propriamente ditos (O Monstro
e Outros contos, 1932, e A Sombra das Ta-
mareiras, 1934), já refletem um ambiente e
IV
um estado de espírito muito mais represen- O conto modernista
tativos do século XX agônico (o que não é o Na primeira geração modernista, os três
mesmo que agonizante), do que do século escritores que se impuseram logo como
XVIII libertino e despreocupado. contistas foram: Ribeiro Couto, Menoti-del-
E com isso se despedia o pré-Moder- -Picchia e Antônio de Alcântara Machado.
nismo com seus contistas regionalistas, ur- Os dois primeiros publicaram livros de
banistas ou historicistas (como um Viriato contos e novelas no próprio ano que marca
Correia, que fez da história do Brasil maté- a fronteira do modernismo – 1922; Ribei-
ria para tantos contos didáticos ou simples- ro Couto com os contos de A casa do gato
mente pitorescos), todos eles na linha do cinzento e de O crime do estudante Batis-
realismo ou do simbolismo, das duas cor- ta, aos quais se seguiram mais tarde outros
rentes, objetivista ou subjetivista, que desde que o classificariam como um dos clássicos
a última década do século XIX dominavam do conto moderno entre nós (Baianinha e
as nossas letras. Outras mulheres, 1927; Clube das esposas
A guerra de 14, como se sabe, ia ser o enganadas, 1933; Largo da Matriz, 1940)
grande divisor de águas, tanto sociais como – e Menotti-del-Picchia, com a novela A
literárias. O século XIX terminava e com ele mulher que pecou, sem a mesma sequência
as suas preferências estéticas. Ia abrir-se do anterior, mas sem abandonar o gênero e
um novo cenário. Não que o estilo anterior reunindo todos, em 1946, sob o título cole-
cessasse de todo. Bem pelo contrário, tanto tivo de Contos.
A e vo l u ç ã o d o c o n to n o B r a si l • 157
Ribeiro Couto trazia ao gênero a sua sen- tradição realista do século XIX do que à re-
sibilidade de poeta. Mas coube a Antônio de novação estilística do modernismo, mas são
Alcântara Machado, com Brás, Bexiga e Barra dois contistas de pulso, que se incorporam,
Funda (1927) e com Laranja da China (1928), perfeitamente, dentro do seu próprio feitio,
trazer para o gênero um estilo novo, já ensaia- ao movimento modernista.
do em seu primeiro livro de crônicas de via- Ainda nesse mesmo ano de 1922 outro
gem “Pathé Baby” (1926) mas que adquiria prosador moderno se revela, escolhendo o
na “short story” uma mestria que consagrou conto como sua forma e expressão: José
o seu autor como o maior prosador da primei- Geraldo Vieira, com a Ronda do Deslum-
ra geração modernista. A frase curta, incisiva, bramento, mas seria mais tarde como ro-
original, fixava de modo inesquecível tanto os mancista, a partir de Mulher que Fugiu de
aspectos cômicos como os aspectos trágicos Sódoma, que se iria impor como autêntico
ou os aspectos indistintos da vida paulista, valor da nova escola.
e os seus contos constituíram realmente um Nessa mesma década e logo no ano se-
acontecimento novo e o anúncio real de uma guinte ao famoso 22, surge ao Norte um
nova fase para o gênero. contista que vinha alistar-se como uma nova
Mário de Andrade também não deixou voz da velha corrente regionalista, mas já com
de a cultivar, embora sem a originalidade certos toques do novo estilo, que a Revolução
de Antônio de Alcântara Machado, ora de 22 trouxera. Era o paraense Peregrino Jú-
reunindo em Primeiro andar (1929) páginas nior, com Vida fútil de 1923, ainda inexpres-
de sua própria fase pré-Modernista, ora já sivo, e que só em 1929, já no alvorecer da
com o seu estilo brasileiro inconfundível, segunda fase modernista, nos daria os contos
dando-nos alguns textos de forte estrutura fortes de Pussanga (1929), de Matupá (1933)
em Balazarte (1934) e outros reunidos de- e de Histórias do Amazonas (1939), que o
pois de sua morte, no volume Contos No- consagraram como o maior dos regionalistas
vos (1947). Dos grandes prosadores dessa do Modernismo, nessa tão expressiva confi-
primeira geração, só Oswald de Andrade guração amazônica, que Alberto Rangel tinha
nunca se inclinou para a história curta, pre- iniciado no século XX, como já vimos e ao
ferindo sempre o romance. qual Raimundo de Morais, entre outros me-
Dois outros contistas dessa primeira nores, trazia em 30 uma preciosa colaboração
geração modernista estrearam com gran- com o País das Pedras Verdes (1930) e as His-
de êxito nessa década dos 20: um no Rio, tórias Silvestres de 1939.
Gastão Cruls, com o livro Coivara (1920), Se tomarmos a década de 30 como re-
seguido de Ao embalo da rede (1923) e veladora da segunda geração modernista,
História puxa História (1938), e outro em como se deu tipicamente com a poesia e a
S. Paulo, Afonso Schmidt, com Brutalidade, prosa nordestina, dois nomes se destacam:
desse mesmo ano de 22 (que foi realmente Luís Jardim, com a sua Maria Perigosa, de
um dos mais fecundos e decisivos de nossa 1935, e Rodrigo Melo Franco de Andrade,
história literária) e outros posteriores, como com os Velórios, de 1936.
Os impuros (1923), Pirapora (1924), Curian- Ambos se consagraram logo como dois
go (1936) etc. Ambos se prendiam mais à contistas incisivos, bem dentro da natureza
158 • Alceu de Amoroso Lima
teórica do gênero e de raro gosto literário, geração. Para verificar o acerto dessa afir-
como na era realista o tinha sido Mário de mação, basta percorrer as páginas da bi-
Alencar, com os seus Contos e Impressões de bliografia do conto brasileiro preparada pela
1920. Todos três, embora de gerações dife- professora Maria José de Trindade Negrão,
rentes, pertenciam a essa categoria requin- da Faculdade Nacional de Filosofia, as de
tada de escritores que pouco escrevem, por Hermam Lima, já citado, ou as da “Pequena
amor exagerado à perfeição e por uma auto- Bibliografia Crítica da Literatura Brasileira”
crítica tão exigente, que se arrisca a levar ao (2.a ed. 1955), incomparável contribuição à
anticoncepcionismo literário, segundo aque- nossa história literária, de Otto Maria Car-
la velha sentença do poeta Sully Prudhome: peaux, esse homem de cultura universal,
“Le gout de la perfection stérilize”. A esse que tudo leu e vem esmerilhando o nosso
grupo pertence Anibal Machado, contista de patrimônio literário com um carinho e uma
raras qualidades, que já na década seguin- minúcia bibliográfica que em geral faltaram
te nos daria com Vila Feliz (1944) outro dos aos nossos críticos e historiadores e a quem
nossos clássicos modernos no gênero. devem, portanto, às nossas letras, serviços
No início dessa década dos 30, surgia inestimáveis. Vemos aí, embora longe de ser
em São Paulo Galeão Coutinho, com os completa a resenha das obras publicadas
contos do Semeador de Pecados (1931), no gênero, como o conto vem sendo cada
nos quais um dos traços típicos da segunda vez mais cultivado, desde o advento do Mo-
geração modernista, a preocupação social, dernismo. Aqui não fazemos menção, pela
se fazia notar. própria natureza desta visão sumária e pa-
No mesmo ano, e portanto integrando norâmica, senão dos que parecem mais re-
essa segunda geração modernista que já sur- presentativos.
gia dentro do novo ambiente literário iniciado Um que o foi, na primeira linha dessa
em 22, outra revelação, tanto em quantidade nova “escola mineira”, surgiu com a se-
como em qualidade, era a de Marques Rebe- gunda geração modernista, foi sem dúvida
lo, como os contos de Oscarina (1931), se- João Alphonsus, um dos filhos do poeta e
guidos mais tarde por Três caminhos (1933) tão prematuramente falecido em 1944, que
e Stela me abriu a porta (1942), em que a nos deu, em 1931, essas pequenas joias da
finura psicológica se exprimia por um estilo Galinha cega, seguida em 1941 de A pes-
próprio e sutil. Ainda pela mesma época, e ca da baleia e, em 1943, do seu canto de
mesmo precedendo os anteriores, encontra- cisne Eis a noite. A morte o levou, como a
mos o excelente contista Origenes Lessa, que Antônio de Ancântara Machado, muito jo-
estreava em 1929 com O Escritor Proibido e vem. Mas ambos deixaram provavelmente
continuaria a cultivar o gênero, com engenho o melhor de sua obra, e com ela marcan-
e graça maliciosa, durante a década seguinte, do o Modernismo como sendo, de todas
nos seus livros: Garson, Garçonette, Garço- as nossas escolas literárias, salvo a exceção
nière (1930), A cidade que o diabo esqueceu de Machado de Assis, o eterno solitário,
(1931) e Passatrês (1936). aquela que nos revelou os nossos melho-
Já agora, com o Modernismo consagra- res contistas. Como que a forma curta do
do, vemos crescer consideravelmente o nú- gênero se adequava, de modo perfeito, ao
mero de contistas, tão escassos na primeira estilo conciso, penetrante e pitoresco, “en
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pointe”, como dizem os franceses, tão típi- Magalhães Júnior, Fran Martins, Joel Silveira,
co da nossa prosa a partir de 1922. Josué Montelo (cujo Fio da Meada é do ano
Já então nos chegam grupos de contis- passado). José Condé (cujas Histórias da cida-
tas dos Estados, durante essa década 30- de morta são de 1951 e Os dias antigos, de
40, como, por exemplo, do Rio Grande do 1955), Breno Accioly (cuja estreia, em 1944,
Sul, cuja literatura custou a destacar-se na com João Urso, tão típica, já foi seguida em
produção do resto do país – embora nela 1949 dos Cogumelos, e no ano passado, por
integrada, como demonstrou Guilhermino Maria Pudim), Braga Montenegro etc., esses e
César, na sua excelente História da Litera- outros representam a parte nórdica, se assim
tura do Rio Grande do Sul, até o limiar do podemos dizer, da abundante messe de con-
século XX, mas que ultimamente vem des- tos que tão fortemente caracterizam a prefe-
contando o tempo perdido e só nessa dé- rência do modernismo e do neomodernismo
cada revelava contistas diferentes e de va- por esse tipo de prosa.
lor, como Dionélio Machado, como Ernani
Fornari, como Reinaldo Moura, como Darci
V
Azambuja (que estreara com os contos re-
gionais de No Galpão, em 1925), como Au- O conto neomodernista
gusto Meyer (que além de agudo poeta e Já agora nos encontramos, para termi-
mestre da crítica humanista nos deu os seus nar, na década de 1950 e, por conseguin-
Segredos de infância, contos publicados em te, na fase atual de nossas letras. O critico
1949, já no fim do movimento Modernis- Heráclito Sales observou, com razão, a esse
ta), Ciro Martins, Telmo Vergara (que desde respeito, que a prosa neomodernista só ago-
o Seu Paulo convalesce, de 1934, nos deu ra está chegando àquela mutação profunda
mais de meia dúzia de livros de contos), Ivan que o Modernismo de 22 trouxera, de cho-
Pedro Martins, Vargas Neto etc. fre, à poesia. Sem entrar na análise das várias
Do Nordeste e do Norte, que apareceram correntes (três), que ele aponta nos contistas
como se sabe, depois de 30, com uma flora- do Neomodernismo – por destoar do méto-
da em que os nomes já hoje universalmente do panorâmico que adotamos, por força das
consagrados de Raquel de Queirós, de José circunstâncias e por inclinação pessoal, neste
Lins do Rêgo, de Jorge Amado ou de José estudo limitamo-nos a nos valer de sua aná-
Américo de Almeida preferiram sempre o ro- lise, para confirmar-nos na convicção de que
mance ao conto, para nos darem a réplica o conto vem sendo gradativamente o gênero
dos carrascais às coxilhas – de lá também nos preferido da maioria dos prosadores moder-
veio, para a ampla colheita do conto moder- nos, entre nós, salvo as exceções apontadas
nista, uma boa contribuição. e outras de marca, como Otávio de Faria,
Basta citar o nome do mais famoso dos Jorge Amado, Érico Verissimo, Gustavo Cor-
“nordestinos literários”, o já hoje clássico Gra- ção, grandes romancistas que até hoje des-
ciliano Ramos, que, além dos seus romances, denharam o conto.
nos deu, no mesmo inconfundível estilo, en- Já vimos, entretanto, que outros grandes
tre 1944 e 1947, os contos de Histórias de romancistas e poetas cultivaram também
Alexandre, Dois dedos, Histórias incomple- ou continuam a cultivar a “short story”. Em
tas, e Insônia, Jorge de Lima, Osvaldo Orico, Minas, cuja contribuição ao gênero, senão
160 • Alceu de Amoroso Lima
tão abundante como no Sul e no Norte, é dois livros de contos, Saragana, de 1946, e
também considerável, podíamos logo citar Corpo de Baile, deste ano de 1956, cons-
o caso de Lúcio Cardoso. É certo que o au- tituem um dos conjuntos literários mais
tor de Luz no subsolo preferiu a novela ao típicos dessa renovação do Modernismo,
conto. Mas a novela é, afinal, a média en- posterior à morte de Mário de Andrade, em
tre os dois tipos opostos de prosa de ficção, 1945. Não é porventura, à toa, que a estreia
de modo que participa um pouco de cada de Guimarães Rosa se deu logo no ano se-
um: quantitativamente, do conto e, qualita guinte, e com um livro de contos, dez anos
tivamente, do romance. Mais próxima, por- depois continuado pela nova messe do Cor-
tanto, do romance que do conto. Por isso po de baile, o que mostra uma preferência
mesmo é que um romancista avesso ao con- significativa pelo gênero.
to, como Érico Verissimo, já nos deu uma Em ambos esses livros, Guimarães Rosa
novela, Noite (1954), e Lúcio Cardoso várias, se revelou uma personalidade singular, que
desde Mãos Vazias de 1938, até a Professora opera como que a ligação entre polos opos-
Hilda de 1946. Mas nesse mesmo ano, nos tos de nossas letras: o regionalismo e a uni-
dava os contos de O Anfiteatro, indo pois versidade, e entre as duas vertentes mais
além dos romancistas puros. Osvaldo Alves, diferenciadas dos nossos modernos ficcio-
outro romancista mineiro, nos dava, em 45, nistas, os formalistas e os socializantes.
os contos de Uma Luz na Enseada, na mes- No autor de Saragana como que concor-
ma sensibilidade social do seu romance. rem as duas tendências opostas. Os temas
Ainda de Minas, um poeta máximo, como de seus contos são regionais, tanto no ma-
Carlos Drummond de Andrade – que escreve terial humano típico, como na linguagem e
tão bem em verso como em prosa, na linha, na acentuação da paisagem. Mas o seu re-
aliás, da maioria dos nossos grandes poetas gionalismo é de um tipo muito diferente dos
modernos (Mário de Andrade, Jorge de Lima, regionalistas anteriores. E a sua diferença
Manuel Bandeira, Ribeiro Conto, Augusto está precisamente na acentuação do cará-
Frederico Schmidt, Augusto Meyer Menotti- ter universal das suas tendências profundas.
-del-Picchia, Tasso da Silveira) – publica, em O Regionalismo é, por natureza, particula-
1951, os seus deliciosos Contos de aprendiz, rista. Está para a ficção de ambiente largo,
ao passo que a nova geração nos dá alguns de tipo nacional ou para-nacional, como a
dos nossos melhores contistas neomoder- crônica está para a história. Em Guimarães
nos, como Murilo Rubião, com O ex-mágico; Rosa, entretanto, esse localismo é apenas
Fernando Sabino, já famoso como cronista, aparente. E o que surge, por baixo dos tra-
com Os grilos não cantam mais (1941) e A ços particulares e descritivos, é uma preocu-
vida real (1952); Oto Lara Resende, com O pação filosófica e, portanto, universal.
Lado Humano, de 1943; Valdomiro Autran Se isso ocorre com a forma interior dos
Dourado, que estreou como novelista, em seus contos, o mesmo se dá com a expres-
1947 (Teia), passando a romancista e a con- são estilística. O monólogo e o diálogo –
tista nas suas recentíssimas Três histórias na aquele de caráter introspectivo e este de
praia, do ano passado, e outros. caráter transitivo – se interpenetram de
Menção especial merece o nome de modo que o seu estilo, tão inconfundível
Guimarães Rosa, também mineiro, e cujos e que, aparentemente, se colocaria entre
A e vo l u ç ã o d o c o n to n o B r a si l • 161
os formalistas puros, se forra a qualquer já hoje se acham tão próximas as nossas ve-
evasão lírica interiorizada para se manter lhas gerações.
dentro das fronteiras da prosa e da comu- O mais recente dos nossos contistas,
nicabilidade, naturalmente misteriosas ou aliás, o jovem e notável estreante Samuel
ambíguas. Seus contos representam, por Rawet, com seus já tão discutidos Contos
isso mesmo, o acontecimento até agora do imigrante (1956) se encontra nitidamen-
mais representativo do gênero, desde o te nessa linha. E o poeta e tradutor Osvaldi-
advento do Neomodernismo. E mostram no Marques, num penetrante estudo sobre
como a prosa sintética do conto é realmen- o livro, acentuou, com razão, a infiltração
te o gênero aparentemente preferido pela poética no domínio da prosa curta que esse
mais moderna geração, dentro da sua varie- livro representa como contribuição original.
dade e riqueza de tendências. Estas, entre- No extremo oposto e logo no primeiro
tanto, parecem marcadas bem nitidamente ano da década de 50, estreava Gasparino
por aquelas duas vertentes acima aponta- Damata, com a Queda em Ascenção e que
das: a vertente formalista e a vertente socia- nos contos subsequentes de A sombra no
lizante. A primeira de predomínio lírico e a mar e Caminhos da danação, do ano passa-
segunda de tendência extrovertida. do, trazia à vertente social uma contribuição
A década de 50 vem sendo, portanto, original e forte, nesse horizonte marinho e
muito rica em contistas dos dois tipos. praieiro, no qual Xavier Marques, desde as
Um dos primeiros, senão o primeiro, suas Histórias simples de 1886 até as Terras
que bem originalmente marcou a tendência Mortas de 1936, com o seu momento cul-
lírica, quero crer que foi o sr. Paulo Novais, minante dos Praieiros de 1902, bem como
com os contos da Noite em sete de 1953 e Virgílio Várzea, haviam sido como que os
Burgo de 1954. Não foi à toa que estreara bandeirantes, no mesmo tipo de história
como poeta (Fios, 1950). A corrente lírica curta. Mas que distância entre a simplicida-
vem penetrando até hoje a sua obra e dan- de desses contistas e a complexibilidade dos
do ao seu estilo aquela marca inconfundível de hoje! Mesmo os que não se aventuram
que veio dar à prosa neomodernista, espe- pelos domínios da gramaticalidade metaló-
cialmente no domínio do conto, o sabor re- gica – que os filólogos de amanhã terão de
volucionário que teve a poesia de 1922 em acrescentar às clássicas divisões da gramá-
diante. A prosa neomodernista é que está tica, como os matemáticos de hoje tiveram
hoje, porventura, concorrendo de modo de acrescentar os domínios não euclidianos
mais original, para dar ao atual momento ou não arquimedianos às regiões clássicas da
literário uma feição não apenas de pós-Mo- geometria – mesmo esses são infinitamente
dernismo, mas realmente de começo de al- mais complexos que os seus predecessores.
guma coisa nova no curso de nossa história A literatura e as artes, em geral, não
literária, com “crise” ou sem crise, segundo podiam escapar ao enriquecimento, e às
as opiniões, como sempre divergentes ou extralimitações da ciência contemporânea,
antagônicas, dos próprios autores. O futu- especialmente das ciências físicas e da psico-
ro se encarregará de os reconciliar, mesmo logia. De modo que o novo estilo do conto
antes daquela “pontualidade” especial de neomodernista está perfeitamente na linha
que nos falava o velho Machado e de que não só dos novos rumos da poesia e da prosa
162 • Alceu de Amoroso Lima
1953 – José Saldanha Coelho, O Pátio Poderia acrescentar vários outros de que
– Otto Lara Resende, O lado humano tenho nota, durante o decênio. Mas o que
– Mauricio Caminha de Lacerda, ali fica já basta para o que pretendo. Essa
Contos provincianos enumeração seca, sucinta, incompleta, em
– Helena Silveira, Mulheres, que obras de valor desigual e de tendências
frequentemente... opostas se aproximam pelo denominador
– Miguel Salim, Alguma gente cronológico comum, vem apenas documen-
– S. Gomes de Matos, Contos da tar, como ficou dito, a afirmação de que o
grã-cidade
conto, como o teatro, é porventura a nota
– Almeida Filho, A Ilha
distintiva da prosa neomodernista.
1954 – Paulo Novais, Burgo
O que Daniel Rops, em artigo recente,
– Constantina Paleólogo,
refere do conto em França, aplica-se, perfei-
Os condenados
– Renard Perez, Os Sinos tamente, ao Brasil de nossos dias:
– Ricardo Ramos, Tempo de espera O lugar bizarro que o conto ocupa no gosto
do público francês é um motivo de constante
– Antônio Accioly Neto, A vida não
espanto. Não há semanário que não publique
é nossa
um, todos os números e os chefes de redação
– Luíz Canabrava, Sangue de Rosaura
passam uma boa parte do seu tempo à pro-
1955 – Breno Acioli, Maria Pudim
cura de bons contos. Realmente, o leitor tem
– Carlos David, O Diário de Segismundo
uma predileção especial por essas narrativas de
– Jones Rocha, Décima praga
uma página (in “Jornal do Brasil”, 17-VI-1956).
– Assis Brasil, Conto do cotidiano triste
O mesmo se poderia dizer dos Estados Unidos.
– Maurício Caminha de Lacerda,
Quatro histórias Mas, enquanto Rops informa que os
– Hélcio Alves de Araújo, Vida alegre editores franceses, ao contrário dos jornais
– Joaquim Gonçalo do Amarante, e revistas, publicam poucos livros de contos,
Pedrinho Tanoeiro vemos que aqui se passa o contrário, e tanto
– Valdomiro Autran Dourado, Três os suplementos como os editores da década
histórias na praia de 50 mostram como o gênero está em ple-
– Dilermando Duarte Cox, Massagana no fastígio e corresponde, provavelmente,
– Vasconcelos Maia, O cavalo e a rosa às inclinações da geração neomodernista e
–M aria Vanderlei Meneses,
ao seu estilo de vida e de linguagem mais
O pecado de Maria Quitéria
direto, mais complexo, mais “idiolético”,
– F. Magalhães Martins, O açude
mais adequado tanto ao Lirismo como ao
– Beatriz Rocha, o Parque de diversões
Realismo, tanto à angustia como ao cinismo
– Ivan Pedro Martins, Do campo
e da cidade da vida moderna.
– Josué Montelo, Fio da meada Eis porque, nesse panorama sumário e
– Gasparino Damata, A sombra do tão cheio de lacunas, da evolução do conto
mar caminhos da danação no Brasil, podemos dizer, concluindo, que
– José Condé, Os dias antigos em nenhum momento de sua história al-
1956 – Guimarães Rosa, Corpo de baile cançou ele o prestígio, a fecundidade e, sal-
(2 vols.) vo pontos culminantes como o de Machado
– Samuel Rawet, Contos de imigrante de Assis, a qualidade dos nossos dias.
Petit Trianon – Doado pelo governo francês em 1923.
Sede da Academia Brasileira de Letras,
Av. Presidente Wilson, 203
Castelo – Rio de Janeiro – RJ
PATRONOS, FUNDADORES E MEMBROS EFETIVOS
DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS
(Fundada em 20 de julho de 1897)
As sessões preparatórias para a criação da Academia Brasileira de Letras realizaram-se na sala de redação da
Revista Brasileira, fase III (1895-1899), sob a direção de José Veríssimo. Na primeira sessão, em 15 de dezembro
de 1896, foi aclamado presidente Machado de Assis. Outras sessões realizaram-se na redação da Revista, na
Travessa do Ouvidor, n.o 31, Rio de Janeiro. A primeira sessão plenária da Instituição realizou-se numa sala do
Pedagogium, na Rua do Passeio, em 20 de julho de 1897.