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Revista

Brasileira fa s e i x
• A B R I L - M AI O - J U N H O 2 0 1 9 •

a no i I • n . ° 9 9
A c a d e m i a B ra s i l e i ra R e v i s ta B ra s i l e i ra
d e L e t ra s 2 0 1 9
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Conselho Editorial
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Arnaldo Niskier
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Secchin, Antonio Cicero, Antônio Torres, Monique Cordeiro Figueiredo Mendes
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Cleonice Serôa da Motta Berardinelli, Victor Burton
Domício Proença Filho, Edmar Lisboa Bacha,
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Evaldo Cabral de Mello, Evanildo Cavalcante
Estúdio Castellani
Bechara, Fernando Henrique Cardoso,
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Padilha, Zuenir Ventura. ISSN 0103707-2

As colaborações são solicitadas.

Os artigos refletem exclusivamente a opinião dos autores, sendo eles também responsáveis
pelas exatidão das citações e referências bibliográficas de seus textos.
Transcrições feitas pela Secretaria Geral da ABL.

Esta Revista está disponível, em formato digital, no site www.academia.org.br/revistabrasileira.


Sumário
Cicero Sandroni
Apresentação 7

CI CLO C ADEIRA 41
Evanildo Cavalcante Bechara
Antenor Nascentes, um tardio na Cadeira 41 9
Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti
Luzia Homem, de Domingos Olympio: criação de um mito mulher 13
Hugo Almeida
Osman Lins, 40 anos depois, mais atual 19

CI CLO PATRIMÔNIO CU L T U RAL


Arno Wehling
Do patrimônio histórico e artístico ao patrimônio cultural 31
Joaquim Falcão
A constituição e o patrimônio cultural 35
Maria Cecilia Londres Fonseca
Uma breve trajetória do patrimônio cultural brasileiro: políticas, atores, perspectivas 43
Marcia Sant’Anna
Política urbana e patrimônio: monumento, documento e espetáculo 53
Ulpiano T. Bezerra de Menezes
As falsas dicotomias do patrimônio cultural 63

CI CLO PRESENÇ AS F U N DAME N TAIS


Evaldo Cabral de Mello
Nabuco: sua visão do passado brasileiro 75
Celso Lafer
Dimensões da atualidade do legado de Rui Barbosa 87

EN S AIO
Arnaldo Niskier
Castro Alves, o poeta do amor 97
Antonio Cicero
Poesia e música a partir de Homero 103
Simon Schwartzman
Os dilemas do novo ensino médio 113
Sandra Bagno
Da civilização cordial de Ribeiro Couto ao homem cordial de Sérgio Buarque de Holanda 119
José Carlos de Azeredo
Língua e educação – uma relação óbvia, uma interação mal compreendida 137

CONTO
Juarez Barroso
Doutora Isa 141

H OMENAGEM A Alceu de Amoroso L ima


Alceu de Amoroso Lima
A evolução do conto no Brasil 145
Esta a glória que fica, eleva, honra e consola.
Machado de Assis
Apresentação

Cicero Sandroni
Ocupante da Cadeira 6 na Academia Brasileira de Letras

O
panorama cultural e literário brasi- e também palestrante, encontram-se textos
leiro descortinado nesta edição da do jurista Joaquim Falcão, da socióloga Ma-
Revista Brasileira é múltiplo e su- ria Cecília Londres Fonseca, da arquiteta e
gere ampla visão dos temas apresentados. urbanista Marcia Sant’Anna e do professor
Do ciclo de palestras Cadeira 41, criado Ulpiano T. Bezerra de Menezes. E do ciclo
pela acadêmica Ana Maria Machado para Presenças Fundamentais, as conferências
lembrar aqueles que, embora com grande dos acadêmicos Evaldo Cabral de Melo e
destaque nas letras nacionais por vários Celso Lafer.
motivos e razões passaram ao largo da Aca- O leitor ainda encontrará nesta edição
demia Brasileira, publicamos textos/ensaios textos de Arnaldo Niskier, Antonio Cicero,
do professor Evanildo Bechara sobre Ante- Simon Schwartzman, José Carlos Azeredo e
nor Nascentes, filólogo e lexicógrafo de vas- Sandra Bagno, e também o resgate do con-
ta obra; da socióloga Maria Laura Viveiros to do escritor cearense Juarez Barroso.
de Castro Cavalcanti sobre o romance Luzia E em destaque especial para a memória
Homem do romancista Domingos Olympio; literária, o texto de Alceu Amoroso Lima,
e do jornalista Hugo Almeida estudo sobre “A evolução do conto no Brasil”. Alceu,
o romancista Osman Lins, quando de seus sempre é bom lembrar, segundo Otto Maria
primeiros passos na literatura. Carpeaux exerceu “incomensurável influên-
Do Ciclo Patrimônio Cultural Brasileiro, cia nas letras brasileiras”.
coordenado pelo historiador Arno Wehling Boa leitura.
CICLO CADEIRA 41

Antenor Nascentes, um
tardio na Cadeira 41

Evanildo Cavalcante Bechara


Ocupante da Cadeira 33 na Academia Brasileira de Letras

Palavras introdutórias Palestra


Boa tarde a todos os presentes. Boa tar- O Professor Antenor Nascentes é da-
de aos nossos internautas, que nos acom­ quelas pessoas, como dizia Capistrano de
panham on-line. Um boa-tarde todo es- Abreu a respeito do Said Ali, “que não se
pecial a dois representantes da família do comparam; é das pessoas que se separam”.
professor Antenor Nascentes: um neto e Realmente, a produção científica e didática
uma bisneta, e uma comissão de diretores do Professor Nascentes é uma atividade ex-
do Colégio Pedro II tendo à frente a pro- traordinária, porque seguindo o conselho
fessora Vera Rodrigues, que vieram home- de Goethe, tinha um olho voltado para a
nagear esse extraordinário homem de uma ciência e o outro para a vida. De modo que
família pobre, que chegou a ocupar os pos- ele era um estudioso de língua portuguesa
tos mais altos dos estudos linguísticos em que nunca ficou recluso ao gabinete, nem
nosso país, e de reconhecimento interna- tampouco assumiu a posição dogmática
cional por algumas das suas obras dentro dos gramáticos que, de palmatória na mão,
do campo da Romanística. estavam atrás dos que colocavam mal os
Quero lembrar às pessoas que não estão pronomes das regências verbais trocadas. O
ligadas aos estudos românicos que a Filolo- nosso Nascentes era um pesquisador nutri-
gia Românica é uma disciplina científica que do de ciência e voltado para a vida e para a
se ocupa das línguas e das literaturas que vida da linguagem, que, com suas variações,
representam a continuação do Latim. São é o espelho da vida do próprio ser falante.
as chamadas línguas românicas, ou neo­ Ele sempre dizia: “Eu procuro os cami-
latinas. O Professor Antenor Nascentes foi, nhos novos, eu abro os caminhos dentro
no início da nossa universidade, o primeiro das minhas possibilidades. Esta primeira
professor dessa disciplina, ao lado de mes- abertura de caminho é uma abertura ainda
tres franceses que vieram inaugurar, entre muito inocente, mas com todo o vigor da
nós, este ramo da ciência linguística. minha inteligência e da minha capacidade
Conferência pronunciada na Academia Brasileira de Letras em 2 de agosto de 2018.
10  •  Evanildo Cavalcante Bechara

de amar as coisas, tenho certeza de que era ajudar aqueles que precisavam ser aju-
este primeiro caminho percorrido vai ter as dados. Os trabalhos dele revelam isso.
suas falhas. Mas ele, se não for aberto por A turma de professores do Colégio Pe-
mim, não encontrará sucessores meus que dro II daquela época era constituída de no-
venham aplainar o terreno, corrigir as falhas mes que poderiam ser professores univer-
de observação e apresentar este caminho sitários em qualquer universidade europeia
como digno de ser estudado.” Ele dizia es- ou americana. Eram pessoas de grande ta-
tas palavras e acentuava com ênfase entre lento, e a turma teve, somente para exem-
dentes: “se as dificuldades existem, elas de- plificar, como professor de Grego, Ramiz
vem ser vencidas”. Galvão; como professor de Alemão, Manuel
O Professor Nascentes só chegou ao Co- Said Ali; como professores de Língua Portu-
légio Pedro II porque sua professora primá- guesa, Fausto Barreto, Carlos de Laet e Silva
ria sentiu no jovem aquelas centelhas de in- Ramos; como professor de História, João
teligência e achou que ele, pobre, precisava Ribeiro e como professor de Literatura, José
de um empurrão para poder abrir a estrada Veríssimo. Para enfronhar-se na bibliogra-
vitoriosa da vida. Foi o que aconteceu. Fez fia técnica dos textos de Teoria Linguística,
o primário com essa professora, que lhe pa- Antenor Nascentes exibia um bom conhe-
gou a matrícula para fazer do admissão ao cimento de línguas estrangeiras, pois fala-
primeiro ano ginasial da época. Ele corres- va perfeitamente o francês e o espanhol, e
pondeu às expectativas da sua professora, traduzia, igualmente, o inglês e o alemão,
e, durante os cinco anos do curso, esteve além de boa formação em latim e grego.
no panteon dos primeiros lugares da tur- Enquanto o Professor Nascentes se for-
ma, na companhia de ilustres colegas como mou em Direito, Sousa da Silveira concluiu
Manuel Bandeira, Sousa da Silveira e Artur Engenharia e pertenceu ao primeiro grupo
Moses. de profissionais que traçou as novas linhas
Terminado o curso, conta a lenda que para o subúrbio do Rio de Janeiro.
optou por fazer a faculdade de Direito por- Desde cedo Nascentes começou a publi-
que estava instalada nas dependências do car trabalhos na área do Direito, como por
Colégio Pedro II, para não se afastar daque- exemplo, o Resumo Histórico da Legislação
la casa de ensino que ofereceu a ele e aos Penal Brasileira, saído em A Época, nos nú-
seus companheiros tudo o que aprendeu meros de setembro e outubro de 1906, e
de melhor para a vida. De modo que Nas- as Ligeiras Notas sobre Redação Oficial, que
centes fez a Faculdade de Direito. Era um em 1941 atingiram a 5.a edição pela Livraria
homem preocupado em abrir os caminhos Francisco Alves. Sousa da Silveira, depois de
àqueles que precisavam de uma orientação. sua investida na área de engenharia, se trans­
O Professor Nascentes, antes de escrever so- feriu para o magistério de Língua Portugue-
bre língua portuguesa, fez alguns trabalhos sa. Por essa época, pediu orientações ao Pro-
para orientar as pessoas que precisavam de fessor Said Ali, que lhe recomendou a leitura
informações jurídicas, e escreveu um pe- do livro clássico de Ferdinand de Saussure.
queno manual para tirar dúvidas sobre es- Nascentes também se voltou para o ma-
ses assuntos. Sua preocupação permanente gistério de Língua Portuguesa, pretendendo
A n t e n o r N a sce n t e s , u m ta r d i o n a C a d e i r a 41   •  11

um dia ingressar no seu Colégio Pedro II. À frente do ensino de Língua Portugue-
No horizonte próximo do jovem apareceu sa no Colégio Pedro II, Antenor Nascentes
a oportunidade de exercer atividade na ca- teve oportunidade de escrever muitas obras
deira de língua grega, idioma para o qual sobre a disciplina, entre as quais cabe espe-
já antes apresentara traduções de Menipo cial lugar a série em cinco volumes intitu-
(de Luciano), publicado em A Época em ju- lada Idioma Nacional, iniciada em 1926 e
nho de 1908. Preparou-se para o concurso terminada em 1929 com as Noções de Esti-
impondo-se à tarefa de traduzir diariamen- lística e Literatura, que mais tarde passou a
te 150 versos da Ilíada e da Odisseia. Frus- constituir o 5.o volume de O Idioma Nacio-
trado o sonho, surgiu-lhe a oportunidade nal. Cumpre lembrar que o 4.o volume da
de prestar concurso para a cadeira de Es- série compreendia uma excelente gramática
panhol, para o que apresentou a tese de histórica.
concurso Um ensaio de fonética diferencial Alargando o campo de conhecimento
luso-castelhana, em 1919, saindo vitorioso de língua portuguesa aos seus alunos, em
do pleito ao qual concorreu com o profes- 1930 prepara uma edição escolar de Os
sor David Perez. Lusíadas e imagina constituir uma equipe
Porém, a grande meta dele era a cadeira de professores para dotar o português de
de Língua Portuguesa na qual tinham bri- um novo Dicionário Etimológico. Frustra-
lhado os seus antigos mestres. Ocorrendo a da a ideia da equipe, ele mesmo, sozinho,
vaga por esse mesmo tempo em virtude da tomou sobre os seus ombros essa hercúlea
aposentadoria de Carlos de Laet, como Ca- tarefa, e depois de dois anos de intenso
tedrático de Língua Portuguesa, Nascentes trabalho, consegue editar seu Dicionário
pleiteou e conseguiu a transferência para Etimológico da Língua Portuguesa, tomo I
essa nova Cátedra, o que lhe foi concedido. (primeira e única edição): Nomes Comuns,
Na atividade de ensino, escreveu livros em 1932, epopeia que lhe custou grande
que se tornaram clássicos na bibliografia de prejuízo na visão. Este Dicionário Etimoló-
Língua Portuguesa, entre os quais cabe citar gico lhe valeu muitas resenhas elogiosas
Método Prático de Análise Lógica (depois no mundo científico, mas também muitas
substituído por Método Prático de Análise críticas, porque se servira da segunda edi-
sintática, 1920); Método Prático de análise ção do Romanisches Etymologisches Wör-
gramatical (1921); Apostilas de português terbuch, de Meyer-Lübke, que lhe prefaciou
(1923). a obra. Em 1955 saiu uma segunda tiragem
Em 1922 o Professor Nascentes envereda da primeira edição para fazer companhia ao
para o campo de investigação da geografia Tomo II dedicado aos Nomes próprios, saído
linguística publicando, em 1922, O Linguajar em 1952.
Carioca, não só estimulado pela saída no ano Na década de 40, a convite de Afrânio
anterior de O Dialeto Caipira, de Amadeu Peixoto, então Presidente da ABL, o Pro-
Amaral, mas também para responder a per- fessor Nascentes preparou o Dicionário da
guntas do grande romanista alemão Meyer- Língua Portuguesa da Academia Brasilei-
-Lübke, que lhe pedira por carta informações ra de Letras, com a colaboração de Olavo
sobre o português do Brasil. Nascentes e Celso Cunha. Este Dicionário
12  •  Evanildo Cavalcante Bechara

em fichas ficou aguardando oportunidade Fraseologia Brasileira (1945), o Léxico de No-


de publicação, que só foi possível na déca- menclatura Gramatical (1946), o Dicionário
da de 60, graças à interveniência de Josué Básico do Português do Brasil (1949), A Gíria
Montello, que conseguiu que o governo de Brasileira (1953), o Dicionário de Sinônimos
Juscelino Kubitschek publicasse a obra em (o melhor do gênero entre nós) (1957). Cabe
quatro volumes pela Imprensa Nacional. também a Nascentes ser o primeiro profes-
Mesmo tratando de velhos assuntos, sor de Filologia Românica a escrever Elemen-
como na confecção do seu livro O Problema tos de Filologia Românica (1954).
da Regência, saído em 1944, trouxe o autor É dever dos estudos linguísticos no Brasil
o aspecto do que os gramáticos ingleses cha- reunir mais de uma centena de artigos do
mam de to words verbs, assunto que abre Professor Antenor Nascentes, publicados
novos horizontes no campo da regência, em jornais e revistas nacionais e estran-
uma vez que a preposição funciona como geiros, como justa homenagem à profícua
um prefixo que muda ou normatiza o senti- atividade dele nos campos de sua especia-
do do verbo, o que fez Nascentes chamar ao lidade. A Academia Brasileira de Letras lhe
fenômeno de posvérbio, como por exemplo, prestou homenagem publicando alguns
“to look” é “olhar”, mas seu disser “to look desses estudos na coletânea intitulada Es-
for” já não é mais “olhar”, é “procurar”. tudos Filológicos, organizada pelo Professor
Os estilistas da língua, escritores que Raimundo Barbadinho Neto, para iniciar a
sabem extrair todas as suas virtudes e criar Série Antonio de Morais Silva, que inclui es-
nelas outras potencialidades, trabalham tudos de língua e linguística do português.
com isso. Por exemplo, “arrancar a espa- Onde o Professor Nascentes colocava o
da” (tirá-la da bainha) e “arrancar da es- dedo trazia, não só a ciência, mas também
pada” (“arrancar de” é apenas o gesto de as potencialidades que a língua apresenta-
ameaçar, como fez a nobreza diante do rei va, ou que a Ciência ajudava a ver o que o
que estava já condoído das lágrimas de Inez normal das pessoas não vê nesse fabuloso
de Castro.). Camões disse: “Arrancam da tesouro que é uma língua materna.
espada de aço fino”, pois um nobre não O Professor Antenor Nascentes é um
podia tirar a espada, em sinal de ameaça, merecedor desta Cadeira 41. É uma hon-
diante do rei. Isto é, a nobreza estava di- ra, é um exemplo para os brasileiros, de
zendo que não havia perdão para Inez de um homem pobre, que atingiu as maiores
Castro pela sua ligação com D. Pedro. Não e melhores posições acadêmicas. Durante
havia perdão. Nós usamos “cumprir o de- muito tempo, só dois autores brasileiros
ver”, que é cumprir o dever, mas “cumprir eram lidos na Europa: Nascentes e Serafim
com o dever” enfatiza mais a necessidade da Silva Neto. Mas o Nascentes era o nome
de assim proceder. que marcou a Filologia portuguesa da Lín-
O Professor Nascentes, como bom lexi- gua Portuguesa praticada no Brasil.
cógrafo, interessou-se também por outros Portanto, este ciclo começa muito alvis-
aspectos da disciplina, e nos presenteou sareiro. Começa com um homem que não
com o Dicionário de Dúvidas e Dificuldades foi só um homem notável, foi um homem
do Idioma Nacional (1941), o Tesouro da notabilíssimo.
Luzia Homem, de Domingos Olympio:
criação de um mito mulher

Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti


Professora Titular de Antropologia no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Pesquisadora do CNPq

Taciturna e forte, solitária e boa, (...) Teresinha de Crapiúna, Luzia é por ele ataca-
a Luzia Homem é dos tipos mais complexos da em tentativa de estupro. Na luta ela tom-
e misteriosos de nossa ficção (...). ba mortalmente esfaqueada, tendo na mão
L ucia M iguel P ereira crispada um dos olhos de Crapiúna que, ur-
rando de dor, despenca num precipício.

L
uzia Homem conta a história de Lu- Publicado em edição do autor no Rio de
zia – a cabocla que chega a Sobral, Janeiro em 1903, o romance foi calorosa-
Ceará, na enxurrada de retirantes que mente saudado pela imprensa. Advogado,
atravessam a cidade em busca do mar, na jornalista literário e político, republicano que
grande seca de 1877-79. Ela traz consigo fora ativo abolicionista, Domingos Olympio
Josefa, a mãe enferma e, ao trabalhar po- Braga Cavalcanti participava ativamente da
tente e forte na construção da nova cadeia vida política e cultural do país. Nascido em
local, ela se torna, no dizer do coro popular Sobral, Ceará, em 1850, formara-se bacha-
de vozes femininas maledicentes, a macho- rel em direito na Faculdade do Recife em
-fêmea, a virago. Dissonante dessas vozes, 1873. De volta a Sobral naquele mesmo
Teresinha, a moça branca prostituída, a de- ano, exercera o cargo de promotor público
fende e torna-se sua amiga. Luzia é dese- até setembro 1878, quando se mudou para
jada por dois homens – Crapiúna, o asse- Belém do Pará até vir para o Rio de Janeiro
diador, segurança da obra, e o respeitoso em 1891. Três anos depois da publicação
Alexandre, que lhe propõe casamento. A do romance, sua morte súbita em outubro
história de Luzia é também a da descoberta de 1906 provocou comoção.
de uma sexualidade que permanecerá irre- Em homenagem póstuma no último
alizada. Quando o apaixonado Alexandre número do periódico semanal Os Annaes,1
se liberta da prisão injusta arquitetada pelo Olavo Bilac asseverava ser Luzia Homem:
diabólico Crapiúna, e Luzia enfim se deci- “um tão belo e ruidoso triunfo, que esse
de pelo casamento que ele lhe oferece, ela 1Criado e dirigido por Domingos Olympio em 1904, o
será tragicamente assassinada. Ao defender periódico publicou 102 números.
Conferência pronunciada na Academia Brasileira de Letras em 9 de agosto de 2018.
14  •  Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti

livro forte, humano e profundamente ‘na- da terrível seca que assolou o Ceará. A ci-
cional’ deu ao autor, em todo Brasil, uma dade de Sobral transforma-se em ponto de
celebridade que perdurará, enquanto for- parada dos retirantes cujo movimento em
mos um povo, e enquanto tivermos lite- busca do mar está suspenso: “A população
ratura”. As tentativas de ingresso de Do- da cidade triplicava (...). Casas de taipas,
mingos Olympio na Academia Brasileira de palhoças, latadas, ranchos e abarracamen-
Letras, contudo, haviam sido infrutíferas e tos do subúrbio, estavam repletos, a trans-
o romance caiu no esquecimento até sua bordarem (...)”.5 O romance certamente
reedição em 1929, prefaciada por Gustavo traz um sensível testemunho desse fato
Barroso. O interesse pelo livro retornou e, a histórico, pois até setembro do mesmo ano
partir dos anos 1940, Luzia Homem ingres- Domingos Olympio residia na cidade, onde
sou no panteão dos clássicos da literatura atuava como promotor público. Sua inten-
brasileira. sa vivência revela-se em muitos detalhes e
Sua força dramática e sua singularidade episódios do livro, que desenha uma socie-
têm desafiado a crítica. Gustavo Barroso, ao dade econômica e culturalmente heterogê-
considerá-lo “uma obra regionalista verda- nea que luta por se organizar e sobreviver à
deira e bela”, já indicava sua “demasiada tragédia da seca.6
personalidade”.2 Lúcia Miguel Pereira, ao Tudo isso, entretanto, está posto a ser-
considerá-lo “uma das melhores manifesta- viço da prosa de ficção. No romance, o so-
ções [do regionalismo] entre nós”, chamou frimento humano e o da terra seca e estéril
atenção para seus aspectos simbolistas e contrastam todo tempo com a intensa be-
universalistas.3 Carlos Nejar, por sua vez, viu leza do céu diurno ou noturno. Esse con-
no romance dimensões míticas,4 “planos da traste entre a indiferente beleza do “alto”
imaginação que se cruzam, enriquecendo e o sofrimento do “baixo” (a terra com sua
seus significados (...)”. Luzia Homem insiste gente) instaura a dimensão mítica7 e o fun-
em sobrepor-se a suas múltiplas leituras e do trágico de Luzia Homem. Entre a grande
convida o leitor de qualquer tempo a rever distância que aparta céu e terra, emerge o
mundo humano, diverso e complicado do
preconceitos, a abrir o horizonte de suas re-
espaço social próprio da narrativa. Como
ferências culturais. A leitura aqui proposta
que acompanhando um olhar que chega do
enfatiza a renovadora abordagem do am-
alto, o leitor pousa a meio caminho:
biente popular retratado no romance e a
“O morro do Curral do Açougue emergia
percuciente reflexão acerca do sexo-gênero
em suave declive da campina ondulada. Es-
de Luzia, a fascinante personagem central. corchado, indigente de arvoredo, o cômoro,
A narrativa de Luzia Homem transcorre enegrecido pelo sangue de reses sem conto,
no ano de 1878, quando do agravamento deixara de ser o sítio sinistro do matadouro e

2 BARROSO, Gustavo, “Prefácio”. Em Domingos Olym- 5 OLYMPIO, Domingos. Luzia Homem. São Paulo: Três

pio, Luzia Homem, Rio de Janeiro: Editor J. Castilho, Livros e Fascículos, 1984. p.35.
1929. pp. 4-16. 6 Ver FREITAS, Nilson Almino, de. “A ‘Macho e fêmea’ e
3 PEREIRA, Lucia Miguel, em Prosa de Ficção. Belo Hori- a família: Luzia-Homem e o sertão cearense.” Revista de
zonte: Ed. Itatiaia, 1952. p. 205. Ciências Sociais. Vol. 38, n.2. 2007. pp. 26-39.
4 NEJAR, Carlos. História da Literatura Brasileira. Ed. 7 Ver LEITE JR., José. O pictórico em Luzia Homem. For-

Unisul: 2014. pp. 228-229. taleza: Links Artes Gráficas e Editora, 1997 .
L uz i a H o m e m , de D o mi n g os O lym p i o : c r i a ç ã o d e u m m i to m u l h e r   •  15

a pousada predileta de bandos de urubutingas esclarece: “Era Luzia, conduzindo para a


e camirangas vorazes. Bateram-se os vastos obra, arrumados sobre uma tábua, cinquen-
currais (...) Ali, no sítio de morte, fervilhavam, ta tijolos”, apenas para introduzir as vozes
então, em ruidosa diligencia, legiões de ope-
populares anônimas que lhe constroem a
rários construindo a penitenciária de Sobral.”8
fama: “Viram-na outros levar, firme sobre a
A obra da nova cadeia – que de fato cabeça, uma enorme jarra d’água, que va-
ocorria em 1878 como parte dos esforços lia três potes (...). De outra feita, removera
de acolhimento aos retirantes empreendi- e assentara no lugar próprio, a soleira de
dos pela Comissão de Socorros – torna-se granito da porta principal da prisão (...)”.11
imediatamente simbólica a condensar os as- Também a dupla valência de Luzia emer-
pectos contraditórios da condição humana ge, sob a forma do preconceito, em meio às
enfocada na conduta cheia de nuances dos vozes que a admiram e invejam: a macho-
personagens. Ali se articulam: a tragédia da -fêmea, “uma senhora dona” que “nem
seca e o trabalho a tentar mitigá-la; o povo parece mulher fêmea”, a “Luzia-Homem”.
e a elite; a vulnerabilidade e o sofrimento; a Luzia masculina, pois desempenhava com
repulsa e o acolhimento. sucesso tarefas consideradas masculinas;
Ao longo da narrativa, escrita literária e Luzia feminina, pois seus “músculos de
oralidade popular aproximam-se e enlaçam- aço” escondiam-se “sob formas esbeltas e
-se. Há, de um lado, o francês Paul, que “en- graciosas das morenas moças do sertão” e
calhara em Sobral” e “costumava a vaguear conviviam com recato e cuidados femininos.
pelos ranchos dos retirantes, colhendo com Em torno de sua beleza e força, logo
apurada e firme observação, documentos da emerge o tema central do desejo sexual e
vida do povo”.9 De outro, há Raulino Uchoa, das possíveis condutas sociais que o ela-
“sertanejo hercúleo e afamado, prodigioso boram. A voz pungente de Teresinha – a
de destreza, que chibateava em pitorescas “moça branca” que anda pela vida já se faz
narrativas”.10 Se Raulino sintetiza a voz dos ouvir no segundo capítulo: “Quem me dera
narradores populares que pontuam a trama, ser como Luzia, moça de respeito e vergo-
Domingos Olympio tinha, ele também, qual nha”. Comentário rebatido pela “roliça e
o francês Paul, seu caderno de notas em que quente cabocla de dentes agudos”, a Ro-
registrou os muitos “causos” da oralidade mana, capitã da “malta de vadias”: “Quem
popular tão presente em sua escrita. perdeu tudo isso para ela achar?”.
A própria Luzia, o dínamo da história, A voz diabólica de Crapiúna já nos diz:
emerge nesse enlace. Em visita às obras da “Deixem estar, ela há de ser como as ou-
cadeia, Paul escrevera, com assombro, em tras”. Mas é ele mesmo quem nos introduz
seu caderno de notas: “Passou por mim em contraponto o rival, o “Lixandre” que
uma mulher extraordinária, carregando se afeiçoara a Luzia: “aquele alvarinho que
uma parede na cabeça”. E o narrador nos (...) não é qualidade de homem como eu”.
Crapiúna já estava a “fazer roda” a Luzia,
8 Parágrafo de abertura do romance. Domingos Olym- com “(...) olhares e gestos de desejos mal
pio. op. cit.
9 Idem. Ibidem, p. 27.
10 Idem. Ibidem, p.80 11 Idem. Ibidem. p. 27.
16  •  Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti

sofreados”. A ponto de levá-la a queixar-se e o cuidar. Alexandre, que já se dispusera a


ao administrador da obra, e obter o deslo- defendê-la de Crapiúna, surpreende-a com
camento “daquele homem de maus bofes” uma proposta de casamento que fica sem
para a guarda da antiga prisão. “Contor- resposta. Luzia oculta dele que vinha rece-
cendo-se no martírio de onça acuada, (...) bendo cartas e mesmo serenatas de Crapiú­
[Crapiúna] estremecia à suspeita de um rival na. Ela tivera, e continuará a ter, a “fraqueza”
venturoso na disputa da cobiçada presa”.12 de lê-las, e murmura para si: “Este malvado
A tensão propulsora da trama está pos- me há de desgraçar ...”.14 A desgraça é “o
ta e seu desenrolar convidará todo tempo o vírus pecaminoso, que empestava o am-
leitor a deslocar e modificar seu ajuizamen- biente” das moças de sua idade, ao qual
to acerca dos personagens. Isso é feito de cedera Teresinha. A vulnerabilidade de Luzia
dois modos. evidencia-se: seu núcleo doméstico é dema-
No caso de Luzia, que age, conversa, siado frágil – a mãe doente e a jovem filha
escuta e reflete, a voz do narrador primá- solteira num ambiente de agruras – não fora
rio une-se muitas vezes à dela e faz emergir a amizade do fogoso Raulino e o amparo do
um ponto de vista feminino, problemático e ponderado Alexandre. A recusa de Luzia ao
singular, desde o qual, afinal, toda a história destino comum entre as jovens companhei-
nos é contada. No caso de Teresinha e de ras de infortúnio alimentava, também, sua
Raulino, os principais narradores internos, fama máscula. A essa altura, porém, já sabe-
há o recurso direto ao linguajar popular ar- mos que, em termos de sexo biológico, Luzia
guto e divertido que alarga e torna cultu- é mulher. Teresinha, numa madrugada quen-
ralmente plural a experiência civilizatória.13 te, antes do alvorecer, surpreendera Luzia a
Detenhamo-nos em Teresinha, também ela banhar-se com cuias em plena nudez, em
uma grande contadora de “causos”. uma cacimba aberta no leito de um rio, fora
Luzia e Teresinha complementam-se ao dos caminhos mais frequentados pelo povo.
longo da trama. São a saúde e a juventude Teresinha “não despregava os olhos dela, em
êxtase de curiosidade” e torna-se sua “de-
feminina em oposição à doença e velhice de
fensora”: “Porque vi com meus olhos que é
Josefa. Mas, ao passo que Luzia, a bela ca-
uma mulher como eu, e que mulherão!”15
bocla, tem o seu corpo intato e o usa para
A cena introduz a dinâmica sensual da
o trabalho másculo, Teresinha, a delgada
sincera amizade das duas, o que fez com que
moça branca, prostituiu-se para sobreviver.
Wilson Martins, erroneamente a meu juízo,
Com o correr da trama Luzia se sensualiza e
considerasse Luzia Homem “o romance da
Teresinha se purifica.
lesbiana que se ignorava”.16 Fato é que,
No capítulo 3, vemos Luzia em sua casa,
com Teresinha, Luzia passa a ter uma com-
lá para as bandas da Lagoa do Junco. Afas-
tada da construção da nova cadeia por con- panheira de sua idade com quem conversar.
ta do agravamento da doença da mãe, Luzia Na falta do amparo masculino, ela “passa a
está posta em territórios femininos: a casa fazer parte da família” cuidando de Josefa
14 OLYMPIO, Domingos, op. cit. p. 57.
12 Idem. Ibidem. pp. 28-33. 15 Idem. Ibidem pp. 39-41.
13 Ver SUSSEKIND, Flora. Tal Brasil, qual romance? Rio 16 MARTINS, Wilson. História da Inteligência Brasileira.

de Janeiro: Achiamé, 1984. Vol.5. São Paulo: Cultrix, 1977-1978. p. 234.


L uz i a H o m e m , de D o mi n g os O lym p i o : c r i a ç ã o d e u m m i to m u l h e r   •  17

nas ausências de Luzia. Teresinha – a “arguta resposta imediata, aflita entre os cuidados
rapariga, afeita ao vício e ao crime”, dorme exigidos pela doença da mãe e o temor de
próxima à rede de Luzia “estirada na esteira, perdê-la, premida entre o desamparo trazi-
seminua, num abandono ingênuo, debuxan- do pela prisão de Alexandre e o obsessivo
do-se-lhe as formas graciosas”.17 A intimida- assédio de Crapiúna, Luzia duvida consigo
de compartilhada entre elas, entretanto, não mesma das boas intenções matrimoniais de
se sexualiza, é sobretudo sensual. Permite Alexandre. Desconfia da ideia do matrimô-
que emerja em Luzia uma sexualidade em nio como uma opção de proteção para a
estado de latência, quando a fisicalidade do mulher naquele ambiente social. Afinal, ele
desejo não traz necessariamente a definição poderia “(...) como tantos outros abando-
de sua orientação sexual. ná-la, infligir-lhe a objeção de ser preterida
A sexualidade de Luzia irrompe em es- por outra mulher, crime que os homens
tado puro – para ela mesma e para os ou- cometem como um direito do sexo (...)”.
tros – no capítulo 7, quando, ao adentrar E recusa esse lugar imaginado do feminino,
o armazém em defesa de Alexandre, ela sentia-se: “incapaz de amar; carecia-lhe (...)
expõe-se perante o promotor, os delegados essa languidez atributiva da função da mu-
e a Comissão de Socorros: “Meu corpo não lher no amor, a passividade pudica, ou avil-
tem pechas, nem pecados a minh’alma”, tante da fêmea submissa ao macho, forte
ela diz com “as roupas em desalinho (...) o e dominador, irresistível (...) Não, não fora
cabeção de renda emoldurando o seio nu e destinada à submissão (...). Seu destino era
palpitante (...)”. Dando-se conta do efeito penar no trabalho, fora marcada com o es-
produzido ela se recompõe, e apenas então tigma varonil (....)”.19
se apresenta: “Eu me chamo Luzia Maria Porém, tudo se modifica quando Luzia
da Conceição. Meu pai, que Deus haja, era pergunta para Teresinha: “Queria você mui-
vaqueiro das Ipueiras, do major Pedro Ribei- to bem ao Cazuza?”. Por Cazuza, Teresinha
ro...”. E todos se extasiam “com a força e a deixara a família. Com a morte dele, ficara
beleza da admirável criatura”.18 “rolando à toa pelo mundo” até encontrar
Numa conversa noturna com Teresinha, um homem violento, que a surrava, mas
narrada nos caps. 11 e 12, Luzia reflete “que para falar a verdade não era de todo
sobre o destino que desejaria dar a sua se- mau”, afinal “maridos, casados na igre-
xualidade, que começa a aceitar. Teresinha ja, batem nas mulheres, quando mais...”.
chegara acabrunhada do responsório de A história do fim desse amante violento e
Santo Antônio, com o que buscara a reve- apaixonado narrada por Teresinha é de ex-
lação milagrosa do verdadeiro culpado do traordinária vivacidade e a escuta de Luzia é
roubo do armazém ao qual se devia a injus- transformadora.20 No capítulo seguinte, Lu-
ta prisão de Alexandre. Seu transe não lhe zia revê preconceitos. Embora julgue mons-
permitira discernir com clareza os vultos vi- truosa “essa escravidão da mulher desbriada
sualizados. As duas conversam no alpendre ao senhor do seu corpo, essa passividade de
da casa. Frustrada na expectativa de uma animal, de coisa a mudar de dono” vê força
17 OLYMPIO, Domingos, op. cit., pp 70-77. 19 Idem. Ibidem pp. 98, 99.
18 Idem. Ibidem p. 65. 20 Idem. Ibidem pp. 101-107.
18  •  Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti

e beleza em Teresinha.21 E Luzia – Alexan- Teresinha no atalho que indica para Luzia:
dre na prisão e Crapiúna à espreita – retorna “Se apertar o passo ainda a pega”. O ata-
ao trabalho “em plena florescência suntuo- lho desce por uma grota e Luzia ouve o gri-
sa”, e vê-se encaminhada para a oficina das to de Crapiúna que, tendo fugido da prisão,
costureiras. Luzia havia perdido “a energia ataca Teresinha: “Foi o diabo que te atra-
inflexível, que a preservara até então, como vessou o meu caminho. É a última vez que
invulnerável couraça”.22 Ela ainda oscila, en- me empatas, peitica do inferno!” Luzia se
tretanto, entre o destino de Teresinha, trazi- interpõe: “Pensas que tenho medo de Luzia
do pela voz do tentador demônio Crapiúna, Homem? Desgraça pouca é bobage”, diz
e a escolha de Alexandre como companheiro Crapiúna “ébrio de luxúria (..)” ao atacá-la.
de vida. Mas então Teresinha descobre ser Na batalha em defesa de sua honra, Luzia
Crapiúna o verdadeiro culpado do crime crava-lhe as unhas no rosto, e Crapiúna, a
imputado a Alexandre e ele é preso com faca em seu peito. Luzia jaz seminua, tendo
a evidência do roubo. Teresinha, radiante, na mão crispada um dos olhos de Crapiúna
responde a Luzia que a chama de anjo com que, urrando de dor, despenca em precipí-
uma dança frenética: “Que anjo, que nada! cio próximo. Raulino, que não chega a tem-
... Sabe o que sou!? Mulher e bem mulher, po de socorrê-la, encerra o romance com a
de cabelo na venta. (...) Viva o glorioso Santo unção dos moribundos: “Seja contigo, Je-
Antonio! Vivô, vivo!”.23 sus, Maria e José!”. Raulino, o contador de
Superados os melindres, Alexandre e Lu- causos extraordinários, como extraordinária
zia se reencontram. Numa explosão de ter- é a história de Luzia Homem.25
nura, ele lhe estende “os braços para ampa- Luzia morre a meia altura entre o vale
rá-la, porque ela vacilava”.24 Alexandre é a do rio Acaracu, onde se situa Sobral e o
ordem, entendida como a possibilidade de cume da Serra da Meruoca, perto de onde
diálogo entre homem e mulher, num amor iniciaria sua nova vida de mulher sexuada
que abarca a sexualidade heteroafetiva. De dentro do casamento. Sua sexualidade mor-
sua parte Teresinha reencontra, em verda- re com ela, irrealizada.
deira redenção, sua família também retiran- Por essa razão, sempre que reabrimos as
te em busca de novo pouso. Rumam todos, páginas de Luzia Homem, a Luzia que vive
finalmente, para a serra da Meruoca a duas dentro delas, é para sempre as muitas pos-
léguas de Sobral: a família de Teresinha, Jo- sibilidades de ser mulher por ela experimen-
sefa, e Luzia que vai ao encontro de Alexan- tadas: a máscula virago; a mulher insubmis-
dre, que foi na frente para arrumar a nova sa ao jugo sexual masculino dentro e fora
casa. O amigo Raulino, com mais seis pos- do casamento; aquela que teme a atração
santes rapazes, vai levando Josefa na rede. que exerce sobre (e sente por) o assediador;
No sopé da montanha, o séquito separa- que experimenta a possibilidade do amor
-se, Raulino e a turma seguem até a “Cova com Alexandre. Incerta em sua orientação,
da onça”. Raulino enxerga a pegada de hesitante entre a pura atração e o afeto
amoroso, Luzia é a sexualidade em processo
21 Idem. Ibidem p. 110.
22 Idem. Ibidem p. 134.
de descoberta. Luzia-homem, mito-mulher.
23 Idem. Ibidem pp. 170,171.
24 Idem. Ibidem p. 232 25 Idem. Ibidem pp. 245-248.
Osman Lins, 40 anos depois,
mais atual

Hugo Almeida
Escritor e jornalista. Doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP)

1. P
 ôr do sol e primeiros Aos nove anos, escreveu uma redação
com o título de “Regresso”, em harmoniosa
passos
caligrafia, e que começa assim:
Osman Lins partiu em 8 de julho de “Ao regressarem naquele dia da escola,
1978, três dias depois de ter completado Paulo e Donato encontraram um telegrama do
54 anos. Escrevia um novo romance, que a Dr. Silva Ramos comunicando que, em compa-
doença o impediu de terminar. Em um de nhia da família, se embarcara no expresso que
devia chegar a S. Paulo às 7 horas da noite.
seus últimos textos, Marcha fúnebre, caso
A notícia encheu-os de intensa alegria.”
especial para TV, há uma oração premonitó-
ria: “Quero um lugar permanente, na terra Nove anos, um menino de nove anos.
que amei e onde passei uma jornada tão Filho de um alfaiate de nome grego,
breve que, quando pensei que o dia come- Teófanes, que significa “manifestação divi-
çava, a noite já descia...”. Frase similar apa- na”, e de uma jovem que não conheceria
rece na novela Domingo de Páscoa, publica- sequer em foto, Maria da Paz Melo Lins,
da na revista Status em abril de 1978, três Osman da Costa Lins nasceu em Vitória do
meses antes da morte do escritor: “Sinto- Santo Antão, Pernambuco, em 5 de julho
-me inquieto e assustado devido à viagem de 1924. Ficou órfão aos 16 dias. O escritor
iminente”. diria na maturidade: “Morreu aquela garota
Não apenas sua partida foi precoce. para que eu nascesse. Não podia fazer de
Aos oito anos, escreveu um poema com minha vida uma trouxa, um papel servido,
o seguinte título: “Beduíno regenerado pela jogá-la por aí. Nunca vi um retrato seu. Ela
Lua”. Ao fazer essa revelação numa entre- não gostava de fotografias, embora conste
vista, aos 49 anos, disse: “Que significava que fosse bem bonita”.
esse tema estranho? Como se eu já soubes- A busca de um rosto marcou sua obra.
se que a poesia salva o homem. Fui cen- A ausência da imagem materna e a pro-
surado pela minha família, porque os meus cura desesperada aparecem no romance
versos não tinham rima nem métrica.” O fiel e a pedra e na narrativa “Perdidos e
Conferência pronunciada na Academia Brasileira de Letras em 30 de agosto de 2018.
20  •  Hugo Almeida

achados”, de Nove, novena. Abel, narrador à Europa. Na bagagem, um pássaro imagi-


e personagem de Avalovara, sai pelo mun- nário em forma de romance – Avalovara.
do atrás não sabe de quê: “Toda a minha Voltaria com os contatos de tradução em
vida se concentra no ato de buscar”. três países: França, Espanha e Itália. Antes
Osman Lins teve uma infância solitária, de Avalovara, Nove, novena foi publicado
sem irmãos, e de poucos livros. Com a mor- na França. E depois a obra dele ganhou o
te de Maria da Paz, ficou aos cuidados da mundo.
avó paterna, Joana Carolina, e de Laura,
irmã de seu pai. Elas inspiraram duas das
2. No caminho do sonho
principais personagens do escritor. A pri-
meira, na magistral novela “Retábulo de Vida nova e de intensa alegria no Recife.
Santa Joana Carolina”, de Nove, novena; Osman Lins busca o sonho de se tornar es-
e Laura, como Teresa, de O fiel e a pedra. critor. Diria mais tarde: “Tinha a meu favor
O escritor considerava Antônio Figueiredo, a juventude, a paciência e um relativo des-
marido de Laura – que lhe contava aventu- prezo pelos bens que se compram.” Traba-
ras colhidas “nas asas de uma viagem” –, o lha como datilógrafo na secretaria do Giná-
seu “primeiro livro”. O tio inspirou Bernar- sio do Recife; encontra novo incentivador,
do do mesmo romance. Mauro Motta, que ele chama de “anjo da
Na infância e adolescência, Osman Lins guarda literário” e que publica em jornais
foi “estudante exemplaríssimo” e de “extra- os primeiros contos do jovem escritor.
ordinário talento e decidida vocação para as Em 1943, ainda menor, passa no con-
letras”, escreveu seu ex-professor e orienta- curso do Banco do Brasil. O pai assina a
dor desde o primário, José Aragão Bezerra posse do filho no BB e, orgulhoso, guarda a
Cavalcanti. Adolescente, Osman Lins jogou caneta. Mas o escritor não faria carreira no
futebol no colégio, como goleiro, para poder banco – chegou a recusar uma promoção
observar o jogo e não precisar correr. que exigia aumento da carga horária; sua
Aos 16 anos, foi estudar no Recife. Na prioridade era outra. “A literatura nasce da
bagagem, dois contos de aprendiz, o pri- calma, do trabalho persistente e lento de
meiro pincel de barba e um ovo de madei- muitas recusas”, diz aos 30 anos, ao publi-
ra para cerzir meias furadas. Um ano de- car seu primeiro livro. (Mais adiante, volto a
pois, quando seu primeiro conto, “Menino falar do caso BB.)
mau”, foi publicado, Teófanes – alegre, fe- Inicia o curso de Ciências Econômicas
liz, orgulhoso do filho – mostrou o jornal na Faculdade do Recife. Faz também cursos
ao professor José Aragão, que fez o seguin- de dramaturgia (foi aluno de Hermilo Borba
te comentário, revelado a mim, em 1991, Filho) e adapta textos clássicos para o rádio,
quando o visitei no Recife: “Isso é só o co- como Hamlet, Édipo Rei e Missa do galo.
meço”. Espantado, o pai do jovem contista Durante quatro anos escreve seu primei-
perguntou: “O senhor acha mesmo?!”. O ro romance, Noite profunda, depois intitu-
professor respondeu: “O senhor vai ver”. lado Os espelhos, que decide não publicar,
Trinta e dois anos depois, já autor consa- por considerá-lo um exercício literário –
grado, Osman Lins faria sua quarta viagem “uma vitória árdua”, afirmava. O professor
O sma n L i n s , 40 a n os d e p o is , m a is at ua l   •  21

Eder Rodrigues Pereira, que defendeu tese Osman Lins cumpre rigoroso programa
sobre Avalovara à luz da crítica genética, faz cultural: visita museus, igrejas (encanta-se
pós-doutorado na USP sobre o livro inédito, com os vitrais), assiste a dezenas de peças,
que talvez seja publicado em breve. filmes e concertos, entrevista autores do
A estreia se dá em 1955, com O visi- nouveau roman, como Michel Butor e Rob-
tante, romance laureado por esta Acade- be-Grillet. Na volta da experiência europeia,
mia com o Prêmio Coelho Neto. José Lins escreve Marinheiro de primeira viagem, lan-
do Rego atestou: “Neste romance, Osman çado em 1963.
Lins nos dá a medida de um autêntico cria- Em dois de seus livros, Poéticas em con-
dor”. Em setembro de 78, num artigo em fronto: Nove, novena e o novo romance, de
homenagem ao escritor falecido três meses 1987, e Transfigurações, de 2010, Sandra
antes, Autran Dourado, que em 55 já tinha Nitrini analisa em profundidade a importân-
três livros publicados, escreveu: “Eu me cia do período europeu na obra de Osman
senti provinciano e pequeno diante da se- Lins.
gurança, da maturidade, do rigor e audácia Em 1962, o escritor se muda com a fa-
do estreante Osman Lins.” mília para São Paulo. No ano seguinte, o
Em 1956, começa a escrever artigos so- casal se separa. Mulher e filhas voltam para
bre arte e cultura para o Suplemento Literá- o Recife. Mas Osman Lins nunca foi um pai
rio do jornal O Estado de S. Paulo, colabora- ausente. Ao contrário: foi sempre presente,
ção que se estende até o início dos anos 60. dedicado, afetuoso, como atesta a assídua
Em 57, publica seu primeiro livro de contos, correspondência com as filhas. É possível
Os gestos, Prêmio Monteiro Lobato, de São conhecer e saborear um pouco dessas car-
Paulo. tas na bela crônica “Seu pai”, que o escritor
Ainda nos anos 50, escreve o romance pernambucano José Luiz Passos publicou na
O fiel e a pedra (lançado em 1961) e a peça revista Continente, do Recife, em agosto do
Lisbela e o prisioneiro. Também em 61, a ano passado. O texto está disponível na in-
peça estreia aqui no Rio, com Tônia Carrero ternet.
e Paulo Autran nos papéis principais. A crí- Sozinho em São Paulo, Osman Lins es-
tica Barbara Heliodora considera Lisbela e o creve peças e narrativas de Nove, novena.
prisioneiro “a melhor comédia do ano”. Essa Em 64, casa-se com a escritora e publicitá-
é sua obra mais conhecida, graças à adap- ria Julieta de Godoy Ladeira, que conheceu
tação de Guel Arraes para a TV e o cinema. por intermédio de Ricardo Ramos, filho do
mestre Graciliano. Julieta exercia “uma in-
fluência das mais benéficas” em sua obra,
3. Anos 60 e 70 afirmou o romancista numa entrevista em
Na década de 60 começa nova etapa 1974.
na vida de Osman Lins. Em fevereiro de 61, Em 77, o casal escreve um livro a quatro
o escritor faz a primeira viagem à Europa, mãos, La Paz existe?, sobre uma atribula-
para seis meses de estudos em Paris, como da viagem ao Peru e à Bolívia. Julieta, que
bolsista da Aliança Francesa. Já está casado morreu em 1997, deixou um livro inédito,
e tem três filhas. A família fica no Recife. Acompanhante, sobre os últimos meses
22  •  Hugo Almeida

de Osman Lins. Ela havia lançado, em 79, Dividido em 12 mistérios, o “Retábulo”


um volume com artigos e entrevistas dele, é a história da vida sofrida de uma abne-
Evangelho na taba. gada professora rural de Pernambuco. Abre
As narrativas de Nove, novena inaugu- cada mistério uma espécie de coro do te-
ram em 1966 uma nova fase na obra do atro grego, ora semelhante a prece, ora
escritor. Vários estudiosos veem esse livro como um poema concreto, como o 7.o e o
como um divisor na ficção osmaniana, com 9.o (mas Osman Lins, escritor independente
o que concordava o próprio autor. Até O e alheio a modismos, recusou-se a aderir ao
fiel e a pedra, romance em que transpõe Concretismo).
para o Nordeste a Eneida de Virgílio, ele Ele dizia que a ligação entre seus livros
escrevia ficção considerada “tradicional”, se dava por ruptura e continuidade. Há vá-
influenciado por clássicos como Dostoié- rias rupturas dentro da continuidade – na
vski, Flaubert, Hemingway e Machado de estrutura, nas personagens, no tempo e es-
Assis. Há um estudo precioso sobre esse paço, no ponto de vista, no desenvolvimen-
romance: As falas do silêncio em O fiel e to do enredo, no desfecho.
a pedra, de Marisa Simons. Entre outros Gostaria de citar um exemplo de duas
aspectos, ela mostra a “eloquência do si- visões diferentes de temas semelhantes.
lêncio” no livro. No conto “A partida”, de Os gestos, um
Logo que saiu, Nove, novena foi sauda- adolescente, de mudança para uma cida-
do por grandes críticos, como Anatol Ro- de maior, tenta evitar se despedir da avó,
senfeld, Benedito Nunes, Fábio Lucas e João que era “boa demais, intoleravelmente
Alexandre Barbosa. Mais tarde, Ana Luiza boa e amorosa e justa”. Incomodado com
Andrade, Ermelinda Ferreira, Regina Igel e tanto cuidado, ele queria “partir, sem di-
Sandra Nitrini também analisaram diversos zer nada”, deixar logo aquelas “cadeias de
aspectos do livro, como o virtuosismo do disciplina e de amor”. Já em “Retábulo de
texto, o aperspectivismo, a dimensão cós- Santa Joana Carolina”, talvez a mesma avó
mica, a multiplicidade de vozes narrativas, a de “A partida” é vista deste modo por um
musicalidade e o ornamento, a contribuição personagem: “Vinha, de dentro dela, uma
do novo romance francês etc. serenidade como a que descobrimos nas
Em 2014, Leyla Perrone-Moisés escre- imagens de santo, as mais grosseiras. Um
veu na revista Cerrados n.o 37, da Univer- som de eternidade.”
sidade de Brasília: “A meu ver, Nove, no- A cada dia, mais e mais estudiosos
vena é simplesmente uma obra-prima, um acrescentam contribuições valiosas à fortu-
dos maiores livros da literatura brasileira de na crítica de Nove, novena, entre eles Luiz
todos os tempos, o que ainda não foi su- Ernani Fritoli, do Paraná, que fez mestrado
ficientemente valorizado”. Ela destaca no na USP sobre o “Retábulo”; e Flávio Pereira
livro “a linguagem precisa e enxuta”, “o Camargo, do Tocantins, que publicou Nas
lirismo contido”, e “conteúdos psicológi- trilhas da poética de Osman Lins. Há grupos
cos de alcance universal”. E arremata: “E a de osmanianos nos nove cantos do país.
obra-prima dentro da obra-prima é o ‘Retá- Depois de Nove, novena, Osman Lins
bulo de Santa Joana Carolina’.” escreveu outro livro importantíssimo, de
O sma n L i n s , 40 a n os d e p o is , m a is at ua l   •  23

ensaios: Guerra sem testemunhas – o es- visão errônea da política da Casa em rela-
critor, sua condição e a realidade social, ção à Cultura”. Esse episódio está registra-
lançado em 1969, reeditado em 74 e hoje do numa biografia sobre o autor, de 1988,
infelizmente fora das livrarias. Esse livro tem e depois foi divulgado na imprensa.
feito enorme falta às novas gerações de es- Surge aqui uma questão bem interes-
critores. sante. Há alguns anos, numa roda de os-
Osman Lins aposenta-se em 1970 do manianos em São Paulo, Elizabeth Hazin,
Banco do Brasil, enquanto escrevia Avalo- da Universidade de Brasília, levantou uma
vara, e passa a dar aulas na Faculdade de hipótese: será que o CCBB não foi criado
Letras de Marília, hoje Unesp, Universidade em consequência da carta de Osman Lins?
Estadual Paulista. Em 11 de setembro da- É possível. Desde a criação, em 1989,
quele ano, escreve “Registro”, relato sobre o Centro Cultural do Banco do Brasil tem
o dia anterior, o último de trabalho no ban- apoiado a cultura. Em sua variada progra-
co em São Paulo. Afirma no parágrafo final: mação, já exibiu até Lisbela e o prisioneiro.
“Ganhei a rua, dei uma olhada de baixo Escritor de trajetória ascendente, Osman
para o edifício do B.B., símbolo de uma orga- Lins publica em 1973 o seu trabalho mais
nização potente e gigantesca – que, em mais arrojado, Avalovara, que chegou ao topo
de 27 anos, não conseguira absorver-me ou das listas de best-sellers na época. No Brasil,
esmagar-me entre seus dentes –, desci a rua,
o livro teve recepção semelhante à de Gran-
apanhei um táxi e fui embora. Perto de casa,
de sertão: veredas, de Guimarães Rosa, em
saltei, entrei numa mercearia e comprei uma
1956. Muita gente torceu o nariz. O que é
garrafinha de vinho para tomá-lo no jantar, à
noite, com J. [Julieta], comemorando o fim da diferente sempre incomoda. (Aliás, uma das
minha servidão.” funções da arte é incomodar os acomoda-
dos.) Leitores médios e críticos apressados
Esse texto está no livro póstumo Quero consideraram o romance de Osman Lins di-
falar de sonhos, publicado em 2014. É im- fícil e hermético.
portante registrar que Osman Lins foi um Hermético? O poeta João Cabral de
funcionário de competência reconhecida Melo Neto disse numa entrevista: “O her-
pela direção do banco, como lembra seu ex- metismo depende mais do leitor do que do
-colega de trabalho e grande amigo, Lauro autor.” Em outro romance, A rainha dos
de Oliveira, no artigo publicado em O sopro cárceres da Grécia, o narrador osmaniano
na argila e em outro texto no livro dele, Os- cita uma frase de Sartre – a obra só existe
man Lins: vocação ética, criação estética. no nível de capacidade do leitor.
Dois anos depois de aposentado, o es- Pois bem, um crítico enxergou “bana-
critor é convidado pelo BB a participar de lismos” (banalismo é uma palavra que não
uma exposição de trabalhos de funcionários existe em nenhum dicionário, nem no Volp,
e ex. Na carta de recusa, Osman Lins afir- daqui da Academia) em Avalovara e viu eru-
ma que seus livros não foram escritos por dição em “a glande dos iólipos é gélida”.
ser funcionário do banco, mas apesar de o (Ele disse bobagem – porque iólipos são se-
ser. Acrescenta “não ter o mínimo interesse res inventados por Osman Lins como metá-
em contribuir para oferecer ao público uma fora do opressor.) Em artigo sob o maldoso
24  •  Hugo Almeida

título de “Siga a bula”, outro crítico tentou Avalovara foi escrito em plena ditadura
desqualificar o livro por causa do encarte militar. Por meio de Abel, narrador e perso-
“A magia de Osman”, elaborado por José nagem, Osman Lins expressa sua posição:
Paulo Paes, sobre os fios narrativos e a ge- “Preciso ainda saber se na verdade existe a
nial estrutura do romance. Um quadrado indiferença: se não é – e só isto – um disfarce
(limite do espaço) e uma espiral (o tempo da cumplicidade. Busco as respostas dentro da
noite e é como se estivesse nos intestinos de
infinito) abrigam o palíndromo latino Sator
um cão. [...] Ouço: ‘A indiferença reflete um
Arepo Tenet Opera Rotas (“O lavrador man-
acordo, tácito e dúbio, com os excrementos’.
tém cuidadosamente a charrua nos sulcos” Não, não serei indiferente.”
ou “O criador mantém cuidadosamente o
mundo em sua órbita”). Cada uma das oito No prefácio ao livro, Antonio Candido
letras diferentes da frase de 25 letras – que pergunta: “Romance? Poesia? Tratado de
se repetem no giro da espiral – corresponde narrativa? Visão do mundo?”. Ele comple-
a um tema. ta: “No universo sem gêneros literários da
Na França, Avalovara encantou os crí- literatura contemporânea, o livro de Osman
ticos de imediato. Viram logo tratar-se de Lins se situa numa ambiguidade ilimitada.”
um livro “ambicioso”, de “intensa poesia”, E conclui: “Avalovara representa na literatu-
“deslumbrante”, “uma verdadeira obra- ra brasileira atual um momento de decisiva
-prima”, como Gaby Kirsch registra em modernidade.”
artigo sobre a recepção da obra osmania- Já é bastante conhecida a frase de Julio
na na Europa incluído em O sopro na ar- Cortázar sobre esse romance, mas vale a
gila. Também em universidades do Brasil e pena repeti-la: “Se eu tivesse escrito Ava-
do exterior, estudiosos de Osman Lins em lovara não teria por que escrever durante
pouco tempo começaram a desvendar esse 20 anos.”
romance inovador, repleto de belezas e se- Três anos depois, Osman Lins, obstina-
gredos. E os estudos não cessam. do, publica mais dois livros. Sua tese de
Avalovara não trata apenas de Abel, es- doutorado, Lima Barreto e o espaço roma-
critor inédito que escreve um ensaio, A via- nesco, e A rainha dos cárceres da Grécia,
gem e o rio, e que ama três mulheres, em romance “mais complexo ainda que Avalo-
épocas diferentes: Anneliese Roos, compos- vara”, segundo Maryvonne Lapouge, tra-
ta por cidades, símbolo do espaço; Cecília, dutora de sua obra para o francês.
que tem o corpo formado por homens, e Em História Concisa da Literatura Brasi-
a mulher cujo nome é um símbolo gráfico, leira, o professor, e acadêmico desde 2003,
síntese de carne e verbo. O romance se des- Alfredo Bosi (tive a felicidade de ter sido seu
dobra ao infinito. aluno), refere-se a Avalovara e a A rainha
Em sinfônica modulação, há inúmeras dos cárceres da Grécia como “dois roman-
histórias e camadas no texto: arte, música, ces sustentados por um forte empenho
o erudito e o popular, o sagrado e o profa- construtivo e estilístico”.
no, o tempo mítico e o histórico, a Terra e o Massaud Moisés aplaude os dois ro-
universo, a transcendência e o cotidiano, a mances no volume dedicado ao Modernis-
questão política e social. mo de sua História da Literatura Brasileira.
O sma n L i n s , 40 a n os d e p o is , m a is at ua l   •  25

Considera A rainha um “romance de arte, Previdência Social um benefício temporário


requintado”, que, quando saiu, estava re- ou permanente. Em A rainha dos cárceres
colhido “à penumbra silenciosa projetada da Grécia, Osman Lins homenageia Lima
pela ofuscante luz que irradia Avalovara”. Barreto, como fica claro em várias passa-
A rainha dos cárceres da Grécia, escrito gens do romance. Exemplos: o único fun-
em 1974 e 75, quando o escritor morava cionário prestativo que Maria de França en-
em São Paulo havia quase 15 anos, é um contra é um almoxarife da Liga de Higiene
romance de exílio, ambientado sobretudo Mental, que lhe dá, “em segredo”, o nome
em Olinda e Recife. Um livro bem diferente do médico que poderia resolver seu caso.
de Avalovara. Não creio ser apenas coincidência o fato de
Em Os moedeiros falsos, de André Gide, o pai de Lima Barreto, João Henriques, ter
um dos autores preferidos de Osman Lins, sido almoxarife da Colônia de Alienados da
Laura faz uma pergunta “inábil” a Édouard: Ilha do Governador, aqui no Rio. Maria de
“Com que se parecia seu futuro roman- França, “heroína pobre e parda” que “osci-
ce?”. Resposta: “Com coisa nenhuma”. E la entre a sanidade e a loucura”, e Julia, am-
justifica: “Por que refazer o que outros já bas internadas várias vezes, têm traços do
fizeram, ou o que eu mesmo já fiz, ou o que autor de Triste fim de Policarpo Quaresma.
outros além de mim poderiam fazer?”. A personagem Alcmena, “vinda do Espí-
Este era um lema de Osman Lins: explo- rito Santo”, sobrinha do professor-narrador,
rar, inovar, não se repetir. E fez isso livro a veio de Vida e Morte de M. J. Gonzaga de
livro. Do primeiro ao último. No concerto da Sá, de Lima Barreto (chamado de “Santo
obra osmaniana, nada é gratuito. O escritor Afonso Henriques” por Julia, numa espécie
abolia o acaso de seu texto. de oração de menino pedindo que seus so-
No romance de estreia, O visitante, nhos se realizem).
Celina lê poemas medíocres de um cole- A rainha trata do Brasil, mas também
ga professor, Artur, o responsável pela sua mergulha em águas da Grécia. É bom lem-
infelicidade. Já em A rainha, a situação se brar que a oralidade e as canções populares
inverte. Em forma de diário, um professor são marcas do universo grego, e que a to-
de Ciências Naturais analisa e interpreta um pografia do Recife, cidade “líquida”, e de
belíssimo romance inédito, de linguagem Olinda, “sólida”, assemelha-se à de Atenas.
oral, radiofônica, cheio de músicas popu- Cinco vezes ao longo do romance, que tem
lares (“o livro ressoa”), sério e divertido, como estrutura os dedos das mãos, o narra-
também intitulado A rainha dos cárceres dor se faz a pergunta filosófica desde sem-
da Grécia, de sua amada, Julia Marquezim pre, desde os pré-socráticos: “Quem sou?”.
Enone. Logo na primeira página, a persona- No livro todo, está presente essa interroga-
gem tem nome e sobrenome, e está morta. ção metafísica, a preocupação com o ser
Já Avalovara começa com o surgimento da (imutável), não com o ter (algo transitório).
mulher sem nome. A exemplo de Osman Lins e sua vida.
Maria de França, uma ex-empregada Comunhão de gêneros – diário, ensaio,
doméstica e ex-operária meio louca, a pro- romance, conto, poesia, rádio –, A rainha
tagonista do livro de Julia Enone, tenta na dos cárceres da Grécia está sendo adaptado
26  •  Hugo Almeida

para o cinema por Joel Yamaji, cineasta for- Lins: o romance que ele deixou inacaba-
mado pela Escola de Comunicações e Artes do, A cabeça levada em triunfo, poderá ser
(ECA), da USP; Maria Teresa Dias, doutora publicado em breve, resultado do trabalho
em Letras pela mesma universidade e auto- com os originais desenvolvido por Francis-
ra de Um teatro que conta, sobre a drama- co José Gonçalves Lima Rocha, em pós-
turgia osmaniana, e o produtor Davi Heller. -doutorado na USP; e Nelson Luís Barbosa,
Em 1977, um ano depois de A rainha, também em pós-doutorado na USP, prepa-
Osman Lins organizou e publicou a pio- ra a edição crítica da correspondência entre
neira e bonita homenagem a Machado de Osman Lins e Hermilo Borba Filho. E há 15
Assis, Missa do galo – Variações sobre o dias, a Editora da Universidade Federal de
mesmo tema, reunião de contos dele, de Pernambuco relançou Do ideal e da glória
Julieta, Antônio Callado, Autran Dourado, e Evangelho na taba num só volume, com
Lygia Fagundes Telles e Nélida Piñon. No o título de Problemas Inculturais Brasileiros,
mesmo ano, lançou a divertida história in- organizado por Fábio Andrade.
fantil O diabo na Noite de Natal, uma festa É cada vez mais vasta e rica a bibliografia
de personagens como Super-Homem (de sobre o autor. Além dos livros já menciona-
voz fina), Chapeuzinho Vermelho, Capitão dos, preciso lembrar mais alguns: Cabeças
Gancho e um capetinha penetra e medro- compostas: a personagem feminina na nar-
so. Esse livro foi reeditado em 2005 e está rativa de Osman Lins, de Ermelinda Ferreira,
esgotado. Também em 77, lança Do Ideal e que ainda organizou o volume de ensaios
da Glória, artigos sobre “problemas incultu- Vitral ao Sol. Juntamente com Zênia de Faria,
rais brasileiros”. Por enquanto, são quatro Ermelinda organizou também Osman Lins:
os livros póstumos. Em 78, pouco depois da 85 anos, a harmonia de imponderáveis.
morte do escritor saiu o volume Casos espe- De Odalice de Castro e Silva, A obra de
ciais de Osman Lins. (Julieta me contou que arte e seu intérprete – Reflexões sobre a
ele chegou a ver a capa do livro no hospital, contribuição crítica de Osman Lins. Elizabe-
mas não deu tempo de ver o livro pronto. E th Hazin tem enriquecido os estudos osma-
ele perguntou sobre um quarto caso, então nianos com vários livros coletivos, como O
ela acha que ele tinha ideia de escrever mais nó dos laços; Linscritura; Palindromia; e Nú-
um episódio para televisão.) Evangelho na meros e nomes: o júbilo de escrever. Com
taba, como já disse, foi publicado em 1979. Leny da Silva Gomes e Odalice de Castro,
Em 2013, Ana Luiza Andrade organizou Elizabeth organizou também No reverso do
a edição trilíngue (português, espanhol e tapete – a escritura de Osman Lins.
inglês) da novela Domingo de Páscoa. Em Dois estudos sobre Avalovara: A gargan-
2014, saiu Quero falar de sonhos, de arti- ta das coisas, de Regina Dalcastagnè; e O
gos críticos anteriores a Avalovara, organi- voo da criação literária, de Harley Farias Dol-
zado por mim e Rosângela Felício dos San- zane, livro publicado neste ano e que tive o
tos (e quase todos artigos foram publicados privilégio de prefaciar. (E hoje tenho a sorte
no Estadão, nos anos 50 e 60). de contar com a presença dele na plateia.
Além do filme em produção, mais três Veio de Belém, ele estuda na Universidade
boas notícias a respeito da obra Osman Federal do Pará.)
O sma n L i n s , 40 a n os d e p o is , m a is at ua l   •  27

Sobre A rainha dos cárceres da Grécia, 4. Atualidade do escritor.


há a belíssima coletânea de ensaios Quem
E reedições
sou?, organizada por Elizabeth Hazin, Fran-
cismar Ramirez Barreto e Maria Aracy Bon- A obra e as entrevistas de Osman Lins
fim. Existe, ainda, o pequeno e precioso vo- autorizam a afirmação de que o escritor
lume Osman Lins: o matemático da prosa, continua atual. Melhor, é ainda mais atual,
de Ivana Moura. Na Argentina, a escritora 40 anos após sua morte. Vamos ver alguns
e professora Graciela Cariello publicou um exemplos.
livro sobre Osman Lins e Borges que merece Em Guerra sem testemunhas, escreveu:
ser traduzido no Brasil. “Os tempos são maus? Mais um motivo
Há duas ótimas biografias de Osman para fincarmos pé, abrirmos caminho rumo
Lins. Ambas têm o nome do escritor no iní- ao mundo e aos nossos semelhantes”.
cio do título, estão esgotadas e merecem No mesmo livro: “Lamenta-se todos os
reedição: Crítica e criação, de Ana Luiza dias a ausência, no Brasil, de críticos literá-
Andrade; e Uma biografia literária, de Re- rios atuantes”. E mais: “O verdadeiro prê-
gina Igel. mio, o reconhecimento e o estímulo de que
Uma parte do acervo de Osman Lins o autor precisa, o que realmente o enaltece
está no IEB, Instituto de Estudos Brasileiros, é a divulgação de seus livros”. Mais uma
da USP, e outra, na Casa de Rui Barbosa, frase de Guerra sem testemunhas: “O mun-
aqui no Rio. No Recife, uma das filhas do do necessita de seus escritores na exata me-
escritor, Ângela, criou o Instituto Cultural dida em que tende a negá-los, pelo sacrifí-
Osman Lins, para reunir o material sobre o cio ou pelo esquecimento”.
romancista em poder da família. A rainha dos cárceres da Grécia, roman-
Antes de passar para o próximo item, ce de Julia Marquezim Enone, foi recusado
“Atualidade do escritor e reedições”, apre- por três editores, um deles após a morte da
sento uma curiosidade, um certo mistério, autora, sob a alegação de que ficou incon-
envolvendo o número 16 na vida de Os- cluso. O primeiro editor, consultado pela
man Lins. Isso não fui eu quem descobriu; escritora enquanto terminava o livro, disse
a Julieta comentou comigo. Vejam só: ele “ser inútil enviar-lhe” o original, porque o
nasceu em 1924. A soma desses números mercado era “pouco sensível a obras nacio-
(1 + 9 + 2 + 4) dá 16. O nome completo nais” e a editora vivia de lucros; o segundo
dele, Osman da Costa Lins, tem 16 letras. devolveu o texto definitivo, pois não estava
Ficou órfão aos 16 dias. Mudou-se para o examinando originais.
Recife aos 16 anos. Fez a primeira viagem à Sabemos que nada disso acontece mais
Europa em 61, o contrário de 16. Viveu 16 no Brasil...
anos em São Paulo (1962-1978). Deixou 16 Também em A rainha dos cárceres da
livros publicados. “Mas morreu num dia 8”, Grécia, Maria de França, personagem de
a Julieta disse a uma numerologista, que Julia Enone, luta contra a injustiça social
respondeu: “Pois é, uma vida partida ao e enfrenta o labirinto da burocracia ao
meio”. E a soma de 16 (1 + 6) é 7, o núme- tentar, sem êxito, um benefício no então
ro da criação. Tudo a ver com Osman Lins. INPS, sucedido pelo INSS. Como sabemos,
28  •  Hugo Almeida

a previdência social continua na pauta de Trata-se da defesa da integridade de seu


todos os governos, em permanente ameaça texto, ou seja, o cuidado com a reedição da
de ampliar as injustiças. obra. Vou citar alguns exemplos de proble-
Podemos ler em Avalovara: mas dessa natureza em reedições de seus
“A ausência de sentido que marca de um livros.
extremo a outro o Brasil pode ser observada Na segunda edição de Marinheiro de
nas iniciativas do governo. Quando menos se primeira viagem, publicada em 1980, a pa-
espera, o homem que por obra do acaso está
lavra paisagem virou passagem no seguinte
na Presidência da República tira um progra-
trecho:
ma da cartola”. E pouco adiante: “O país, de
“Mas o trem parou numa estação cujo
Norte a Sul, vive à deriva”. E mais: “Algumas
nome era Marmagne – e a moça, fechando
pessoas [...] inventam um projeto qualquer de
seu livro, levantou-se. Sem a paisagem ao fun-
emergência: Vou ser Governador. Vou ser che-
do, sem a luz do sol nos seus cabelos, perdera
fe de seção. Ideais desconexos e artificiais.”
o encanto”.
Em julho de 1973, Osman Lins defen-
Pode-se dizer que com “passagem” no
deu o livro, já na época ameaçado pela tec- lugar de “paisagem” a frase perdeu seu en-
nologia. Disse em entrevista ao Jornal do canto.
Commercio, do Recife: “É possível que uma Em outro trecho, pouco depois desse,
grande parte dos seres humanos – até toda numa sequência de proparoxítonas (rústi-
uma civilização, quem sabe? – abdique dos cas, ríspida), vívidas ficou sem o acento,
livros, em benefício dos meios eletrônicos de virando um incoerente vividas.
comunicação”. E completou: “Você não é, Vamos ficar nos dois exemplos nesse li-
ante o livro, um ser passivo. [...] Você é, dian- vro. Passemos a outro.
te do livro, alguém que age: você o conquis- Em 7 de maio de 2005, Regina Dalcas-
ta. Palavra a palavra [...]. Pense mais: em que tagnè publicou n’O Globo o artigo “Em
outro meio encontraremos, como no livro, busca da forma perfeita”, sobre Avalova-
um campo onde a liberdade pode esplender ra, que estava na sexta edição. No último
com mais força?” parágrafo, ela observa que aquela reedição
Creio não ser preciso citar mais exem- atenuava um problema presente na anterior
plos. Quem ler Osman Lins vai ver muito do (que teve cinco reimpressões e desrespeita-
Brasil de hoje. va o projeto original do romance). Talvez
Agora, a segunda parte deste tópico: as para reduzir o número de páginas do vo-
reedições. lume, usou-se uma letra menor, sem con-
Como esta é por excelência a Casa da siderar a extensão progressiva dos blocos
defesa da Literatura Brasileira, eu não pode- dos oito fios narrativos, o primeiro com dez
ria deixar de abordar uma questão de enor- linhas; o segundo com vinte, e assim por
me relevância, envolvendo a obra de Os- diante. Na sexta edição, com a solução par-
man Lins. Uma tarefa imperiosa que algum cial do problema, o livro passou a ter 384
grupo de osmanianos deverá empreender, páginas e não mais as espremidas 360.
naturalmente com a anuência e a participa- No entanto, há problemas a resolver
ção das filhas do escritor. na reedição de Nove, novena. Os ruídos
O sma n L i n s , 40 a n os d e p o is , m a is at ua l   •  29

começam em uma das duas epígrafes: uma em duas páginas. Além disso, eliminou-se
estrofe do poema “O engenheiro”, de João a simetria, “o esplendor da ordem”. A pa-
Cabral, está em forma de prosa (nas primei- lavra Lã, no centro do texto, uma embai-
ras edições, o poema está certinho lá). xo da outra, ficou desalinhada e perdeu o
Além disso, nota de pé de página incluí- destaque do negrito, bem como as outras
da no posfácio de José Paulo Paes, “Pala- palavras em letras maiúsculas (todas ligadas
vra feita vida”, afirma que o texto citado ao ato de fiar, tecer ou bordar).
por ele, “Nove, novena novidade”, de João Isso é tudo?
Alexandre Barbosa, foi publicado em 1975 Não; infelizmente, não. O início do tex-
como prefácio de... A-va-lo-va-ra. Parece to também foi alterado. E de tal maneira
coisa de pequena monta, mas é uma in- absurda, arbitrária, que ficou sem sentido.
coerência que o próprio título do texto de Algo inacreditável. Na primeira linha do ori-
João Alexandre – repito, “Nove, novena no- ginal, podemos ler:
vidade” – já evidencia. Como no caso dos “Os que fiam e tecem unem e ordenam
versos de João Cabral, um equívoco reim- materiais dispersos que, de outro modo, se-
presso cinco vezes, desde 1994! riam vãos ou quase.”
Isso não é tudo. Há problemas muito
Vejam o que a frase virou na reedição
mais sérios no miolo do volume, especial-
(até dói ler isso):
mente na narrativa central, “Retábulo de “Os que fiam-se unem e ordenam mate-
Santa Joana Carolina”. Logo nela... riais dispersos que...”
Vejamos a abertura do Sétimo Mistério
nas três primeiras edições. É um texto orna- Fiar, de preparar o fio, do texto original,
mental, simétrico, em que o autor aproxima virou confiar em si mesmo (sem falar na co-
a tessitura de uma narrativa do trabalho de locação pronominal dessa nova frase que
rendeiras e bordadeiras. Nas edições ini- mutila a arte de Osman Lins). E para onde
ciais, o bloco que abre o Sétimo Mistério foi a palavra “tecem”?
está inteiro numa única página. Não pode- Osman Lins morreu em 78, esse livro
ria ser diferente. saiu em 94. Certamente, ele não autorizaria
Atento às lições de Horácio e Pitágoras, a edição com esses problemas. E talvez as
Osman Lins buscava a beleza no texto. Qual filhas dele e a Julieta tenham se queixado
o conceito de belo em Horácio?, pergunta com a editora, mas pelo jeito não foram
Dante Tringali no prefácio à sua tradução ouvidas.
de A arte poética do poeta e filósofo latino. Há reparos a fazer ainda na narrativa
Ele mesmo responde: “É o belo pitagórico, “Os confundidos”, de Nove, novena, e no
matemático, que se funda no esplendor da romance A rainha dos cárceres da Grécia.
ordem, a unidade na multiplicidade, onde Se não houver o máximo de rigor nas re-
nada fica fora de lugar.” edições, em poucos anos a obra de Osman
Vamos ver agora como ficou a abertura Lins estará bastante desfigurada. Os leito-
do Sétimo Mistério do “Retábulo” na quar- res de futuras reedições não vão conhecer
ta edição de Nove, novena – cinco vezes a beleza do seu texto. Aí, sim, muita gente
reimpressa! O bloco do texto foi dividido vai poder dizer – nesse caso de mutilações
30  •  Hugo Almeida

– que a literatura dele é difícil, complicada, Leyla Perrone-Moisés afirma que o ro-
etc. Mas não será o texto que o autor es- mancista “foi quase um solitário, por índole
creveu. e escolha”. No artigo “O lugar de Osman
Agora, a lista dos livros de Osman Lins Lins na literatura brasileira”, publicado em
(os quatro últimos são póstumos): O visi- Nove, novena, noventa, organizado por
tante, romance, 1955; Os gestos, contos, Sandra Nitrini, Leyla acrescenta: “Como es-
1957; O fiel e a pedra, romance, 1961; Lis- critor, não se sentia integrado em nenhum
bela e o prisioneiro, peça, 1961 (estreia); projeto coletivo”; [...] “fazia questão de iso-
Marinheiro de primeira viagem, 1963; lar-se”. Ela destaca ainda que Osman “não
Nove, novena, narrativas, 1966; Capa-Ver- gostava de ser associado a nenhum movi-
de e o Natal, peça infantil, 1967; Guerra do mento, brasileiro ou internacional”.
“Cansa-cavalo”, peça infantil, 1967; Guerra É verdade. Contudo, é preciso dizer que
sem testemunhas, ensaio, 1969; Avalovara, o fato de Osman Lins não querer integrar
romance, 1973; Santa, automóvel e solda- correntes ou grupos literários não significa,
do, teatro, 1975; A rainha dos cárceres da de modo algum, distância de seus pares.
Grécia, romance, 1976; Lima Barreto e o Osman Lins cultivou sólidas e duradouras
espaço romanesco, ensaio, 1976; Do ideal amizades com escritores e intelectuais. Em
e da glória, ensaios, 1977; La Paz Existe?, Guerra sem testemunhas, foi enfático: “Inu-
relato de viagem (com Julieta de Godoy La- tilmente buscará o homem nas coisas o que
deira), 1977; O diabo na noite de Natal, in- só pode encontrar no convívio humano”.
fantil, 1977; Casos especiais de Osman Lins, Disse numa entrevista: “Tudo o que eu escre-
para TV, 1978; Evangelho na taba, organi- vo, por mais abstrato que possa parecer, está
zado por Julieta de Godoy Ladeira, 1979; intimamente ligado a meus semelhantes”.
Domingo de Páscoa, novela, 2013; e Quero Osman Lins na ABL? Para chegar à respos-
falar de sonhos, artigos, 2014. ta, não posso fazer conjecturas. Tenho de me
basear na sua conhecida personalidade e no
testemunho de quem conviveu com o escritor.
5. Osman Lins na Academia? A resposta, indireta, ouvi de uma pessoa
Bem, entro agora no quinto e último bem próxima a Osman Lins. Ela me disse
tópico, o tema deste Ciclo de Conferên- que ele não gostava nem de ouvir falar em
cias, a Cadeira 41. É dez mil vezes louvável, uma eventual candidatura...
Ana Maria, sua iniciativa de lembrar, nes- Osman Lins tinha bons amigos nesta
sa homenagem póstuma, autores ausentes Casa, apoiava e respeitava todo esforço em
da Academia Brasileira de Letras. Repito a defesa das letras e certamente aplaudiria
pergunta-título desta parte: Osman Lins na este Ciclo de Conferências, mas não creio
Academia? que se candidataria...
Não resta um grão de dúvida, como di- Entretanto, isso não o impede de tam-
ria Machado de Assis, que Osman Lins me- bém ser imortal. O autor de Nove, novena;
recia um lugar nesta Casa. Avalovara e A rainha dos cárceres da Grécia
Mas, avesso a grupos, será que ele que- está vivo nos livros, porque sua obra, como
ria ser acadêmico? toda grande arte, é imperecível.
CICLO PATRIMÔNIO CULTURAL

Do patrimônio histórico e artístico


ao patrimônio cultural

Arno Wehling
Ocupante da Cadeira 37 na Academia Brasileira de Letras.

A
s perdas do patrimônio cultural da com seu culto erudito e estético da Anti-
humanidade foram diversas ao lon- guidade, mas não seria justo ignorar o in-
go da história, muitas vezes a ponto teresse pela tradição cultural demonstrada
de comprometer o conhecimento sobre de- nos mosteiros medievais e pelos intelectuais
terminadas culturas. Tais perdas se deveram, bizantinos e da Espanha muçulmana.
como sabemos, a fatores diversos, catástro- A consciência do valor do passado como
fes naturais muitas vezes e também ainda patrimônio, no entanto, emerge mais re-
mais frequentemente situações provocadas centemente, na Revolução Francesa, ante o
pelo homem, por ação ou omissão. Destas, risco de perdê-lo. O profundo antagonismo
talvez a mais antiga seja a destruição mútua ao Antigo Regime, acentuado na radicali-
de monumentos e documentos no Egito fa- zação do processo revolucionário em 1792,
raônico realizada pelos seguidores de Amon com a extinção da monarquia e o regime da
e de Aton e determinada pelos respectivos Convenção, fez com que seus símbolos se
sacerdotes. O incêndio da biblioteca de Ale- tornassem alvo de destruição. A estátua de
xandria no I século a.C. provavelmente é Luís XIV foi derrubada na insurreição popu-
o marco mais emblemático, mas não ficou lar de agosto de 1792, e logo a assembleia
atrás a destruição da biblioteca de Constan- legitimou a erradicação de monumentos da
tinopla em 1453 e em nossa própria época monarquia, argumentando:
o que ocorreu às bibliotecas nacionais de Sa- “os princípios sagrados da liberdade e da
rajevo, em 1992, Bagdá em 2003 ou as su- igualdade não mais permitem deixar por mais
tempo ante os olhos do povo francês monu-
cessivas destruições de monumentos histó-
mentos erguidos ao orgulho, ao preconceito
ricos no Afeganistão, Síria, Iraque e Mali. O
e à tirania.”
Brasil, infelizmente, consta da relação com a
perda do acervo, ainda não dimensionada, A destruição continuou frequentemen-
do Museu Nacional. te associada ao saque, até que dois anos
Na cultura ocidental a consciência do va- depois, em agosto de 1794, o abade Gre-
lor do passado enraíza-se no Renascimento, gório liderou um movimento em favor do
Conferência pronunciada na Academia Brasileira de Letras em 4 de outubro de 2018.
32  •  Arno Wehling

patrimônio. Discursando da tribuna da sofisticação das ciências humanas, por outro,


Convenção, defendeu que lado abriram o universo de referências para
“o respeito público deve envolver particular- outros aspectos da cultura que não aqueles
mente os objetos nacionais que, não sendo de estritamente associados aos valores identifi-
ninguém, são propriedade de todos.” cados como sendo os do Estado nacional.
Acusou diretamente os agressores e sa- Novos tempos, nova conceituação. Ao
queadores das obras de arte como “vânda- anterior “patrimônio histórico e artístico na-
los”, um dos povos germânicos que invadi- cional” sucedeu a noção mais abrangente
ram o Império Romano, imputando-lhes o de “patrimônio cultural”, endossada pela
crime de “vandalismo”. UNESCO e incorporada à Constituição de
1988 como “patrimônio cultural brasileiro”.
Uma observação etimológica: o abade
Os grandes desafios do patrimônio cul-
criou a palavra “vandalismo”, para estig-
tural, quer em âmbito nacional, quer mun-
matizar a atitude dos agressores. O subs-
dial no caso daqueles bens reconhecidos
tantivo incorporou-se significativamente
como tais pela UNESCO, envolvem não
em diferentes línguas, atestando sua força
apenas, mas frequentemente, opções bipo-
comunicativa, oriunda da repulsa que pro-
lares, provocadas por valores em conflito,
vocava. O abade tinha consciência dessa
como toda escolha.
força, porque dizia:
“eu criei a palavra para matar a coisa.” O desafio da natureza (se o conceito
for filosoficamente compatível ao tema)
Se o abade Gregório mencionava ob- envolve a difícil distinção entre patrimônio
jetos nacionais é porque sua definição cultural material e imaterial ou intangível.
amparava-se na concepção emergente de Embora pareça autoevidente a diferença,
Estado-Nação, que se tornaria dominante sempre se poderá justamente ponderar que
e disseminada por todo o mundo nos dois o patrimônio material, o tradicional “em
séculos seguintes. Eis porque falar a pro- pedra e cal” possui também uma dimensão
pósito de “patrimônio histórico e artístico imaterial, conceitual e estética, enquanto o
nacional” fez parte do vocabulário de todos imaterial também não prescinde de supor-
aqueles, nos âmbitos oficiais ou fora deles, tes físicos. A questão lembra a velha distin-
interessados na preservação de traços do ção cartesiana entre espírito e matéria, res
passado. No Brasil, quando se cuidou do cogitans e res extensa, e uma boa solução
tema, não por acaso o setor público criado para dúvidas desse tipo foi dada por Ortega
para implementar a política de proteção de- y Gasset: que mal há em que a mesma res
nominou-se SPHAN – Serviço do Patrimônio que pensa, se estenda e que a que se esten-
Histórico e Artístico Nacional, atual IPHAN. de, pense?
Os tempos da onipotência do Estado- O desafio do desenvolvimento opõe, por
-Nação, porém, se passaram e novas realida- sua vez, o progresso econômico à proteção
des, supranacionais como os órgãos multi- dos bens culturais, quando sabemos que
laterais ou as ONGs e infranacionais, como existem muitas estratégias que podem per-
as identidades regionais e locais, surgiram e feitamente compatibilizar geração de renda
atuaram com mais força. A consolidação e a com preservação do patrimônio cultural.
Do pat r im ô n i o h is t ó r ico e a rt ís t i c o ao pat r i m ô n i o c u lt u r a l   •  33

O desafio da amplitude é de caráter que tenha. O terreno em que se travam os


mais técnico, mas nem por isso menos po- combates da memória é minado por um
lêmico, já que opõe os conceitos de excep- misto de ódio, ignorância e indiferença que
cionalidade de um bem ao alargamento da empobrece a humanidade do homem.
relevância dos traços culturais para fins de A temática do patrimônio cultural por
preservação. isso é, antes de tudo, um exercício de hu-
O desafio dos combates da memória é manismo.
terreno afinal onde começou a noção de A Academia Brasileira de Letras, neste
patrimônio. O abade Gregório sabia do que Ciclo, busca como sempre contribuir para
falava ao criar a palavra vandalismo, porque a reflexão, a discussão e a consequente am-
a “coisa” à qual se referia era a intolerância pliação e aprofundamento de nosso conhe-
– religiosa, ideológica ou outra adjetivação cimento sobre o tema.
A constituição e o patrimônio
cultural

Joaquim Falcão
Ocupante da Cadeira 3 na Academia Brasileira de Letras.

1. Um pouco de história O que não impediu que o Brasil, mesmo


antes de 1988, avançasse na busca deste
A constituição de 1988 inovou em ma- seu vital patrimônio.
téria de cultura, em específico, de patrimô- Não somente com Aloísio Magalhães e
nio cultural. Como vemos em seu artigo o Centro Nacional de Referência Cultural.
216: Mas também pelas “antecipações”, diria
Constituem patrimônio cultural brasileiro Gilberto Freyre, de Marcos Villaça, então
os bens de natureza material e imaterial, to- Secretário Nacional de Cultura. O que equi-
mados individualmente ou em conjunto, por- valeria hoje a Ministro da Cultura.
tadores de referência à identidade, à ação, à Villaça tombou o terreiro de Casa Bran-
memória dos diferentes grupos formadores da
ca em Salvador.
sociedade brasileira.
Não por seu valor arquitetônico. Mas
Patrimônio como bem material e ima- por ser símbolo de uma forte religião popu-
terial, o novo conceito, é oriundo de pro- lar – o Candomblé – importante para nossa
identidade cultural.
posta da Comissão Afonso Arinos, sob o
Naquela época, em 1984, inexistiam re-
comando de Cândido Mendes de Almeida.
cursos legais para o reconhecimento formal
Depois, votada e aceita pela Assembleia Na-
deste bem cultural como patrimônio ima-
cional Constituinte.
terial. A constituição veio preencher esta
Participei desta Comissão. Tive a honra
lacuna.
de formular estes conceitos. Ao que tudo indica, a partir desta an-
Antes, pela intepretação dada ao de- tecipação, Marcos Villaça ficou protegido
creto-lei 25 de 1937, não havia menção pelos Orixás pelo resto da vida...
expressa a patrimônio imaterial. Nem mes- No governo Fernando Henrique, em
mo a prática. Patrimônio histórico, artístico 1994, o arquiteto Glauco Campelo, então
e cultural limitava-se aos bens considera- presidente do IPHAN, nomeou uma comis-
dos de “pedra e cal”. Materiais. são para regulamentar o artigo 216.
Conferência pronunciada na Academia Brasileira de Letras em 4 de outubro de 2018.
36  •  Joaquim Falcão

Formada por Candido Mendes de Al-


meida, Eduardo Portela, Marcos Villaça,
Thomas Farkas e eu. Teve ajuda indispensá-
vel de José Paulo Cavalcanti e João Falcão.
Em agosto de 2000, na ampliação da
noção de patrimônio em direção da sua de-
mocratização, o decreto “institui o Registro
de Bens Culturais de Natureza Imaterial que
constituem patrimônio cultural brasileiro,
cria o Programa Nacional do Patrimônio Figura 1. Trabalhadores Rurais, J.Borges.
Imaterial”1.
Um dos primeiros patrimônios imateriais Assim, a constituição abriu as portas e
a ser registrado foi a pintura corporal da et- incentivou o patrimônio imaterial e o patri-
nia Kusiwa, no Amapá, em 2002. Em segui- mônio popular também.
da vieram o Círio de Nazaré, a Feira de Caru- Por isto, entendo o patrimônio cultural
aru, o samba de roda, o frevo e tantos mais. como a soma e também a mistura de duas
Recentemente, o IPHAN reconheceu a li- individualidades: o patrimônio material e o
teratura de cordel como patrimônio cultural. imaterial.
Bem a propósito, J. Borges, talvez nosso
mais famoso cordelista, já considerado “pa-
2. As antinomias
trimônio vivo” do Estado de Pernambuco,
chegou a vender 5.000 exemplares em me-
constitucionais
nos de 60 dias nas feiras de Caruaru. Como é natural na vida das constituições,
É provavelmente autor para mais de elas são desafiadas de diversas maneiras du-
200 mil obras editadas. Feito que poucos rante a passagem de texto para ação. De
autores brasileiros conseguem em um ano. ideal para realidade. De dever ser para ser.
É dos autores mais publicados do Brasil.2 O que, em última instância, é a grande
Aliás, uma vez perguntei a razão de seu tarefa pragmática do Supremo Tribunal Fe-
sucesso. Ele disse: “Joaquim, só escrevo deral. Produzir decisões voltadas para a ação.
aquilo que bate no sentimento do povo”. São desafiadas de diversas maneiras.
Ficou-me a lição. Algumas vezes nos deparamos com
1 Anterior ao período de institucionalização democrática
lacunas em seus artigos e dispositivos.
iniciada na década de 1970, a política federal de preser- Quando a Constituição não previu espe-
vação foi concretizada em finais dos anos 30 por meio do
cificamente a regulação, a solução de um
decreto-lei n.º 25. O artigo 1.º desse decreto aponta que:
“Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o determinado problema.
conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e
Ou mesmo, tendo previsto, seus disposi-
cuja preservação seja de interesse público, quer por sua
vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer tivos não têm um sentido unívoco. São mais
por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico,
bibliográfico ou artístico”. Ver: FONSECA, Maria Cecília
arena de significados conflitantes do que
Londres et al. O patrimônio em processo: trajetória da claro comando.
política federal de preservação no Brasil. 1997.
2 Ver: FALCÃO, Joaquim. J. Borges ou o que é Patrimô- Costumo dizer que num país onde “pois
nio Cultural? não”, às vezes quer dizer, “sim”, e que “pois
A c o ns t i t u i ç ã o e o pat r i m ô n i o c u lt u r a l   •  37

sim” – como em Pernambuco – quer dizer Promulgadas no mesmo dia: o 5 de outubro


“não”, vemos que a tarefa de interpretar pa- de 1988?
lavras é razoavelmente complexa. E ambas têm o mesmo nível de gene-
Como diz Ayres Brito, trata-se da com- ralidade: proteger a fauna ambiental ou o
plexa tarefa de virar as palavras pelo avesso. patrimônio cultural?
Existe também, e é muito comum, uma Equacionar a antinomia constitucional é
situação em que um artigo, um dispositivo fundamental, não somente para a preser-
jurídico se choca com outro. São conviven- vação do patrimônio, mas também para a
tes no calmo texto. Mas divergentes na ner- intepretação constitucional, e para o estado
vosa aplicação. democrático de direito, como veremos.
Uma norma contra a outra. São as an- Escolhemos dois exemplos de antino-
tinomias. mias constitucionais para exercitar nosso
No sentido comum, antinomia jurídi- raciocínio e compreensão.
ca significa a existência de duas ou mais O primeiro trata do conflito entre o artigo
normas, válidas, emanadas de autoridades 215, de proteção às manifestações culturais
competentes, sem que possamos dizer, de e patrimônio cultural, preservação da vaque-
antemão, qual delas vai prevalecer e solu- jada do Ceará, e o artigo 225, de preserva-
cionar a dúvida, o caso concreto. ção do meio ambiente, proibindo o trata-
E se estão na constituição, diz-se antino- mento cruel aos animais. No caso, os bois3.
mias constitucionais. O segundo trata do conflito entre o ar-
Esta é nossa moldura para análise do pa- tigo 5.°, sobre a liberdade de expressão, di-
trimônio cultural neste momento. reito de ler, a liberdade de leitura, e o artigo
O intérprete, o ministro, fica diante de 227 a proteção de menores4.
Trata-se da decisão de certas escolhas
um aparente impasse. Qual das normas (ar-
diante de pressão de pais e mães ou mesmo
tigos, parágrafos etc.) constitucionais anta-
do estado, proibindo a adoção de determi-
gônicos deve prevalecer?
nadas leituras.
Normalmente, a doutrina se socorre de
Vejamos um a um.
alguns critérios para resolver este impasse.
Como o da hierarquia das normas: ou 3 O artigo 215 destaca que “o Estado garantirá a todos
o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes
seja, a norma superior – uma lei por exem-
da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização
plo – prevalece sobre uma resolução. e a difusão das manifestações culturais”. O artigo 225
afirma incumbir ao Estado “proteger a fauna e a flora,
Como o cronológico: ou seja, a norma vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em
mais recente prevalece sobre a norma mais risco sua função ecológica, provoquem a extinção de es-
pécies ou submetam os animais a crueldade.
antiga. 4 No artigo 5.° lemos que “é livre a expressão da ativi-

Ou ainda, como o critério de especiali- dade intelectual, artística, científica e de comunicação,


independentemente de censura ou licença”. O artigo
dade: ou seja, a norma especial prevalece 227 diz que “é dever da família, da sociedade e do Es-
sobre a norma geral. tado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem,
com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
Ocorre que estes critérios não resolvem alimentação, à educação, ao lazer, à profissionaliza-
a antinomia constitucional. ção, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária, além de colocá-los
As normas conflitantes são ambas do a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
mesmo nível hierárquico: o constitucional. exploração, violência, crueldade e opressão”.
38  •  Joaquim Falcão

3. A vaquejada evidências, laudos técnicos comprovando a


crueldade.
Os primeiros registros da vaquejada da-
A questão chega ao Supremo.
tam do final do século XIX, no Ceará5.
No voto, o relator Ministro Marco Auré-
José de Alencar, em 1874, já descrevia
lio confirma a tese da crueldade.
a vaquejada:
Por 6 a 5 votos, em outubro de 2016, o
Segue o vaqueiro sem toscanejar; e após
Supremo declara vaquejada inconstitucional.
ele rompe os mais densos bamburrais. Onde
não parece que possa penetrar uma corça, O que provoca na mesma hora grande
passa com rapidez do raio o sertanejo a ca- reação popular: através da mídia, de asso-
valo. E não descansa enquanto não derruba a ciações, pressão no Congresso.
rês pela cauda. No Ceará, as manifestações tomaram as
estradas, ao longo da rodovia federal BR-
Euclides da Cunha, em Os Sertões,
116. Em João Pessoa, os manifestantes em
também:
cavalos ocuparam a Praça da Independên-
Segue o vaqueiro. Cose-lhe no rastro.
cia. Durante toda a madrugada do dia 11
Vai com ele às últimas bibocas. Não o larga;
até que surja o ensejo para um ato decisi- de outubro, um grupo de manifestantes
vo: alcançar repentinamente o fugitivo de protestou diante do Congresso Nacional.
arranco; cair logo para o lado da sela, sus- Tornou-se o “dia nacional de mobilização
penso num estribo e uma das mãos presa pela vaquejada”7.
às crinas do cavalo; agarrar com a outra a Alegou-se também que a vaquejada in-
cauda do boi em disparada e com um repe- centiva o turismo. Surge então outra anti-
lão fortíssimo, de banda, derribá-lo pesada-
nomia, agora diante do artigo 1808.
mente em terra.
Proteção ao patrimônio versus defesa da
Uma lei do Estado do Ceará, em 2013, fauna versus incentivo ao turismo.
elevou a vaquejada à manifestação cultu- De um lado, o Estado garante a todos
ral e depois a patrimônio imaterial, com a o pleno exercício dos direitos culturais. Do
adoção de medidas de “proteção à saú- outro, garante a proteção da fauna e da flo-
de física do público, dos vaqueiros e dos ra. Proibiria, assim, manifestações culturais,
animais”6. mesmo históricas, como a vaquejada.
A lei de 2013 exige, por exemplo, a pre- Qual, então, a norma constitucional a
sença de uma equipe de paramédicos para prevalecer?
todos proteger. O patrimônio cultural estaria ameaçado
Mas, opositores da lei protestaram. A pela própria constituição?
crueldade no animal é visível. Apresentaram A constituição não será, então, cumprida?
Como resolver? Qual decisão tomar?
5 CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore.

Belo Horizonte: Itatiaia, 1984.


6 Segundo a lei de 2013, “fica obrigado aos organiza- 7 SOARES, Eduardo Pacheco de Medeiros. A Saga dos
dores da vaquejada adotar medidas de proteção à saú- Vaqueiros contra o Supremo: Quem diz o que é a Cons-
de e à integridade física do público, dos vaqueiros e dos tituição? Trabalho de Conclusão de Curso de Direito,
animais”. A lei de 2016 “eleva o rodeio, a vaquejada, FGV Direito Rio, 2018.
bem como as respectivas expressões artístico-culturais, 8 “A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municí-

à condição de manifestação cultural nacional e de pa- pios promoverão e incentivarão o turismo como fator
trimônio cultural imaterial”. de desenvolvimento social e econômico”
A c o ns t i t u i ç ã o e o pat r i m ô n i o c u lt u r a l   •  39

4. O
 direito de ler, de ver, e cional foi a proibição da exposição “Que-
ermuseu”, que começou em Porto Alegre.
a proteção dos menores
Depois em São Paulo e em seguida no Rio
O Colégio Santo Agostinho no Rio de Ja- de Janeiro.
neiro adotava, há anos, o livro de ficção Meni- Uma característica desta neocensura é
nos sem pátria que contava as dificuldades de que ela não é estatal. É da sociedade tam-
um menino brasileiro para, como emigrante, bém: como museus, escolas privadas, pa-
adaptar-se em outro país. Para onde seus pais trocinadores privados, bancos, igrejas.
foram morar por questões políticas. E é exercida não em nome da preserva-
No caso, os pais emigraram do Brasil por ção da força política estatal, mas em nome
causa do regime militar não democrático de de valores culturais constitucionalmente
1964. protegidos.
Recentemente, em 2018, um grupo de Como a proteção dos menores, à famí-
pais pressionou o colégio para não mais lia, à religião, e por aí vamos.
adotar o livro, por motivos político-ideo- No fundo, a antinomia jurídica quase
lógicos. O livro induziria críticas ao regime sempre materializa latente conflito de valo-
militar. Não queriam que seus filhos fossem res culturais.
expostos a tanto. No Rio de Janeiro, em 2017, o cartaz
A direção do Colégio Santo Agostinho da exposição sobre o patrimônio histórico
cedeu à pressão dos pais e deixou de adotar na Caixa Cultural foi censurado pelo Face-
o livro. book, que julgou haver material de “nudez
Eis outro exemplo de antinomia. Entre e conteúdo sexual” no cartaz.
a liberdade de expressão do artigo 5.° da
Constituição, e a proteção ao menor do ar-
tigo 227, que os pais pretendiam exercer.
Estariam proibindo crianças de ler livros
sobre o Brasil? Antônio Cândido dizia que
um dos direitos humanos era o direito ao
prazer da leitura, da literatura.
A Constituição abrigaria uma espécie de
censura ideológica praticada em nome da
proteção ao menor?
Fato similar ocorreu em festival de Gara-
nhuns, Pernambuco, em 2018.
O governo de Pernambuco cede à pres-
são e proíbe uma peça de teatro que ele
próprio financiara. Uma encenação cujo pa-
pel de Jesus Cristo foi conduzido por uma
atriz transexual. Figura 2. Peca de divulgação da exposição
O episódio recente mais simbólico de “A construção do patrimônio”, sediada na
ameaça à liberdade de expressão constitu- Caixa Cultural.
40  •  Joaquim Falcão

Em Brasília, em 2018, o artista Tai Melo 5. O caso Brâncusi


foi chamado para uma exposição na Sué-
cia. Fez desenhos de conteúdo erótico. Os Permitam fazer uma meia-volta e ilustrar
Correios recusaram enviar o material para a este mesmo tipo de problema – a proteção
Suécia afirmando que se tratava de material jurídica da liberdade de expressão e a defe-
de conteúdo pornográfico. sa do patrimônio cultural, no caso da arte,
como veremos – através do caso Brâncusi,
ocorrido nos Estados Unidos.
Michel Duchamp, artista francês, revo-
lucionou a arte, subverteu padrões tradicio-
nais e aceitos até 1920. Um dos símbolos
desta revolução foi sua “A Fonte”.

Figura 3. Tai Melo.

Quem censurou ou proibiu?


Não foi o Ministério da Justiça como era
até então. Figura 4. Marcel Duchamp, Fountain, 1917.
Não foi a polícia.
Foi um servidor público. Constantin Brâncusi, escultor romeno
Foi uma escola. era amigo de Michel Duchamp que o con-
Foi uma empresa privada. vida para expor em Nova Iorque em 1926.
Será que estamos passando de uma so- Brâncusi envia, então, a sua obra revolu-
ciedade de liberdades plenas para o de li- cionaria “Bird in Space”.
berdades controladas? A liberdade controla A alfândega americana, no entanto,
a liberdade? diante do que seria arte inédita, nunca vis-
No fundo, surge um neomoralismo di- ta, não soube como classificar o estranho
fuso, ainda de difícil avaliação em seu ethos objeto para fins fiscais. Seria equipamento
antidemocrático, mas que coloca a liberda- culinário? Ou um equipamento cirúrgico?
de de expressão e de comunicação sempre Classificam como um objeto utilitário, sem
em jogo. direito a isenção, pois não era obra de arte.
A c o ns t i t u i ç ã o e o pat r i m ô n i o c u lt u r a l   •  41

Mrs. Whitney estimula ir às cortes para


defender o “Bird in the Space”. Surge, as-
sim, o leading case Constantin Brancusi Vs.
United States of America.
A questão principal para o juiz decidir
seria: o que é arte? Se arte, isenção fiscal.
Se não, taxação fiscal.
A legislação alfandegária norte-ameri-
cana definia escultura como: “esculpida e
modelada similar aos modelos naturais (...)
todas as proporções: extensão, profundi-
dade e largura originais sem réplicas (...)
produto único de escultores profissionais.”
Evidentemente que o “Bird in Space”
não se enquadrava nesta definição.
Pergunta o juiz a Brâncusi: “O senhor
recebeu algum diploma (de escultor) nas es-
Figura 5. Constanti Brâncusi, Bird in Space, colas em que estudou?”; “Qual a diferença
1928. entre um escultor e um mecânico?”
Pergunta também o juiz a uma testemu-
O imposto aparece como ameaça a di- nha: “Se Mr. Brâncusi chamasse isto de pei-
ficultar a livre circulação da expressão ar- xe, seria um peixe para o senhor?” Respon-
tística9. de: “Se ele chamasse de peixe, eu chamaria
Neste momento, Gertrude Vanderbilt de peixe.”
Whitney, grande mecenas e filantropa, Na sentença, o juiz abandona todos es-
estava construindo o Whitney Museum tes esforços de aplicar uma interpretação
em Nova Iorque. Justamente para abrigar, jurídica lógico-formal. E se entrega à pró-
apoiar, homenagear e estimular a nova arte pria intuição:
norte-americana. “Haja ou não simpatia para novas
Mrs. Whitney entendeu que a política ideias e escolas, acreditamos que sua exis-
fiscal poderia também ser uma espécie de tência e impacto no mundo da arte deve
censura à arte. E que, se não defendesse ser reconhecido pela Corte (...). O objeto
legalmente que o “Bird in Space” era uma é apenas para propósitos ornamentais.
escultura artística, o necessário radicalis- É usado da mesma maneira que se as es-
mo estético da arte contemporânea seria tátuas dos old masters” (...). É bonito e
amea­çado. simétrico embora difícil encontrar associa-
Séria restrição à liberdade artística. ção com um pássaro (...). Mas é agradável
de se ver.”
9 Ver: “But Is It Art?” Constantin Brancusi vs. the Uni- Seu fundamento para a justiça seria o
ted States, In. Inside/Out, 2014. Disponível em: https://
www.moma.org/explore/inside_out/2014/07/24/but-is-
sentimento de agradabilidade, diria o filó-
-it-art-constantin-brancusi-vs-the-united-states/ sofo social Cláudio Souto.
42  •  Joaquim Falcão

6. O
 constitucionalismo proteção aos menores, inexiste ainda uma
decisão clara em nível constitucional.
de realidade
A resolução desta antinomia tem sido
Retomo o desenrolar da antinomia não judicial, mas tem prevalecido a disputa
constitucional – patrimônio versus fauna – sobre quem detém o poder e a competên-
presente na Vaquejada. cia legal inicial para, de fato, decidir.
O Ministro Marco Aurélio apontou para Explico. O patrocinador privado decide
a crueldade aos animais. Entre a crueldade se quer ou não apoiar uma exposição com
e o patrimônio cultural, o Supremo deveria seus direitos de propriedade – recursos fi-
defender o primeiro. nanceiros ou imóveis culturais dentro de
A crueldade intrínseca à vaquejada não seu livre convencimento.
permite a prevalência do valor cultural como
O prefeito, dentro da competência ad-
resultado desejado pelo sistema de direitos
ministrativa de gerir os museus municipais,
fundamentais da Carta de 1988.
decide se é conveniente ou não para sua po-
A Vaquejada foi considerada inconsti- lítica cultural. Ou estabelece, por exemplo,
tucional. O Estado do Ceará e a sociedade idade mínima para o acesso de menores.
rea­giram. Propuseram ao Congresso Emen- Os pais se responsabilizam por levarem
da Constitucional ao artigo 225, reiterando ou não seus filhos às exposições como “La
a prática como “bem de natureza imaterial” Bête”, no MAM de São Paulo.
e prevendo regulamentação por lei que ga- Os pais exercem o direito de escolher a
ranta o bem-estar dos animais. escola, e a direção da escola de indicar ou
Foi aprovada. proibir livros.
Mas em seguida, a Procuradoria-Geral Novos tempos, novas antinomias. Novas
da União foi ao Supremo pedir que esta decisões que a sociedade tem que fazer.
emenda fosse considerada inconstitucional. A primeira de todas é: quem resolve a
Aguarda-se julgamento. antinomia de normas conflitantes? O Esta-
O que podemos dizer numa análise ba- do ou a Sociedade?
seada no constitucionalismo de realidades? O estado através de quem? Do Judiciário?
A antinomia – patrimônio versus meio Do Executivo, do ministro da Justiça? Ou pelo
ambiente, fauna – passou a ser além de um Congresso, através de emendas ou novas leis?
conflito entre normas, materializou-se um Quem protege o menor? O estado, atra-
conflito entre os poderes normativos: Con- vés dos conselhos. Os pais? As escolas?
gresso e Supremo. E a disputa continua. Até Quem decide o que é arte e o que é por-
quando? nografia, e o acesso dos cidadãos?
Não vejo na democracia harmonia entre Até que ponto a sociedade deve sempre
poderes. Vejo permanente e inconclusiva judicializar suas próprias responsabilidades
tensão entre poderes. No máximo, como para o juiz?
Verdi e Nélida Piñon partilham, de uma re- Vivemos tempos interessantes. O mono-
côndita harmonia. Fugaz, acrescento eu. pólio cultural das decisões simples e óbvias
No que se refere à outra antinomia en- está se desfazendo.
tre o direito de ler, ver, e se expressar e a Se é que algum dia existiu.
Uma breve trajetória do patrimônio
cultural brasileiro: políticas, atores,
perspectivas

Maria Cecilia Londres Fonseca


Professora e socióloga

N
este artigo, serão apresentadas con- constatar que essa suposta relevância pare-
siderações feitas com base não ape- ce se restringir ao reconhecimento da im-
nas em leituras e pesquisas, como portância desses bens culturais como sím-
também em já longa experiência no campo bolos de uma identidade coletiva, mas sem
das políticas nacionais de patrimônio cul- um compromisso mais profundo e presente
tural no Brasil. Esse é – para usar uma ex- no quotidiano por parte dos cidadãos.
pressão da moda – o meu ”lugar de fala”. Como entender a noção de “patrimô-
E o meu propósito, portanto, é abordar o nio”, termo a que as pessoas em geral se
patrimônio cultural enquanto objeto de po- referem com reverência e admiração, cujo
lítica pública, com foco no papel do Estado sentido, porém, parece distante de suas
e, sobretudo, da sociedade nesse processo, vivências, e, sobretudo, de suas necessi-
como também no lugar desse tema na vida dades? Afinal, a que se refere exatamente
dos cidadãos brasileiros. esse termo?
Pois acontecimentos recentes1 vieram Se buscarmos a via da etimologia como
demonstrar, de forma trágica, que, embora ponto de partida, veremos que o termo
no nível dos discursos e das intenções, não “patrimônio” remete a propriedade fami-
apenas de autoridades e de políticos, como liar (pater) e a memória, fazer lembrar (mo-
dos cidadãos em geral, o tema do patrimô- nere), também raiz da palavra monumento.
nio cultural e de sua preservação seja con- À ideia de posse é acrescentada a de trans-
siderado uma pauta positiva, importante, e missão, herança, no sentido de uma relação
que mobiliza todos em momentos de evi- entre gerações mediada por determinados
dente crise – quando essa causa passa a ser bens que são transmitidos ao longo do tem-
defendida no interesse de toda a sociedade po. Nesse sentido, patrimônio não é só o
– no nível da atuação continuada e da roti- que se recebe, mas também o que se deseja
na dessa política podemos, por outro lado, transmitir. E, nesse sentido, é fundamental
1 Refiro-meao incêndio nas dependências do Museu Na-
que esse compromisso seja assumido a cada
cional da UFRJ, ocorrido em 2 de setembro de 2018. geração.
Conferência pronunciada na Academia Brasileira de Letras em 11 de outubro de 2018.
44  •  Maria Cecilia Londres Fonseca

Essa concepção patrimonialista, centra- O suporte em instrumentos legais espe-


da na valorização e transmissão de deter- cíficos que viabilizem essa preservação im-
minados bens materiais em função de seu plica ainda a definição de direitos e deveres,
interesse cultural para uma coletividade foi, tais como a obrigação do poder público de
como sabemos, a que instituiu as políticas proteger os bens sob sua tutela, dispondo
públicas de patrimônio histórico e artístico inclusive para tanto de poder de polícia, e,
nas nações do mundo ocidental – entre no caso dos cidadãos, em limitações ao di-
elas, o Brasil – onde predominava o modelo reito de propriedade, e punição em caso de
europeu de civilização. Mas, passados mais dano a bens protegidos.
de dois séculos de ampla difusão e reela- Esse é o perfil clássico das políticas de
borações desse modelo, como entender a patrimônio, bastante centrado na ação es-
ainda tão baixa ressonância do interesse tatal, mas esse modelo tem passado por
pelo patrimônio cultural junto à sociedade transformações, principalmente em fun-
e mesmo a agentes do Estado? ção de demandas da sociedade, a partir de
Parto de uma hipótese que tem como questionamentos quanto à representativi-
base uma suposta particularidade dessa dade do repertório legalmente reconheci-
política em relação a outras políticas públi- do pelo Estado em relação aos “diferentes
cas, e que talvez contribua para dificultar grupos formadores da sociedade brasileira”
sua apropriação por parte da sociedade. (artigo 216, Constituição Federal de 1988),
Enquanto as principais políticas públicas de e também da escassa participação da socie-
cunho social – como aquelas voltadas para dade em todo o processo.
educação, saúde, habitação, urbanismo etc. Com base nesses pressupostos, será
– são avaliadas em função do alcance a seu traçada uma brevíssima trajetória dessas
acesso pelos cidadãos, e da qualidade dos políticas públicas, com foco em seus desdo-
serviços que prestam à sociedade, as polí- bramentos no Brasil nas últimas décadas – e
ticas de patrimônio cultural, como o nome com algumas referências ao contexto inter-
evidencia, referem, em primeiro lugar, a um nacional – tendo como vetores as seguintes
repertório de bens que constituem uma questões:
mediação necessária para ações – inclusive
de natureza jurídica – que são de atribui- •• quais os critérios para inclusão de bens
ção primordialmente do Estado, visando nesse repertório?
a defesa do “interesse público” e a propi- •• quais os atores envolvidos nesse
ciar coesão social em torno de categorias processo?
de pensamento como “cultura”, “nação”, •• que formas de preservação desses bens
“memória”, “identidade” etc. Esses bens culturais têm sido adotadas?
são selecionados com base em determina-
E, para concluir:
dos critérios de valoração, o que legitimaria
não apenas sua proteção especial pelo Esta- •• que desafios se apresentam hoje,
do enquanto símbolos de uma identidade a essas políticas, levando em conta
coletiva, como também o investimento na principalmente sua ressonância junto à
sua preservação. sociedade?
U ma breve trajetória do patrimônio cultural brasileiro : políticas , atores , perspectivas   •  45

Essas políticas – tal como a implantada ameaça de perda irreparável de um acer-


no Brasil na primeira metade do século XX vo que, conforme o ideário revolucionário,
– tiveram origem no Ocidente moderno, e constituía uma riqueza de todos os cida-
foram precedidas por algumas iniciativas, dãos. Nesse sentido, os bens identificados
tais como: ações esporádicas e pontuais às classes até então dominantes – a aris-
dos cidadãos romanos em relação a vestí- tocracia e o clero – passaram por um pro-
gios da presença grega em territórios do cesso de ressignificação enquanto símbolos
Império, na Antiguidade; coleções de bens da formação da nação que vinha suceder o
da Igreja (sobretudo relíquias), da realeza e Antigo Regime. Algumas medidas no senti-
da aristocracia durante a Idade Média e o do de proteger esses bens foram tomadas
Renascimento; a criação dos gabinetes de pelo recém-instituído poder central repu-
curiosidades, que floresceram na era das blicano. Em 1793, a Assembleia Nacional
grandes navegações, entre outras. À exce- Constituinte declarou o palácio do Louvre,
ção desses últimos – pois, como o nome com as coleções nele guardadas, museu, a
indica, seu maior atrativo era o seu caráter ser aberto ao público.
exótico – a atenção no sentido de preservar Entretanto, ações de destruição de bens
alguns tipos de bens era voltada sobretudo históricos continuaram a ocorrer no início
para marcos históricos e obras de arte, sen- do século XIX, motivadas então sobretudo
do que, nesse segundo caso, a partir do Re- por interesses econômicos e especulativos,
nascimento, o cânone estético tinha como e muitas vezes apoiadas pelos poderes lo-
principal referência as produções da cultura cais, o que mobilizou escritores como Victor
greco-romana. Hugo (p. 51) a se manifestarem no senti-
Um exemplo de iniciativas desse tipo do de conclamar uma reação a essa grave
ocorreu no espaço do atual Museu do Lou- ameaça à nação francesa.
vre, antiga fortaleza que deixou de ser re- Não importa quais sejam os direitos de
sidência da realeza francesa quando, em propriedade, a destruição de um prédio his-
tórico ou monumental não deve ser permitida
1682, Luis XIV mudou-se com a corte para
a esses ignóbeis especuladores, cujo interes-
Versalhes, e destinou o local para guarda
se os cega para a honra. (...) Há duas coisas
de suas coleções de antiguidades greco- num edifício: seu uso e sua beleza. Seu uso
-romanas. pertence ao proprietário, sua beleza a todo
Na Revolução Francesa, com a deposi- o mundo; destruí-lo é, portanto, extrapolar o
ção do Antigo Regime, e a perda de poder que é direito.2
da nobreza e do clero, os bens da Igreja
Em 1837 é criada na França a primeira
foram secularizados, e os dos nobres emi-
Comissão de Monumentos Históricos, en-
grados, confiscados. Atos de vandalismo
tão discriminados em três grandes catego-
voltaram-se contra os bens que referiam
rias de bens: “os restos da Antiguidade, os
o regime feudal, a monarquia absolutista
edifícios religiosos da Idade Média e alguns
e o clero – como castelos, igrejas, torres
castelos” (CHOAY, p. 10). Essa orientação,
de guarda e outras edificações. Esses atos
voltada prioritariamente para a proteção de
foram, no entanto, considerados por inte-
lectuais adeptos do ideal iluminista como 2 Tradução livre da autora.
46  •  Maria Cecilia Londres Fonseca

monumentos, prevaleceu por mais de um edificações na então Avenida Rio Branco,


século e meio, foi difundida na Europa e, cujo objetivo era preservar testemunho da
posteriormente, em outros continentes. Va- reforma urbanística conduzida pelo prefeito
lorizar e defender a proteção de monumen- Pereira Passos no Centro do Rio de Janeiro,
tos de excepcional valor histórico e artístico no início do século XX, ter resultado, em
passou a ser considerado um dos índices 1973, em proteção restrita a quatro edifica-
de adesão de um país à “civilização”. E os ções monumentais, sendo três (Teatro Mu-
principais critérios de valor para o reconhe- nicipal, Biblioteca Nacional Museu Nacional
cimento de um bem como patrimônio da de Belas Artes) situados na Cinelândia (Cf.
nação eram: antiguidade, excepcionalidade FONSECA pp. 190-192).
e autenticidade. Além disso, prevalecia então o entendi-
Esse foi também o modelo que inspirou mento, entre o restrito número de atores,
intelectuais, juristas, artistas e arquitetos que a questão do patrimônio mobilizava até
brasileiros, que, sob forte influência dos as últimas décadas do século XX, de que os
modernistas – preocupados então com os bens objeto da política federal de patrimô-
riscos de deterioração e de danos às cida- nio seriam exclusivamente coisas materiais,
des coloniais mineiras – levou à criação do “acabadas”, e tanto mais autênticas quan-
Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico to fiéis ao projeto de seu autor, admitindo-
Nacional-SPHAN, no âmbito do então Mi- -se no máximo trabalhos de restauração
nistério da Educação e Saúde, sob a dire- – como, aliás, era o pensamento corrente
ção de Gustavo Capanema, e à edição do no mundo ocidental. Exceção foi Mário de
decreto-lei n.o 25, de 30 de novembro de Andrade, que também militava na pesquisa
1937. O Brasil foi o primeiro país da Amé- e no estudo das culturas populares, e que,
rica Latina a dar esse passo na direção da em seu anteprojeto para a criação do Ser-
preservação de seu patrimônio. viço do Patrimônio Artístico Nacional, apre-
No hercúleo trabalho de selecionar bens sentado ao ministro Gustavo Capanema em
para tombamento – já em 1938 dezenas 1936, propôs uma visão muito mais ampla e
de bens foram tombados – a atribuição de inclusiva do patrimônio a ser protegido (in-
valores como “excepcionalidade” e “au- cluindo também as “artes ameríndias” e as
tenticidade” tinha, aqui, subentendida, a “artes populares”), mas que foi considerada
concepção modernista do Barroco como o juridicamente inviável, pois não havia então
estilo genuinamente brasileiro – estilo no base legal para a formulação de instrumento
qual se inspirava a florescente arquitetura voltado para a proteção de bens de caráter
modernista – sendo o ecletismo, que pre- processual. Ou seja, a continuidade desses
dominava então em projetos de edificações bens não pode ser assegurada por medidas
como as da recém-aberta Avenida Central, legais, como o tombamento, uma vez que só
no centro do Rio de Janeiro, considerado se perpetuarão no tempo se existirem atores
exógeno, não-autêntico, mera cópia de capazes tanto de reproduzi-los no presente,
um padrão europeu. Essa orientação ainda quanto desejosos de transmitir às novas ge-
prevalecia nos anos setenta, a ponto de o rações os conhecimentos e habilidades ne-
processo de tombamento de conjunto de cessários à sua manifestação.
U ma breve trajetória do patrimônio cultural brasileiro : políticas , atores , perspectivas   •  47

Além disso, em termos de políticas cul- Em 1972, a UNESCO aprovou a Con-


turais, havia a distinção e hierarquização venção do Patrimônio Mundial, Cultural e
entre as políticas de patrimônio histórico e Natural, visando a um compromisso de to-
artístico de excepcional valor, expressão do dos os signatários com a proteção dos bens
mundo civilizado, e as políticas de folclore e assim reconhecidos. Também começaram
culturas populares, cuja preservação só era a ser identificados bens que, na França,
possível via coleta de peças, documentação passaram a constituir os chamados “no-
e pesquisas no campo da etnografia. Daí a vos patrimônios”, que incluem os campos
posição ímpar de Mário de Andrade que, industrial, ferroviário, rural, geofísico, entre
nos anos trinta, valorizava como patrimônio outros. Passa-se a ter a impressão de que
brasileiro manifestações culturais popula- praticamente qualquer bem poderia ser pa-
res, inclusive aquelas então tipificadas como trimonializado.
crimes pelo Código Penal vigente, de 1890, Entretanto, na aplicação da Convenção
tais como os cultos afro-brasileiros. de 1972 pelo Comitê do Patrimônio Mun-
Após a Segunda Guerra Mundial, a dial ainda prevaleciam, nos primeiros anos,
criação de organismos multilaterais, como critérios eurocêntricos de avaliação, o que
a ONU e, nesta, a UNESCO, veio trazer, motivou reação de países do então chama-
progressivamente, a questão do patrimô- do Terceiro Mundo, liderados pela Bolívia,
nio cultural para o âmbito internacional, questionando o que consideravam um tra-
o que deveria implicar necessariamente a tamento discricionário, dado pela UNESCO,
revisão dos critérios de seleção dos bens a sobretudo às culturas autóctones de países
serem considerados patrimônio em escala que reconheciam, em sua formação, a pre-
mundial. Nesse sentido, a noção de “pa- sença e a contribuição fundamental dos po-
trimônio” passa a ser um instrumento de vos nativos, muitos dos quais haviam sido
afirmação de identidades coletivas bastan- dominados por metrópoles europeias, que
te diferenciadas, contribuindo assim para haviam transformados suas terras em co-
a consolidação do ideal de paz entre as lônias até recentemente. Esse movimento
nações e para superar o caráter elitista do levou, no âmbito da UNESCO, à aprovação
modelo vigente. Como observa Françoise da Recomendação sobre a Salvaguarda da
Choay (p. 12), “a tripla extensão tipológica, Cultura Tradicional e Popular, em 1989, e
cronológica e geográfica dos bens patrimo- também a uma discussão – que teve a Or-
niais é acompanhada pelo crescimento ex- ganização Mundial da Propriedade Intelec-
ponencial de seu público.” A própria noção tual-OMPI como principal interlocutora – a
de “monumento histórico e artístico”, e, respeito dos direitos coletivos desses povos
sobretudo, o critério de “excepcionalidade” sobre a propriedade de suas culturas.
são redimensionados, como na Carta de Ve- Também o critério de “autenticidade”,
neza, de 1964, em que é explicitado que que, na acepção eurocentrada vigente,
o valor de “monumento histórico” aplica-se implicava grandes restrições aos trabalhos
“não só às grandes criações como também de intervenção física nos bens protegidos,
às obras modestas que tenham adquirido, foi questionado pelas nações orientais, li-
com o tempo, uma significação cultural.” deradas pelo Japão, país que, em grande
48  •  Maria Cecilia Londres Fonseca

medida em função dos constantes cataclis- participação dos diferentes grupos na pre-
mas climáticos que abalam essas ilhas do servação, como a consideração de suas
Pacífico, desenvolveu outras orientações concepções próprias de “patrimônio”, no-
para a preservação de sua cultura material, ção entendida por essa disciplina como “ca-
que foram expressas em trecho abaixo cita- tegoria de pensamento” comum a qualquer
do da Carta de Nara, de 1994, em evento grupo humano, e não “simplesmente uma
organizado pela UNESCO nessa cidade, an- invenção moderna” (GONÇALVES, p. 22).
tiga capital do império nipônico. Nela está No Brasil, várias experiências na identi-
situado o templo de Todai-ji, até 1998 a ficação, documentação e reconhecimento
maior construção em madeira do mundo, e do valor cultural de bens que Aloísio Ma-
que foi reconstruído duas vezes, com base galhães (1985, p. 53), nos anos oitenta,
em conhecimentos tradicionais preserva- denominou como “patrimônio não con-
dos na figura de mestres artífices, categoria sagrado”, subsidiaram os trabalhos da
que, logo após a Segunda Guerra Mundial, Constituinte, e foram fundamentais para
passou a ser reconhecida e apoiada pelo a formulação dos artigos 215 e 216 da
governo japonês, visando a apoiar a trans- Constituição Federal de 1988, modificando
missão desses saberes. radicalmente o tratamento dado ao tema
Todos os julgamentos acerca de valores nas constituições brasileiras anteriores, na
atribuídos às propriedades culturais, bem como medida em que se amplia a noção do agora
a credibilidade das correspondentes fontes de
denominado “patrimônio cultural brasilei-
informação, podem diferir de cultura para cul-
tura, e mesmo dentro de cada cultura. Não é,
ro” e se diversificam os instrumentos para
por isso, possível basearem-se os julgamentos sua preservação.
de valores e de autenticidade de acordo com Já em 1986, dois tombamentos “fora
critérios fixos. Pelo contrário, o respeito devido da curva” – o do Terreiro da Casa Branca, o
a todas as culturas exige que as propriedades de mais antigo terreiro de candomblé em Sal-
património sejam consideradas e julgadas den- vador e, em seguida, o da Serra da Barriga,
tro dos contextos culturais a que pertencem.
em Alagoas, onde se situou o Quilombo
Essa iniciativa da UNESCO veio viabilizar dos Palmares – haviam trazido, para a es-
a inscrição, na Lista do Patrimônio Mundial, fera nacional da proteção do patrimônio,
de bens antes não considerados enquanto bens de matriz afro-brasileira. Entretanto,
patrimônio cultural passível de ser reconhe- não se vislumbrava possibilidade de inclu-
cido por esse organismo, o que resultou são no patrimônio cultural nacional, pelos
em um avanço significativo na qualificação instrumentos legais disponíveis, das cultu-
desse repertório em termos de retrato da ras indígenas, e de grande parte das mani-
diversidade cultural da humanidade. Para festações das culturas populares. Por outro
a adoção dessa noção ampla e flexível de lado, a Constituição Federal de 1988, em
patrimônio por parte de políticas públicas seus artigos 215 e 216, veio reconhecer
ocidentais tem sido fundamental a contri- para todos os cidadãos brasileiros os direi-
buição da antropologia, que trouxe uma tos culturais, assim como a necessária par-
base teórica e metodológica para essa ticipação da comunidade como parceira do
nova abordagem, que exige não apenas a Estado na proteção do patrimônio cultural.
U ma breve trajetória do patrimônio cultural brasileiro : políticas , atores , perspectivas   •  49

Esse avanço conceitual precisava, no diretrizes indicam, em certo sentido, uma


entanto, ser expresso em medidas práticas, aproximação com a proposta de Mário de
reivindicação que foi expressa na Carta de Andrade.
Fortaleza, em 1997, encaminhada ao Minis- A experiência brasileira no campo do
tro da Cultura. Os trabalhos então iniciados patrimônio cultural imaterial, embora en-
para o atendimento das reivindicações nela tão ainda incipiente, constituiu importante
contidas levaram à edição do decreto 3551, subsídio para a formulação da Convenção
de 4 de agosto de 2000, que conceituou para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural
“os bens culturais de natureza imaterial que Imaterial, aprovada pela UNESCO em 2003,
constituem patrimônio cultural brasileiro” e transformada no Brasil em lei pelo Con-
(art. 1.º) e, principalmente, institui o instru- gresso Nacional em 2006.
mento adequado – denominado “registro” Uma rápida avaliação da política federal
– para a salvaguarda do então já chamado de patrimônio cultural brasileiro indica avan-
pela UNESCO de patrimônio cultural ima- ços significativos no sentido da elaboração
terial, dando início, no Brasil, a uma nova de novos instrumentos de preservação e da
vertente das políticas de patrimônio. Ou busca pela expressão de nossa diversidade
seja, não apenas a noção de patrimônio se cultural. Na dimensão material dos bens
amplia, como o modo de selecionar bens culturais vem ocorrendo uma expressiva di-
para titulação como Patrimônio Cultural versificação dos bens protegidos, a partir de
Brasileiro, e também para preservá-los de uma leitura abrangente de seu valor como
modo adequado à sua natureza específica, marcas do tempo no espaço. Nas últimas
se diversifica. E, no caso do reconhecimen-
décadas, foram protegidos pelo IPHAN tes-
to, pelo poder público, de bens culturais
temunhos das culturas dos imigrantes eu-
imateriais, são requisitos a participação dos
ropeus, como a paisagem cultural do vale
chamados “detentores” em todas as eta-
do Itajaí (SC), e os bens culturais de imi-
pas do processo, a anuência da comunida-
gração japonesa no vale da Ribeira (SP); de
de envolvida, e a revalidação periódica do
movimentos sociais, como a modesta casa
título. Para a implementação dessa nova
de Chico Mendes em Xapuri (AC); das re-
política pública o IPHAN foi reestruturado,
ligiões afro-brasileiras, como inúmeros ter-
e, em 2003, foram criados o Departamento
reiros; e, recentemente, do acervo de Artur
do Patrimônio Material-DPM e o Departa-
Bispo do Rosário, guardado em sua cela na
mento do Patrimônio Imaterial-DPI, ao qual
Colônia Juliano Moreira (RJ), composto de
veio se integrar, em 2004, o Centro Nacio-
obras executadas com material reaproveita-
nal de Folclore e Cultura Popular-CNFCP, até
do e altamente perecível, mas de reconhe-
então no âmbito da FUNARTE. As orienta-
cida criatividade enquanto “arte asilar”, en-
ções acima citadas vêm sendo incorporadas
tre outros. Quanto ao patrimônio dos povos
também pela política de patrimônio cultural
indígenas, cabe ressaltar o bem-sucedido
material, conforme sua mais recente versão
processo de salvaguarda do primeiro bem
formulada no ano de 2018.3 Essas novas
indígena reconhecido como Patrimônio
3 Portaria n.o 375, de 17 de agosto de 1918, Ministério
da Cultura, IPHAN, Departamento de Patrimônio Cultu-
Cultural Brasileiro – a Arte Kusiwa de pin-
ral e Fiscalização. tura corporal dos Wajãpi (AP), sucesso esse
50  •  Maria Cecilia Londres Fonseca

demonstrado quando da revalidação do tí- expressar distinções entre dois tipos de


tulo, em 2017, ocasião em que esse grupo bens parece conceitualmente imprópria,
indígena demonstrou seu crescente envol- uma vez que não é viável comunicação
vimento, desde a concessão do registro em humana sem um suporte físico que via-
2002, como protagonista da preservação de bilize a construção e transmissão de sen-
suas tradições culturais. Outro caso que me- tidos, haja vista a conceituação linguís-
rece menção pelo seu caráter simbólico é a tica de “signo” a partir da conjunção
superposição de um tombamento e de um entre significante e significado. Por ou-
registro sobre um mesmo sítio, ou seja, seu tro lado, é importante reconhecer que,
reconhecimento como patrimônio cultural de um ponto de vista estratégico, essa
brasileiro tendo como referências contextos distinção foi positiva, na medida em que
culturais diferenciados. Foi o que ocorreu re- veio nomear e viabilizar a preservação
centemente no território de São Miguel Ar- de uma enorme gama de bens culturais,
canjo, na região das Missões (RS): às edifica- contribuindo para tornar mais explícito
ções tombadas em 1938, que abrigaram as o ideal de diversidade cultural no campo
reduções jesuíticas no período colonial, onde do patrimônio, que vem se juntar ao re-
os índios eram catequizados, veio se sobre- conhecimento de nossa biodiversidade.
por o reconhecimento, pelo registro, em 2) Outro desafio a ser enfrentado seria a
2015, da Tava-miri, lugar de referência dos suposta incompatibilidade entre preser-
povos Mbyá Guaranis, que, no mesmo local, vação e desenvolvimento, como tam-
ali reconhecem um bem de caráter sagrado bém lembrou Arno Wehling3. Consi-
e de importante significado para essa etnia.
derados por Aloisio Magalhães (1985,
Mas muitos são os desafios que se apre-
p. 47) indicadores relevantes na busca
sentam atualmente às políticas de patrimô-
de um desenvolvimento sustentável, os
nio cultural, especificamente no Brasil, mas
bens culturais, se devidamente reco-
também no contexto internacional.
nhecidos e respeitados em sua especi-
1) A ampliação do conceito de patrimô- ficidade, constituem – como inúmeras
nio e a consequente diversificação dos experiências o demonstram – um ine-
instrumentos de proteção trouxeram gável recurso na geração de emprego
grandes desafios para as instituições e renda para muitas comunidades, e
responsáveis por essas políticas públicas, também do reconhecimento e da va-
sendo um dos principais, a meu ver, no lorização de suas culturas por parte da
nível das implicações conceituais e práti- sociedade brasileira.
cas da diferenciação entre “material” e 3) Todo esse movimento implicou a aber-
“imaterial”. Considero – como já apon- tura de novas frentes e compromisso
tou Arno Wehling ao lembrar a insepa- com novas responsabilidades por parte
rabilidade entre “res extensa” e “res das agências estatais de patrimônio, tais
cogitans” no pensamento de René Des- como, no caso do IPHAN: a regulamenta-
cartes4 – que o uso desses termos para ção da proteção aos bens arqueológicos,
4 Apresentaçãodo organizador na abertura do ciclo em
pela lei n.o 3.924, de 1961; a adoção da
4 de novembro de 2018. chancela de paisagem cultural em 2009;
U ma breve trajetória do patrimônio cultural brasileiro : políticas , atores , perspectivas   •  51

a instituição do Inventário Nacional da da sociedade brasileira, dos seus bens


Diversidade Linguística – INDL em 2010; culturais, a começar por seu valor como
e a recente participação do IPHAN nos testemunhos de nossa história e de nos-
processos de licenciamento ambiental. sa diversidade cultural. Por exemplo, a
Além do enorme desafio que essa aber- inclusão, no ensino escolar, do tema do
tura significa, ante a carência de recursos patrimônio cultural como recurso didáti-
e de pessoal das agências estatais res- co, seria iniciativa que poderia contribuir
ponsáveis, essas novas funções, bastante para abordagens transdisciplinares, com
complexas, implicam necessariamente grande alcance no sentido da formação
a articulação dos agentes culturais com para o exercício da cidadania.
os de outras políticas públicas, como
Concluindo, é importante não atrelar
nas áreas de meio ambiente, cidades,
o patrimônio apenas à marcha do tempo,
turismo, além, é claro, da fundamental
abordando-o com um olhar dominado pela
interface com as políticas de educação.
nostalgia, mas sempre ressignificando con-
Essa orientação já está expressa na atual
ceitos, ações e valores a partir de um olhar
composição do Conselho Consultivo do
contemporâneo sobre o passado. Nesse
Patrimônio Cultural do Iphan.
sentido, não se deve deixar de considerar
4) No mesmo sentido, a falta de articula-
o patrimônio como recurso fundamental
ção das políticas de patrimônio nos três
para o desenvolvimento econômico e social
níveis da federação resulta, na prática,
e para a busca de melhor qualidade de vida
na adoção de modelos diferenciados, o
para os diferentes grupos da sociedade.
que, em princípio, é positivo, mas, em
Mas ninguém sintetiza melhor, e com
certos casos, se desenvolvidos com base
poesia, a inspiração que orientou este arti-
em princípios divergentes, podem dar
go, do que o compositor e intérprete Pauli-
origem a implicações discutíveis, como
nho da Viola:
concessão de títulos via decretos – tanto
Meu mundo é hoje. Eu não vivo no passa-
do executivo como do legislativo – sem do, o passado vive em mim.
as necessárias pesquisas e consultas pré-
vias aos grupos sociais e, sobretudo, sem Referências Bibliográficas
o imprescindível compromisso do poder CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro & FONSECA,
público com a posterior preservação dos Maria Cecilia Londres. Patrimônio Imaterial no Brasil:
Legislação e Políticas Estaduais. Brasília: UNESCO, Edu-
bens assim titulados. Reduzir a atuação carte, 2008.
CHOAY, Françoise. L’allégorie du patrimoine. Paris: Editions
estatal à mera concessão de títulos certa-
du Seuil, 1992.
mente contribui para a banalização dessa FONSECA, Maria Cecilia Londres. O patrimônio em proces-
so: trajetória da política federal de preservação no Bra-
política pública frente à sociedade, e para sil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2017. 4.ª ed.
a sensação de irrelevância do investimen- GONÇALVES, José Reginaldo. O patrimônio como categoria
de pensamento. In: ABREU, Regina & CHAGAS, Mário
to na preservação de bens culturais. (org.). Memória e patrimônio: ensaios contemporâ-
5) A meu ver, muito mais importantes do neos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, pp. 21-28.
HUGO, Victor. Pamphlets pour la sauvegarde du patri­
que a mera distribuição de títulos, são moine: guerre aux démolisseurs. Barcelone: L’Archange
Minau­taure, 2006.
medidas que contribuam para uma
MAGALHÃES, Aloisio. E Triunfo? Rio de Janeiro: Nova Fron-
maior e melhor apropriação, por parte teira; Brasília: Fundação Nacional pro-Memória, 1985.
Política urbana e patrimônio:
monumento, documento e espetáculo

Marcia Sant’Anna
Doutora em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Bahia, Professora da Faculdade de
Arquitetura e Professora Permanente do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFBA.

Introdução comemorações dos 80 anos desta institui-


ção. A minha esperança, então e agora, é
O problema da preservação e da gestão que esse conjunto de reflexões possa con-
do patrimônio urbano, bem como o da sua tribuir para o enfrentamento produtivo dos
conservação e utilização numa perspectiva desafios contemporâneos da preservação
de respeito à memória, ao interesse públi- do patrimônio urbano e para a superação
co e ao bem comum, me intrigam e me de problemas e dilemas que estão há muito
ocupam como pesquisadora desde os anos tempo colocados.
1990. Com base nesses estudos e observa-
ções é que buscarei traçar neste texto um
breve panorama histórico das concepções e Uma ação pioneira
tratamentos dados à cidade enquanto pa- Em 1937, quando o IPHAN foi criado,
trimônio no Brasil e, a partir dele, apontar não havia no mundo ocidental nenhu-
alguns problemas e desafios que, a meu ver, ma experiência conhecida de preservação
estão colocados no momento. de cidades ou de contextos urbanos mais
Este panorama fundamenta-se nas pes- complexos. O tombamento de seis cidades
quisas que venho realizando há cerca de mineiras em 1938 – Ouro Preto, Mariana,
três décadas sobre este tema, mas se be- Tiradentes, São João del Rei, Diamantina e
neficia também da minha vivência como Serro – por iniciativa da recém-criada insti-
servidora do Instituto do Patrimônio His- tuição foi, portanto, uma ação sem prece-
tórico e Artístico Nacional por cerca de 25 dentes.
anos. O que se apresenta aqui é, portan- A cidade surgiu como um patrimônio
to, uma espécie de síntese desses estudos, no Brasil com funções educativas e de re-
reflexões e vivências em torno do tema da presentação, vinculadas à construção de
cidade-patrimônio, que se baseia, ainda, uma identidade nacional em grande parte
em um artigo que foi publicado na Revista baseada numa noção de arte e de arquite-
do IPHAN no ano passado, por ocasião das tura brasileiras. As cidades tombadas em
Conferência pronunciada na Academia Brasileira de Letras em 18 de outubro de 2018.
54  •  Marcia Sant’Anna

Minas Gerais assinalavam, nesse contexto, isolados foram protegidos nesses contextos
o momento de construção da brasilidade urbanos. O tombamento de cidades, até o
como forma de ser, viver, criar e construir, final dos anos 1950, ficou restrito a núcleos
e funcionavam, ainda, como testemunhos urbanos menores, que estavam mais ou
históricos da sua formação, cultura e arte. menos à margem da dinâmica socioeconô-
Os valores cognitivos e estéticos atribuí- mica da época. Nesses núcleos, contudo, o
dos a elas foram sintetizados na expressão desejo de modernização também impera-
“cidade-monumento”, correntemente utili- va, o que colocava as municipalidades em
zada pelos fundadores do IPHAN nos anos conflito com o IPHAN. Além disso, esses
1930 e 40. Uma expressão que transmite tombamentos eram feitos sem diálogo, o
uma visão dessas cidades como obras de que afastava ainda mais as instâncias muni-
arte unitárias e íntegras, vinculadas ao ur- cipais e os habitantes das tarefas de preser-
banismo que floresceu no interior do Brasil vação. O resultado geral foi uma crescente
no século XVIII. Essa noção orientou a prá- atuação do Instituto em tarefas municipais,
tica de preservação do patrimônio urbano como controle, licenciamento e fiscalização
naqueles tempos e ecoa até hoje, expres- de intervenções, mas sem as competências
sando-se concretamente no aspecto integro e os instrumentos urbanísticos e de política
e homogêneo que essas cidades adquiriram urbana adequados.
a partir da própria atuação do IPHAN.
Mas essa cidade-monumento não fun-
Uma nova função para o
cionava necessariamente em sintonia com
a cidade real. Desde cedo, o IPHAN foi obri-
patrimônio das cidades
gado a lidar com dinâmicas urbanas de cres- Esse modo centralizado de atuar na ges-
cimento e transformação com instrumentos tão das cidades tombadas entrou em crise
inadequados. O instituto do tombamento, nos anos 1950 com o avanço da indus-
por exemplo, não explicita em seu texto trialização do país e com novas dinâmicas
nem um só efeito direta ou claramente apli- que emergiram nessas cidades, devido à
cável ao contexto urbano. A ideia inicial de instalação de indústrias que tornaram algu-
que as prefeituras atuariam como execu- mas delas polos de atração populacional.
toras e gestoras das ações de preservação, Além disso, novas formas de utilizar e gerir
mediante os instrumentos urbanísticos de o patrimônio nos países europeus, após a
que dispõem, malogrou no nascedouro. Segunda Guerra, vinculadas ao turismo cul-
Os anos 1930 foram também marcados tural e ao planejamento urbano, ecoam no
pela ascensão e a progressiva hegemonia da Brasil nos anos 1960, levando a mudanças
noção de “moderno” como ideologia orga- significativas.
nizadora do cenário social, cultural e artís- No final dos anos 1960, como resulta-
tico. Ser “moderna” era, assim, uma meta do de uma cooperação estabelecida com
de cada cidade, e os fundadores do IPHAN a UNESCO, novas diretrizes para a preser-
a acolhiam principalmente nas grandes ca- vação do patrimônio urbano foram estabe-
pitais. Por isso, nessas primeiras décadas lecidas com consequências importantes na
de atuação institucional, apenas edifícios seleção de cidades a serem protegidas, no
P olíti c a u rb a n a e pat r im ô n i o : m o n ume n to , d o cu m e n to e e s p e t ác u l o   •  55

aproveitamento do seu patrimônio e da- – propiciou a formulação de uma nova linha


quelas que já haviam sido tombadas. Novas de ação no começo dos anos 1980, quando
funções surgem agora para essas cidades a crise econômico-financeira do país fechou
como polos dinamizadores do desenvolvi- os fundos federais que supriam o PCH. A
mento econômico e urbano local por meio partir de uma crítica aos limites do turismo
do turismo cultural, e como geradoras de cultural, partiu-se em busca da preservação
recursos para sua própria conservação. Es- sustentada das cidades tombadas por meio
ses novos papeis impulsionaram então a do planejamento urbano e de políticas que
formulação de políticas governamentais enfatizassem o aproveitamento habitacio-
mais amplas, como o Programa de Cidades nal do patrimônio construído. Mas, para
Históricas (PCH), criado em 1973 (CORRÊA, além de uma experiência exemplar reali-
2016). zada em Olinda, voltada para a recupera-
O PCH é, de fato, um marco dessas ção de imóveis para uso habitacional em
mudanças, pois modernizou a organização parceria com o antigo Banco Nacional da
institucional da preservação do patrimônio Habitação (BNH), pouco se realizou neste
no Brasil. Um dos seus principais resultados sentido. Com o fim do PCH, em 1985, o
foi induzir a criação de organismos estadu- sistema que integrava o IPHAN e os organis-
ais, que passaram a complementar a ação, mos estaduais desestruturou-se totalmente.
até então, isolada do IPHAN, conformando O patrimônio das cidades brasileiras, que
temporariamente um sistema nacional em deveria ser tratado de modo coordenado
que as instituições federais exerciam fun- por todas as esferas de governo, viu-se di-
ções coordenadoras e de fomento, cabendo vidido em patrimônios protegidos por siste-
às estaduais a execução dos projetos. Esse mas de preservação isolados, superpostos e
arranjo ampliou o território de atuação do impermeáveis uns aos outros.
Instituto e propiciou também sua moderni- As transformações ocorridas nos anos
zação administrativa. 1970 impactaram a seleção de cidades para
O programa se propunha, inicialmente, tombamento e a prática de conservação do
a promover a conservação do patrimônio e patrimônio urbano protegido. A percepção
o desenvolvimento econômico das cidades da cidade como um monumento ou obra
históricas do Nordeste através do turismo. de arte acabada, ainda orientava as inter-
Para tanto, investimentos foram feitos na venções na maioria dos casos, mas outros
recuperação e adaptação de edificações predicados urbanos emergiam no momento
para abrigar hotéis, pousadas e outros ele- da decisão do que proteger e conservar. O
mentos da infraestrutura turística. Aposta- “potencial turístico” das localidades pas-
va-se que esses investimentos funcionariam sou a ser levado em conta, expressando-se
como propulsores de um processo susten- concretamente no tombamento de cidades
tável e progressivo de recuperação do pa- pitorescas ou imersas em contextos de be-
trimônio urbano, a ser alimentado também leza natural, como as da Chapada Diaman-
por investimentos privados. Esses objeti- tina na Bahia. Em articulação com sua nova
vos, contudo, não foram atingidos, mas a função econômica, o patrimônio urbano
experiência – na realidade, o seu malogro foi redefinido como patrimônio ambiental,
56  •  Marcia Sant’Anna

e sua conservação adquiriu objetivos mais centralizada e mesmo, por vezes, autoritária
paisagísticos e menos atrelados à restaura- que o IPHAN ainda mantinha com relação ao
ção ou recomposição de cenários históricos. que tombar e como gerir a coisa tombada,
A interpretação modernista do nascimento embora, no que toca ao patrimônio urbano,
identitário e cultural do Brasil nas cidades alguns avanços devam ser registrados. Nes-
mineiras foi sendo, assim, superada pela se sentido, cabe ressaltar a emergência de
valorização econômica e pragmática dos uma nova concepção de patrimônio urbano
cenários pitorescos do Nordeste. que valorizava as cidades como documen-
tos da consolidação do território nacional e
dos processos históricos de formação, de-
Uma revolução conceitual
senvolvimento e produção do espaço urba-
e política no. Essa concepção, que proponho denomi-
Os anos 1980 foram marcados pelo fim nar de “cidade-documento” (SANT’ANNA,
da ditatura militar, pelas consequências da 2014, pp. 261-321), promoveu impactos
crise econômica e financeira dos anos 1970 significativos na seleção de cidades para
e pelo processo de redemocratização do tombamento e também na conservação das
país. Nesse processo, a cultura foi afirmada que já estavam tombadas. As áreas urbanas
como um direito fundamental dos cidadãos deixaram de ser selecionadas apenas com
brasileiros, surgindo na Constituição de base em seus atributos estéticos e paisagís-
1988 uma nova concepção de patrimônio ticos, passando a ser escolhidas em função
cultural, que, conceitualmente, colocou por dos elementos e informações que contêm
terra aquela praticada desde os anos 1930. sobre esses processos históricos. Com isso,
O patrimônio cultural foi redefinido em suas os elementos associados ao patrimônio ur-
dimensões material e imaterial e nas suas bano se estenderam para além das edifica-
variadas expressões, a partir de um vínculo ções, incorporando-se as características do
fundamental estabelecido com os “grupos sítio físico, da trama viária, do parcelamen-
formadores da sociedade brasileira”.1 Esses to, das formas tradicionais de ocupação do
grupos, oriundos de várias matrizes cultu- solo e das relações entre o construído e o
rais, foram, por sua vez, definidos como não-construído, em seus traços originais
sujeitos e intérpretes do patrimônio, além e também naqueles transformados pelo
de agentes fundamentais para sua conser- processo histórico. Setores urbanos, antes
vação e gestão. A competência, antes ex- definidos como “feios”, heterogêneos ou
clusiva do Estado e seus representantes, de fragmentados, cuja proteção, até então,
determinar o que é patrimônio desloca-se era impensável, surgem valorizados como
para a sociedade. Ao poder público, cabe documentos fundamentais para a memória
agora, principalmente, a função de apoiar urbana e social.
esse processo de construção social. A conservação dessa cidade-documento
Essa nova e mais ampla concepção de deixou de ter, assim, objetivos estéticos e
patrimônio pouco repercutiu na forma de recomposição de cenários do passado.
Passa-se a defender a preservação das mar-
1 Artigo 216 da Constituição Federal. cas deixadas pelo tempo no espaço urbano,
P olíti c a u rb a n a e pat r im ô n i o : m o n ume n to , d o cu m e n to e e s p e t ác u l o   •  57

acolhendo-se, finalmente, como digna de outra que se configurou já no começo dos


preservação a arquitetura do Ecletismo vi- anos 1990, quando uma nova conjunção
gente no século XIX e começo do XX, que de agentes públicos e privados ganha espa-
antes era definida pelos fundadores do ço na preservação e no aproveitamento do
IPHAN como “anomalia” ou “falsa arquite- patrimônio das cidades.
tura”, indigna de conviver, nas cidades tom-
badas, com a “boa e verdadeira tradição”
A era da cidade-atração
do período colonial (COSTA, 1931; COSTA,
1937, p. 39). A reestruturação e descentralização
Em função da crise econômica nos anos das atividades produtivas após a crise do
1980, que impactou violentamente os in- sistema capitalista nos anos 1970, a mun-
vestimentos públicos, essa reviravolta con- dialização da economia, os avanços tecno-
ceitual pouco se expressou em termos prá- lógicos e a crise do Estado de Bem-Estar
ticos, ficando circunscrita ao tombamento Social atingiram os países centrais e muitas
de alguns sítios urbanos, localizados no de suas cidades, tendo como consequên-
Sul e Centro-Oeste do país. O problema da cias a desestruturação econômica, o au-
gestão das áreas urbanas tombadas basi- mento do desemprego, a precarização do
camente permaneceu, a despeito da con- trabalho e o esvaziamento de setores urba-
solidação das portarias da presidência do nos e equipamentos como portos, plantas
IPHAN como instrumentos de explicitação industriais, dentre outros. Diante do novo
e detalhamento dos critérios de interven- papel de planejamento e criação de pro-
ção nessas áreas e da elaboração do In- dutos que foi assumido por várias dessas
ventário Nacional de Bens Imóveis – Sítios cidades do chamado Primeiro Mundo, no-
Urbanos, metodologia de levantamento de vas funções foram atribuídas a esses vazios
dados históricos, morfológicos e socioeco- urbanos, em geral, vinculadas à cultura, ao
nômicos que visava ao aperfeiçoamento turismo, ao lazer, a atividades do terciário
dessa gestão. avançado e à produção imobiliária para es-
Apesar de seus parcos resultados práti- tratos sociais de renda elevada. Um urba-
cos e do seu baixo impacto na transforma- nismo de perfil pragmático começou, as-
ção da prática, a década de 1980 foi im- sim, a ser praticado nas cidades e em seus
portante pela crítica ao caráter autoritário sítios históricos (HALL, 1995, pp. 407-428;
dos tombamentos urbanos e pela criação ARANTES, 2000, p 24).
de incentivos fiscais à ação privada de pre- As intervenções urbanas nas áreas por-
servação, que fundamentaram os grandes tuárias de Barcelona e Bilbao estão entre as
programas de incentivo à cultura que exis- mais comentadas dessa safra. A partir de-
tem hoje. O período foi, sobretudo, con- las, difundiu-se mundialmente o discurso
ceitualmente rico, pois uma concepção de do “planejamento urbano estratégico”, no
patrimônio urbano mais abrangente e so- qual a “requalificação”, a “regeneração”
cialmente mais inclusiva foi afirmada com a ou a “revitalização” de setores urbanos
noção de cidade-documento. Essa concep- são definidas como fundamentais para a
ção, entretanto, logo perdeu espaço para dinamização econômica, para a atração de
58  •  Marcia Sant’Anna

atividades e novas dinâmicas, com base no investimentos públicos e privados,2 passan-


aproveitamento do patrimônio construído. do a alimentar a formulação de programas
Essa concepção logo foi exportada para os nacionais de preservação, entre os quais, no
países periféricos. Brasil, o Programa Monumenta foi o mais
Nas principais cidades brasileiras esse importante. Esse novo momento pode ser
tipo de intervenção começou a ser prati- sintetizado na expressão “cidade-atração”.
cado, de modo mais sistemático, nos anos No desenvolvimento dessa nova abor-
1990, nos centros históricos deteriorados dagem o poder público desempenhou um
ou esvaziados de grandes cidades. Impul- papel fundamental de promotor e finan-
sionou a reafirmação da função econômi- ciador de intervenções que, contudo, não
ca do patrimônio urbano e sua redefinição chegaram a alavancar os investimentos pri-
como recurso estratégico da competição vados esperados devido a um conjunto de
entre cidades. No campo da preservação, fatores que distinguem nossas cidades das
essa forma de intervenção foi incorporada europeias ou americanas. Um dos princi-
como o caminho para uma conservação pais, diz respeito à insuficiência de mercado
sustentada do patrimônio urbano, inclusi- consumidor, na medida em que segmentos
ve mediante a renovação dos seus vínculos de renda mais alta não têm interesse em
com o turismo e o lazer. O projeto de 1992 viver e, raramente, de consumir nas áreas
que criou o shopping turístico a céu aberto centrais de grandes cidades, o que as torna
na área do Pelourinho, em Salvador, inau- desinteressantes para investimentos imobili-
gurou esse tipo de intervenção, que, rapi- ários ou comerciais. Ademais, essas centrali-
damente, se tornou referência para várias dades urbanas mais antigas competem com
cidades do Nordeste. O Rio de Janeiro e outras mais novas, que concentram dinâmi-
São Paulo enveredaram, com suas próprias ca imobiliária e comercial mais forte e ve-
nuances e especificidades, por um cami- tores de investimento consolidados, o que
nho análogo. lhes tira força de atração. As intervenções
O IPHAN, cuja situação de fragilidade que lograram sair do papel – e isso ocorreu
institucional e financeira havia se agravado principalmente no Nordeste – produziram,
ao longo dos anos 1990, foi um espectador no máximo, guetos turísticos dependentes
passivo desses novos espetáculos urbanos de fluxos insuficientes e sazonais, desarticu-
ou, por vezes, uma pedra no seu caminho, lados da dinâmica cotidiana das áreas que
ainda que sem força para modificá-los. Os os envolvem.
agentes públicos fundamentais dessas in- O fracasso desses projetos urbanos, ain-
tervenções foram governos estaduais e, da nos anos 1990, abriu espaço, em cidades
sobretudo, prefeituras de grandes cidades,
2Nos anos 1960 e 1970 essas agências internacionais
impulsionados por financiamentos conce- de financiamento também atuaram na América Latina
didos por agências internacionais como o com projetos de aproveitamento turístico do patrimô-
nio urbano na esteira do discurso das chamadas Nor-
Banco Interamericano de Desenvolvimento mas de Quito, de 1967 – documento resultante da Reu-
(BID) e o Banco Mundial. Essas agências nião sobre Conservação e Utilização de Monumentos
e Lugares de Interesse Histórico e Artístico, promovida
haviam, à época, redescoberto o patrimô- pelo Departamento de Assuntos Culturais da Organiza-
nio urbano como uma nova fronteira para ção dos Estados Americanos (OEA).
P olíti c a u rb a n a e pat r im ô n i o : m o n ume n to , d o cu m e n to e e s p e t ác u l o   •  59

como São Paulo, para o surgimento e forta- explica o surgimento dos mesmos produtos
lecimento de movimentos sociais que pas- imobiliários em áreas centrais, zonas de ex-
saram a reivindicar permanência e moradia pansão e em vazios urbanos das mais distin-
nas áreas centrais e, ainda, para o surgi- tas cidades do mundo.
mento de programas voltados para a pro- Na última década, diversos autores
dução habitacional nessas áreas, destinados (HARVEY, 2011; PIKETTY, 2014; JAPPE,
a faixas de menor renda.3 Essas iniciativas, 2015) têm apontado o esgotamento da ca-
contudo, esbarraram na fragilidade e na pacidade do sistema capitalista de produzir
inadequação da política e dos instrumentos crescimento econômico e de absorver exce-
de financiamento habitacional no Brasil e dentes de capital, bem como de incorporar
em entraves diversos de natureza urbana, à produção e, principalmente, ao consumo,
fundiária, tecnológica e política, o que pre- todo um contingente populacional margi-
judicou o seu desenvolvimento e resultados, nalizado. A exploração de mercados con-
a despeito de focalizarem demandas reais e sumidores emergentes mediante ampliação
de promoverem um uso socialmente mais do crédito para aquisição de imóveis e para
significativo do patrimônio urbano. produção do espaço urbano, assim como
a procura de taxas adequadas nos merca-
dos financeiros, têm sido as saídas mais
Desdobramentos
constantemente buscadas para essa crise
contemporâneos de acumulação. No que toca ao ambiente
Os acontecimentos da última década construído, essa busca por acumulação se
têm demonstrado a continuidade, no Bra- torna especulativa e tenta lucrar com a ex-
sil, desses processos de apropriação do pectativa de transformação, não importan-
patrimônio urbano deslanchados nos anos do se ela vai ou não se realizar. O espaço
1990. Em grande parte, porque a produção construído provê, assim, um conjunto de
do espaço urbano manteve-se, neste início ativos passíveis de exploração ou de títulos
do século XXI, como uma das principais negociáveis no mercado financeiro, que não
formas de acumulação de capital (HARVEY, têm vínculos necessários com demandas re-
2011, p. 143). Como aponta Raquel Rolnik ais de produção imobiliária ou de provisão
(2015, pp. 143-155), os sistemas de crédito de novas estruturas urbanas (Harvey, 2011,
que a apoiam têm como principal finalidade pp. 137-147).
a remuneração dos capitais investidos e isso Nos anos 1980 e 90, os projetos urba-
tem transformado os processos de reestru- nos esttratégicos, como visto, mantinham
turação urbana – inclusive os que envolvem um vínculo importante com o patrimônio
o patrimônio – em fronteiras abertas para urbano, mas o que se verifica agora é uma
o capital financeiro e imobiliário, o que relativa perda de importância desse aspecto.
Apesar de a paisagem urbana histórica per-
3 São exemplos o Programa de Revitalização de Sítios

Urbanos (PRSH), criado no ano 2000 pela Caixa Eco-


manecer produzindo diferenciais competiti-
nômica Federal, o Projeto da 7.ª Etapa do Programa de vos, além de legitimando a necessidade de
Recuperação do Centro Histórico de Salvador e com-
ponentes do Programa de Reabilitação do Centro, da
intervenções, observa-se um foco na cria-
Prefeitura de São Paulo, de 2003. ção de novos potenciais construtivos como
60  •  Marcia Sant’Anna

um dos principais elementos de atração. Na das intervenções, sobem imediatamente de


cidade do Rio de Janeiro, a Operação Urba- preço. Na zona portuária do Rio já subiram
na Consorciada Porto Maravilha (OUCPM) 500% (GALIZA, 2015). Isso ajuda a compre-
pode ser apontada como uma referência ender porque, em Salvador, edificações e
desses desdobramentos, na medida em que terrenos no centro histórico são comprados
disponibiliza cerca de 4 milhões de m2 de para não se fazer nada com eles e porque,
potencial construtivo novo, a ser comercia- no Rio, potenciais construtivos claramen-
lizado por meio de cerca de 6,4 milhões de te exagerados são postos à disposição do
títulos mobiliários negociáveis no mercado mercado, mesmo sabendo-se que dificil-
financeiro denominados Certificados de Po- mente serão utilizados. O crescimento da
tencial Adicional de Construção (CEPAC). importância do setor público como agente
Investidores podem negociar os títulos pos- facilitador e viabilizador dessas estratégias
tos à disposição no mercado, embora, até é, certamente, um traço importante do pa-
o momento, no caso do Porto Maravilha, o norama atual.
grande investidor tenha sido o FGTS – um A concepção de patrimônio urbano que
fundo público – que adquiriu através de seu sustentou a noção de cidade-atração nos
gestor, a Caixa Econômica Federal, todos os anos 1990, que privilegiava as fachadas, a
CEPACs criados, com vistas a viabilizar fi- cenografia urbana e desconsiderava os de-
nanceiramente a operação (GALIZA, 2015, mais elementos materiais e imateriais que o
p. 102-103).4 Assim, FGTS e CEF – e não compõem, teve continuidade nas décadas
os desejados investidores privados – assumi- seguintes. Mas esses aspectos têm sofrido,
ram todos os riscos da operação. agora, um certo rebaixamento e uma relati-
Os últimos anos se caracterizam, assim, va perda de importância, em favor da cria-
pelo aperfeiçoamento dos instrumentos fi- ção de paisagens urbanas onde arquiteturas
nanceiros, legais e urbanísticos destinados caracterizadas pela ousadia formal ou pelo
não a melhorar a gestão do patrimônio ur- padrão internacional das torres corporativas
bano protegido, mas a concretizar os ob- ganham destaque e superam o patrimô-
jetivos de reprodução e de acumulação do nio como elemento de atração e consumo
capital por meio de projetos urbanos que visual.
articulam patrimônio e produção imobiliária Mas, se nos anos 1990, os movimen-
de alto padrão. Operações urbanas, como tos sociais de resistência, de reivindicação
a do Porto Maravilha, propiciam especular de participação e de afirmação do direito
não só com títulos como os CPACs, mas à cidade eram mais ou menos restritos a
também com edificações e terrenos, que, São Paulo, a realidade agora é outra. Em
com a mera expectativa do desenvolvimento várias cidades e de formas diversas, esses
4 Segundo o site da OUCPM, o valor inicial e unitário movimentos têm mobilizado habitantes,
dos CEPACs, tal como adquiridos pelo FGTS, era de R$ denunciado ilegalidades e afrontas ao inte-
545,00, sendo atualmente cotado em R$ 1.706,03.
Contudo, o total de CEPACs consumidos até o mo-
resse público, inclusive por meio da judicia-
mento corresponde a apenas 8,74% do total dispo- lização dessas operações de transformação
nível. Fonte: http://www.portomaravilha.com.br/con-
teudo/canal_investidor/planilha_estoques-2t16.pdf
do ambiente construído nas áreas de va-
acesso em 23/6/2017. lor patrimonial. Aqueles que são afetados
P olíti c a u rb a n a e pat r im ô n i o : m o n ume n to , d o cu m e n to e e s p e t ác u l o   •  61

negativamente por essas intervenções não GALIZA, Helena Rosa dos Santos. Reabilitação de Áreas
Centrais sem Gentrificação. (Tese de Doutorado). Rio
são mais, portanto, espectadores passivos, de Janeiro: UFRJ/FAU, 2015.
HALL, Peter. Cidades do Amanhã: uma história intelectual
mas sim, cada vez mais, atores fundamen-
do planejamento e do projeto urbanos no século XX.
tais das conjunturas nas quais essas novas São Paulo: Ed. Perspectiva, 1995.
HARVEY, David. O enigma do capital: as crises do capitalis-
atrações/explorações urbanas buscam se mo. São Paulo, SP: Boitempo, 2011.
enraizar. Só nos resta esperar que, na con- JAPPE, Anselm. We Gotta Get Out of This Place – In Con-
versation with Alastair Culture, September 8th, 2015.
juntura política atual, esses movimentos Disponível em: http://www.brooklynrail.org/2015/09/
field-notes/anselm-jappe-with-alastair-hemmens.
sociais possam continuar se expressando e
Acesso em 13/4/2016.
defendendo uma apropriação mais justa e MAGALHÃES, Aloísio. E Triunfo? A questão dos bens cultu-
rais no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; [Brasília]:
socialmente mais significativa do patrimô- Fundação Nacional Pró-Memória, 1985.
nio das cidades. MOTTA, Lia. A Sphan em Ouro Preto: uma história de concei-
tos e critérios. In: Revista do Patrimônio Histórico e Artís-
tico Nacional, Rio de Janeiro, n.o 22, pp. 108-122, 1987.
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TO, Ermínia. A cidade do pensamento único: desman- Intrínseca, 2014.
chando consensos. Petrópolis: Vozes, 2000. pp.11-74. ROLNIK, Raquel. Guerra dos lugares: a colonização da terra
BONDUKI, Nabil. Intervenções Urbanas na Recuperação de e da moradia na era das finanças. São Paulo: Boitem-
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COSTA, Lucio. Uma escola viva de Belas Artes. In: O Jornal, cumento: a norma de preservação de áreas urbanas
Rio de Janeiro, 31 jul. 1931. no Brasil – 1937-1990. Salvador: Oiti Editora, 2014.
_____. Documentação Necessária. In: Revista do Patrimônio _____. Patrimônio Urbano e Patrimônio Imaterial: problemas
Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, n.o 1, pp. e desafios contemporâneos. In: MIGUEZ, Paulo et all
31-39, 1937. (orgs). Diversidade Cultural: políticas, visibilidades midi-
CORRÊA, Sandra Magalhães. O Programa de Cidades His- áticas e redes. Salvador: EDUFBA, 2015, pp. 115-133.
tóricas: por uma política integrada de preservação do _____. A cidade-atração: a norma de preservação de áreas
patrimônio cultural urbano. Anais do Museu Paulista, centrais no Brasil dos anos 1990. Salvador: EDUFBA,
Abr. 2016, vol.24, n.o 1, pp.15-58. 2017.
As falsas dicotomias do
patrimônio cultural

Ulpiano T. Bezerra de Menezes


Professor do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

Introdução modos de fazer, crenças, valores, práticas,


tradições etc. Não vou aqui discorrer so-
Para falar de patrimônio cultural julguei bre tema tão complexo e de longa história.
oportuno inspirar-me num movimento in- Apenas direi que nada dessa formulação
ternacional de revisão de conceitos e prá- descritiva explica uma matriz cultural, e sim
ticas proposta desde 2010 por uma Asso- apenas expressa produtos ou sintomas des-
ciação Internacional de Estudos Críticos do sa matriz. Não é qualquer modo de ser ou
Patrimônio. Calhou que, no Brasil, desde de fazer que pode ser considerado cultural.
1998, a nova Constituição Federal ensejou O protocolo de um robô produz modos de
uma renovação de conceitos, a partir da fazer, mas não cria uma cultura robótica.
aceitação do patrimônio cultural, enfim, Cultura robótica é coisa de humanos e soli-
como fato social. Não se eliminou, porém, cita outros requisitos.
a persistência de algumas perniciosas dico- Se, porém, tomarmos como premissa
tomias sobre as quais convém refletir. Esco- a cultura entendida na forma de um po-
lhi apenas cinco, entre as mais relevantes: tencial de qualificação (diferencial), pelos
cultura vs. “cultura”, material vs. imaterial, sentidos, de qualquer segmento, momen-
processo vs. produto, valores imanentes vs. to, contexto da vida social, começaremos
valores contingentes e, finalmente, conti- a entender o que distingue radicalmente o
nuidade vs. ruptura. comportamento humano (culturalizado) do
comportamento animal (tão só biologica-
Cultura e “cultura” (ou razão mente programado). Assim, alimentar-se,
para nós, não é apenas nutrir-se (assegurar
social versus razão técnica a sobrevivência própria e a de seus depen-
Ao falarmos de patrimônio cultural, cos- dentes), mas catalisa formas, significados,
tuma ficar implícita a noção de cultura. No valores, propósitos variados: já o filhote de
máximo se diz partir de um conceito antro- leão, por exemplo, ignora o que seja um
pológico em que a cultura inclui hábitos, almoço de aniversário. Melhor exemplo
Conferência pronunciada na Academia Brasileira de Letras em 25 de outubro de 2018.
64  •  Ulpiano T. Bezerra de Menezes

ainda: um banquete, pelas proporções, a atenção, como as feiras nordestinas? A


deveria ser uma refeição para os mais fa- matéria-prima de que é feita qualquer feira
mintos e mais numerosos – e costuma ser popular está ali presente. Mais que qual-
justamente o inverso. quer singularidade, o que se deve levar
A qualificação de que falo deriva de em conta é a intensidade e consistência
escolhas, mas as que importam são as de com que a Feira de Campina Grande tem
nível coletivo e que se expressam por pa- funcionado dentro de padrões comunitá-
drões. Não são aleatórias, mas realizam rios aptos a qualificá-la culturalmente, isto
significados, valores, expectativas, cons- é, de fazer que tudo aquilo que uma fei-
ciente ou inconscientemente. E, por óbvio, ra faz seja feito com uma espécie de fer-
são históricas, isto é, além de produto de mento que também faz crescer sentidos,
forças dinâmicas, atuando no contexto, significados e valores capazes de favorecer
continuam a elas permanentemente sujei- inteligibilidades, horizontes de reorganiza-
tas. Acresce que a qualificação é diferen- ção simbólica dos diversos modos de ser
cial, isto é, separa e hierarquiza. Entendo humano, combustível para ações de todo
por valor cultural precisamente esse po- tipo, inclusive na resistência a ameaças.
tencial diferencial segundo significados. Mas o que significa registrar a Feira de
Tocar violino – como modo de fazer, como Campina Grande como patrimônio brasileiro?
processo, como memória-hábito – pode A patrimonialização é normalmente
ser comparado a guiar um carro ou andar considerada a seleção objetivada de bens,
de bicicleta – mas do ponto de vista do mas deslocada dos contextos em que foi
valor cultural não ocupam o mesmo lugar gerada e opera, impondo-se tempos e di-
na escala. nâmicas diferentes e tendo em geral como
Podemos considerar que o que chama- sua principal justificativa a preservação do
mos de patrimônio são os conjuntos sele- que se representou.
cionados de espaços, coisas e práticas com Esta metamorfose pode ser claramen-
que os grupos humanos transformam em te percebida num cartum que há tempos
ação, para introduzir no mundo real, seus encontrei numa revista americana. Trata-
sentidos, crenças, valores, motivações, as- -se de cena passada no interior de um
pirações – com recursos recebidos do pas- museu (tudo leva a crer que seja o Mu-
sado, apropriados, inovados, ressignifica- seu de História Natural em Nova Iorque),
dos, negados ou transformados e sempre em que um índio vestido de tanga, todo
sujeitos a transformações. O cultural não paramentado de narigueiras de ouro e
existe em si. Só existe incorporado: é um adornos de penas e portando o que pare-
adjetivo, não um substantivo. Um exemplo ce ser um punhal além de um porquinho,
justificará tal afirmação. A Feira de Cam- passa diante de um vigia e lhe pergunta,
pina Grande foi recentemente registrada esbaforido: onde ficam os altares sacrifi-
como patrimônio cultural brasileiro, e tive ciais da Polinésia? Não há resposta, mas a
a honra de ser o relator do pedido. Mas em reação de surpresa do vigia permite supor
que difere ela, substantivamente, de um como resposta: Sr. Aborígene, aqui não
sem-número de feiras que têm despertado é lugar de sacrifícios sangrentos; somos
As fa lsa s d ic oto m i as d o pat r i m ô n i o c u lt u r a l   •  65

civilizados e apenas os representamos Prova de uma interação positiva tive numa


como referências! experiência pela qual passei na mesma vi-
Com efeito, a musealização (que é uma sita de campo a Campina Grande, já refe-
variante da patrimonialização) funciona rida. Ao final de uma das “manifestações
como poderoso metamorfoseador de sig- culturais” a que estive presente, um bêbado
nificações, transfigurando as trajetórias ori­ que perambulava pela Feira e se sentou ao
ginais dos objetos na vida corrente. Um re- meu lado, abriu um sorriso e disse na voz
lógio, por exemplo, é um artefato destinado pastosa dos bêbados, pela qual muitas ve-
ao registro da passagem do tempo; con- zes se desvelam verdades profundas: “Isso
tudo, ninguém vai ao Museu dos Relógios é que é cultura!”. Não ouso imaginar o que
para saber que horas são, mas para outras ele pensasse ser cultura nem o que fosse
fruições (por exemplo: conhecimento, con- “isso” e muito menos se ele considerava a
frontos, apreciação estética, devaneio etc.) Feira patrimônio cultural imaterial brasilei-
O museu é um conversor da biografia das ro. Tenho certeza, porém, de que sua fala
coisas. E isso pode ter aspectos muito positi- expressava uma sensação de prazer e orgu-
vos que não me cabe discutir aqui. lho: afinal, ele estava tendo acesso pessoal
Quando, em nome do Estado, reco- e direto a um bem, isto é, algo bom – ain-
nhecemos a existência de um patrimônio da que tomasse de empréstimo aos espe-
cultural, introduzimos, sempre, ingre- cialistas, para reforço de reconhecimento,
dientes externos na intimidade da esfera o termo que Manuela Carneiro da Cunha
cultural observada e de sua dinâmica, o transcreve entre aspas – “cultura”, para,
que nos obrigaria a considerar que esta- com muita felicidade, aproveitar-se do efei-
mos participando da construção de algo to que esse sinal gráfico tem para designar
diverso do vivido – basicamente uma re- um enunciado que posso até assumir, mas
presentação. sem a responsabilidade de tê-lo gerado. No
Entretanto, no exemplo de Campina caso, significa que não é mais propriamente
Grande, parece não haver essa dicotomia a cultura vivida no seu próprio fluxo. Meu
extremada entre cultura vivida e cultura pa- interlocutor já estava contaminado pela me-
trimonializada. A diferença está nos modos talinguagem.
de fruição. Como suponho ocorrer com o Por último, uma observação sobre a
índio do cartum nas suas práticas religiosas impropriedade da dicotomia razão social
fora do museu, os feirantes e todos os que (o patrimônio considerado como fato so-
participam da Feira dela desfrutam por ex- cial) versus razão técnica (o patrimônio dos
periência, não por contemplação, que é o especialistas), dicotomia que só existe nas
modo próprio de fruir representações – in- más práticas profissionais, de tipo autoritá-
clusive as práticas transformadas em repre- rio e alcance científico restrito. Aquilo que
sentação, como espetáculo. vem circulando, internacionalmente, objeto
Quero crer que não só é possível, mas de crítica severa, como AHD na sigla em
necessário, procurar meios de diminuir o inglês de Authoritative Heritage Discourse
fosso entre as práticas e as representações, (Discurso Patrimonial Autoritário), expres-
mesmo que de maneira difusa e incompleta. são sugerida por Laurajane Smith.
66  •  Ulpiano T. Bezerra de Menezes

Material e imaterial (ou Hodder, o conceito hoje prestigiado no flo-


rescente campo de estudos da cultura ma-
sujeitos versus coisas)
terial e da arqueologia: o de entanglement,
O filósofo italiano Roberto Esposito, emaranhado, enredamento, armadilha que
numa obra recentemente traduzida para o impede a fuga da coisa e da pessoa, obriga-
português, As pessoas e as coisas, analisa das a interagir permanentemente, a produ-
criticamente a tradição ocidental, com raiz zir-se (no sentido social) mutuamente, em
no direito romano, que opõe polarmente várias dimensões e combinações.
pessoas e coisas. A distinção é marcada Se separarmos pessoa e coisa, estare-
pelo direito de propriedade. Ser livre é ser mos separando do mundo real o patrimô-
proprietário de si e de coisas, que estão a nio cultural, seja ele material ou imaterial.
seu serviço, submetidas à servidão, como Laurajane Smith, preocupada com o caráter
tácitos escravos – os escravos falantes, por da ação humana e a capacidade das coisas
sua vez, são tratados na condição de coisas. no patrimônio cultural, diz que a palavra
A dignidade é exclusiva das pessoas pro- patrimônio deveria ser usada como verbo,
prietárias das coisas, cujo usufruto inclui até não como substantivo. Como verbo, sim,
a eliminação gratuita. No entanto, pode-se mas acrescento, como verbo transitivo di-
observar nas práticas legais, econômicas e reto, aquele que demanda um objeto para
tecnológicas em nossos tempos, confusões completar seu sentido e produzir efeitos.
de pessoas com coisas, e coisas que pare- Se passarmos a examinar nossa pro-
cem ter assimilado um conteúdo pessoal. blemática do patrimônio cultural na ótica
De todo modo, quando entra em cena o da ordenação jurídica, verificaremos que
estatuto do corpo, a dicotomia radical entre a norma constitucional de 1988 resolveu,
pessoas e coisas se vê abalada. Com efeito, finalmente (ainda que só como norma...),
o corpo nem é inteiramente pessoa nem in- problema demográfico que afligia nosso
teiramente coisa, mas oscila num clima de campo desde sua institucionalização em
ambiguidade que Esposito bem exemplifi- 1937: a ausência de pessoas.
ca com a subtração de um embrião ou de Cito o famoso artigo 216: “Constituem
um cadáver: trata-se de roubo (de coisa) patrimônio cultural brasileiro os bens de na-
ou sequestro (de pessoa)? O corpo, assim, tureza material e imaterial, tomados indivi-
mostra-se capaz de transformar essa rela- dualmente ou em conjunto, portadores de
ção e prover uma “rota de escape” à opo- referência à identidade, à ação, à memória
sição excludente e degradante. Penso no dos diferentes grupos formadores da socie-
antropólogo francês Philippe Descola, um dade brasileira, nos quais se incluem” [aí
dos que militam pela paridade de direitos vem uma listagem de exemplos].
de humanos e não humanos, caminho para Até então o patrimônio estava fantas-
o equilíbrio no pacto com a natureza. magoricamente povoado de coisas autossu-
Não existem pessoas sem coisas, tam- ficentes. Ao transferir a matriz do valor cul-
bém não existem coisas sem pessoas; bas- tural do Estado para as práticas sociais de
ta, portanto, eliminar nossa tendência de identidade e memória, a Constituição intro-
pensar com polaridades e aceitar, com Ian duziu na arena a figura do sujeito, porque
As fa lsa s d ic oto m i as d o pat r i m ô n i o c u lt u r a l   •  67

somente sujeitos podem exercer identidade pessoas/coisas, sujeito/objeto, ativo/passi-


e memória. Identidade e memória (esta úl- vo. Na verdade, o processo de referência
tima, suporte insubstituível da identidade) tem sempre dupla mão de direção.
são atributos de sujeitos, agora transforma- Seja como for, material e imaterial são
dos em protagonistas; agora as coisas são opostos, sim, mas não se excluem – e a
referências. Constituição define uma única matriz para
A validação constitucional da “referên- todo tipo de patrimônio cultural – o que, na
cia”, categoria operada amplamente já nos prática das agências de preservação não bas-
anos 1990 por Aloisio Magalhães, abriu ho- tou para diminuir o abismo que ainda separa
rizontes extremamente férteis. o tratamento do patrimônio material do ima-
Tem-se que salientar, contudo, algumas terial – mesmo quando se aceita a perma-
limitações da referência quando ela é to- nente interação do imaterial com o material.
mada como mediação num sentido único, Uma palavra deve ser dita sobre a oni-
quase mecânico: vetor por intermédio do presença do material. Não se trata, é claro,
qual os sujeitos se projetariam diretamen- de privilegiar uma concepção materialista
te nas coisas, isto é, no mundo sensorial do patrimônio, mas de reconhecer que não
(que inclui, como não poderia deixar de ser, podemos negar nossa condição corporal:
também o patrimônio imaterial, pois o pa- mais que ter um corpo material, somos um
trimônio imaterial só existe socialmente na corpo – é nossa maneira de estar no mun-
comunicação sensorial). do. Isso, todavia, não nega a possibilidade
A cautela básica relativa à referência diz de transcendência. No latim, trans-scendere
respeito a esse processo de objetivação, de é subir através de, escalar, ir além, não é
mobilização de coisas para materializar sen- ignorar. É ultrapassar as instâncias corporais
tidos e valores, mas quando se acredita er- sem negá-las.
roneamente que tal processo se realiza em Daniel Miller, antropólogo e pesquisador
sentido único. Produzir ou mobilizar objetos da cultura material, aponta um paradoxo
(por exemplo, uma obra de arte) é forma crucial nessa área: a imaterialidade só pode
de dar corpo a motivações várias, crenças, se expressar por intermédio da materialida-
ideias, valores, expectativas etc., tornando- de. Para completar, o filósofo da técnica,
-os visíveis e capazes de operar no mundo Bernard Stiegler cunhou a expressão “mate-
natural e social. Impõe-se, porém, evitar o rialismo espiritualista” para referir-se àque-
engano grave: supor que a ideia, valores etc. la abordagem que não diz que o espírito é
vêm primeiro, já prontos ou quase prontos redutível à matéria, mas que a matéria é a
e resolvidos, bastando encontrar-lhes a pos- condição do espírito em todos os sentidos
teriori um vetor material apropriado e efi- da palavra condição. Impõe-se, pois, supe-
caz. Como quando, no candomblé, o santo rar dualismos insustentáveis, como esse em
baixa num cavalo piedosamente à espera. que matéria e espírito, mente e mão são
Trata-se de uma perspectiva idealista que mutuamente excludentes.
não se sustenta e que, ao invés de reconhe- Nessa linha, convém citar que Aristó-
cer relações dinâmicas e dialéticas, ressusci- teles lembrava ter o filósofo pré-socrático
ta dualismos estéreis como espírito/matéria, Anaxágoras dito que, por contar com as
68  •  Ulpiano T. Bezerra de Menezes

mãos é que o homem era a mais inteligente além de contarem com o complemento
das criaturas. Embora ele próprio, Aristóte- indispensável de artefatos, só atuam por
les, preferisse inverter o enunciado (mais ra- vetores sensoriais, corporais. Com aquele
cional é dizer que o homem tem mãos por- mesmo corpo que, como se viu, transita en-
que é o mais inteligente), a importância na tre as pessoas e as coisas.
controvérsia é que ambos expressam uma Na produção do patrimônio, de fato, os
postura neutralizadora da polaridade entre processos são sempre conservados como
a mão e a mente. Postura mais extraordiná- virtualidades e visíveis no imaterial; no pa-
ria, ainda, se considerarmos que a socieda- trimônio material, por sua vez, estão em-
de grega preponderantemente desprezava butidos no produto. Assim, acredito que,
a atividade manual que provocasse depen- neste último caso, não basta preservar os
dência, incompatível com o pleno domínio produtos, como se os processos estivessem
de si para o exercício da política. Marcel encerrados, mas levar em conta os proces-
Mauss, ecoando os antigos, consolida uma sos de sua produção, no sentido mais am-
linha de convergência na Antropologia con- plo – abrangendo aqueles, injustamente
temporânea: “o homem é um animal que desprezados, que continuam atuando no
pensa com os dedos.” presente e se projetam no futuro. Lembrar-
-se, por exemplo, de que o habitar faz a
habitação, tanto quanto a habitação faz o
Processo e produto (ou vivo
habitar. Com mais razão, “habitar um pa-
versus morto) trimônio” implica condições processuais
Na formulação da antropóloga M. Ma- específicas, que continuam ignorados sem
nuela Carneiro da Cunha, “a diferença en- qualquer justificativa, no caso de tomba-
tre ambos [patrimônio material / imaterial] mento de áreas urbanas ou cidades inteiras.
está na atitude que comandam, nas medi- Ignoramos, inclusive, as boas práticas que
das que elicitam. Conservar o patrimônio se multiplicam mundo afora.
material é, sobretudo, conservar objetos já Não há produto sem processo, nem
produzidos. O “imaterial”, contudo, não processo sem produto (inclusive no fracas-
consiste em objetos, mas sim na virtualida- so, como demonstra Timothy Carroll, em A
de de objetos, sua concepção, seu plano, cultura material do malogro). O processo no
o saber sobre eles. Conservar virtualidades, patrimônio material, insisto, está embutido
ou seja, o imaterial, é conservar processos”. na produção realizada – com todas as mo-
Com precisão, ela definiu a diferença, tivações, recursos, forças, saberes, valores
que é relevante. Todavia, julgo valer a pena etc. interagindo – e se encontra implícito
prevenir o caráter excludente que poderia ser nos usos (materiais e simbólicos) e apropria-
atribuído a essa diferença entre processo e ções no passado e no presente, inclusive
produto, e que, entre o patrimônio material nas representações sociais que alimentou e
e o imaterial, é sobretudo de escala e de vi- alimenta.
sibilidade. Convém lembrar, também, a função
Hábitos, práticas, manifestações, cele- de gatilho presente em certos artefa-
brações, saberes do patrimônio imaterial, tos, como acontece nos objetos afetivos,
As fa lsa s d ic oto m i as d o pat r i m ô n i o c u lt u r a l   •  69

mnemônicos, transicionais, ou naqueles a concessão de palavra às coisas. Fala-se


que são uma espécie de interruptor para de empatia, contágio, magia imitativa etc.
deslanchar práticas culturais. O antropólo- e não se para por aí. Alfred Gell constrói
go James Clifford narra o projeto do Mu- uma antropologia da arte na qual as obras
seu de Arte de Portland (Oregon, USA), de são agentes sociais. Bruno Latour e Michel
convocar anciãos de um grupo indígena Callon fundamentam a teoria do ator-rede
do Noroeste americano para dar mais au- (ANT) na simetria generalizada das intera-
tenticidade no tratamento de uma famosa ções entre humanos e não humanos. Roy
coleção etnográfica (Rasmussen). Todos Wagner ressalta o papel das coisas na pro-
demonstraram grande respeito pelos ob- dução social dos sujeitos. Horst Bredekamp
jetos, mas não se importaram muito com fala das imagens como “atos de figura”
eles, salvo quando serviam de suporte para (Bildakt), à semelhança dos atos de fala.
cantos e narrativas. Em suma, os cantos A “matéria vibrante” de Jane Bennett se
e as narrativas – isto é, os componentes insere numa ecologia política das coisas.
performáticos da cultura é que tinham pro- Já mencionei entre os arqueólogos o con-
priamente potencial identitário. Os objetos ceito de entanglement (enredamento que
eram apenas um gatilho. une simbioticamente pessoas e coisas). Tim
Outra polaridade, a de patrimônio vivo Ingold prefere falar de meshwork “emara-
(imaterial) versus patrimônio morto (o ma- nhado” ou aquela “teia” rizomórfica pos-
terial) me igualmente parece inaceitável, tulada por Deleuze e Guattari, em que flui-
pois ignora uma dimensão fundamental dos de matéria se cruzam em configurações
dos objetos materiais: a agentividade ou não hierarquizadas de pessoas e coisas.
agência: a capacidade sociocultural de agir. O que concluir de todas essas afirma-
Mesmo na Roma antiga em que, como ções tão peremptórias? Que se trata de me-
dito acima, a relação entre pessoas e coisas táforas? Ou, de fato, de uma fé vitalista?
colocava tais entidades em posições exclu- Ou pelo menos, de um caso de fetichismo?
dentes, o tratamento de imagens como se Nada disso, a meu juízo.
fossem seres vivos expressava o que hoje Tais posturas abrem caminho para uma
se chama “animação” de objetos. Caroline compreensão mais aprofundada de que as
van Eck, por exemplo, num estudo históri- coisas têm o potencial de produzir efeitos,
co e etnográfico, descarta explicações da gerar transformações, interagir: são inte-
Psicologia do desenvolvimento do século grantes do jogo social.
20, já que tais respostas às imagens e ob- Objetos não seriam, então, o polo pas-
jetos não são, para ela, aberrações isola- sivo, diante de sujeitos ativos, mas ambos
das, próprias de um estágio incipiente de se configuram na interação. Se separarmos
desenvolvimento da humanidade, mas um pessoa e coisa, estaremos separando do
componente fundamental daquela carac- mundo real o patrimônio cultural, seja ele
terística única dessa mesma humanidade: material ou imaterial.
a capacidade de fabricar representações e A polaridade vivo/morto incide também
dotá-las de vida e ação. Michel Serres, Car- sobre uma modalidade especial de valor
lo Severi e tantos outros veem na animação cultural: o valor histórico. É comum que a
70  •  Ulpiano T. Bezerra de Menezes

História, seja como processo, seja como Valores imanentes


forma de conhecimento, vulgarmente ve-
e contingentes (ou
nha tratada como cativa de um passado
morto. Basta um exemplo para desfazer
reconhecidos versus
tal entendimento. O patrimônio urbano é atribuídos)
um palco privilegiado para observar as di- Retomo minha premissa, a cultura como
nâmicas da sociedade e a produção da di- dimensão qualificadora (como um adjeti-
ferença. Se examinarmos, na morfologia vo) do social (como um substantivo). Ora,
urbana, não a mera cronologia do passado se um substantivo é adjetivado, isto signi-
ao presente, mas a presença sincrônica de fica que lhe foi atribuída uma qualidade.
diversos tempos em interação aqui e agora, Qualitas é palavra latina derivada de qualis,
compreenderemos que o tecido urbano de que introduz uma interrogação: qual? que
nossas cidades comporta temporalidades natureza? Quais as qualidades naturais das
diferentes: a produção espacial da cidade coisas? A natureza das coisas apreensível
nunca é gerada na simultaneidade. É como pelos nossos sentidos é dada por suas pro-
na fotografia de família, na celebração do priedades materiais, físico-químicas e espa-
aniversário do patriarca, em que, num mes- ciais. As propriedades das coisas materiais,
mo dia, num mesmo instante, se registram como a forma, a textura, a dureza, a cor,
os diversos representantes das várias gera- a fundibilidade etc. podem ser valorizadas,
ções, com suas aparências corporais, pos- mas não em si, por serem imanentes, mas
turas, roupas e adereços, na isocronia de por se prestarem a conveniências humanas
uma mesma imagem visual. O histórico, no várias, externas às coisas.
patrimônio urbano, não é um “resgate” de Se qualificar um substantivo pode
um passado morto, mas a mistura viva das significar o reconhecimento de uma pro-
temporalidades. priedade imanente (por exemplo: “pedra
Além desta forma de consciência histó- dura”), também sempre abre espaço para
rica, que é a percepção da existência social alternativas: “pedra rara” diz respeito
nas suas temporalidades, há outra perspec- a um valor de conveniência, não a uma
tiva de uma História fenomenológica que o propriedade inerente à pedra, mas sim à
patrimônio cultural pode mobilizar, como a escassez de sua disponibilidade para aten-
proposta por David Carr, em que ele se per- der a interesses humanos.
gunta como a História se apresenta a nós, Enfim, se seguirmos o conselho de Max
como ela entra em nossas vidas e quais são Weber, de procurar entender valores, an-
as formas de experiência pelas quais isso tes na experiência histórica do que na sua
ocorre. Carr afirma que, nesse contexto, ex- conceituação abstrata, concluiremos que o
periência conota, não apenas observação, valor não escapa às oscilações da contin-
mas também envolvimento e integração, gência. É o que permite concluir que, no
engajamento: não se pode imaginar nada campo do patrimônio, os valores são es-
mais vivo. sencialmente fruto de atribuições, e não de
A produção do passado nada tem de ne- reconhecimento – como se fossem inseridos
crofilia, é produção de um organismo vivo. na intimidade do bem. Ao inverso, o fetiche
As fa lsa s d ic oto m i as d o pat r i m ô n i o c u lt u r a l   •  71

(feitiço) é a coisa autossuficiente, que de- Continuidade e ruptura


tém em si mesma seu significado e poder.
(ou essencialismo versus
A consideração da imagem visual como
artefato permite ir além. Já em 1935 Hei-
historicidade)
degger, em A origem da obra de arte, afir- A identidade tem papel central na de-
mava: “Se considerarmos as obras de arte finição constitucional de patrimônio. Ora,
em sua presença intocada e não nos iludir- uma das exigências fundamentais para a
mos, o resultado é que as obras estão tão identidade é a continuidade. Entretanto,
naturalmente presentes como são coisas.” como concebê-la se a mudança é a lei geral
O mais é acréscimo, está em nós, fruto de da vida? O que pode significar a expressão
um diálogo. “continuidade histórica”, se a história pode
Então as propriedades imanentes não ser concebida como rupturas (na visão de
contam? Claro que contam, e muito, pois Foucault) ou como “o inventário das di-
tais propriedades é que sempre fornecem as ferenças” (na ótica mais tranquila de Paul
condições primordiais para sua seleção nos Veyne)?
processos de mobilização cultural. Michael Oakeshott (historiador arguto
Limito-me aqui a mais importante des- embora cientista político conservador) dis-
sas propriedades: as propriedades estéticas, cute o caráter paradoxal de uma combi-
que, pelo aguçamento da percepção, for- nação de alteração com a permanência de
necem oportunidade qualificada para grati- algo. Sem alteração se teria uma uniformi-
ficar sensorialmente e tornar mais profundo dade contínua, mas desmentida pela obser-
o contato do eu com o mundo externo. Por vação do que apareceria inexplicavelmente;
certo, a historicidade de nossas estruturas sem permanência se teria recordação do
perceptivas, hoje amplamente reconhecida que desapareceria inexplicavelmente: em
(a exemplo do que ocorreu com as estru- ambos os casos, a inteligibilidade (uma das
turas mentais), haverá sempre de introduzir necessidades críticas da espécie humana),
diferenças de seleção e intensidade. a inteligibilidade possível que a identidade
Excluo a contaminação corrente de be- poderia fornecer fica comprometida.
leza com estética e tomo este termo no O nó da questão estaria em investigar o
sentido original do grego aísthesis, que sig- que permanece na mudança. Oakeshott ilus-
nifica “percepção sensível” e, portanto, diz tra o caso com uma história famosa: a das
respeito a essa ponte fundamental que a meias de seda de Sir John Cutler, membro
sensorialidade torna disponível, para que se da gentry (nobreza rural inglesa, sem grande
possa sair de dentro de si e construir e inter- patrimônio). Sir John, escasso de recursos,
cambiar significados e ações. Não se trata dispunha de um único par de meias de seda,
de complemento da vida biológica, psíquica constantemente usadas. Por isso, investia na
ou social, nem da percepção pura, imediata manutenção, com remendos de algodão,
(que, aliás não existe), mas de uma media- mais barato que a seda. Tantos remendos
ção que nos faz humanos, o que equivale a ocorreram que toda a seda acabou substituí-
dizer que a estética é condição insubstituí- da pelo algodão. O que houve? Um par de
vel da vida social. meias de seda que se foi e um par de meias
72  •  Ulpiano T. Bezerra de Menezes

de algodão que chegou? Não. O reconhe- que David Lowenthal comenta. A resposta
cimento social da continuidade na alteração teria que partir da consideração de uma refe-
(eixo de referência) permitiu reconhecer a rência básica: forma ou substância? A auten-
mesma meia “de seda” de Sir John. ticidade depende de se aceitar a identidade
A identidade, nesta instância, não diz do barco como um equipamento de nave-
respeito a uma essência imutável, mas a gação morfologicamente específico (no caso
uma equivalência socialmente atribuída e ainda mais específico por vínculo a Teseu) ou
sancionada. Pessoalmente acredito que é em como uma coleção de pranchas, substâncias
nossas transformações corporais ao longo fragmentárias e efêmeras?
do tempo que temos a melhor ilustração da No Ocidente industrializado a tendência
identidade preservada a despeito das mu- dominante é fetichizar as coisas, na sua ma-
danças. Ainda que muitíssimo transformado, terialidade, o que leva a crer erroneamente
coincido com o mesmo bebê que nasceu que os significados e valores seriam ima-
muitas décadas atrás, embora as células de nentes às coisas. No confronto entre ter e
meu organismo tenham passado por subs- ser, a cultura consiste na posse efetiva ou
tituição radical, assim como minha aparên- simbólica de um lote de objetos materiais.
cia, com as cicatrizes e os variados efeitos Ora, nas sociedades e grupos tradicionais,
do correr dos anos, que mudaram minha as coisas podem servir apenas de caminho
anatomia, fisiologia, personalidade etc. Con- para práticas, como se viu.
tinuo, porém, o mesmo eixo de referências No Oriente, sabemos, contam mais as
socialmente (e pessoalmente) aceito e que práticas, os processos – como ocorre na re-
me singulariza. Pelo menos é o que diz meu facção cerimonial periódica de certos tem-
documento de...identidade (permanente). plos de ritual shintoísta.
Fico imaginando o que aconteceria com mi- Seja como for, é tempo de convocar, de
nha identidade se eu fosse submetido a um novo, os sujeitos. E a história. Eles é que for-
restauro em que, como às vezes ocorre no necerão o critério para qualificar um certo
patrimônio material, escolhe-se a opção de tipo de relação com as coisas. Nesse cami-
retroceder a um estado de origem... nho, mas ainda insuficientemente, Lucie
Recorro ainda a uma outra aporia (beco K.Morisset , trilhando rumo inspirado no dos
filosófico sem saída) semelhante à de Sir “regimes de historicidade” de François Har-
John, que ilustra outros paradoxos da auten- tog, formula a necessidade de investigar os
ticidade. É a história de Teseu, herói mítico “regimes de autenticidade” envolvidos, isto
ateniense, narrada por Plutarco (historiador é, os padrões sociais de relação dos objetos
grego da época imperial romana). O navio e atos com o tempo, o espaço, o outro, nos
do grande marinheiro Teseu, necessitando quadros da “memória patrimonial”.
de reparos foi trazido ao porto, cada pran- De certa forma no mesmo horizonte
cha velha sendo progressivamente substituí- (em que podem surgir necessidades espe-
da por novas pranchas. Quando deixou de cíficas de contexto), vale anotar a distinção
ser o barco original? Quando se substituíram que faz Dennis Dutton (válida não só para a
100% das pranchas, 70%, 50%, 30%? Ou obra de arte, seu tema principal), entre au-
nunca? Há variantes modernas desta aporia, tenticidade expressiva – relativa ao caráter
As fa lsa s d ic oto m i as d o pat r i m ô n i o c u lt u r a l   •  73

do bem como “expressão verdadeira dos Referências bibliográficas


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lar na Academia Brasileira de Letras e para po, 2015.
uma audiência tão especial, ao coordena- SANT’ANNA, Marcia. Da cidade-monumento à cidade-do-
cumento: a norma de preservação de áreas urbanas
dor deste ciclo de conferências, meu dileto no Brasil – 1937-1990. Salvador: Oiti Editora, 2014.
_____. Patrimônio Urbano e Patrimônio Imaterial: proble-
confrade historiador, Presidente no IHGB e mas e desafios contemporâneos. In: MIGUEZ, Paulo
colega no Conselho Consultivo do IPHAN, et all (orgs). Diversidade Cultural: políticas, visibilida-
des midiáticas e redes. Salvador: EDUFBA, 2015, pp.
Arno Wehling, assim como ao Presidente 115-133.
Acadêmico Marco Lucchesi, que aceitou a _____. A cidade-atração: a norma de preservação de áreas
centrais no Brasil dos anos 1990. Salvador: EDUFBA,
indicação de meu nome. 2017.
CICLO PRESENÇAS FUNDAMENTAIS

Nabuco: sua visão do


passado brasileiro

Evaldo Cabral de Mello


Ocupante da Cadeira 34 na Academia Brasileira de Letras

P
roponho-me ocupar-me de duas obras Joseph de Maistre. Vizinhos da Rua marquês
fundamentais de Joaquim Nabuco, O de Olinda, três pernambucanos, Nabuco,
Abolicionismo e Um estadista do Im- João Alfredo Correia de Oliveira e Francisco
pério, sugerindo as conexões entre ambas, de Carvalho Soares Brandão, ex-ministro e
a despeito de que, redigidas em períodos ex-senador do Império, enchiam suas noites
diversos da sua existência, elas podem pa- desocupadas trocando intermináveis remi-
recer à primeira vista serem mutuamente niscências de suas carreiras políticas sob o
estranhas ou até opostas. Na perspectiva regime recém-abolido, numa atmosfera nos-
puramente biográfica, elas têm em comum tálgica do passado recente e pessimista do
o fato de serem o produto do ostracismo futuro imediato.
político, O Abolicionismo, de sua estada em Tratemos, pois, de fazer a ponte entre O
Londres em 1883 quando purgava a derrota Abolicionismo e Um estadista do Império,
parlamentar das primeiras eleições diretas da entre o exílio em Londres e o exílio em Bota-
nossa história; e Um estadista do Império, à fogo; ou dito de outro modo, ler a biografia
raiz da proclamação da República, que lhe do pai contra o pano de fundo da crítica
proporcionaria dez longos anos de produção do filho ao sistema escravocrata. Para com-
intelectual. Na preparação de O Abolicio- prender a importância de O Abolicionismo,
nismo, Nabuco trabalhou quotidianamente cumpre fazer de início uma qualificação
no Museu Britânico, assim como já fizera o importante. Ele não tem a ambição teóri-
autor de O capital, com quem poderia ha- ca inerente a um livro de sociologia nem se
ver cruzado, não houvesse Marx falecido há considera tal. Nabuco dedicou-se apenas a
pouco. Na produção de Um estadista do Im- produzir uma obra de propaganda. Daí que,
pério, Nabuco se valeu do arquivo paterno por um lado, sua visão da sociedade brasi-
e das publicações do Segundo Reinado bem leira teve de ser vazada numa prosa de feitio
como da sua condição de frequentador do literário ou até jornalístico, sem pretensões
que ele mesmo denominou de “soirées de científicas ou preocupações terminológicas;
São Petersburgo”, título do livro famoso de por outro, que o autor não aprofundou a
Conferência pronunciada na Academia Brasileira de Letras em 28 de março de 2019.
76  •  Evaldo Cabral de Mello

análise do sistema de mediações entre o re- Graças a essa relativa desinformação teó-
gime servil e os demais fenômenos da nossa rica, Nabuco escapou ao destino de escrever
formação histórica, não escapando, portan- um livro destinado ao envelhecimento preco-
to, a certo reducionismo. Ao que se saiba, ce, como aconteceu com tanta produção pa-
Nabuco tampouco jamais cogitou de dar à ra-sociológica do tempo da República Velha.
sua obra o desenvolvimento que ela com- Nas artes, como nas ciências humanas, certo
portava, capaz de conferir-lhe idoneidade grau, não diria de arcaísmo, mas de desatu-
científica aos olhos do nosso modestíssimo alização pode ser saudável. Ninguém duvida,
establishment sociológico da época. Destar- por exemplo, de que a formação científica
te, na sociologia brasileira, O Abolicionismo de Comte era imensamente superior à de
jamais desfrutou do status privilegiado de Tocqueville, mas ninguém põe em questão
que desfruta, digamos, Os sertões, embora que a influência do autor da Democracia na
o escopo da análise de Euclides não seja na- América tornou-se, ao cabo dos anos, bem
cional, mas regional. mais profunda que a do professor do Cur-
De Os sertões, cumpre também assinalar so de filosofia positiva. Na medida em que
que tanto se apegou às teorias sociológicas a formação de Tocqueville era basicamente
da Europa de finais do século XIX que cor- histórica, tratava-se de limitação evidente
reu o risco de envelhecer com elas. As no- em época, como a sua, em que se ambicio-
vidades científicas, doutrinárias ou estéticas nava, à maneira de Comte, erguer o sistema
costumam cobrar um alto preço àqueles que das ciências que incluísse desde a matemáti-
as adotam por espírito de sistema. No caso ca e a física até a sociologia. Contudo, o que
de Euclides como no de outros autores, o era passivo no século XIX transformar-se-ia
dernier cri sociológico os desviou de veredas em ativo posteriormente, ao se proclamar a
posteriormente reputadas mais promissoras, irredutibilidade do objeto das ciências huma-
como era a do modelo, implícito em O Abo- nas aos métodos consagrados pelas ciências
licionismo, baseado não no meio físico ou da natureza. Foi assim que a desatualização
na raça, mas na forma da organização eco- oitocentista de Tocqueville metamorfoseou-
nômica e social. É inegável que, comparado -se em título de modernidade.
a Euclides, cuja prosa lhe dava a impressão O Abolicionismo constitui o primeiro
de ser escrita com um cipó, Nabuco estava texto, muito antes da voga dos chamados
relativamente desinformado das tendências “explicadores do Brasil”, a articular uma vi-
predominantes na sociologia europeia, ou são totalizadora da nossa formação históri-
do que se julgava no Brasil serem elas, pois ca, fazendo-o a partir do regime servil. Nesta
as que inspiraram a concepção de Os sertões perspectiva, a escravidão não constituiu um
tampouco eram rigorosamente novas quan- fenômeno a mais, inegavelmente relevante,
do ele foi redigido. Nos derradeiros anos de mas devendo ser levado em conta como vá-
Oitocentos, Buckle ou Taine haviam ficado rios outros. Para Nabuco, o Brasil é o produto
para trás; um Tönnies ou um Durkheim eram da escravidão, que é a instituição que ilumi-
os gurus da nova sociologia que se elabora- na nosso passado como nosso presente e
va na Alemanha e na França, às vésperas do nosso futuro mais poderosamente que qual-
aparecimento do gênio de Max Weber. quer outra. Sobre as bases do escravismo,
N a bu co : sua v i s ã o d o pa ss a d o b r as i l e i ro   •  77

é que se definiram entre nós a organização no interior para fazer o seu dinheiro render
social e a estrutura de classes, o Estado e o acima de 12%”. Dos proventos da escravi-
poder político, a própria cultura, função que dão, viviam as profissões liberais.
na obra de um Gilberto Freyre caberá ao pa- O próprio Estado não poderia ser com-
triarcalismo ou na de um Raymundo Faoro, preendido sem referência à função de absor-
ao patrimonialismo. É assim que Nabuco ver pelo emprego público os representantes
contrasta a escravidão norte-americana com da ordem escravocrata que não encontravam
a brasileira, para concluir que, ao contrário meio de vida no setor privado. O funcionalis-
dos Estados Unidos, onde “a escravidão não mo público era com efeito “o viveiro políti-
afetara a constituição social toda”, no Brasil co”, “o asilo dos descendentes das antigas
“a circulação geral, desde as grandes arté- famílias” que ela arruinara, como (exemplo
rias até aos vasos capilares, serve de canal às que não ocorreu a Nabuco), a grande diás-
mesmas impurezas”. pora dos bacharéis nortistas que, no decur-
Com referência à escravidão, definiram- so do Segundo Reinado, espalhara-se pelas
-se inclusive os grupos e as classes que in- províncias do Sul em busca dos cargos da
clusive viviam à sua margem, como a popu- magistratura. Asseverava Nabuco:
lação livre mas pobre dos “lavradores que Faça-se uma lista dos nossos estadistas
não são proprietários”, dos “meeiros”, dos pobres, de primeira e segunda ordem, que
“moradores do campo e do sertão”. Defi- resolveram o seu problema individual pelo ca-
niram-se atividades que não lhe estavam samento rico, isto é, na maior parte dos casos,
diretamente ligadas ou ocupavam diferente tornando-se humildes clientes da escravidão;
espaço físico, como a criação de gado no e outra dos que o resolveram pela acumulação
de cargos públicos, e ter-se-ão, nessas duas
interior do Nordeste ou na campanha gaú-
listas, os nomes de quase todos eles.
cha, mas que tinham seu principal mercado
nas aglomerações de mão de obra escrava A relação funcional entre a escravidão
das cidades, fazendas de café e engenhos e o Estado, Nabuco a resumiu numa con-
de açúcar. Devido à presença asfixiante do ferência pronunciada no Recife, uma das
trabalho escravo, retardara-se entre nós o páginas mais esclarecedoras que já se escre-
desenvolvimento das “classes operárias e veram sobre o Segundo Reinado:
industriais”. A escravidão impedira igual- A lavoura, porém, não sustenta somente
mente, em benefício dos imigrantes por- os que lhe emprestam dinheiro a altos juros,
tugueses, a nacionalização do comércio a sustenta diretamente a sua clientela, que a
retalho. Quanto ao grande comércio, não serve nas capitais. Isso não é tudo e é nor-
passava de “um prolongamento da escravi- mal. Mas o Estado tem um aparelho especial
chamado apólice, do que os bancos são as
dão, ou antes, o mecanismo pelo qual a car-
ventosas, para sugar o que reste à lavoura de
ne humana é convertida em ouro e circula,
lucro líquido. Essas sobras, ele as distribui pelo
dentro e fora do país, sob a forma de letras
seu exército de funcionários, os quais, por sua
de câmbio”. Através da usura, a escravidão vez, sustentam uma numerosa dependência
reduzira o fazendeiro de café ou o senhor de todas as classes. Temos assim que a lavou-
de engenho a um “empregado agrícola que ra, pelo pagamento de juros, pelo pagamento
o comissário ou o acionista de banco tem de serviços e pelos empréstimos incessantes
78  •  Evaldo Cabral de Mello

que faz ao Estado, sustenta todo esse número à boa vontade da Coroa, os ministros, à do
imenso de famílias que absorvem a nossa im- Presidente do Conselho, e assim por diante.
portação e pagam os impostos indiretos. Nabuco enxergava “ministros sem apoio na
De modo que se o Estado amanhã fizesse
opinião que ao serem despedidos caem no
ponto, ver-se-ia que ele tem estado a tomar os
vácuo; presidentes do Conselho que vivem
lucros da escravidão aos que produzem para dis-
tribuí-los entre os que ela impede de produzir”. noite e dia a perscrutar o pensamento eso-
térico do Imperador”. Por sua vez, os par-
Por outro lado, ao frustrar o desenvolvi- tidos políticos reduziam-se a “sociedades
mento de classes e grupos atuantes, isto é, cooperativas de colocação ou de seguro
ao aniquilar a possibilidade de uma estrutura contra a miséria”. O regime representativo
pluralista, a escravidão tornou o sistema po- tornara-se destarte “um enxerto de formas
lítico do Segundo Reinado insensível às rei- parlamentares num governo patriarcal”.
vindicações sociais, graças também ao poder A crítica ao “poder pessoal”, a qual, com
pessoal do Imperador, o que constitui um exceção de José Bonifácio, o Moço, limita-
traço fundamental dos sistemas de coopta- ra-se a argumentos de natureza político-
ção em que a máquina estatal funciona de -constitucional, adquiriu em Nabuco nova
modo relativamente impermeável às pressões dimensão explicativa.
vindas seja de classes, seja de regiões. Con- Não me parece, portanto, procedente
tudo, ao fazê-lo, a escravidão condenava-se a crítica de que a historiografia de Nabuco
como forma de organização econômica, pois ignorou as novas forças sociais, nascidas à
será precisamente este desequilíbrio entre ilharga da sociedade escravocrata. Afinal de
Estado e sociedade que habilitará a Coroa a contas, Um estadista do Império não pre-
desferir os golpes que puseram o regime ser- tende ser a história do Segundo Reinado;
vil por terra, especialmente a lei Rio Branco, ele aspira, no máximo, a ser sua história po-
cuja inspiração não partiu, como se dera com lítica, esta mesma vista através das lentes da
a abolição do tráfico em 1850, por pressão carreira do velho Nabuco. É certo que suas
inglesa, mas como as leis Dantas e João Alfre- páginas estão repletas da ação dos homens
do, do encorajamento discreto e contínuo do de Estado, mas não se pode deduzir daí que
próprio Imperador. É a relativa autonomia do Nabuco realmente acreditasse que a histó-
sistema político produzido pela escravidão, ria política se resume a eles. O sistema polí-
que habilitará a Coroa a aliar-se, desde 1880, tico do Segundo Reinado é que de fato vivia
a grupos sociais substancialmente menos só deles, e, sobretudo, da vontade do Im-
poderosos, em termos socioeconômicos, do perador. Não havia, por conseguinte, como
que os interesses escravocratas e do comércio conferir uma dimensão permanente à luta
de exportação a estes ligados. dos grupos sociais pelo poder, a não ser no
Sendo o emprego público a única saída interior da camada governante gerada pelo
para os rebentos da grande família rural, a sistema político. Se quisermos saber como
vida política converteu-se na “triste e degra- Nabuco encarava as inter-relações entre sis-
dante luta por ordenados”, o que reforçava tema político, de um lado, e sistema socio-
o chamado “poder pessoal” de D. Pedro II. econômico, de outro, há que abandonar as
O Presidente do Conselho sobrevivia graças páginas de Um estadista do Império pelas
N a bu co : sua v i s ã o d o pa ss a d o b r as i l e i ro   •  79

de O Abolicionismo. Há que ler a biografia hipotecaria o futuro do país, donde não se


do pai contra o pano de fundo da crítica do fazer ilusões acerca dos efeitos a longo prazo
filho ao regime escravocrata. da emancipação, que devia ser apenas o pri-
Embora Nabuco não pensasse nestes ter- meiro passo no caminho da construção na-
mos, O Abolicionismo pode ser lido como cional. Ele escrevia em 1883: “Acabar com a
uma introdução histórico-social a Um Esta- escravidão não nos basta; é preciso destruir a
dista do Império. A escravidão como a ins- obra da escravidão”, que não podia limitar-se
tituição referencial por excelência da forma- apenas à “democratização do solo”, isto é, à
ção social brasileira, é hoje uma concepção reforma agrária. A escravidão ainda planaria
largamente aceita por historiadores, sociólo- por muito tempo como uma ave de rapina
gos e antropólogos. Em 1883, quando ante- sobre o Brasil. Donde, aduzia, ser “ainda pre-
cipada por Nabuco, que infelizmente nunca ciso desbastar, por meio de uma educação
se interessou em desenvolvê-la de maneira viril e séria, a lenta estratificação de trezentos
sistemática, ela passou despercebida, mes- anos de cativeiro”.
mo aos historiadores da sua e da geração Se como pretendia Nabuco, “a escravi-
seguinte, alguns deles melhor equipados te- dão permanecerá por muito tempo como
oricamente, isto é, mais do que ele, a par das a característica nacional do Brasil”, nossa
últimas teorias sociológicas europeias. É que identidade não é tão nacional assim, pois a
então dominava quase sozinha a preocupa- compartilhamos com as demais sociedades
ção pelas inter-relações entre o meio físico e do Novo Mundo também organizadas ou-
a sociedade, como, noutra geração depois, a trora na base do trabalho servil de origem
ênfase se deslocará para o conceito de raça. africana. Todo o vasto arco geográfico que
Numa curva inesperada do capítulo de vai do velho Sul dos Estados Unidos aos ca-
Minha formação intitulado ‘Massangana’, o fezais paulistas, atravessando o Caribe e o
leitor esbarra nessa frase surpreendente, es- Nordeste açucareiro, constituiu um único
crita um decênio após a Abolição, mas dolo- sistema escravista. Ainda hoje, o parentesco
rosamente atual, atualíssima: “A escravidão supranacional entre essas regiões como que
permanecerá por muito tempo como a ca- se sobrepõe às variações culturais decor-
racterística nacional do Brasil.” Procuremos rentes dos sistemas coloniais europeus, das
entendê-la. O que se designa por caráter na- comunidades indígenas originais e das ma-
cional, ou mais recentemente por identidade trizes africanas da mão de obra servil. Só o
nacional, seria, na perspectiva de Nabuco, a desconhecimento da história comparada das
conformação pelo sistema escravocrata do Américas nos tem impedido de darmos ple-
ethos das gerações que se seguiram à eman- namente conta dessas afinidades. É provável,
cipação, inclusive a nossa geração e as demais portanto, que a Nabuco tivesse surpreendido
que já nos sucedem até Deus sabe quando. a atitude da atual geração de modernizado-
Trata-se de uma frase que em si mesma res brasileiros que, de esquerda ou de direita,
constitui uma síntese aguda do problema se têm associado unanimemente ao culto da
brasileiro, se bem que formulada de maneira identidade nacional. Provavelmente, ele não
despretenciosa. Em O Abolicionismo, Nabu- se deixaria enganar pelas aparências superfi-
co já acentuara que a herança escravagista cialmente democráticas desse culto, como o
80  •  Evaldo Cabral de Mello

Carnaval, a música e o futebol. Tal obsessão instrumentalização em matéria-prima de


identitária, ele a teria provavelmente encara- mitos políticos e ideológicos. Um eminente
do como o último e patético soluço da nossa oficial do ofício, recentemente falecido, Eric
antiga sociedade escravocrata. Hobsbawm, alertou para o fato de que a
Esse culto da identidade nacional mes- exploração ideológica da história nunca se
merizou os brasileiros deste início de milênio, apoia em meras ficções, servindo-se prefe-
manifestando-se com estridência e exibicio- rencialmente dos anacronismos. “Temos de
nismo ingênuo. Ele nos habilita a trocar nos- resistir [escreveu] à formação de mitos na-
sos antigos complexos de inferioridade na- cionais étnicos e outros, no momento em
cional pelos seus opostos. (Já se descobrem que estão sendo formados. Isso não nos
até identidades estaduais e municipais, e no fará populares [...] mas tem de ser feito”.
Rio mesmo há quem as haja detectado em Devido à sua natureza de obra de pro-
Ipanema). Mas cumpre não esquecer que a paganda, O Abolicionismo tornou-se mais
história menos recente desse modismo este- ou menos esquecido, tão logo alcançado
ve originalmente associada aos regimes tota- o objetivo para o qual fora escrito. Grosso
litários da Segunda Guerra Mundial. O nazis- modo, pode-se afirmar que, durante a Re-
mo preferia falar de raça mas é evidente que, pública Velha, nossa produção sociológica
na sua ideologia, a raça, era a base da iden- esteve obsedada pela questão do Estado
tidade alemã, donde a obstinação com que nacional e das instituições políticas, de um
seus teóricos se dedicaram ao estudo do que lado, e, de outro, pelo problema do meio fí-
reputavam seu texto fundador, a Germânia, sico e da raça. Só nos anos 30, a escravidão
de Tácito. O fascismo italiano tentou reviver regressou ao centro das preocupações, gra-
a Roma imperial, com mais senso operático ças a Gilberto Freyre, que infletiu, contudo,
do que histórico. E segundo o generalíssimo a concepção de Nabuco num sentido que
Franco, a Espanha era diferente. O desalen- o teria certamente surpreendido, vale dizer,
tador é que esse culto da identidade esteja no sentido de uma exaltação da mestiça-
renascendo hoje em dia em certos países da gem, exaltação, aliás, tão gratuita quanto a
Europa na cauda precisamente de movimen- condenação que se abatera anteriormente
tos de extrema direita. sobre ela. Nos dias atuais, quando as ma-
Com razão, Paul Valéry, que, bom car- croexplicações do passado brasileiro perde-
tesiano, detestava a história, partilhando ram fôlego (como ocorre com qualquer gê-
assim o preconceito anti-histórico de um nero, inclusive os sociológicos) e em que os
Nietzsche nada cartesiano, pretendeu que epígonos se afanam em glosar intermina-
ela constituiria a mais perigosa invenção velmente nossa identidade nacional, como
da química do intelecto. Não se precisa se ela fosse uma entidade metafísica e não
chegar a tanto, mas é inegável que, sob uma mera criação do século XX, cumpre re-
as mais variadas etiquetas, o passado na- ler O Abolicionismo em conexão com Um
cional pode prestar-se aos fins mais equí- estadista do Império e com os discursos da
vocos. Os historiadores, como indivíduos campanha eleitoral de 1884.
que lidam profissionalmente com ele, têm a Nabuco utiliza as palavras “abolicionis-
responsabilidade especial de denunciar sua mo” e “escravidão” numa acepção lata. Sua
N a bu co : sua v i s ã o d o pa ss a d o b r as i l e i ro   •  81

ideia de escravidão não se reduzia à relação por quê, mas seu pressuposto parece ser o
senhor-escravo, mas abrangia também as re- de que uma colonização tardia da América
lações do escravismo com o meio físico, o portuguesa se teria processado no quadro
sistema de propriedade da terra, o comércio, de uma conjuntura internacional bem diver-
a indústria, a cultura, o regime político e o Es- sa, em que os interesses econômicos e o po-
tado. Em função deste caráter orgânico, hoje der da Inglaterra e os valores dominantes do
diríamos, sistêmico, da escravidão é que, a Iluminismo e da Revolução francesa teriam
seu ver, o abolicionismo constituía a reforma tornado inviável a implantação de um regime
nacional por excelência. Para compreender a escravista no Brasil, ao menos na escala que
escravidão, ele recorre à sua história compa- adquirira no passado. É certo que o nosso
rada na Antiguidade clássica e no velho Sul desenvolvimento não teria sido tão acelera-
dos Estados Unidos. Mas entre nós a escra- do como o das colônias de língua inglesa, de
vidão adquirira um traço diferencial, o qual vez que Portugal não dispunha dos recursos
consistira em que, através da miscigenação, materiais de uma grande potência. É certo
ela formara a nação. Daí que, do ponto de também que a população seria substancial-
vista da engenharia política, o problema se mente menor, embora com a vantagem de
tornasse duplamente complicado para nós, apresentar-se culturalmente homogênea,
de vez que a cidadania devia ser conquistada sem falar em que os efeitos colaterais da es-
não apenas pelo escravo, mas pelo próprio cravidão, bem como a grande propriedade e
senhor. Esta a razão pela qual, na América a depredação do meio ambiente, não teriam
portuguesa, a instituição servil operara de avançado a ponto de prejudicar a economia
modo incomparavelmente perverso, tornan- e a esterilizar o trabalho. O que Nabuco ti-
do impossível identificar qualquer setor da nha em vista era o argumento de Oliveira
vida nacional que não tivesse sofrido suas re- Martins, que, em O Brasil e as colônias por-
percussões ao longo de três séculos. A escra- tuguesas, pretendera que o trabalho escra-
vidão afetara o desenvolvimento de todas as vo fora o preço a pagar pelo povoamento,
classes sociais, sem fazê-lo, contudo, numa pois sem aquele este não teria sido possível.
única direção, pois ora atuou para impedir- “!sso é exato”, admite Nabuco, “mas esse
-lhes ou retardar-lhes o crescimento, ora no preço quem o pagou e está pagando não foi
sentido de promovê-lo precoce e artificial- Portugal, fomos nós; e esse preço a todos os
mente, o que era ainda mais prejudicial. respeitos é duro demais e caro demais para o
Na sua análise do impacto global da ins- desenvolvimento inorgânico, artificial e exte-
tituição servil sobre a vida brasileira, Nabuco nuante que tivemos”.
não hesita mesmo em aventurar-se pelo exer­ E num julgamento tanto mais insuspeito
cício do que hoje chamaríamos história virtu- quanto, ao contrário de muitos intelectuais
al ou contrafatual. Segundo ele, “ninguém brasileiros da época, Nabuco nunca cedeu à
pode ler a história do Brasil no século XVI, tentação do antilusitanismo, ele assinalava:
no século XVII e em parte do século XVIII [...] “A africanização do Brasil pela escravidão
sem pensar que a todos os respeitos houve- (pela escravidão, note-se bem, não pelo
ra sido melhor que o Brasil fosse descoberto africano) é uma nódoa que a mãe-pátria
três séculos mais tarde”. Nabuco não explica imprimiu na sua própria face, na sua língua
82  •  Evaldo Cabral de Mello

e na única obra nacional verdadeiramente o primeiro a esta hora seria uma nação mui-
duradoura que conseguiu fundar”. Poder- to mais robusta do que é o último”. É sa-
-se-ia supor que, sem a escravidão e sem a bido que a doutrina da desigualdade inata
economia monocultora de que fora a base, entre as raças exerceu duradoura influência
o Brasil teria sido perdido para sempre por sobre o pensamento brasileiro dos finais do
Portugal, de vez que não lhe teria sido pos- Segundo Reinado e no decurso da República
sível repelir os ataques exteriores, como du- Velha. Ela forneceu as bases reputadas cien-
rante a guerra holandesa, mas é provável tíficas para nossas atitudes modernizadoras
que ele estivesse “crescendo sadio, forte e até a publicação de Casa-Grande & Senzala,
viril como o Canadá e a Austrália”. nos anos 30 do século XX. Nabuco, porém,
Ao contrário também da grande maioria nunca embarcou nessa canoa, embora sua
dos brasileiros cultos do seu tempo, Nabu- oposição ao frustrado plano de imigração
co tampouco acreditava no argumento da chinesa do gabinete Sinimbu possa insinuar
inadaptação do europeu aos trópicos, tanto uma dúvida a respeito.
mais, lembrava, que as populações da Eu- Tanto em O Abolicionismo quanto nos
ropa meridional haviam recebido ao longo discursos de campanha eleitoral no Recife,
de sua história dose considerável de sangue o essencial para ele não é a raça, mas a or-
mouro e africano, argumento que Gilberto ganização social. Já vimos que, ao se referir
Freyre aprofundará em Casa-Grande & Sen- à “africanização do Brasil”, Nabuco tivera o
zala. E Nabuco concluía: “Ninguém pode cuidado de acrescentar a qualificação “pela
dizer o que teria sido a história se aconte- escravidão”. É certo que, noutro trecho, ele
cesse o contrário do que aconteceu”, de assinalara que “muitas das influências da es-
vez que entre um Brasil holandês ou francês cravidão podem ser atribuídas à raça”. Mas
explorado por mão de obra escrava, e um quando examinamos os exemplos que dá,
Brasil português igualmente escravocrata, constata-se que a palavra “raça” é empre-
“ninguém sabe o que teria sido melhor”. gada sem rigor conceitual, desleixadamente,
O que, contudo, não lhe parecia duvidoso se é que ela possa jamais ser empregada de
é que, entre um Brasil lusitano e escravo- maneira precisa. A prova é que Nabuco enu-
crata e um Brasil lusitano sem a instituição mera sob essa etiqueta caractarísticas que
servil, “a colonização gradual do território hoje seriam reputadas de natureza cultural,
por europeus, por mais lento que fosse o como a influência da religiosidade africana
processo, seria infinitamente mais vantajosa ou a corrupção da língua portuguesa através
para o destino dessa vasta região”. da escravidão doméstica.
Nabuco examina outro par de alterna- O ceticismo com que Nabuco encarou
tivas que, à primeira vista, poderia parecer a eficácia das reformas políticas dos finais
acadêmico, mas que ilustra uma vantagem a do Segundo Reinado decorria da convicção
mais da sua desatualização relativamente às de que, devido ao regime escravocrata e
teorias raciais em voga naquela altura: “En- instituições ancilares, tais reformas estavam
tre o Brasil explorado por meio de africanos fadadas a produzir efeitos perversos. Da lei
livres por Portugal, e o mesmo Brasil, explo- Saraiva, que criara o voto direto para con-
rado com escravos também por portugueses, ferir representatividade ao sistema político,
N a bu co : sua v i s ã o d o pa ss a d o b r as i l e i ro   •  83

resultara apenas o crescimento da participa- Nabuco tinha necessariamente de atribuir


ção escravocrata no Parlamento do Império, lugar modesto às forças que ou não atua-
convertido agora no que Nabuco chamou vam sobre o Estado ou eram atuadas mais
de “verdadeiro Congresso agrícola”. A revi- que atuantes. Quando essas forças irrompe-
são dos métodos de recrutamento, que vi- ram nas raríssimas ocasiões em que o jogo
sara podar a influência dos grandes proprie- político extrapolou seus limites, Nabuco as
tários sobre as camadas livres da população, trouxe para o palco. Um exemplo é sua aná-
dera apenas lugar ao “serviço obrigatório lise da Revolução praieira ocorrida em Per-
da enxada”. Após haver criado o mercado nambuco em 1848-1849.
de escravos, o regime servil inventara “o Quando Um estadista do Império saiu
mercado de eleitores”. do prelo no decurso do primeiro decênio
O Abolicionismo pode ser lido como do regime republicano, a Praieira ainda era
uma introdução sociológica a Um estadista encarada com desinteresse ou hostilidade.
do Império. É certo que a biografia tende O próprio Nunes Machado ficara ignorado
a dar à ação individual um relevo excessi- pelos liberais fluminenses que capitaneara
vo, que nas memórias pode atingir a me- nas eleições de 1848, antes de regressar a
galomania ou a tentativa pura e simples de Pernambuco para o sacrifício final. Quan-
reescrever a história a seu bel-prazer. Sem to a Pedro Ivo, seu nome só perdurara na
chegar a este extremo, há que reconhecer poesia condoreira. O federalismo de 1891
que a superestimação do indivíduo é ineren- não abalara a velha concepção saquarema
te a tais gêneros. Nabuco, porém, não se segundo a qual as rebeliões do período
limitou à narração de uma existência, pois regencial e da década inicial do Segundo
sua obra corresponde ao gênero biográfico Reinado haviam constituído movimentos
do life and times, que se vinha difundindo anárquicos e irresponsáveis que poderiam
nos países de língua inglesa. Nas páginas de ter comprometido irremediavelmente a uni-
Um estadista do Império, a ênfase na ação dade nacional, feito no Centro-Sul e para o
dos políticos do Segundo Reinado não re- Centro-Sul, se não fosse a sabedoria política
sulta das preferências pessoais ou políticas dos Eusébios, Paulinos e Rodrigues Torres.
de Nabuco, mas do fato bem conhecido de Essa concepção estritamente fluminense
que o regime constituiu o que se designa e imperial impedia de enxergar nas revol-
por sistema de cooptação. É sabido que seu tas regionais mais do que a expressão de
traço fundamental reside precisamente em interesses locais, como se o interesse local
que a participação política é controlada de fosse necessariamente ilegítimo; e do gosto
cima para baixo, eliminando-se ou atenuan­ pela turbulência, sem perceber o que esses
do-se a pressão dos interesses de família, movimentos representaram como reação
classe e região. Para usar a terminologia da dos Brasis ao processo desencadeado desde
antiga filosofia política, ressuscitada há anos, 1808 pela transplantação do aparato esta-
o Estado predomina sobre a sociedade civil, tal português. É certo que tampouco Nabu-
molda-a a seu talento, impedindo-a de desen- co escapou à ditadura da versão saquarema
volver-se na direção de um sistema auten- da nossa história política, mas não é menos
ticamente representativo. Por conseguinte, verdade que o capítulo de Um estadista do
84  •  Evaldo Cabral de Mello

Império que dedicou ao período regencial de alfândega, impostos, papel-moeda, cré-


é seguramente muito mais compreensivo dito público. Bem poucos estadistas sentiam
do que tudo que se escreveu desde então a quanto seu papel era secundário, ingênuo;
que com seus discursos, suas frases, seus pro-
respeito daqueles anos.
jetos, suas dissensões, eles não eram senão
O tratamento que Nabuco dispensou à
o instrumento de que se servia, quando eles
Praieira nos deve, por conseguinte, pôr de menos o suspeitavam, a ambição de fortuna
sobreaviso contra as suspeitas de elitismo que estava por toda parte. Que era todo o
levantadas contra a obra. A historiografia trabalho que eles faziam nas Câmaras, na
recente veio confirmar, embora extreman- imprensa, no governo, senão o revolvimen-
do-a, a leitura que Nabuco avançou não to surdo e interior do solo, necessário para a
só acerca daquela rebelião como também germinação? Eles, políticos, eram os vermes
da instabilidade política em Pernambuco do chão; a especulação, a planta vivaz e flo-
rescente que brotava dos seus trabalhos con-
durante toda a primeira metade do século
tínuos e aparentemente estéreis; eles desani-
XIX. Por trás do movimento praieiro, eis o
mavam, ela enriquecia.
ódio visceral, hereditário, da plebe recifense
pelos portugueses, como por trás de Teófilo E concluindo a linha de um raciocínio
Otôni nas eleições de 1860 está “o furacão que era o produto da sua experiência par-
político” que o transporta, “a maré demo- lamentar:
crática” que volta a subir, especialmente na O próprio Imperador, o que fazia senão
cidade do Rio de Janeiro, graças ao entu- trabalhar sem descanso e sem interrupção em
proveito dela (especulação) que se confundia
siasmo popular e estudantil e ao comércio,
com o progresso material, intelectual e moral
que financiara a campanha eleitoral. Final-
do país? Só ela medrava, invadia e domina-
mente, por trás do “baque da monarquia” va em torno dele; reduzia a política, o Parla-
em 1889 está o negocismo desenfreado, mento, o governo a um simulacro, ignoran-
a advocacia administrativa a viver do orça- te da sua verdadeira função; utilizava todo o
mento e a lucrar através das subvenções, aparelho político para fabricar a sua riqueza
fornecimentos, emissões, empréstimos, nômade e fortuita, que às vezes durava tanto
garantias de juro, contratos de estradas de quanto uma legislatura, e logo decaía do seu
ferro, de engenhos centrais e da imigração fausto, pelo menos do seu porte e altivez.
estrangeira. Neste passo, Nabuco reporta- Se há elitismo em Um estadista do Im-
-se à irrupção de novas forças, que tendiam pério, isto não decorre de haver seu autor
a subverter ou mesmo destruir a relativa au- ignorado a presença das novas forças sociais
tonomia do jogo político.
nascidas à ilharga da sociedade escravocra-
Narrando os últimos anos do Segundo
ta, mas do fato de que ele temeu sua atua-
Reinado, que viveu como deputado por Per-
ção em termos da estabilidade monárquica.
nambuco, ele acentou: Afinal de contas, a obra não pretendia ser a
A política propriamente dita perdia impor-
história do Segundo Reinado, aspirando no
tância, ao passo que deixava desenvolver-se,
à sua custa, o gérmen invasor que a devia máximo a ser a história da carreira política
matar; subordinava-se à função de servir a do Senador Nabuco de Araújo. É certo que
uma plutocracia tão artificial quanto efêmera, se agitam nas suas páginas os homens que
afetando a essa sua criação de um dia tarifas compunham a elite do regime, mas não se
N a bu co : sua v i s ã o d o pa ss a d o b r as i l e i ro   •  85

pode concluir daí que Nabuco acreditasse havendo também reservado a sua para as
que a história se resumia a eles, como dei- sociedades primitivas do Brasil central, des-
xam transparecer as citações feitas acima. O creveu o círculo de intelectuais paulistas
sistema político é que se resumia a eles, e so- com que privou nos anos 30 com a imper-
bretudo ao Imperador. Não havia, por con- tinência, bem pouco antropológica, de um
seguinte, como conferir dimensão perma- intelectual da rive gauche.
nente à participação de grupos sociais que A preferência de Nabuco por certas pai-
não fossem os próprios grupos dirigentes. sagens europeias é um gênero de emoção
Aliás, o reproche que se faz ao elitismo estética tão legítima quanto sua contrária,
de Nabuco não se limita a Um estadista do a admiração pelo espetáculo da natureza
Império, mas alcança também Minha for- virgem ou quase intocada pelo trabalho
mação. Dela, escreveu há anos certo antro- humano. Daí que, em termos estritamente
pólogo populista: “Autobiografia clássica e brasileiros, o poeta Joaquim Cardozo pre-
chata de um alienado”. E citava o trecho ferisse a visão do alto da Sé de Olinda no
que ofendera sobremaneira seus brios começo do verão à visão do campos gerais
nacionalisteiros: “O sentimento em nós é de Guimarães Rosa. Na verdade, Nabuco
brasileiro, a imaginação, europeia. As pai- não foi carente de tais emoções brasileirís-
sagens todas do Novo Mundo, a floresta simas. Bastaria lembrar outros trechos de
amazônica ou os pampas argentinos não Minha formação, que o nosso antropólogo
valem para mim um trecho da Via Appia, aparentemente não leu, como aquele onde
uma volta da estrada de Salerno a Amal- revela que, havendo contemplado a Criação
fi, um pedaço do cais do Sena à sombra de Miguel Ângelo e a de Rafael, não logra-
do velho Louvre”. Chamar de alienado o va “dar a nenhuma o relevo interior do pri-
autor de O Abolicionismo é uma manifes- meiro paraíso que fizeram passar diante dos
tação deplorável de leviandade intelectual. meus olhos em um vestígio de antigo mis-
Para quem acredita que, populista ou não tério popular”, provavelmente na capela do
nas suas opções políticas, o essencial da engenho onde se criara. Havendo escutado
atividade de um antropólogo reside na ca- o Angelus em plena campanha romana, seu
pacidade de compreender valores culturais “muezin íntimo”, seu “Millet inalterável”,
diversos dos seus, a afirmação destoa clara- continuou a ser o toque do sino da casa-
mente das regras do ofício. Temos o direito -grande de Massangana, convocando os
de esperar de um antropólogo que em vez escravos para a ladainha diária. Malgrado
de reservar sua empatia às tribos indígenas, a travessia repetida do Atlântico, a imagem
a aplicasse também a um autor brasileiro do oceano que se lhe gravou na retina ficou
de finais de Oitocentos que, à maneira de sendo sempre “a da primeira vaga que se
muitos dos seus compatriotas, preferia es- levantou diante de mim, verde e transpa-
pontaneamente a visão de uma paisagem rente como um biombo de esmeralda”, no
europeia. Mas a compreensão dos antro- dia em que, excursionando a certa praia das
pólogos parece, por vezes, estranhamente redondezas do engenho da madrinha, re-
especializada. E a isto não escapam sequer cebeu “a revelação súbita, fulminante, da
os mestres do ofício como Lévi-Strauss, que terra líquida e movente”.
86  •  Evaldo Cabral de Mello

Por outro lado, boa parte do interesse Walt Whitman, também contaram com cer-
de Minha formação consiste em exprimir a tos intelectuais, geralmente da costa leste, a
antiga sensibilidade brasileira do tempo da exemplo de Henry James, que conheceram
Monarquia e da República Velha, repudiada igualmente o mesmo dilema. Dessa contradi-
pela sua sucessora, a cultura que se tornou ção, nascia, segundo Nabuco, “a mais terrível
hegemônica a partir dos anos 20 e 30 e que das instabilidades”.
atualmente ainda é a nossa. Daí que muitos A explicação é mais delicada e mais pro-
trechos do livro soem de maneira estranha funda: é a atração de afinidades esquecidas
aos ouvidos do brasileiro de hoje, como foi mas não apagadas, que estão em todos nós,
o caso do nosso antropólogo. É óbvio que da nossa comum origem europeia. A instabili-
dade a que me refiro provém de que na Amé-
toda a anglomania de Nabuco parece de-
rica falta à paisagem, à vida, a tudo o que nos
fasada numa conjuntura em que o império
cerca, o fundo histórico, a perspectiva huma-
transferiu-se para a outra margem anglo-sa-
na; e que na Europa nos falta a pástria, isto é,
xônica do Atlântico. Mas um brasileiro que a fôrma em que cada um foi vazado ao nascer.
tenha visitado a Nova York dos anos 50 ou
60 compreenderá a impressão que causou E numa antecipação do personagem
em Nabuco o descobrimento da Londres do sul-americano da novela de Valéry Larbaud,
tempo da rainha Vitória, impressão que des- Nabuco encapsula: “De um lado do mar,
creveu nestes termos: sente-se a ausência do mundo; do outro, a
Londres foi para mim o que teria sido ausência do país”. E aduzia:
Roma se eu vivesse entre o século II e o sécu- Não quero dizer que haja duas humanida-
lo IV, e um dia, transportado da minha aldeia des, a alta e a baixa, que nós sejamos desta
transalpina ou do fundo da África romana última; talvez a humanidade se renove um dia
para o alto do Palatino, visse desenrolar-se aos pelos seus galhos americanos; mas no sécu-
meus pés o mar de ouro e bronze dos telha- lo em que vivemos, o “espírito humano”, que
dos das basílicas, circos, teatros, termas e pa- é um só e terrivelmente centralista, está do
lácios; isto é, para mim, provinciano do século outro lado do Atlântico; o Novo Mundo para
XIX, foi como Roma para os provincianos do tudo o que é imaginação estética ou histórica
tempo de Adriano ou de Severo: a Cidade. é uma verdadeira solidão.

O que Minha formação articula certeira- Ora, sem compreender o dilema do ma-
mente é o que se poderia chamar o dilema zombo, é a própria cultura brasileira dos
do mazombo, isto é, do descendente de eu- nossos dias que se torna inintelegível, pois
ropeu. Nas palavras de Nabuco, “nós, bra- ela foi deliberadamente criada com vistas
sileiros, o mesmo pode-se dizer dos outros a cicatrizar nossa grande ferida narcisista,
povos americanos, pertencemos à América mediante a invenção, desde a década de
pelo sedimento novo, flutuante do nosso es- 1920, de uma identidade destinada a rom-
pírito, e à Europa, por suas camadas estratifi- per com a Europa. O predomínio dos valo-
cadas”. “Desde que temos a menor cultura, res herdados do Modernismo simplesmente
começa o predomínio destas sobre aquele”. nos impede de imaginar, graças à fórmula
Ambivalência que não foi só latino-america- simplista que a estigmatiza como alienação,
na. Se os Estados Unidos da segunda meta- outra sensibilidade que não seja a consa-
de do século XIX produziram Mark Twain ou grada a partir dos últimos cem anos.
Dimensões da atualidade
do legado de Rui Barbosa

Celso Lafer
Ocupante da Cadeira 34 na Academia Brasileira de Letras

I O culto a Rui e a preservação de seus múl-


tiplos legados se prolongou após o seu faleci-
Rui Barbosa faleceu em 1923 e, como mento, e a Casa de Rui Barbosa, inaugurada
Joaquim Nabuco, seu colega na Faculdade pelo Presidente Washington Luis em 11 de
de Direito do Largo São Francisco e confra- agosto de 1930, vem se dedicando a manter
de na Academia Brasileira de Letras, nasceu viva a sua memória, cabendo destacar a pu-
há 170 anos, em 1849. Foi um contempo- blicação, com cuidados editoriais e prefácios
râneo mais moço de Machado de Assis, a de muita qualidade de destacados ruistas, das
quem sucedeu na presidência da ABL, ten- dezenas de volumes de suas obras completas,
do proferido quando de seu falecimento, uma empreitada ainda não concluída explici-
em nome de seus confrades, em 30 de se- tadora da amplitude dos seus interesses.
tembro de 1908, o “Adeus a Machado de A esta ciclópica tarefa dedicou-se Amé-
Assis”. Daí as convergências geracionais e rico Jacobina Lacombe, que foi nosso con-
de sensibilidade deste Ciclo de Conferên- frade. Explica em seu À sombra de Rui
cias, que hoje se encerra. Barbosa que colocou em ordem e foi prepa-
Rui teve em vida, pela sua atuação públi- rando para publicações o acervo de Rui, do
ca, uma presença indiscutível na cena nacio- qual se considerava o “Guarda-mor” – uma
nal. Usufruiu na sociedade brasileira de seu responsabilidade que exerceu com zelo e
tempo de um generalizado reconhecimento qualidade durante décadas – na condição
como um ícone intelectual, admirado ora- de Diretor da Casa de Rui Barbosa.
dor e advogado, homem de notável cultura A obra e a personalidade de Rui são
e excepcional conhecimento e domínio da múltiplas na sua unidade. Comporta por
língua portuguesa. Uma de suas mais rele- isso muitos ângulos de abordagem no seu
vantes dimensões é a de publicista e, como trato, que os seus estudiosos, no correr dos
tal, é uma estrela de primeira grandeza, no anos vêm analisando à luz das suas próprias
que José Veríssimo qualificou de literatura de preferências intelectuais. Exemplifico com
questões públicas em nosso país. trabalhos dos nossos confrades.
Conferência pronunciada na Academia Brasileira de Letras em 4 de abril de 2019.
88  •  Celso Lafer

Foi com A vida de Rui Barbosa que Luis por Bolivar Lamounier no seu livro-ensaio
Viana Filho iniciou o seu percurso de grande sobre Rui, de 1999. Em síntese, aponta
biógrafo, que foi a marca da sua identidade Bolivar que a obra e o legado de Rui en-
intelectual. João Neves da Fontoura foi um frentaram depois da sua morte uma dupla
notável orador que marcou a cena pública desqualificação, que se aguçou com o clima
do nosso país; compreensivelmente escreveu político e intelectual abastecido pelos des-
Rui Barbosa, Orador. Miguel Reale, meu an- dobramentos da Revolução de 1930. Uma
tecessor na Cadeira 14, esclareceu “A posi- proveio do pensamento autoritário da Di-
ção de Rui Barbosa no mundo da filosofia” reita, outra, do pensamento autoritário da
em consonância com o seu recorrente inte- Esquerda, ambas coadjuvadas pela ciência
resse pela história das ideias no Brasil. Elma- social acadêmica. Todas têm em comum
no Cardim foi jornalista e diretor do Jornal a deslegitimação do Direito como instru-
do Commercio e escreveu, como seria de se mento de ação política que caracterizou
esperar, Rui Barbosa, o jornalista da Repúbli- Rui, cujo pensamento foi tido como um
ca. Nosso confrade Alberto Venâncio Filho, expressão de um formalismo liberal e juri-
grande estudioso do pensamento jurídico dicista, desconhecedor das diferenças que
brasileiro, dedicou-se à analise de Rui Barbo- separam o Brasil real do Brasil legal, o ser
sa, como advogado e jurista. do dever-ser, a dinâmica das forças sociais e
O legado de Rui Barbosa, como se vê, econômicas da infraestrutura que moldam
estimulou e inspirou muitas gerações. Qual a superestrutura.
é hoje a sua atualidade? Esta desqualificação deixou na som-
Há uma certa dificuldade no acesso à bra um dos grandes legados de Rui, que
sua mensagem, pois o seu estilo de gran- foi o de ter se dedicado no correr da sua
de orquestrador das palavras não se amol- vida e da sua atuação, como registra Boli-
da com facilidade aos que têm preferência var, “à formação da esfera pública e à cria-
pela palavra sintética. Esta dificuldade se ção institucional da democracia no Brasil”.
magnificou na era digital, seja por parte dos É esta vertente e a sua atualidade que vou
que apreciam o sincopado não argumenta- explorar neste texto, indicando igualmente
tivo do “twitter”, seja pelo instantâneo do sua coerência com a atuação internacional
metabolismo incessante das mídias sociais, de Rui que foi episódica, mas muito signi-
que não abrem espaços para os nexos do ficativa.
enquadramento que caracterizou o modo
de argumentar de Rui.
Na defesa destes nexos afirmou em A
II
Imprensa e o dever da verdade: “O discurso Inicio com a Oração aos Moços – o dis-
não entra a cair no vício de sobejo, senão curso de paraninfo com que Rui Barbosa
quando excede a matéria do seu tema. Só brindou a turma de 1920 da Faculdade de
principia a superabundância, onde se co- Direito do Largo São Francisco, registrando
meça a descobrir a superfluidade.” que fazia parte do meu “léxico familiar”.
Há, porém, uma outra razão no plano A turma de 1920 foi a de Horácio Lafer,
das ideias que cabe mencionar, destacado que integrou a comitiva dos estudantes que
D i me n sõ es da at ua l i da d e d o l e g a d o d e R u i B a r bo s a   •  89

foi ao Rio convidar Rui para o paraninfado. ”pela eloquência na tribuna, pela mocidade
Meu pai assistiu a formatura e guardou a na cátedra, pela controvérsia na imprensa,
lembrança do impacto que sentiu ao ouvir pela política no parlamento”.
A oração aos Moços, que foi lida – porque Rui dá o seu testemunho do magistério
Rui, adoentado, não pôde comparecer à ce- de José Bonifácio, dizendo que graças a ele
rimônia – pelo Prof. Reinaldo Porchat, que como professor teve “pela primeira vez a
veio a ser o primeiro reitor da USP. Soares revelação viva da grandeza da ciência que
de Melo, que foi denodado artífice de Rui abraçávamos.” É um dado relevante de sen-
como paraninfo da sua turma, relata em sibilidade e memória, explicativa do porquê
sua circunstanciada História da Oração aos inicia a Oração aos Moços afirmando a im-
Moços a qualidade da leitura que Porchat portância que os seus “cinquenta anos de
fez da mensagem de Rui. consagração ao Direito viesse a receber no
Aponto preliminarmente, também na templo do seu ensino em São Paulo, o selo
condição de professor da Faculdade na qual de uma grande bênção.”
Rui estudou, que um grande marco da sua
trajetória de orador, vincula-se à sua vida de
estudante na Faculdade. Foi seu discurso de
III
8 de dezembro de 1868 – uma admirável A Oração aos Moços pode ser considera-
“oraison funèbre” pronunciada na sessão da o testamento político de Rui. Nela fez uma
cívica em São Paulo, em homenagem a José avaliação do seu meio século de trabalho na
Bonifácio, o moço. José Bonifácio, que tinha jurisprudência que se conjugou aos seus cin-
sido seu professor e de Joaquim Nabuco na quenta anos de serviços à Nação. Observou
Faculdade de Direito de São Paulo, foi uma que atuou sem os meios e manhas da política
grande personalidade pública do Império, tradicional, mas que “em compensação tudo
com o qual Rui subsequentemente convi- envidei por inculcar ao povo os costumes da
veu no parlamento e na vida política. Era de liberdade e à república as leis do bom gover-
cariz radical, guiado pela “ideia a realizar” no, que prosperam os Estados, moralizam a
da participação popular das massas ativas sociedade e honram as nações”.
da população – como mostrou nosso con- Entre os serviços à nação cabe destacar
frade Francisco de Assis Barbosa na intro- a ativa participação, que compartilhou com
dução do seu Perfil Parlamentar publicado Joaquim Nabuco, na campanha abolicio-
pela Câmara dos Deputados. nista. Rui sublinhou que a questão da es-
José Bonifácio, o moço, foi notável cravidão era a questão das questões, a que
orador e admirável liderança da mocidade todas as outras se subordinavam pois “en-
acadêmica da Faculdade de São Paulo no carna em si o começo da solução de todas
século XIX, como relatam Almeida Noguei- as demais”. Afirmou: “É no direito cienti-
ra, em Tradição e Reminiscências, e Spen- ficamente real de nossa época e de nossa
cer Vampré, nas Memórias para História da nacionalidade que nos firmamos contra a
Academia de São Paulo. José Bonifácio foi legalidade caduca do cativeiro.”
um paradigma que influenciou Rui ao lidar, Rui participou com destemor e precisão
como disse, com a sociedade do seu tempo jurídica do movimento abolicionista brasileiro;
90  •  Celso Lafer

por isso é figura de relevo do recente livro de linhagem socialista. Desta matéria tratou
de Angela Alonso, Flores, votos e balas, que em texto de 1983 de maneira circunstan-
desse movimento trata com originalidade, ciada e abrangente, como era do seu feitio,
baseada em abrangente pesquisa. nosso saudoso confrade Evaristo de Moraes
As limitações do tempo só me permitem Filho, inspirado pela ação e pelo convívio do
apontar que entre os serviços prestados à seu pai, Evaristo de Moraes, com Rui.
nação por Rui estão: seus inovadores pare- Em Figuras do Direito, que recolhe dois
ceres sobre ensino apresentados na Câmara admiráveis estudos sobre Rui, San Tiago
dos Deputados do Império como relator da Dantas observou que transfundir na história
Comissão de Instrução Pública e que es- a força operativa de um pensamento está
tão lastreadas na sua visão do papel rege- fora do alcance da vontade individual. Rui,
nerador da educação no desenvolvimento no entanto, exprimiu na trajetória da sua
material e moral do nosso país e de nossa vida e obra, com efetiva ressonância na-
gente. Conjugam-se com sua subsequente cional, a trama dos problemas políticos da
preocupação em propiciar à economia da sociedade brasileira, não só do seu tempo,
República, a melhoria das condições de vida mas as dos nossos dias, com destaque para
e progresso do povo, indo além da sua base os desafios da consolidação e vigência das
agrícola e abrindo espaço para o desenvol- instituições democráticas.
vimento da indústria, o que não ocorreu no Rui tinha a capacidade de sacrifício e
Império por muitas razões, dentre elas a es- sempre soube perder, lembra Oswald de
cravidão. Andrade. Assim, nas palavras do grande
Rui também em conferência de 1919 modernista “como a semente do Evange-
na sua segunda campanha presidencial, foi lho que precisa morrer para frutificar, ele
atento à questão social. Reconheceu pro- sempre soube morrer pelo dia seguinte do
gressos em matéria de direitos humanos Brasil.” Por isso a árvore da liberdade está
mas propugnou pela sua abrangência por subjacente ao seu legado. É o que vou a
meio de sua necessária extensão aos direi- seguir destacar.
tos sociais.
João Mangabeira, que foi seu discípulo
e teve o prazer da sua intimidade, afirmou:
IV
“na questão social ninguém no Brasil viu O Direito representou para Rui o cami-
tão cedo, tão largo e tão longe quanto Rui nho do seu empenho político. Este foi o de
na sua época.” Foi o único, dentre os líde- ser “o mais irreconciliável inimigo do gover-
res brasileiros, como realça Mangabeira em no do mundo pela violência, o mais fervoro-
Rui, o Estadista da República, que se decla- so predicante do governo dos homens pelas
rou pela democracia social. Mangabeira foi leis”. (Discurso de 18 de maio de 1911 no
uma destacada figura pública brasileira, de Instituto dos Advogados) e um defensor do
orientação socialista e cariz democrático. civilismo que norteou as suas duas campa-
Daí o relevo de sua afirmação, reiterada por nhas presidenciais. O programa do civilis-
Hermes Lima, que foi nosso confrade e tam- mo, para Rui, estava voltado para a obser-
bém como João Mangabeira figura pública vância das condições de justiça, e requer “o
D i me n sõ es da at ua l i da d e d o l e g a d o d e R u i B a r bo s a   •  91

governo da lei contraposta ao governo do causas impopulares, nem à das perigosas,


arbítrio”. (O Dever do Advogado, 1911). quando justas.”
Rui viveu o direito, como aponta Miguel Rui em O Dever do Advogado, observa
Reale, em função do agir, e o seu excepcio- que a ordem legal se manifesta por duas
nal domínio das doutrinas e das instituições exigências: a acusação e defesa. Esta in-
jurídicas esteve a serviço da implantação dependentemente do execrável do delito
das práticas democráticas republicanas em “não é menos especial à satisfação da mo-
nosso país. Sustentou a defesa do positivo ralidade pública do que a primeira.” Cabe
papel que os advogados podem exercer na ao advogado ser “voz do Direito no meio
vida pública de uma democracia. Para ele, da paixão pública, tão suscetível de se de-
“o trato usual do Direito, o hábito do seu masiar.” “Tem a missão sagrada, nesses
estudo, a influência penetrante de sua assi- casos, de não consentir que a indignação
milação, conduz a independência dos juris- degenere em ferocidade e a expiação jurí-
tas “. (Discurso de 18 de maio de 1911 no dica em extermínio cruel.” Por isso, “faz-
Instituto dos Advogados). -se mister resistir à impaciência dos ânimos
A autonomia do jurista em relação ao exacerbados, que não toleram a serenidade
poder é um traço marcante da personali- das formas jurídicas.
dade de Rui e do sentido apostolar do seu Rui exerceu a Magistratura de Justiça
percurso. Neste sentido, no mundo do Di- Militante na sua análise do caso Dreyfus,
reito brasileiro, Francisco Campos é, como um grande exemplo de quebra da “verda-
aponta San Tiago Dantas, o seu oposto, de ante o poder”. O caso Dreyfus também
por força de um realismo implacável e de é um exemplo em que as circunstâncias
um criticismo que relativiza todas as posi- políticas, nas quais a “paixão pública” se
ções doutrinárias. Por isso, os seus gran- expressa por movimentos que obedecem
des talentos de jurista estiveram à vontade “a verdadeiras alucinações coletivas”. Elas
para acomodar os impulsos autoritários do também ocorrem, como diz Rui em O Dever
pragmatismo do poder. Disso são exemplos do Advogado, mesmo em nações adianta-
o seu decisivo papel na redação da Consti- das e cultas.
tuição de 1937 do Estado Novo e no Ato O texto de Rui é de 1895, e data do
Institucional n.o 1, inaugurador do regime período de seu exílio na Inglaterra, a que
implantado em 1964. se viu forçado pelo arbítrio da presidência
Na Oração aos Moços, Rui engloba na de Floriano Peixoto. Foi publicado no Jornal
missão do advogado uma espécie de ma- do Commercio do Rio de Janeiro e passou
gistratura: o da justiça militante. Nisto inclui subsequentemente a integrar Cartas da In-
“não transfugir da legalidade para a violên- glaterra. Rui o escreveu, como disse, por
cia”; “não antepor os poderosos aos desva- ter o caso nele vibrado “profundamente
lidos, nem recusar patrocínios a estes contra no coração a corda da justiça”. O texto de
aqueles”; não “quebrar da verdade ante o Rui realça a importância para a convivência
poder”; não colaborar em perseguições ou coletiva da legalidade ferida nas garantias
atentados, nem pleitear pela iniquidade ou processuais pelo sigilo do “huis clos”, como
imoralidade”; “não se subtrair à defesa das observou Baptista Pereira no prefácio à 2.a
92  •  Celso Lafer

edição de Cartas da Inglaterra, que nele – para dela extrair uma lição de civilismo,
identifica uma “autópsia do militarismo”, apontando que na França foi “crucificada a
válida também para o Brasil de Floriano Pei- justiça na pessoa de um soldado pelas intri-
xoto, que postergou na experiência de vida gas da política de fações”, destacando no
de Rui, a vigência das garantias legais. contexto, a importância do direito, da justi-
O texto de Rui também corrobora a de- ça e da legalidade.
fesa que fez em 1920 sobre o dever da ver- Em 1985 Rui fez verter para o francês o
dade – nos debates, nos atos, no governo, seu texto, que foi publicado no Rio de Ja-
na tribuna, na imprensa – e da transparên- neiro. O texto chegou às mãos de Dreyfus
cia do espaço público, pois, como afirmou, depois de sua liberação, mas antes de sua
“o poder não é um antro: é um tablado. A plena reabilitação pela Corte de Cassação,
autoridade não é uma capa, mas um farol”. em 1906. Dreyfus, no seu livro Souvenirs et
“A política não é uma maçonaria, e sim Correspondences registra que leu o texto
uma liça.” Daí a inaceitabilidade da falsifica- de Rui em 1900 identificando “no autor um
ção e da mentira nas instituições (A Impren- discernimento notável e uma grande liber-
sa e o dever da verdade). Estas foram as que dade de espírito.”
permearam o processo e a condenação de O caso Dreyfus foi um caso rumoroso,
Dreyfus. de alcance internacional, cuja relevância
Rui escreveu o seu texto no calor da hora Rui anteviu desde o primeiro momento.
e com base nas informações hauridas na im- Dividiu e mobilizou a opinião pública da
prensa inglesa. Foram suficientes, como o França da 3.a República com repercussão
tempo demonstrou e a revisão do processo na Europa. Hannah Arendt sublinha o seu
Dreyfus comprovou, para Rui demonstrar, alcance histórico para o século XX, consi-
de maneira inequívoca, que Dreyfus fora ví- derando-o uma cristalização antecipatória,
tima de uma flagrante denegação da justiça explicativa das origens do que veio a ser o
por total carência de devido processo legal, totalitarismo.
tendo realçado que a clandestinidade do Na defesa de Dreyfus alinharam-se no
processo o inquinava de suspeita. Entreviu tempo as correntes liberais e democráticas.
que a verdadeira causa da condenação de Neste sentido cabe lembrar que a posição
Dreyfus foi o antissemitismo. Apontou que de Rui, que estava em sintonia com essa
o processo correu no segredo de um tribu- corrente, repercutiu favoravelmente na di-
nal militar e “era pleito sentenciado pela plomacia aberta, caracterizadora da Con-
opinião pública”, registrando que esta, na ferência de Haia de 1907, que deu espaço
França daquele momento, vivia “o espasmo ao papel da imprensa na cobertura de suas
do ódio insaciável” que agitava contra o atividades. O influente jornalista William
acusado todas as classes da população. Stead, que escreveu sobre o Brasil em Haia,
Em 1919, na sua segunda campanha apontou que Rui como chefe da delegação
presidencial, Rui, em conferência de 24 de brasileira não só se impôs no âmbito mul-
maio, referiu-se a seu texto em defesa de tilateral, pelo seu conhecimento e comba-
Dreyfus – como registra o primeiro arrazoa- tividade em relação aos demais delegados.
do jurídico escrito na discussão de sua causa Sua pioneira defesa de Dreyfus, atestada
D i me n sõ es da at ua l i da d e d o l e g a d o d e R u i B a r bo s a   •  93

pelo próprio Dreyfus, a ele deu “um cunho o papel do Direito na democratização do
de distinção”, que conferiu a Rui prestígio espaço internacional.
perante a opinião pública esclarecida que A autonomia do jurista em relação ao
acompanhou de perto a Conferência. poder, que caracterizou a maneira de ser de
Haia foi o primeiro grande ensaio da di- Rui, também marcou a sua atuação na Haia.
plomacia multilateral no século XX e o mo- Nela encontrou o tom certo para afirmar a
mento inaugural da presença brasileira nos posição independente do Brasil, cuja espe-
grandes foros internacionais. cificidade era distinta, como observou, dos
Nela, Rui atuou com informações sobre que imperavam na “majestade de sua gran-
a cena internacional que lhe foram previa- deza” e dos que se encolhiam “no receio da
mente dadas por Joaquim Nabuco e em sua pequenez”.
estreita coordenação com o Chanceler Rio Rui manteve a posição independente
Branco. Foi bem-sucedido porque tinha to- do Brasil em relação aos EUA quando este,
das as qualidades para a diplomacia parla- como potência em ascensão, se alinhou
mentar do multilateralismo: o pleno domí- com as demais grandes potências. Rele-
nio dos assuntos, a vocação de infatigável vante, neste sentido, a propósito das rela-
trabalhador e a capacidade de exprimir-se, ções do Brasil com os EUA, o que Rui, mais
inclusive de improviso e com perfeição, em adiante, disse na sua Conferência, A Im-
francês – a língua oficial da Conferência – prensa e o dever da verdade: “Não quero,
a que se conjugou a combatividade, que nem quererá nenhum de vós, que o Brasil
sempre o caracterizou, como advogado, viesse a ser o símio, o servo ou a sombra
político e parlamentar. dos Estado Unidos. Não acho que devemos
Rui em Haia contestou a igualdade ba- nos entregar de olhos fechados à sua polí-
seada na força e sustentou, no âmbito do tica internacional, se bem haja entre ela e
Direito Internacional Público, a igualdade a nossa, interesses comuns bastante gra-
dos Estados. A posição do Brasil, pela sua ves e legítimos, para nos ligarem na mais
voz, representou uma primeira formulação inalterável amizade, e nos juntarem intima-
brasileira da tese da democratização do mente em uma colaboração leal na política
sistema internacional e, nesta linha, uma do mundo. Tal é o meu sentir de ontem, e
contestação ao exclusivismo, até então pre- amanhã.”
ponderante, do papel da gestão da vida in- Na sua avaliação dos resultados de Haia,
ternacional atribuída às grandes potências. Rui em discurso de 31 de outubro de 1907,
Assim, da mesma maneira que em nosso fez uma observação que antecipou o tema
país a sua prática de homem público e de “soft power”, que é de grande relevância
publicista essteve voltada para a construção para o mundo interdependente em que es-
de um espaço público democrático, e neste tamos envolvidos: ”Hoje, com efeito, mais
contexto, o Direito foi o meio para o seu do que nunca, a vida assim moral como
perseverante fazer político , assim também econômica das nações é cada vez mais in-
em Haia, na sua prática diplomática, voltou- ternacional. Mais do que nunca em nossos
-se coerentemente para os males das imper- dias os povos subsistem de sua reputação
feições do sistema internacional, indicando no exterior”.
94  •  Celso Lafer

O tempo não me permite explorar o al- Rui extraiu da sua avaliação sobre a
cance de uma subsequente ação diplomáti- guerra um papel diverso do que teve a
ca de Rui que foi a Embaixada em Buenos neutralidade no passado, como examina
Aires, de 1916. Nela representou o Brasil no circunstanciadamente na sua Conferência.
centenário da independência da República Nas suas palavras: “A imparcialidade na
Argentina. Os documentos desta missão fo- justiça e solidariedade no Direito, a comu-
ram reunidos no volume XLIII, 1916, Tomo nhão na manutência das leis escritas pela
1 das Obras Completas de Rui, publicados comunhão, eis aí: a nova neutralidade, que
em 1981 pela Casa de Rui Barbosa, prece- se deriva positivamente das Conferências
dida de um notável prefácio de Evaristo de da Haia, não flui menos imperativamente
Moraes Filho. das condições sociais do mundo moderno.”
Em Buenos Aires, Rui destacou em mais Haia e Buenos Aires resultam do empe-
de uma oportunidade a relevância do po- nho de Rui em arguir no plano externo os
tencial de cooperação entre o Brasil e a Ar- méritos da domesticação pelo Direito da
gentina em uma vasta construção na ordem força e dos benefícios da juridicidade nas re-
política, na ordem econômica e na ordem lações internacionais. A posição de Rui está
jurídica. É assim um dos importantes patro- em consonância com dispositivos que regem
nos da parceria argentino-brasileira que veio as relações internacionais do Brasil, contem-
a ser, com grande atualidade, um dos temas pladas no art. 4.º da Constituição Federal,
fortes da agenda diplomática de nosso país. entre eles a defesa da paz e a solução pa-
Rui também proferiu uma importan- cífica de controvérsias. O empenho de Rui
te Conferência na Faculdade de Direito de internacionalista guarda total coerência com
Buenos Aires sobre os conceitos modernos a sua dedicação no plano interno em sub-
do Direito Internacional, também conheci- meter a razão de Estado à razão do Direito.
do como o dever dos neutros, nela anali- São muito significativas as iniciativas e
sado à luz da violência que caracterizou a contribuições de Rui na construção insti-
1.a guerra mundial. A Conferência de Rui tucional do país, e que perduram com os
teve larga repercussão, inclusive na França. ajustes do tempo até os dias de hoje. Rui foi
Desta substanciosa conferência permito-me desde o tempo do Império um defensor do
destacar como Rui, com presciência obser- federalismo. Entendia que o sistema federa-
vou que dada a “interdependência em que tivo era o único adaptável ao Brasil. Avaliou
até as nações mais remotas vivem umas que a autonomia federativa dos Estados,
das outras, a guerra não pode isolar-se nos republicanizava o país mais depressa e mais
estados entre os quais se abre o conflito”. seriamente do que se imaginava, substi-
Sua comoção, estragos e misérias repercu- tuindo a inércia das antigas províncias. Daí
tem sobre a fortuna dos povos mais distan- a importância do seu papel na modelagem
tes. Neste sentido, Rui antecipou o tema da jurídica do federalismo brasileiro desde o
indivisibilidade da paz que posteriormente governo provisório até a feição que assumiu
veio a ser consagrada, depois do término da na Constituição de 1891.
1.a guerra mundial, pelo Pacto de Socieda- A criação e o papel do Supremo Tribu-
de das Nações. (Art. II). nal Federal tiveram em Rui o seu grande
D i me n sõ es da at ua l i da d e d o l e g a d o d e R u i B a r bo s a   •  95

patrono. Destacou, a propósito do STF no instituições estatais e autoridades políticas,


seu discurso de posse de 19 de novembro de tal forma que não haja predomínio de
de 1914 como presidente do Instituto dos religião sobre a política. A laicidade não se
Advogados “o direito-dever de guardar a circunscreve ao reconhecimento da liberda-
Constituição contra os atos usurpatórios do de de consciência, religião e culto, assinala-
governo e do Congresso.” Guiou-se pelo dora do pluralismo da sociedade e um dos
seu tema recorrente de “sujeitar à legalida- grandes ingredientes da tutela dos direitos
de os governos, implantar a responsabilida- humanos. Significa que o Estado se desso-
de no serviço à nação” e opor-se “à razão lidariza e se afasta de toda e qualquer reli-
de estado” como a “negação virtual de to- gião, em função de um muro de separação
das as constituições”. entre Estado e Igreja, na linha da primeira
Na Oração aos Moços aponta que “en- emenda da Constituição norte-americana.
tre as leis ordinárias e a lei das leis, é a Esta matriz norte-americana da laicidade,
justiça quem decide, fulminando aquelas, que influenciou a visão de Rui, parte do
quando com esta colidirem”. Também reco- pressuposto que a laicidade é uma carac-
mendou como paraninfo aos alunos da tur- terística de organização do Estado. Não im-
ma de 1920 que iriam ser magistrados “não plica a laicidade da sociedade civil, que é
perder de vista a presunção de inocência, uma esfera autônoma para o exercício, sem
comum a todos os réus, enquanto não li- interferência estatal, da liberdade religiosa e
quidada a prova e reconhecido o delito”; de consciência. Trata-se, na lição de Micha-
não cortejar a popularidade; não transigir el Walzer, de uma expressão da sabedoria
com as conveniências; não ter negócio em liberal da arte da separação. Politicamente
secretarias; não deliberar por conselheiros representa uma maneira de responder, no
ou assessores. plano jurídico, aos ímpetos intransitivos
Cabe igualmente lembrar que Rui, como da intolerância. Daí a vedação de relação
advogado, respaldado na Corte pelo Minis- de dependência ou aliança do Estado com
tro Pedro Lessa – antigo professor de Filo- qualquer culto ou igreja, como se lê no § 7º
sofia do Direito no Largo de São Francisco do artigo 72 da Constituição de 1891, que
e membro da ABL – teve um grande papel está alinhado com o artigo 19-1 da nossa
na construção do alargamento da doutrina atual Constituição. Por isso, num Estado
brasileira do “habeas corpus” como garan- laico como Rui institucionalizou no Brasil,
tia constitucional, que inspirou mais adiante as normas religiosas das diversas confissões
o instituto do mandado de segurança. são conselhos e orientações dirigidas aos fi-
Rui promoveu desde o governo provisó- éis e não comandos para toda a sociedade.
rio (Decreto n.o 119-A, de 7/01 de 1890) a Esta contribuição de Rui para a conso-
separação da Igreja e do Estado e a laicida- lidação e vigência do espaço público e das
de do Estado, consagrada na Constituição instituições democráticas em nosso país é
de 1891 e nas constituições subsequentes. da maior atualidade. Contém o muito pre-
Implantou-se deste modo uma nítida distin- sente risco do indevido transbordamento da
ção entre, de um lado, instituições, motiva- religião para o espaço público. Tutela a fina-
ções e autoridades religiosas e, de outro, lidade pública da laicidade que é a de criar
96  •  Celso Lafer

para todos os cidadãos, não obstante sua no pensar. Vulgar é o ler, raro o refletir. O
diversidade e conflitos político-ideológicos, saber não está na ciência alheia, que se
uma plataforma comum na qual possam absorve, mas, principalmente, nas idéias
encontrar-se enquanto integrantes de uma próprias, que se geram dos conhecimentos
comunidade política democrática. absorvidos, mediante a transmutação, por
Concluo com uma das grandes lições de que passam, no espírito que os assimila.
Rui na Oração aos Moços: que ele seguiu na Um sabedor não é armário de sabedoria ar-
sua vida, obra e percurso: “os que madru- mazenada, mas transformador reflexivo de
gam no ler, convém madrugarem também aquisições digeridas”.
ENSAIO

Castro Alves, o poeta do amor

Arnaldo Niskier
Ocupante da Cadeira 18 na Academia Brasileira de Letras

“A praça! A praça é do povo! manifestamente geniais têm o direito e até


Como o céu é do condor! o dever de ostentar”.
É o antro onde a liberdade Não me demorarei na infância de Cas-
Cria águias em seu calor! tro Alves, dos seus ímpetos da mocidade,
Em Castro Alves, os poemas mais for- dos seus inúmeros amores e da sua morte
prematura aos 24 anos. Apenas algumas
tes, muitas vezes herméticos, transmitem
considerações sobre aquele que, como pou-
beleza e mistério, deixam no espírito do
cos poetas brasileiros, conseguiu alcançar a
leitor estudioso a dúvida em relação à sua
força e a grandeza do canto, em louvor à
profundidade, à sua causa primeira e à sua
liberdade.
amplitude.
Quando ele completou nove anos, a fa-
Que interpretação final devemos dar,
mília, já numerosa (com os meninos Antô-
nos dias de hoje, a “Vozes d’África”? Logo
nio, José Antônio e Guilherme, e as irmãs
na primeira estrofe, o poeta diz:
Elisa e Adelaide), mudou-se para uma casa
Há dois mil anos te mandei meu grito. maior. Castro Alves foi matriculado no Co-
légio Sebrão, no alto das ladeiras da Monta-
Que grito terá sido? Na geografia abs-
nha e da Conceição, onde atualmente fica
trata do lirismo, por onde terão voado as
a Praça Castro Alves. Após o nascimento
asas do condor? de Amélia, última filha do casal, a família
Resposta precisa não existe. Ditá-la, se- transferiu-se para o Solar da Boa Vista, em
ria transformar a arte do verso numa ciência Brotas. A casa da Boa Vista, mais do que
exata, com o que definitivamente não con- qualquer outra, ficou ligada ao poeta, trans-
cordava a estudiosa Lia Silva Mendes. Se ela parecendo em grande parte da sua obra.
se identifica com a liberdade de criação do Com a morte de D. Célia, mãe de Castro
poeta, com isso dá razão a Lêdo Ivo, que Alves, em 1859, a família passou a morar
apontava como defeitos de Castro Alves as no centro da cidade, no Largo do Pelouri-
negligências e limitações “que só os poetas nho. Em 1862, o Dr. Antônio casou-se pela
98  •  Arnaldo Niskier

segunda vez com a viúva Maria Ramos Gui- Eugênia fazia, então, o papel-título do dra-
marães, mudando-se para o Solar do Sodré, ma “Dalila”, e Castro Alves saudou-a:
onde hoje é o Colégio Ipiranga.
Ergueste a voz em Dalila
Já nesta época, despertava a vocação Contigo a artista adorei;
poética de Castro Alves. No dia 3 de julho Depois em Lúcia choraste,
de 1861, ainda no ginásio, o poeta decla- Contigo Lúcia chorei.
mou sua primeira poesia, na festa de co-
Pode-se afirmar que Castro Alves é o
memoração da liberdade da terra baiana,
poeta do amor. Eugênia não resistiu e en-
graças aos heróis de Pirajá:
tregou-se a ele com toda a paixão. Mais
Se o índio, o negro, o africano, tarde, outra grande atriz, Adelaide Amaral,
E mesmo o perito hispano disputava com Eugênia as preferências do
têm sofrido servidão; poeta, no Recife.
Ah! Não pode ser escravo
Castro Alves continuou sua carreira
Quem nasceu no solo bravo
poética até chegar à glória máxima de ser
Da brasileira região!
exaltado nos braços do povo, quando sua
Apesar de jovem, Castro Alves impres- poesia social tinha a finalidade ostensiva de
sionava as mulheres por sua beleza e fascí- propaganda política e mesmo revolucioná-
nio: alto, vasta cabeleira negra, fisionomia ria. Por isso mesmo, o bardo era também
pálida. Em Recife, foi morar numa “repúbli- conhecido como “a tuba sonora”.
ca” de estudantes, onde fez novos amigos Foi uma carreira curta e brilhante, mar-
e conheceu a vida boêmia. Pouco tempo cada por dois fatos importantes da campa-
depois, ele, o irmão e Luís Cornélio dos San- nha abolicionista no Brasil: de um lado, a
tos, seu colega de colégio, alugaram uma Lei Eusébio de Queirós, de 1850, reprimin-
pequena casa, às margens do Capibaribe. do o tráfico africano e, do outro, a Lei do
Estudava e fazia versos. Ventre Livre, sancionada em 28 de setem-
O Jornal do Recife começou a divulgar bro de 1871, dois meses depois da morte
vários de seus poemas, e a popularidade foi do poeta, que ocorreu a 6 de julho de 1871.
crescendo: o adolescente baiano vestia-se Quando Castro Alves apareceu, a lite-
bem, no rigor da moda, e provocava suspi- ratura no Brasil era conflitante – as ideias
ros nas mocinhas. Quando saía às ruas, cos- inovadoras eram vítimas de resistência e
tumava dizer para sua imagem no espelho, custavam a triunfar. O Romantismo, em-
ajeitando a gravata: bora combatido, tinha como magníficos
– Tremei, pais de família, pois Don Juan representantes Gonçalves Dias (o poeta dos
vai sair! índios), Álvares de Azevedo e os seus fantas-
Em Recife o destino lhe reservara a pri- mas, Casimiro de Abreu e a nostalgia, além
meira paixão. Em 1863, no Teatro Santa Isa- de outros, e prolongou-se por mais de uma
bel, conheceu aquela que seria o mais signi- geração. Ainda em 1883, o quadro da poe-
ficativo amor da sua vida: Eugênia Câmara, sia brasileira era constituído de sentimenta-
vinda de Portugal, mulher inteligente, vi- listas, liristas puros, condoreiros e realistas.
brante, sedutora, atriz das mais festejadas. Castro Alves estava aí configurado, desde o
C a s t ro A lv e s , o p o e ta d o a m o r   •  99

seu despertar poético, sobressaindo-se logo Outro aspecto importante e discutido da


por suas tendências para a questão social. obra de Castro Alves é a influência bíblica
Suas influências literárias foram contras- em seus poemas. Tal influência foi usada
tantes, tomando seus versos posição ostensiva inclusive por seus opositores, que viam em
a partir de 1864, quando o poeta inscreveu-se suas descrições líricas a falta de conheci-
como propagandista da Abolição da Escrava- mento geográfico e histórico, presente em
tura e também das liberdades públicas. Em muitos poemas, principalmente naqueles
1865, com os primeiros poemas de Os escra- dedicados à causa libertária.
vos, Castro Alves inaugurou o ciclo de suas Castro Alves foi influenciado pelos mis-
atividades consagradas à causa que defendeu térios orientais duplamente: na literatura e
com tanto entusiasmo e espírito de luta. no coração. Relembremos um episódio co-
É inegável que o imperativo social pas- nhecido:
sou a dominar em seus primeiros contatos No solar da Rua do Sodré, Castro Alves
com os jovens que afluíam ao Recife, de deixou-se prender pelos encantos de três
vários lugares do País, criando ali um clima irmãs judias, que moravam numa casa pró-
favorável às novas diretrizes do pensamento xima. Ele passava tardes na janela, tentando
universal. Foi Tobias Barreto, dez anos mais conquistá-las: Mary, Simy e Esther Amzala-
velho, quem lhe deu estímulo para cultivar ck. Para elas, o poeta escreveu a famosa
o condoreirismo; as circunstâncias do mo- poesia “Hebreia”, enviando-lhes com a se-
mento histórico nacional assim o exigiam. guinte dedicatória: “À mais bela das três”.
Podemos conceituar Castro Alves como As moças duvidaram da preferência do belo
um romântico que, diversarmente de outros moreno, de bigode charmoso e cabelos lon-
poetas que cultivavam o passado, voltava- gos. Mas, na verdade, era Esther a dona do
-se para o futuro com toda a sua coragem coração de Castro Alves:
e juventude. E havia alguma coisa mística Pomba d’esperança sobre um mar
nessa atitude que o atraía. d’escolhos!
O poeta usava símbolos e metáforas de Lírio do vale oriental, brilhante!
cunho filosófico ou poético, dominando a Estrela vésper do pastor errante!
Ramo de murta a rescender cheirosa!...
antítese em seus poemas. A verdade é que
a antítese prevalecia no pensamento ro- Nesse tempo, Castro Alves vivia sob o
mântico, sendo propícia à oratória que bus- fascínio do Oriente e também do Oriente
ca a prontidão do enunciado, o imprevisto, hebraico, quem sabe em consequência do
o insólito. seu interesse amoroso pela jovem judia. Re-
A antítese tornou-se excepcionalmente parem que o primeiro verso daquele poema
relevante em “O navio negreiro”, relacio- vai, de certa forma, reaparecer no primeiro
nando o mundo físico com o mundo moral, verso de Dedicatória, que abre Espumas Flu-
como podemos observar neste trecho: tuantes:
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo... A Pomba d’aliança o voo espraia
Andrada! arranca esse pendão dos ares! Na superfície azul do mar imenso,
Colombo! fecha a porta de teus mares!... Rente... Rente da espuma já desmaia
100  •  Arnaldo Niskier

Medindo a curva do horizonte extenso... No ano seguinte, começou a recitar em pú-


Mas um disco se avista ao longe... A praia blico, fez crítica literária e deixou transpare-
Rasga nitente o nevoeiro denso!... cer o que pensava sobre a Liberdade:
Ó pouso! ó monte! ó ramo de oliveira!... A poesia – afirma – na terra dos Andra-
Ninho amigo da pomba forasteira!... das, dos Pedros Ivos e dos Tiradentes, deve ser
majestosa como as matas virgens da América,
A popularidade arrojada como seus rios gigantes, livre como
os ventos que passam gementes por suas
A obra de Castro Alves, aliada ao ro-
várzeas, que zurzem os costados pedregosos
mantismo de características mais puras, dos seus gigantes de granito. A poesia, enfim,
herdeiro na América de Hugo e Byron, foi deve ser o reflexo desta terra. Isto no que toca
envolvida pela aura da popularidade e não à natureza. No que toca às ideias do século,
se formou sem controvérsias. Mesmo assim, ao seu fim, a poesia deve ser o arauto da li-
a sua posição é a de um poeta altamente berdade – esse verbo da redenção moderna
representativo da linguagem brasileira. – e o brado ardente contra os usurpadores
Há na poesia do Condor um toque mar- dos direitos do povo. Quanto à sua forma, a
literatura, sendo a expressão da humanidade,
cante de musicalidade; as palavras enca-
libertou-se dos preceitos asfixiadores da esco-
deiam-se num sortilégio melodioso e cheio
la clássica – essa jaula do pensamento – assim
de inspiração, próprio dos grandes talentos. como a humanidade despedaçara o feudalis-
Talvez em virtude do caráter socialmente mo – essa jaula da dignidade popular...”
ativo de seus poemas, Agripino Grieco te-
nha afirmado que “Castro Alves não foi um Aluno inteligente, impressionava os profes-
homem; foi uma convulsão da natureza”; sores quando, aos 10 anos de idade, per-
Eça de Queirós escreveu que “nele está, em guntado sobre qual seria a maior vergonha
dois versos, toda a poesia dos trópicos.” na história de um povo, respondeu em voz
Encontramos em sua poesia o épico, o alta e firme: “A maior vergonha de um
horrendo, gestos heroicos ou covardes, afir- povo é ter escravos.”
mações e indecisões, todos os contrastes Anos depois, começou a glória para o
que marcaram a vida brasileira no período jovem baiano, que era admirado pelos co-
colonial”. legas pernambucanos. Um dia, passando
Manuel Bandeira, ao analisar a obra de pelas ruas, viu um orador, no centro da pra-
Castro Alves, numa publicação de 1971, es- ça, apregoando a uma pequena multidão as
creveu: “O que mais aprecio nos versos do virtudes da República; o orador era Antônio
baiano, aqui e ali, é sortilégio musical das Borges da Fonseca, e o comício foi dissolvi-
palavras.” do a bala pelos cavalarianos a serviço do Im-
A causa da Abolição fervia no sangue pério. Castro Alves, também amante da Re-
dos jovens acadêmicos e se refletia na li- pública, começou a declamar, advertindo:
teratura, assim como ocorreu antes com o
A praça! A praça é do povo!
Indianismo de Gonçalves Dias. Mas a causa Como o céu é do condor!
libertária era bem mais inflamada. É o antro onde a liberdade
Em 1.o de dezembro de 1863, Castro Al- Cria águias em seu calor!
ves foi novamente reprovado na faculdade. Senhor, pois quereis a praça?
C a s t ro A lv e s , o p o e ta d o a m o r   •  101

Desgraçada, a populaça! Em janeiro de 1868, em sua viagem para


Só tem a rua de seu. São Paulo, passou pelo Rio, e foi recebido
Ninguém vos rouba os castelos, por José de Alencar e Machado de Assis.
Tendes palácios tão belos...
Estava então o poeta na Corte, disposto a
Deixai a terra ao Anteu...
enfrentar um mundo novo. Trazia a vontade
A partir daquele dia, a poesia do rapaz de vencer no Sul, através de suas poesias.
de 17 anos estava colocada a serviço de sua Poucos dias depois, com Eugênia Câmara e
gente. Nesse mesmo ano, o poeta matricu- Rui Barbosa, embarcou para Santos.
lou-se na primeira série do curso de Direito. Em São Paulo, seu talento explodiu com
Castro Alves começou a preparar Os Es- toda a força, em contato com ideias e pro-
cravos, sua maior obra, e A Cachoeira de jetos de toda uma geração, da qual faziam
Paulo Afonso. A morena Idalina desconfiava parte Rui Barbosa e outros. Foi nessa época
que estava sendo esquecida. O poeta, entre que o poeta escreveu O Livro e a América e
uma tradução de Victor Hugo e a aprovação A Visão dos Mortos.
na Academia, em Recife, tomou coragem
para se declarar em público àquela que se-
ria seu amor mais significativo: Eugênia Câ-
“O navio negreiro”
mara. Os dois passaram a viver juntos em No dia 25 de abril de 1868, entrou em
uma casinha do Barro, bairro distante do cena a peça “Os miseráveis”, escrita sob a
centro. Nesta casa escreveu Gonzaga, peça inspiração de Victor Hugo. Alguns dias an-
teatral na qual fez a apologia da insurreição tes, Castro Alves havia concluído o mais fa-
de Tiradentes, com Eugênia no papel de moso de seus poemas: “O navio negreiro”,
Marília de Dirceu. que divulgou na data da Independência, re-
O amante e feliz prisioneiro, inspira- cebendo o título de “Cantor dos Escravos”.
do pela bela mulher, dava mais luz às suas Ele esperou o momento certo para divulgar
ideias de libertação. Amor e idealismo pu- sua mais recente criação. Tanto que, ao pro-
deram conjugar-se através de seus versos nunciar os versos finais, “Andrada! arranca
tão harmonicamente que, às vezes, “não esse pendão dos ares!.. ./Colombo! fecha
há como distinguir as duas flamas em que a porta de teus mares!...”, a multidão, em
ardeu com maior vibração ou voluptuosida- delírio, invadiu o palco para carregar o poe-
de”, como diz Eugênio Gomes, estudioso ta em triunfo. Tendo à frente Rui Barbosa,
da obra de Castro Alves. foi conduzido para a “república dos baia-
Fiel à poesia social, da qual, no dizer nos”, na várzea do Carmo. Era a glória do
de Sílvio Romero, “ele foi a maior expres- poeta... e Eugênia sentia que perdia seu
são brasileira”, o poeta atingiu um de seus amante. Mas antes do adeus definitivo, em
pontos mais altos com o poema “Bandido outubro, ela ainda contracenou em “Gon-
negro”: zaga”, em sua estreia na terra paulistana.
Cai, orvalho de sangue do escravo
Nos primeiros dias de novembro, Eugênia
Cai, orvalho, na face do algoz. o abandonava. Deprimido, ferido em seu
Cresce, cresce, seara vermelha, orgulho de semideus, ele procurou refúgio
Cresce, cresce, vingança feroz. no campo. Tragicamente, quando saía para
102  •  Arnaldo Niskier

caçar, ao pular um regato, sua arma dis- professora de canto e piano. Passava as tar-
parou, ferindo-o num dos pés. O acidente des com ela no farol da Barra. A professora
comoveu o povo paulista. Já estando tuber- resistia ao poeta, preocupada com os co-
culoso e fraco, teve uma recuperação pro- mentários da sociedade baiana. Mais tarde,
longada. Mesmo assim ainda pensava em ela confessou sua frustração:
Eugênia: Nenhuma mulher poderia ter resistido a
tanto talento, a esse gênio sobrenatural, fora
Penso em ti nas horas de tristeza. sua beleza física. Mas eu pertencia a essa so-
Ai! Volve! volve peregrina estrela! ciedade baiana nobre...
O “Cantor dos Escravos” quis morrer
Em 10 de fevereiro de 1871, contra-
em solo baiano e embarcou para Salvador
riando sua família, Antônio de Castro Alves
onde, no velho Solar do Sodré, reencontrou
declamou pela última vez em público, na
o carinho de suas irmãs. Quase não saía
Associação Comercial, onde se realizava um
de casa, traduziu Byron e leu Casimiro de
ato de solidariedade às vítimas francesas da
Abreu. A recordação do vapor que lhe trou-
guerra franco-prussiana. Pela última vez viu
xe à Bahia, as espumas do mar, acendeu em
Agnese, dedicando-lhe o poema “Noite de
sua mente a ideia de reunir seus versos num
maio”. No dia 5 de julho, olhando um es-
livro, a que deu o nome de Espumas Flu­
pelho, pediu:
tuantes. Já não sou mais o mesmo... ninguém mais
Mesmo cansado e triste, resolveu voltar pode entrar em meu quarto. Quero que se
ao sertão que tanto amou. Foi para Currali- lembrem do que fui, não do que sou!
nho, antiga fazenda de seus avós maternos.
Castro Alves, às 10 horas do dia 6 de
Lá quis recitar, mas a voz lhe fugiu, morren-
julho de 1871, quando sua irmã Adelaide
do na garganta. Logo a seguir, concluiu A
lhe enxugava a testa, disse-lhe:
Cachoeira de Paulo Afonso, a epopeia da
Guarda esse lenço... com ele enxugaste o
liberdade negra.
suor de minha última agonia.
Sempre conjugando seus amores com
a paixão pela causa abolicionista, em Anjos Pediu para abrirem a janela, queria olhar
da meia-noite, cantou suas musas: Idalina, o mar, vislumbrar os escravos livres, o con-
Leonídia, Esther, Eugênia, e lembrou as for- dor republicano nos ares, suas mulheres
mosas cariocas Cândida e Maria Cândida. queridas. As três e meia da tarde morreu,
Castro Alves, voltando a Salvador, apai- diante do lamento dos amigos e admirado-
xonou-se mais duas vezes: Brasília de Sousa res e a gratidão de uma raça.
Vieira e, logo em seguida, Virgínia Hugo, O mito não morre assim. Ele continua
que dizem ter lhe dado uma filha, Virgínia presente na memória dos negros brasileiros
Hilda de Castro Alves Gonçalves. e nos suspiros das meninas morenas que, até
Surgiu para o poeta baiano a última hoje, depositam rosas vermelhas em sua se-
paixão: Dona Agnese Trinci Murri, italiana, pultura, na Praça Castro Alves, em Salvador.
Poesia e música a partir de Homero

Antonio Cicero
Ocupante da Cadeira 27 na Academia Brasileira de Letras

E
m grego antigo, a palavra , de enquanto cantos, do que por escrito. Trata-
onde “poeta”, significava aquele que -se do que se chama de “poesia oral pri-
faz alguma coisa, e a palavra , mária”. Ora, é evidente que, em virtude da
de onde “poema”, significava aquilo que grande extensão da Ilíada e da Odisseia, te-
foi feito. É apenas nesses sentidos originais ria sido impraticável uma apresentação inin-
que Homero empregava tais palavras, e não terrupta, do começo ao fim, de uma dessas
no sentido contemporâneo, em que a pala- obras. Como cada uma das apresentações
vra “poeta” significa sobretudo um artista de cada trecho desses poemas era consi-
que produz obras a partir de palavras, e a derada a apresentação de um epos, então,
palavra “poema” significa sobretudo uma dado que o plural de “epos” é “êpea”,1
obra de arte tradicionalmente composta de podemos dizer que tanto a Ilíada quanto
palavras dispostas em formas de versos. O a Odisseia são compostos de vários êpea.
vocábulo que ele usava para o que hoje cha- Fisicamente, esses poemas não puderam,
mamos de “poeta” é “ ”, de onde portanto, constituir unidades senão quan-
“aedo”, que quer dizer cantor; e as palavras do, tendo sido todos os êpea da Ilíada, por
que usa para o que chamamos de “poema” um lado, e todos os êpea da Odisseia, por
são , que quer dizer canção, ou , outro, escritos e reunidos por alguém, eles
“epos”, que quer dizer um discurso que se assumiram a forma de livros.
reitera, como uma palavra, um provérbio, Assim, o escritor e professor de retórica
uma reza ou uma canção. e erudito romano Aeliano, que viveu no sé-
Supõe-se que os poemas homéricos culo III d.C. e escrevia em grego, conta que
tenham sido compostos no século IX a.C..
Ora, foi mais ou menos nessa época que antes os antigos cantavam separada-
os gregos apenas começaram a produzir o mente os êpea de Homero. Chamavam-
seu alfabeto, tomando por base a escrita -se, assim, “A batalha ante as naves”,
fenícia. Sendo assim, é certo que os poe- “Dolonia”, “A vitória de Agamêmnon”,
mas homéricos existiram antes oralmente, 1 .
104  •  Antonio Cicero

“O catálogo das naves”, a “Patróclea”, aprendeu palavra por palavra e linha por
a “Lytra”, “Os jogos instituídos para Pá- linha, e, no entanto, as duas canções são
troclo”, e “A quebra dos juramentos”. versões reconhecíveis da mesma estória.
Isso, quanto à Ilíada. Quanto à Odisseia, Não são, porém, tão parecidas que possam
“As ações em Pylas”, “As ações na Lace- ser consideradas ‘exatamente iguais’”.5 Na
demônia”, “A caverna de Calipso”, “O verdade, segundo Lord,
barco”, “Os discursos de Alcínoo”, “As
qualquer canção particular é diferente na
Ciclópias”, “A Necuia” [...]. Muito depois,
boca de cada um dos seus cantores. Se
Licurgo, o lacedemônio, pela primeira vez
a considerarmos no pensamento de um
trouxe para a Hélade a poesia de Homero
único cantor durante os anos em que ele a
em conjunto. Essa carga, ele transportou
canta, descobriremos ser diferente em di-
da Jônia, por onde viajou. Finalmente, Pi-
ferentes estágios de sua carreira. A clareza
sistrato2 compilou a Ilíada e a Odisseia.3
dos contornos de uma canção dependerá
Nos tempos modernos, as mais impor- de quantas vezes ele a cantou; se é uma
tantes descobertas sobre a natureza da parte estabelecida do seu repertório, ou
poesia oral primária são as que o estudio- apenas uma canção que canta ocasional-
so esloveno Matija Murko e os america- mente. A extensão da canção também é
nos Milman Parry e Albert Lord fizeram, importante, pois uma canção curta por
a partir de seus estudos sobre a tradição natureza tenderá a tornar-se tanto mais
oral nos Bálcãs modernos. “Os cantores”, estável quanto mais for cantada.6
conta Murko sobre os poetas pertencen-
Para poder improvisar, o cantor épico
tes à tradição épica oral da Iugoslávia, na
necessita dispor de certos recursos linguís-
primeira metade do século vinte, “não têm
ticos que lhe permitam, obedecendo a mé-
texto estabelecido, recriam sempre as suas
trica tradicional, improvisar fluentemente.
canções, embora afirmem fazê-las sempre
A poesia épica grega emprega o hexâmetro
iguais ou apresentá-las como as ‘capta-
datílico, em que cada verso contém seis pés,
ram’ ou ‘ouviram’.”4 Falando a respeito de
cada um dos quais sendo composto por uma
dois cantores da mesma tradição, Zogic e
sílaba longa, seguida por duas sílabas breves
Makic, Lord mostra que ambos “enfatizam
ou, ocasionalmente, por outra sílaba longa.
que cantariam a canção exatamente como
Um desses recursos linguísticos são as
a ouviram, Zogic jactando-se até de que,
fórmulas. Trata-se de sintagmas ou, como as
vinte anos depois, cantaria a canção do
define Parry, de expressões que, usadas sob
mesmo modo (‘palavra por palavra, linha
as mesmas condições métricas, exprimem
por linha’)”, e explica que “Zogic aprendeu
uma ideia essencial.7 Assim, por exemplo,
de Makic a canção em questão […] Não a
em vez de empregar simplesmente, como
2 Pisistrato
foi tirano em Atenas no século VII a.C. de hábito, a palavra para dizer “de
3 AELIANUS, Claudius. “Varia historia”. In:_____. De
natura animalium libri xvii, varia historia, epistolae, 5  LORD, A.B. The singer of tales. Cambridge, Mass.:
fragmenta, ex recognitione Rudolphi Hercheri. Lepzig: Harvard U. Press, 1997, p.28.
Teubner, 1866, ovol.XIII, cap.XIV. 6 Ibid., p.35.
4  Apud FRANKEL, H. Dichtung und Philosophie des 7 PARRY, Milman. The making of homeric verse. Oxford:

frühen Grichentums. Munique: Beck, 1993, p.17. Oxford U. Press, 1987.


P o es i a e m ú s ic a a pa rt i r d e H o m e ro   •  105

madrugada”, Homero muitas vezes prefe- esquema métrico. Tal idioma9 possuía a pe-
re o verso culiaridade extraordinária, sublinhada por
, (“mal raiou a filha da manhã, Barry Powell, de ser falado por poucos mem-
Aurora de róseos dedos”), frase que signifi- bros da comunidade, embora fosse entendi-
ca a mesma coisa, porém consiste num he- do por todos.10 Pois bem, os futuros poetas
xâmetro datílico. Ou, tendo que preencher aprendiam desde muito cedo – alguns, des-
um hexâmetro dactílico, ele frequentemen- de crianças – esse idioma, de modo a falar
te, no lugar de dizer simplesmente o nome fluentemente em hexâmetros datílicos.
de um deus ou um herói, usa um de seus Depois da difusão da escrita na Grécia,
famosos epônimos. Assim, por exemplo, no no século V a.C., tonara-se relativamente
lugar de (Odisseu) tout court, comum a memorização da Ilíada e da Odis-
ele pode preferir, se lhe for metricamente mais séia. Uma memorização dessa natureza, po-
conveniente, usar, ao final do verso que está rém, não é típica das culturas orais primárias
pronunciando, como a de Homero ou dos aedos que ele
(atribulado, divino Odisseu). descreve, mas de culturas que já dispõem da
No princípio do século XX, a observação escrita. Na Grécia, eram os rapsodos, que co-
da poesia oral iugoslava ocasionou a elabo- nheciam a escrita, como Íon, personagem do
ração do conceito de composition in perfor- diálogo homônimo de Platão, que a pratica-
mance, “composição durante a recitação”, vam. Ao contrário da palavra aedo, a própria
ou, se quisermos, durante a apresentação, palavra rapsodo é pós-homérica e posterior à
que manifesta o fato de que não há diferen- introdução da escrita.
ça entre o ato através do qual o cantor apre- Segue-se que os poemas homéricos, tais
senta determinada canção e o ato através como se apresentam hoje, devem consistir
do qual ele a compõe, pois a apresentação em textos orais ditados. Como diz Lord,
consiste numa recriação.8 Cada vez que o
cantor canta uma canção, ele a recompõe; as canções sempre estiveram em fluxo e
e o compositor não compõe senão quando se cristalizavam por cada cantor somen-
canta uma canção. Quando o cantor diz que te quando ele se sentava ante uma au-
vai apresentar a canção X ou uma canção diência e lhe contava a estória. Era uma
sobre X, ele quer dizer que, empregando as velha estória que ouvira de outros, mas
fórmulas tradicionais que lhe possibilitem fa- aquela maneira de contar era dele mes-
lar fluentemente na métrica tradicional, dis- mo... Ele deve tê-la cantado muitas ve-
correrá sobre o – o mito – é, isto é, zes antes e muitas vezes depois daquelas
o tema, X. É como se o cantor falasse uma ocasiões momentosas que nos deram a
Kunstsprache, um idioma artificial sobrepos-
Ilíada e a Odisséia. E então ocorreu um
to ao idioma cotidiano, composto de versos
dos grandes eventos na história cultural
hexamétricos datílicos e cujo vocabulário se
do Ocidente, a escritura da Ilíada e da
compusesse não somente das palavras atô-
Odisséia de Homero.11
micas deste, mas também das palavras, por
assim dizer, moleculares, que são as fórmu-
9 Ibid., p.35.
las, que lhe facilitassem o emprego desse 10 POWELL, B.B. Homer and the origin of the Greek alpha-

bet. Cambridge, Mass.: Cambridge U. Press, 1991, p.224.


8 LORD, A.B., op. cit, p.13. 11  LORD, A.B. Op. cit., p.151-2.
106  •  Antonio Cicero

Se isso é verdade – e é forçoso reconhe- depois que de Tróia destruiu a cidadela


cer que hoje nenhuma outra hipótese se sagrada.13
aproxima dessa em plausibilidade – então
Embora eu considere a tradução de
os versos que nos chegaram constituem
Frederico Lourenço a melhor de que dispo-
apenas uma das versões dos poemas homé-
mos para o português, observo que aqui,
ricos. Essas versões não derivam de nenhum
excepcionalmente, eu mesmo preferiria não
“original”, pois a oposição entre o original e
traduzir por “astuto”, mas por “versátil” a
o derivado não existe na cultura oral. “Cada
palavra “ ”.
apresentação”, diz Lord, “é uma canção di-
Já o primeiro verso da Ilíada começa
ferente; pois cada apresentação é singular e
dizendo, na bela tradução de Haroldo de
cada apresentação tem a assinatura do seu
Campos:
poeta cantor... A audiência sabe que é dele
porque ele está ante ela”.12 A ira, Deusa, celebra do Peleio Aquiles.14
Isso significa que num período longo
como, digamos, o que vai da juventude A Deusa a que o verso se refere é, evi-
à velhice de um poeta, as mudanças fo- dentemente, uma das Musas.
ram provavelmente bastante grandes. Que O outro grande poeta épico grego, He-
dizer das diferenças entre diferentes poe- síodo, começa a sua Teogonia dizendo, na
tas, contemporâneos seus ou não? Não tradução de Jaa Torrano:
há dúvida de que os próprios poetas e o Pelas Musas heliconíades comecemos a
seu público se davam conta do fato de se- cantar.15
rem consideráveis as diferenças entre uma Leiamos alguns trechos da Odisseia em
apresentação e outras. De todo modo, as que Homero descreve o desempenho de um
teses de Parry e Lord deixam claro que não aedo. A Odisseia, como se sabe, é a epo-
somente o bardo não memoriza os poe- peia que narra as peripécias da viagem em
mas longos, seus ou alheios, mas que, do que Odisseu – ou, como se diz em latim e,
seu ponto de vista – melhor ainda, do pon- consequentemente, em português Ulisses –
to de vista da própria poesia oral – isso não regressou de Troia, onde guerreara, para a
teria nenhum sentido. terra em que reinava, Ítaca. Dado que Po-
Outra característica da poesia épica e, seidon, o deus do mar, havia, nessa guerra,
no final de contas, de toda a poesia grega, tomado o partido dos troianos, ele dificul-
era a invocação das Musas, que, segundo tou muito a viagem de Ulisses, obrigando-o
os próprios poetas, eram deusas que ins- a passar por diversas aventuras. Por causa
piravam ou sopravam aos ouvidos deles as 13  HOMERO. Odisseia. Trad. de Frederico Lourenço. Lis-
canções que deviam cantar. Assim, a Odis- boa: Cotovia, 2006, vs. I.1-2. Original grego:
seia começa – na tradução de Frederico
Lourenço – com os versos 14  HOMERO. Ilíada de Homero. Vol.I. Trad. de Haroldo

de Campos. São Paulo: Arx, 2003, v. I.1. Original grego:


Fala-me, Musa, do homem astuto que .
15  HESÍODO. Teogonia. A origem dos deuses. Trad. de
tanto vagueou, Jaa Torrano. São Paulo: Massao Ohno, 1981, v.I.1. Ori-
ginal grego:
12  Ibid., p.101. .
P o es i a e m ú s ic a a pa rt i r d e H o m e ro   •  107

disso, uma viagem que devia ter sido curta A quem a Musa muito amava. Dera-lhe
acabou por durar dez anos. tanto o bem como o mal.
O canto VIII da Odisseia conta como Privara-o da vista dos olhos; mas um
Ulisses, chegando à ilha dos Feácios, foi re- doce canto lhe concedera.
cebido pelo rei, chamado Alcínoo. Este lhe Para ele colocou Pontónoo um trono
ofereceu um banquete em seu palácio. Eis com embutidos de prata
como Alcínoo, na tradução de Frederico No meio dos convivas, recostando-o
Lourenço, convidou os nobres de sua corte contra uma alta coluna.
para o banquete: Num prego pendurou a lira de límpido
som, perto da cabeça
[...] Vinde agora ao meu belo Do aedo; mostrou-lhe depois o arauto
Palácio, para que mostremos ao estran- como a ela chegaria
geiro a nossa estima. Com as mãos. E junto dele colocou um
Que ninguém se recuse! E chamai ainda belo cesto e uma mesa,
o divino aedo, Assim como uma taça de vinho, para
Demódoco, pois a ele concedeu o deus que bebesse quando desejasse.
o apanágio de nos
E todos lançaram mãos às iguarias que
Deleitar, quando aquilo canta que lhe
tinham à sua frente.
inspira o coração.16
Mas depois de afastarem o desejo de
[...]
comida e bebida,
Eis agora a descrição do que ocorreu no A Musa inspirou o aedo a cantar as céle-
palácio: bres façanhas de heróis:
era um canto cuja fama chegara já ao
Os pórticos, os pátios e os edifícios esta- vasto céu –
vam repletos de homens a contenda entre Ulisses e Aquiles, filho
Que ali se reuniam: eram muitos, tanto de Peleu.17
novos como velhos. [...]
Em sua honra Alcínoo degolou em sacri-
17  Ibid., vs. VIII.57-73. Original grego:
fício doze ovelhas,
Oito javalis de brancas presas e dois bois
de passo cambaleante.
Esfolaram e esquartejaram os animais;
fizeram um aprazível festim.

Chegou depois o arauto, trazendo pela


mão o exímio aedo,
16  HOMERO. Odisseia. Trad. de Frederico Lourenço. Lis-
boa: Cotovia, 2006, vs. VIII. 41-45. Original grego:
108  •  Antonio Cicero

Sendo parte fundamental do tema do Exímios bailarinos, que o solo sagrado


canto, emocionou-se tanto o próprio Ulis- percutiram com os pés.
ses – que, aliás, até aquele momento, era o Maravilhou-se Ulisses encandeado com
único a saber disso– que chegou a chorar. os passos faiscantes dos pés.
Depois, Alcínoo convidou os convivas
a participarem e/ou assistirem a contendas Foi então que, tangendo a sua lira, De-
atléticas. Finalmente, após várias ocorrên- módoco começou
cias, Alcínoo disse: O belo canto dos amores de Ares a Afro-
dite da linda coroa.19
A nós sempre caro é o festim, assim
como a lira, as danças, Lendo esses trechos, não se pode, por-
As mudas de roupa, os banhos quentes tanto, duvidar que a poesia grega era ori-
e a cama. ginalmente ligada à música. Pois bem, na
Agora, todos vós que sois os melhores Grécia, não apenas a poesia épica, mas
bailarinos dos Feaces, também a poesia lírica – como o próprio
nome indica – era ligada à música. E isso
Dai início à dança! Para que o estrangei-
continuou assim por muito tempo, mesmo
ro conte aos amigos
depois que os gregos generalizaram a ado-
Quando chegar a casa como somos su-
ção da escrita alfabética.
periores aos outros
Mais de três séculos depois de Homero,
Na navegação, na corrida, na dança e o filósofo Platão, que conhecia profunda-
no canto! mente a poesia – e, precisamente por isso,
E que alguém vá imediatamente buscar não a admitiria na sua polis ideal, que de-
para Demódoco veria ser regida unicamente pela razão –
A lira de límpido som, que ficou algures diz, usando como porta-voz Sócrates, no
no meu palácio.18 diálogo Íon:

E, pouco depois: Na verdade, todos os poetas épicos, os


bons poetas, não é por efeito de uma
Aproximou-se o arauto, trazendo a lira
arte, mas porque são inspirados e pos-
de límpido som
suídos, que eles compõem todos esses
Para Demódoco, que se colocou no
belos poemas; e igualmente, assim
meio; e em seu redor
como os bons poetas líricos, tal como
Se posicionaram mancebos na floração os coribantes não dançam senão quan-
da juventude, do estão fora de si, também os poetas
18 Ibid, vs. VIII.248-255. Original grego:
19 Ibid., vs. VIII.261-267. Original grego:
P o es i a e m ú s ic a a pa rt i r d e H o m e ro   •  109

líricos não estão em si quando com- Creio que o que Sócrates/Platão está
põem esses belos poemas; mas, logo dizendo corresponde perfeitamente ao que
que entram na harmonia e, no ritmo, a maior parte dos poetas pensa sobre sua
são transformados e possuídos como arte, desde a antiguidade até hoje. Não é
as Bacantes que, quando estão possuí- apenas com a razão, o intelecto e a técni-
das, bebem nos rios o leite e o mel, mas ca que se produz um poema. Nele, entram
não, quando estão na sua razão, e é as- em jogo todas as faculdades humanas: a
sim a alma dos poetas líricos, segundo emoção, o sentimento, a sensação, a sen-
eles dizem. sualidade, a imaginação, o desejo, o humor,
[...] o inconsciente e o próprio acaso. De certo
modo, é como se, a partir de certo ponto, o
Com efeito, o poeta é uma coisa leve, poema produzisse a si próprio.
alada, sagrada, e não pode criar antes Tendo lido trechos da Odisseia, que
de sentir a inspiração, de estar fora de é um dos dois primeiros poemas gregos
si e de perder o uso da razão. Enquanto que se conhecem – de caráter épico – le-
não receber este dom divino, nenhum rei agora dois poemas bem mais tardios, de
ser humano é capaz de fazer versos ou caráter lírico, que pertencem ao conjunto
de proferir oráculos. Assim, não é pela de poemas intitulado “Anacreontea”. Du-
técnica que dizem tantas e belas coisas rante muito tempo, eles foram atribuídos
sobre os assuntos que tratam, como tu ao poeta Anacreonte, do século VI a.C.. A
sobre Homero, mas por um privilégio di- partir do século XIX, porém, passaram a ser
vino, não sendo cada um deles capaz de considerados, pela maior parte dos helenis-
compor bem senão no género em que a tas, como não tendo sido escritos antes do
Musa o possui.20 século I a.C.. De todo modo, alguns deles
são belíssimos. Começo pelo seguinte poe-
No diálogo Fedro, Sócrates diz, em de- ma lírico, ou canção, que aqui apresento na
terminado ponto: minha tradução:

Quero falar dos atridas22


Quem se apresenta às portas da poesia e também cantar a Cadmo,23
sem estar atacado do delírio das Musas, porém as cordas da lira
convencido de que apenas com o au- ecoam só o amor.
xílio da técnica chegará a ser poeta de Mudei as cordas há pouco,
valor, revela-se, só por isso, de natureza mudei a lira todinha
espúria, vindo a eclipsar-se sua poesia, a e também cantei os feitos
do indivíduo equilibrado, pela do poeta herácleos; porém a lira
tomado do delírio.21 só acompanha os amores.
Digamos adeus em paz,
20 PLATÃO. Íon. Trad. de Victor Jabouille. Lisboa: Edito-
rial Inquérito, 1988, pp.49-53. 22  Atridaseram os filhos de Atreu, Agamenon e Mene-
21 PLATÃO. Fedro. Trad. de Carlos Alberto Nunes. Be- lau, heróis da Guerra de Troia.
lém: Ed.UFPA, 2011, 245ª6. 23  Cadmo foi o fundador e o primeiro rei de Tebas.
110  •  Antonio Cicero

heróis: o fato é que a lira extremamente curtos, de modo que podem


canta amores, nada mais.24 ser memorizados e cantados com frequên-
cia e exatidão. No que diz respeito à mé-
Os romanos classificaram poemas como
trica, os poemas líricos, ao contrário dos
esse, que explicitamente se recusam a falar
épicos, que usavam o hexâmetro datílico,
de temas épicos, como poemas de “recu-
variam imensamente.
satio”. Outro poema lírico interessante atri-
Nesse sentido, os poemas líricos gregos
buído a Anacreonte é o seguinte, também
– que são os primeiros conhecidos do mun-
traduzido por mim:
do ocidental – não se distinguem das letras
de canções contemporâneas. O que ocorre
Cantas tebanas vitórias;
é que, infelizmente, já não dispomos das
outros cantam frígias glórias.
melodias que os acompanhavam.
Eu canto a minha derrota Bem, eu quero terminar esta palestra
que é também digna de nota: voltando no tempo, para dois dos primeiros
Não foi nem cavalaria, poemas – ou fragmentos de poemas – lí-
nem marinha ou infantaria: ricos conhecidos. Trata-se de obras da ex-
Um pelotão singular traordinária poeta Safo, que viveu entre os
conquistou-me com um olhar.25 séculos VII e VI a.C. e que, de tão admirada,
chegou a ser considerada por Platão “a dé-
Além da diferença de tema, outras enor- cima Musa”.
mes diferenças entre os poemas épicos e os Ouçam o “fragmento 31”, traduzido
líricos se encontram, evidentemente, tanto por mim:
nas dimensões quanto na métrica deles. No
que diz respeito às dimensões, os poemas Parece-me igual aos deuses
líricos são, em comparação com os épicos, aquele homem que em frente a ti
se senta e de perto tua doce voz
24  WEST,
M.L.. (org.) “Carmen XXIII”. In:_____. Carmina escuta
Anacreontea. Leipzig: Teubner, 1984. Original grego:

e teu riso adorável que feriu


meu coração no peito;
pois cada vez que te olho um instante
já não consigo falar;

a língua entorpece e um sutil


fogo corre sob minha pele,
25 Ibid., “Carmen XXVI”. Original grego:
nada vejo com os olhos, zunem-me
os ouvidos;

um suor me umedece, um tremor


me domina, fico mais pálida
P o es i a e m ú s ic a a pa rt i r d e H o m e ro   •  111

que a relva e tenho a impressão de esperar e, com ela, a dor mais per-
de quase morrer.26 sistente, mais profunda, mais desespe-
rançosamente incurável de saber que
Traduzi também o “fragmento 168b”, toda luz há que se pôr, que a vida e
que diz: o amor declinam, declinam inexoravel-
mente rumo ao ocaso e à escuridão: to-
Mergulharam a lua
das essas coisas são implicadas – quão
e as Plêiades: meia-
completamente! – nas linhas de Safo.
noite, a hora passa
As palavras continuam como que a
e eu durmo sozinha.27
ecoar e re-ecoar ao longo de corredo-
Para terminar, leio o que o grande es- res cada vez mais remotos da memória,
critor inglês Aldous Huxley disse sobre esse com um som que jamais pode comple-
“fragmento”: tamente morrer (tal é o estranho poder
da voz do poeta) até a morte da própria
Nem mesmo o melhor dos chineses
memória.
poderia ter dito mais em compasso tão
estreito. A noite, o desejo, a angústia Concordo inteiramente.

26 CAMPBELL, David A. (org.). Greek Lyrik I. Sappho and


Alcaeus. Cambridge, Mass.: Harvard U. Press, 1994, fr.
31, p.78. Original grego:

27  CAMPBELL,David A. (org.). Greek Lyrik I. Sappho and


Alcaeus. Cambridge, Mass.: Harvard U. Press, 1990, fr.
168b, p.172. Original grego:
Os dilemas do novo ensino médio

Simon Schwartzman
Doutor em Ciências Políticas pela Universidade da Califórnia, Berkeley,
e membro da Academia Brasileira de Ciências

Antecedentes médios de tempo integral, e há toda uma


orientação para que o ensino não seja or-
O novo ensino médio brasileiro foi ins- ganizado por disciplinas acadêmicas e sim
tituído em fevereiro de 2017, Lei 13.415, por “competências e habilidades”, a serem
que previa a elaboração de uma nova base estabelecidas no documento da Base Nacio-
curricular comum para o Ensino Médio e nal Curricular.
dava dois anos de prazo após a publicação O projeto inicial foi objeto de intensas
da base para que a lei fosse implementada. discussões e questionamentos, que conti-
O texto da base curricular foi homologado nuaram durante e elaboração da base curri-
pelo Ministério da Educação em dezembro cular. A nova legislação avança bastante em
de 2018, o que significa que a lei deveria relação aos problemas óbvios do sistema
começar a ser implementada a partir de anterior, mas ainda está longe de ser uma
2021. resposta adequada às dificuldades e dile-
A inovação mais importante foi a trans- mas do Ensino Médio brasileiro.
formação do currículo único, com cerca de A nova legislação buscou lidar com o
13 disciplinas obrigatórias, em uma com- contrates entre o currículo tradicional do
binação de uma parte comum e diferentes Ensino Médio, que pouco mudou desde as
itinerários formativos, conforme a oferta reformas de Gustavo Capanema nos anos
disponível. Um destes itinerários é o de for- 40, quando o funcionava como preparação
mação técnica, ou profissional, que deixa para as carreiras universitárias para uma elite
de ser uma formação suplementar ao En- diminuta, e os graves problemas de apren-
sino Médio tradicional e passa a ser parte dizagem que surgiram com sua ampliação
do conjunto. A lei também estabelece um nos anos recentes. Na época, se considera-
prazo para que a carga horária mínima dos va normal que só uns poucos chegassem ao
cursos passe de 2.400 a 3.000 horas (o Ensino Médio e Superior. Hoje, 90% dos jo-
que significa passar de 4 para 6 horas de vens completam o Ensino Fundamental de
aula diárias), estimula a criação de cursos oito ou nove anos, mas só 70% completam
114  •  Simon Schwartzman

o Ensino Médio; 30% chegam ao Ensino Primeiro dilema: como


Superior, mas só 22% se formam (dados da
manter o padrão de
PNAD Contínua de 2017). Destes, 3/4 es-
tudam em cursos noturnos em instituições
qualidade e lidar com a
privadas de baixa qualidade, e 60% termi- desigualdade
nam trabalhando em atividades de nível Mesmo se o currículo tradicional fosse
médio ou abaixo. apropriado, caberia a pergunta o que fa-
O Ensino Médio padece dos mesmos zer com a grande maioria de estudantes
problemas da educação brasileira como um que chegam ao Ensino Médio sem as con-
todo, de má qualidade dos professores e dições mínimas para entender as aulas. A
problemas de gestão. Sabe-se que o prin- ideia predominante nos meios pedagógicos
cipal fator que explica a qualidade de um é que não se pode abrir mão dos conteú-
sistema de ensino é a qualificação de seus dos (entendidos para alguns como “direitos
professores (Barber & Mourshed, 2007; de aprendizagem”), mas a realidade é que
Darling-Hammond, 2000). No Brasil, a pro- é praticamente impossível, aos 15 ou mais
fissão docente dificilmente atrai os mais anos de idade, compensar deficiências de
capacitados, e os cursos de pedagogia têm aprendizagem que começam na primeira
problemas sérios de conteúdo. Quanto à má infância, e que dependem muito das condi-
administração, basta dizer que, entre 2005 e ções socioeconômicas e culturais das famí-
2015, o Brasil triplicou seus gastos por aluno lias (Cunha & Heckman, 2006). O currículo
na educação básica (Secretaria do Tesouro escolar não pode ser feito para estudantes
Nacional, 2018), houve algum progresso no ideais, e sim para os de carne e osso que
desempenho dos alunos nos primeiros anos são os brasileiros. Ao insistir em manter um
da Educação Fundamental, mas praticamen- padrão alto para todos, restam duas alter-
te nenhum nos anos mais avançados e no nativas, eliminar a grande maioria que não
Ensino Médio. consegue acompanhar os estudos, ou bai-
Parte do problema são os milhões de xar, na prática, as exigências – no Brasil a
jovens que já chegam ao ensino médio opção tem sido fazer as duas coisas.
com severas limitações no uso da lingua-
gem e do raciocínio matemático, e que Segundo dilema: currículo
não conseguem entender o sentido dos
único ou currículo
cursos que lhes são oferecidos. Para os que
conseguem superar a maratona do currí-
diferenciado
culo tradicional, a vida escolar é sobretu- Mesmo que todos tivessem condições de
do um treinamento para obter boas notas seguir um currículo de alto padrão, caberia
no Exame Nacional do Ensino Médio, que a pergunta se é necessário ensinar tudo ou
funciona como enorme filtro selecionando oferecer diferentes alternativas. Um argu-
cerca de 300 mil alunos para o Ensino Su- mento a favor do currículo único é que, aos
perior entre cerca de 5 milhões de candi- 15 ou 16 anos de idade, é cedo demais para
datos a cada ano. Como lidar com isto, e os estudantes fazerem escolhas. O argumen-
quais são as alternativas? to contrário é que a pretensão de ensinar
Os d i l e ma s d o n ovo e n si n o m é d i o   •  115

“tudo” leva a um ensino raso e fragmenta- os níveis cognitivos mais altos, e os domínios
do, que não permite o estudo aprofundado afetivos e psicomotores, de efetiva incorpora-
em poucos temas, a partir dos quais podem, ção e uso dos conhecimentos, sem uma base
inclusive, decidir depois explorar outros con- cognitiva sólida. Isto significa, na prática, que
teúdos e áreas de conhecimento. não se deve ficar somente arranhando a su-
A crítica à educação tradicional, descrita perfície dos diferentes temas, é necessário
como elitista, etnocêntrica e machista, dos concentrar e aprofundar. É isto que fazem os
“homens brancos e mortos”, levou muitas ingleses quando avaliam os estudantes ao fi-
vezes a teses relativistas extremas, como de nal do ensino em três ou, no máximo, quatro
que todas as culturas são equivalentes, que áreas no “A Level”, ou os franceses quando
não existe distinção entre cultura erudita e permitem que os estudantes optem por di-
cultura popular, que todo conhecimento é ferentes áreas do Baccalauréat – literário,
relativo, de que tudo depende da “narrati- econômico e social, científico, e as diversas
va”, que o hermetismo das ciências não se- modalidades do Bac tecnológico.
ria mais do que mais um truque das elites A abertura de opções de formação no En-
dominantes contra os demais. Não é preciso sino Médio coloca a questão de quais seriam
endossar este relativismo extremo para reco- os conhecimentos comuns que todos os es-
nhecer a natureza elitista e em grande parte tudantes deveriam ter – e o consenso é que
arbitrária dos currículos tradicionais, que não esta parte comum inclui pelo menos o domí-
podem mais ser tomados como válidos sem nio da língua culta e do raciocínio matemá-
maior consideração. tico, podendo também incluir um repertório
Um outro questionamento óbvio ao currí- de conhecimentos gerais sobre a sociedade
culo tradicional é que a ciências naturais e so- e o mundo. A suposição, nos países em que
ciais se expandiram de tal maneira desde me- a educação pública funciona melhor, é que
ados do século passado que torna qualquer esta parte comum deveria ser dada no nível
tentativa de proporcionar uma “formação secundário inferior, que, no Brasil, corres-
integral” um projeto inviável. A conhecida ponde aos últimos quatro anos da educação
“taxonomia de Bloom” (Bloom, Krathwohl, fundamental, dos 11 aos 15 anos de idade.
& Masia, 1984), amplamente utilizada na or- Na elaboração da nova lei do Ensino Médio
ganização de currículos escolares, distingue brasileiro, no entanto, prevaleceu a tendên-
três grandes domínios no processo de conhe- cia a ampliar ao máximo esta parte comum,
cimento – cognitivo, afetivo e psicomotor –, que acabou ficando como uma miniatura do
e, dentro do domínio cognitivo, seis níveis – antigo curso médio tradicional.
conhecimento, compreensão, aplicação, aná-
lise, síntese e avaliação. Existem muitos ques- Terceiro dilema: educação
tionamentos e adaptações desta taxonomia,
vocacional integrada ou
mas, discussões à parte, ela deixa claro que,
por um lado, a educação que se limita ao pri-
diferenciada
meiro ou máximo segundo nível dos proces- Na grande maioria dos países, os estu-
sos cognitivos é necessariamente muito po- dantes que chegam ao Ensino Médio têm a
bre, e que, segundo, não é possível trabalhar possibilidade de se matricular em cursos que
116  •  Simon Schwartzman

preparam predominantemente para o mer- como criatividade e empreendedorismo. Em-


cado de trabalho e não para cursos universi- bora louváveis, estes dois caminhos encon-
tários – são os cursos vocacionais. No Brasil, tram limites no fato de que o estudante dos
estes cursos eram oferecidos até a recente cursos vocacionais tendem a ser aqueles com
reforma como uma qualificação adicional ao menos condições de seguir itinerários forma-
Ensino Médio convencional, fazendo do Brasil tivos mais avançados, e os professores des-
o único país em que ter um diploma vocacio- tes cursos, da mesma maneira que a grande
nal de nível médio requer mais estudos do maioria dos professores de nível médio, não
que um diploma médio regular. A grande van- têm condições de trabalhar efetivamente no
tagem dos cursos técnicos é que eles podem desenvolvimento destas competências não
ser uma alternativa realista e acessível para a cognitivas como seria desejável.
grande maioria de jovens que não têm o ob- O ensino vocacional, quando bem dado,
jetivo ou condições de se preparar para cursos se desenvolve em uma tradição educativa
universitários. A grande desvantagem é que própria que existe no Brasil em instituições
os cursos técnicos tendem a ser pouco valori- como o SENAI ou o Centro Paula Souza, di-
zados e prestigiados, porque embora a curto ficilmente reproduzível em escolas conven-
prazo possam levar a melhores salários e em- cionais. Embora seja fato de que muitas das
pregabilidade do que o simples curso médio profissões manuais e não manuais de rotina
tradicional, significam também um horizonte possam estar destinadas a desaparecer, ou-
profissional limitado (Hanushek, Schwerdt, tras, mais voltadas para serviços interpes-
Wiederhold, & Woessmann, 2015). A outra soais e na área de saúde, devem continuar
desvantagem é que, com as rápidas transfor- existindo e mesmo se ampliando. O novo
mações que vêm ocorrendo no mercado de Ensino Médio, ao colocar a educação voca-
trabalho trazidas pela automação, existe o cional com um dos itinerários formativos,
alto risco de que muitas profissões de nível abre oportunidades para muitos jovens que
médio desapareçam. não teriam chances de completá-lo e de se
Dois caminhos são buscados para lidar qualificar para o mercado de trabalho. Mas
com este problema. O primeiro é fazer com a integração entre a educação vocacional e
que os cursos técnicos não sejam um beco a parte geral do Ensino Médio, prescrita na
sem saída, mas um caminho para cursos lei, é mais complicada do que se supõe, e o
mais avançados de nível superior. Isto requer mais provável é que esta modalidade con-
um setor robusto de educação pós-secundá- tinue sendo um nicho, mais do que uma
ria não universitária, o que não é o caso do modalidade preferencial de formação neste
Brasil. O segundo consiste em dar priorida- nível escolar.
de, nos cursos técnicos, ao desenvolvimento
de competências mais amplas, as chamadas Quarto dilema: formação
“competências não cognitivas”, descritas
por disciplinas ou formação
geralmente em cinco grandes categorias
– capacidade de relacionamento, responsa-
por competências
bilidade, estabilidade emocional, empatia e Na implementação da nova lei do En-
autonomia – à qual se acrescentam outras sino Médio, o Ministério procurou fugir da
Os d i l e ma s d o n ovo e n si n o m é d i o   •  117

organização dos cursos por disciplinas, e do que ficou conhecido como o “Natio-
substituí-las por extensas listas de “compe- nal Vocational Qualifications Framework”,
tências” e habilidades, organizadas em qua- como isto não funcionou, e ela mesma foi
tro grandes “áreas de conhecimento”: “lin- uma das principais responsáveis por fazer
guagens e suas tecnologias”, “matemática com que esta orientação fosse mais tarde
e suas tecnologias”, “ciências da natureza abandonada (Wolf, 1995). Ela tem tam-
e suas tecnologias” e “ciências humanas bém questionado na Austrália, aonde há
e sociais aplicadas”. Na primeira, o docu- uma preocupação crescente com a ênfase
mento lista sete “competências específicas” em capacidades mais gerais (Wheelahan;
compreendendo 28 “habilidades”. A língua Whee­lahan & Moodie, 2011). Mas a educa-
portuguesa é só uma entre as linguagens ção por competências passou a ser adotada
contempladas, que incluem também a arte, também em muitas partes para a educação
o inglês e a educação física. Além disto, o geral e a educação superior, com diversas
documento identifica cinco “campos de perspectivas e abordagens. É um movimen-
atuação” (vida pessoal, práticas de estudo to que tem sido fortemente criticado por
e pesquisa, jornalístico-mediático, de atua- ignorar os conteúdos formativos e culturais
ção na vida pública e o campo artístico). No que vêm associados às diversas disciplinas
total, o documento lista cem habilidades es- pedagógicas, científicas e profissionais que
pecíficas que deveriam ser objeto da parte devem fazer parte de qualquer processo
de formação comum do Ensino Médio na educativo, e substituí-los por uma visão
área de linguagem (Ministério da Educação, estritamente comportamentalista (Preston,
2017). O mesmo formato é aplicado para as 2017). Quando melhor formulado, como
outras três “áreas de conhecimento”, assim em documento recente da OECD sobre
como para os cinco diferentes “itinerários a educação do futuro, termos de conhe-
formativos” definidos por lei, resultando cimentos, habilidades, atitudes e valores
em diretrizes pedagógicas altamente com- (OECD, 2018), o conceito de educação por
plexas e de implementação extremamente competências não é muito diferente da ta-
duvidosa (Ministério da Educação, 2019). xonomia de Bloom citada acima.
O conceito de educação por competên-
cias tem origem na área de educação vo-
cacional nos Estados Unidos nos anos 70,
O processo e o resultado
e a ideia principal é identificar com clareza Nestes três anos desde que a primei-
as aptidões que os trabalhadores deveriam ra versão da reforma do Ensino Médio foi
adquirir para o desempenho de ativida- encaminhada ao Congresso Nacional como
des específicas no mercado de trabalho, medida provisória, não houve um documen-
concentrando a capacitação no desenvol- to que expressasse com clareza um enten-
vimento das competências e habilidades. dimento de como estes diversos dilemas
Em uma análise que se tornou clássica, a deveriam ser entendidos e tratados em uma
socióloga inglesa Alyson Wolf mostra como transformação tão profunda como esta.
esta ideia foi adotada entusiasticamente na Desde o primeiro momento, passou-se dire-
Inglaterra nos anos 80 para a elaboração tamente para a elaboração de um texto legal
118  •  Simon Schwartzman

carregado de cláusulas destinadas a lidar entanto, vão poder e ter que tomar muitas
com questões específicas, que mais obscu- decisões próprias, e isto pode ser que venha
recia do que esclarecia como o novo sistema para o bem, se o Ministério da Educação
deveria funcionar. O Ensino Médio de tempo não atrapalhar.
integral, de interesse especial do Estado de
Pernambuco, ganhou destaque, mas o Ensi- Referências
no Médio noturno, que ainda absorve 25% BARBER, M.; MOURSHED, M. How the world's best-perfor-
ming school systems come out on the top. McKinsey
da matrícula, não foi mencionado; e o atual & Company. 2007
BLOOM, B. S.; KRATHWOHL, D. R.; MASIA, B. B. Bloom
Exame Nacional do Ensino Médio, cujo for- taxonomy of educational objectives. In: (Ed.). Allyn and
mato é totalmente incompatível com o novo Bacon: Pearson Education, 1984.
CUNHA, F. et al. Interpreting the Evidence on Life Cycle Skill
regime escolar, sequer foi tocado. A elabora- Formation. In: HANUSHEK, E. e WELCH, F. (Ed.). Hand­
book of the Economics of Education: North Holland,
ção da Base Nacional Curricular feita inicial- 2005.
mente pelo Ministério e posteriormente pelo DARLING-HAMMOND, L. Teacher quality and student
achievement. Education policy analysis archives, v. 8,
Conselho Nacional de Educação, passou por p. 1, 2000. ISSN 1068-2341.
HANUSHEK, E. A. et al. Returns to Skills around the World:
um amplo processo de consultas, sem que, Evidence from PIAAC. European Economic Review,
no entanto, objeções fundamentais ao pro- v. 73, p. 103-130, 2015. ISSN 0014-2921.
MINISTÉRIO da EDUCAÇÃO. Base Nacional Curricular Co-
jeto inicial, como a escolha equivocada dos mum, Ministério da Educação. Brasilia. 2017
itinerários formativos, fossem claramente _____. PORTARIA N.o 1.432, DE 28 DE DEZEMBRO DE
2018 – Estabelece os referenciais para elaboração dos
consideradas e discutidas. itinerários formativos conforme preveem as Diretrizes
Nacionais do Ensino Médio. Diário Oficial Seção 1,
O resultado deste processo é que o Bra- n 66: 94-96 p. 2019.
sil, aparentemente, entra no terreno desco- OECD. The Future of Education and Skills – The Future we
want. Paris: OECD, 2018.
nhecido de um novo sistema mal alinhavado PRESTON, J. Competence Based Education and Training
(CBET) and the End of Human Learning – The Existen-
e pouco entendido. Existe, no entanto, um tial Threat of Competency. Palgrave Macmillan, 2017.
mérito, que é existência de muitas cláusulas SECRETARIA DO TESOURO NACIONAL. Aspectos fiscais da
educação no Brasil. Ministério da Fazenda. Brasilia. 2018
de flexibilidade, que dá aos sistemas esta- WHEELAHAN, L. Not just skills: what a focus on knowledge
means for vocational education. Journal of Curriculum
duais e escolas bastante liberdade em esco- Studies, v. 47, n. 6, p. 750-762, 2015.
lher seus próprios caminhos. Os educadores WHEELAHAN, L.; MOODIE, G. Rethinking skills in vocatio-
nal education and training: from competencies to ca-
brasileiros não estão acostumados a isto, já pabilities. NSW Department of Education, v. 13, 2011.
que tendem sempre a aguardar as normas WOLF, A. Competence-based assessment. Buckingham En-
gland; Philadelphia: Open University Press, 1995. xvi,
que vêm de cima; no atual contexto, no 156 p.
Da civilização cordial de Ribeiro
Couto ao homem cordial de
Sérgio Buarque de Holanda

Sandra Bagno
Università degli Studi di Padova

1. 1
 898-2018: 120 anos do literária, o poeta penumbrista seria lembra-
do, como recorda Elvia Bezerra, pela teoria
nascimento de Ribeiro
do homem cordial esboçada numa carta
Couto enviada em 1931 ao diplomático mexicano
Em 1898 nasceu em Santos Rui Esteves Alfonso Reyes, e em que afirmava:
Ribeiro de Almeida Couto, escritor, jorna- […] Nossa América, a meu ver, está dando
lista, magistrado, diplomático, membro da ao mundo isto: o Homem Cordial. […] Essa
atitude de disponibilidade sentimental é toda
Academia Brasileira de Letras de 1934 a
nossa, é ibero-americana... Observável nos
1963, ano de sua morte.1 Além de sua obra
nadas, nas pequeninas insignificâncias da vida
1 Cf. Academia Brasileira de Letras. Ribeiro Couto. Em de todos os dias, ela toma vulto aos olhos do
http://www.academia.org.br/academicos/ribeiro-couto crítico, pois são índices dessa Civilização Cor-
[última consulta 25/02/2018] ARINOS FILHO, Afonso.
dial que eu considero a contribuição da Amé-
Ribeiro Couto e Afonso Arinos; Adeuses / Ribeiro Cou-
to. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 1999. rica Latina ao mundo. […].2
BEZERRA, Elvia. A trinca do Curvelo: Manuel Bandeira,
Ribeiro Couto e Nise da Silveira. Rio de Janeiro: Top- Letras, 1998. MARIZ, Vasco (org). Maricota, Baianinha e
books, 1995. BEZERRA, Elvia. Três retratos de Manuel outras mulheres. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de
Bandeira (Introdução, cronologia e notas de Elvia Bezer- Letras, Topbooks, 2001. RAMOS, Carolina. Ribeiro Cou-
ra. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2004. to: vida e obra. São Paulo: Ed. Graf. São Paulo, 1989.
COUTO, Ribeiro. Poesias reunidas. Rio de Janeiro: José RÓNAI, Paulo. Encontros com o Brasil. Rio de Janeiro,
Olympio, 1960. FILHO, Rodrigo Octávio. Simbolismo e Batel, 2009 (2.a ed.). TEIXEIRA, Milton. Ribeiro Couto,
Penumbrismo. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1970. ainda ausente. Santos: Universidade Santa Cecília dos
FILHO, Rodrigo Otávio. “Sincretismo e transição: o Bandeirantes, 1982. VENÂNCIO Filho, Alberto. Melhores
penumbrismo”. In: COUTINHO, Afrânio (org.). A lite- contos: Ribeiro Couto. São Paulo: Global Editora, 2015.
ratura no Brasil. São Paulo: Global, 2004. GOLDSTEIN, 2 Para o texto da carta de Ribeiro Couto, cf. BEZERRA,

Norma. Do Penumbrismo ao Modernismo. São Paulo: Elvia. “Ribeiro Couto e o homem cordial”. Apud Revista
Ática, 1983. LIMA, Nestor dos Santos. Ribeiro Couto. Brasileira. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras,
1998. LINS, Vera. Ribeiro Couto, uma questão de olhar. Fase VII, Julho-Agosto-Setembro 2005, Ano XI, N. 44,
Rio de Janeiro: Fundação Casa de Ruy Barbosa, 1997. pp. 123-130.
MARIZ, Vasco. A poesia de Ribeiro Couto. Convivência.  Em http://www.academia.org.br/abl/media/prosa44c.
Rio de Janeiro: PEN Clube do Brasil, ano 10, n. 9, 1992. pdf [último acesso 6/1/2018]. Vale lembrar que have-
MARIZ, Vasco; TEIXEIRA, Milton (org.). Ribeiro Couto: ria atestações da locução homem cordial anteriores às
30 anos de saudade. Santos: UNICEB, 1994. MARIZ, de Ribeiro Couto, cf. MONTEIRO, Pedro Meira. Signo e
Vasco; TEIXEIRA, Milton (org.). Rui Ribeiro Couto no desterro: Sérgio Buarque de Holanda e a imaginação do
seu centenário. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Brasil. São Paulo: Hucitec, 2015. eBook.
120  •  Sandra Bagno

Em 1932 Alfonso Reyes, ao publicá-la específico: se e como, ao propor o ensaio


na sua revista Monterrey: Correo Literario na outra língua românica, foi resolvida a
de Alfonso Reyes, difundiu a teoria de Ri- questão de sempre possíveis novos equí-
beiro Couto em nível internacional. Mas é vocos, devido à mera tradução da locução
com outro significado que, em 1936, a lo- o homem cordial para o italiano l’uomo
cução o homem cordial seria retomada pelo cordiale.
historiador Sérgio Buarque de Holanda que,
enquanto a transformava num dos pilares 1.1. As acepções de cordial/
de Raízes do Brasil3, estabeleceria uma liga- cordiale entre as décadas
ção indissolúvel entre as duas teorias. de 40 e 50
O objetivo do presente ensaio, ao ce-
É sabido que Buarque de Holanda, ao
lebrar o poeta Ribeiro Couto, é averiguar
reinterpretar o conceito de homem cordial
quais testemunhos existem hoje da locução
escavando no significado da locução na
o homem cordial no contexto europeu que,
altura mais previsivelmente compartilhável
na altura, o poeta percebera como egoísta
pela comunidade dos falantes da língua
(“egoísmo europeu”) [Bezerra, cit., 125].
portuguesa, visava desmentir uma autoa-
Verificação sugerida também pelo fato de
bsolvição da consciência nacional. Perscru-
o homem cordial ter se tornado no sécu-
tar as potencialidades semânticas da locu-
lo XX – esta a hipótese que assumimos –
ção levou o historiador a um diagnóstico
um topos imprescindível do debate cultural
inédito acerca de problemas políticos que,
nacional: i.e. uma locução de um tempo
se reconduzíveis à herança sociopolítica e
de longa duração da civilização brasileira,
econômica colonial, continuavam a con-
como já alhures por nós sugerido para ou-
dicionar o país. Mas devido ao fato que,
tras locuções e antonomásias igualmente
sendo independente há mais de um sécu-
simbólicas. [Bagno: 2009, 387 e segs]
lo, muitos daqueles problemas derivariam
Para tanto, escolhemos o contexto lin-
de atuações já especificamente brasileiras
guístico e cultural italiano, por ter sido Raí-
quanto às lógicas de gestão do poder.
zes do Brasil traduzido pela primeira vez já
Para se entender o recurso, por parte
na década de 50. À luz das polêmicas rea-
do historiador, à mesma locução, o homem
ções geradas, no Brasil, pelas duas visões
cordial – legitimado pelas acepções tecnica-
de homem cordial, a do poeta e a do his-
mente possíveis de cordial – é indispensável
toriador4, procuraremos entender um dado
retornar à lexicografia monolíngue da altu-
3
ra. Como, por exemplo, ao autorizado Di-
Quanto ao texto em português (para os em italiano,
cf. infra), tomamos como referência HOLANDA, Sérgio cionário Contemporâneo da Língua Portu-
Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olym-
guesa de F. J. Caldas Aulete [Caldas Aulete],
pio Editora, 1987. 19.a ed. Prefácio de Antônio Cân-
dido. Conferência de Alexandre Eulálio. Artigo de Leo em que encontramos os seguintes verbetes:
Gilson Ribeiro.
4 Cf. MONTEIRO, cit., “Introdução”: “Desde que, em o livro de estreia de Sérgio Buarque foi alvo de críticas
1936, publicou-se sua primeira versão como volume acerbas, que o punham sob o rótulo um pouco maldi-
inaugural da coleção ‘Documentos brasileiros’, dirigida to de ideológico. […] Vale lembrar que as acusações,
por Gilberto Freyre para a editora José Olympio, o en- ainda quando não se consubstanciavam em textos crí-
saio vem despertando reações apaixonadas. Mas não é ticos, pairavam no ar: Sérgio Buarque de Holanda era
menor verdade que, entre as décadas de 1960-1980, suspeito.”
Da civilização cordial de R ibeiro C outo ao homem cordial de S érgio B uarque de H olanda   •  121

Cordial1, s.m. qualquer bebida que restau- Vale então salientar desde já como, em
ra as forças: o vinho velho é um bom cor- meados da década de 50, as definições
dial. //F. lat. Cor, cordis. nas duas línguas se pareciam bastante, em
princípio confirmando a tradutibilidade, ao
Cordial2, s.m. adj. Do coração. // Afectuo-
máximo grau, da locução o homem cordial.
so, íntimo: Era… interesse de amigo cordial
Pois a primeira acepção de cordial2 no Cal-
e ingênuo? (Ferreira de Castro, Selva, c. 11,
das Aulete (1948) é, como vimos, a denota-
p. 246, ed. bras.). //Peitoral, béquico; que
robustece: remédio cordial. tiva “Do coração”, conceito implicitamen-
te reforçado pela etimologia (“F. lat. Cor,
Cordialidade, s. f. afeição do íntimo da cordis”), registrada em cordial1. Enquanto
alma, modos afectuosos e francos de tratar na língua italiana, de acordo com o Palazzi
algumas pessoas: Maria Eugénia abraçou e (1954), as primeiras acepções são “di cuore,
beijou Teresinha com terníssima cordialida- che viene dal cuore”, seguidas pela expres-
de (Alberto Pimentel, Lobo da Madragoa, II, são “saluto cordiale”.
c. 24, p. 331, ed. 1904).5
1.2. O fio condutor ab origine: o
Ora, ao traduzir para o italiano Raízes
do Brasil, quem folheasse um dos dicioná-
“human heart” da epígrafe
rios de italiano mais autorizados da época, suprimida
o Novissimo Dizionario della Lingua Italiana A questão de como interpretar – numa
de Ferdinando Palazzi [Palazzi], encontraria fase histórica internacionalmente marcada
as seguintes definições: por lógicas políticas nacionalistas – a leitu-
ra buarquiana de homem cordial tornou-se
cordiàle agg. di cuore, che viene dal cuo-
dirimente para compreender, entre outras
re: saluto cordiale ||di persona, che parla e
novidades do ensaio, um específico pa-
opera con sincerità d’affetto || sm. bevanda
radigma: o do político que continuava a
confortativa || N. affettuoso, amorevole, te-
ser protagonista de processos, ao invés de
nero, sviscerato, sincero, corale.
avanço, de inércias sociais e econômicas. E
cordialità sf. l’essere cordiale ||N. AMORE- o papel fulcral no V capítulo, após as ar-
VOLEZZA, espansione. gumentações dos capítulos anteriores, de
uma peculiar acepção de cordial torna-se
cordialménte avv. Affettuosamente, con
ainda mais reconhecível de uma perspeti-
tutto il cuore ||detto iron.: cordialmente an-
va genética da história do ensaio, como se
tipatico.
pode depreender das afirmações de Meira
cordialóne sm. (f. -óna) persona molto cor- Monteiro:
diale e alla buona. [Palazzi: 1954, 306] O coração é dotado de força extraordiná-
ria no corpo deste ensaio, ou talvez mais pro-
5 Estes conceitos são confirmados por: Cordialmen-

te, adv. afectuosamente, com franqueza e cordialida- priamente conjunto de ensaios, que é Raízes
de: levantando-se foi apertar-lhe cordialmente a mão do Brasil. Como divisa de tal força, uma epí-
(Bern. Guimarães, Lendas, p. 78, 1.a ed.); em AULETE, grafe acompanha o capítulo sobre “o homem
F. J. Caldas. Dicionário Contemporâneo da Língua Por-
tuguesa. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1948, cordial” na primeira edição do livro, e seria
Vol. I, p. 670. suprimida em edições posteriores. Trata-se
122  •  Sandra Bagno

de uma passagem de Johnson, entretanto certamente não era, do ponto de vista da


atribuída a Milton, que traz a seguinte excla- autoestima nacional, nem lisonjeiro nem
mação: “How small of all that human heart gratificante. Pois, ainda na década de 30,
endure/ That part that kings or laws can cause costumava-se usar a cordialidade feito uma
or cure [“Quão pequena de tudo o que o cora-
máscara, como instrumento de conserva-
ção humano suporta/ Aquela parte que reis ou
ção do status quo, num contexto em que o
leis podem provocar ou curar…”]. [Monteiro,
poder político ainda era monopólio de pou-
cit., cap. 2]
cas famílias, exercido através de personalis-
Mesmo que a epígrafe tenha sido supri- mos e familismos já há tempo anacrônicos.
mida desde a segunda edição de Raízes do O permanecer de um tal humus não pode-
Brasil, se observado ria se não continuar a favorecer o arraigar-
Num registro poético, o coração não é -se de novos autoritarismos, se bem que,
apenas o órgão pulsante e irrigador, mas tam- no Brasil, já há tempo conhecidos. E que o
bém o centro da vida, isto é, o ponto em que diagnóstico de Buarque de Holanda, em 36,
se cruzam as paixões (num registro antigo) fosse correto seria demonstrado, como já
ou as emoções (num sentido moderno, já re- salientado por autorizados estudiosos, pela
cendendo ao romântico). Entretanto, não há instauração em 1937 por Getúlio Vargas do
como compreender a passagem de Samuel
Estado Novo6. Este, em rápida síntese, o ho-
Johnson senão no registro das paixões, ou
mem cordial em Raízes do Brasil, à luz de
do pathos que domina o corpo e a mente do
uma ambivalência semântica tida como ób-
homem. Do homem cordial, no caso. [Idem,
Ibidem] via por Buarque de Holanda, por ela constar
in nuce na etimologia da palavra cordial.
Portanto, o homem cordial buarquiano Como, porém, o historiador teve que
seria quem se deixa guiar pelo pathos mas publicamente dissipar os equívocos sobre
como patologia sociocomportamental que seu uso daquela mesma locução que nasce-
afeta o correto equilíbrio, antes de mais, ra legitimada por outra significação, surgem
racional, que deveria existir na sociedade umas perguntas, de uma perspetiva especi-
entre cada cidadão e as instituições. Sendo ficamente linguística. Seriam definições de
na altura uma tal cordialidade fortemente cordial como as do Caldas Aulete (1948)
ligada ao poder, ela tornara-se onipresente, a não permitirem a imediata decodifica-
de modo a impedir a consolidação de um ção – processo que, de acordo com Roman
estado democrático de direito, cujas leis, so- Jakobson, hoje chamamos de tradução in-
mente se por todos igualmente respeitadas, tralingual – da significação de cordial reivin-
poderiam permitir a inclusão na sociedade dicada por Buarque de Holanda? [Jakobson:
de cada classe social; e especialmente das 2002] E, por conseguinte, elas (definições)
camadas marginalizadas, em que muitas ve- não permitiriam devidamente atuar nem o
zes ainda pesava o estigma da escravidão. 6Para a visão política de Buarque de Holanda, além
Portanto, contrariamente ao consolador do já citado Monteiro (2015), cf. VAINFAS, Ronaldo.
“O imbróglio de Raízes: notas sobre a fortuna crítica
perfil de homem cordial mais genericamen- da obra de Sérgio Buarque de Holanda”. Apud Revista
Brasileira de História. São Paulo, 2016 v. http://dx.doi.
te latino-americano de Ribeiro Couto, o do
org/10.1590/1806-93472016v36n73_003 [último
brasileiro traçado por Buarque de Holanda acesso 4/4/2018].
Da civilização cordial de R ibeiro C outo ao homem cordial de S érgio B uarque de H olanda   •  123

processo tradutório interlingual, no caso, – assim como “L’uomo cordiale” seria, ob-
do português para o italiano? viamente, no metatexto italiano – daque-
Resolver previamente a questão de acep­ le que tornar-se-ia o pluricitado capítulo
ções potencialmente antitéticas do concei- V. [Holanda: 1954] Mas, no momento em
to de cordial e que levariam a duas opostas que o Brasil estava celebrando os 500 anos
teorias de homem cordial, é indispensável do descobrimento, seria publicada uma
para podermos focalizar uma outra ques- segunda tradução, com um aparato para-
tão. Ou, talvez, a questão de fundo: quan- textual bem mais rico que o da primeira.
to umas elites brasileiras, especialmente [Hollanda: 2000] Analisaremos, portanto,
as que levaram o Modernismo aos rumos alguns aspetos dos dois paratextos, tendo
do Integralismo, estariam a fim, na década em conta que, no entanto, iam crescendo
de 30, de investigar sua identidade nacio- as ocorrências no português do Brasil das
nal sem se deixarem iludir pela tendência, palavras cordial e cordialidade – e das lo-
como estava acontecendo em outros paí- cuções o homem cordial, civilização cordial,
ses, por exemplo, na Europa, a oferecer aos valores cordiais, mentalidade cordial – em
respetivos povos slogans confortáveis para princípio como polissêmicas, dada também
a autoestima nacional(ista)? a variedade de analistas que têm tratado da
Para procurar respostas a estas perguntas questão. Mas cuja tradutibilidade ao máxi-
seguiremos o caminho indicado por Buarque mo grau para a língua italiana poderia vei-
de Holanda – quer dizer, o do leque semân- cular as mesmas ambiguidades semânticas
tico reconhecível na acepção, antes de mais, já documentadas no Brasil. Ambiguidades
denotativa da palavra cordial – mas testan- parecidas àquelas que a tradutibilidade ao
do-a através do processo tradutório interlin- máximo grau, do italiano para o português,
gual. E para tanto, as definições dos dicioná- de uma locução como uomo d’onore (ho-
rios da época, respetivamente de português mem de honra) poderia gerar. Tanto que,
e italiano, serão usadas como as primeiras e para evitar uma aparente monossemia, em
indispensáveis ferramentas para a tradução nível tradutório intralingual (e, por conse-
dos diferentes conceitos expressos pelo poe- guinte, interlingual), na fraseologia do Vo-
ta e pelo historiador ao recorrerem àquela cabolario Treccani lê-se:
mesma locução, o homem cordial.
onóre s.m. […] Nel linguaggio della mala-
vita (e di qui passato anche nell’uso com.),
2. D
 uas traduções para o uomo d’o., l’affiliato alla camorra, alla ma-
italiano, a uma distância fia o ad altre associazioni a delinquere, cui
de cerca de 60 anos esso è legato da un giuramento che lo im-
pegna alla difesa dell’onore comune e alla
Um dos paradigmas mais significativos osservanza di una stretta omertà.[…]7
da história do debate sobre a brasilidade
7 Para a sequência histórica das acepções, além que
chega relativamente cedo na Itália graças à no presente verbete onóre, em Vocabolario Treccani,
tradução, após a Segunda Guerra Mundial, Istituto della Enciclopedia Italiana. Apud http://www.
treccani.it/vocabolario/onore/ [último acesso 3/3/2018],
do ensaio de Buarque de Holanda em que cf. Onóre, em BATTAGLIA, Salvatore. Grande Dizio-
a locução “O Homem Cordial” é o título nario della Lingua Italiana. Torino: UTET, 1981. Vol. XI
124  •  Sandra Bagno

Razões pelas quais, retornando à tra- straniero e si propone di diffondere la cultu-


dução para o italiano da locução o homem ra attraverso la pubblicazione delle opere più
cordial, serão analisadas as escolhas feitas importanti dei suoi massimi scrittori di ogni
epoca.10
nos paratextos ao realizar, em dois momen-
tos distintos, as duas traduções de Raízes Logo em seguida, confirmando o ambi-
do Brasil que constituem, como é natural, cioso projeto editorial, anunciava-se ainda:
“materialità”8 inevitavelmente diferentes. “Altre dieci collane sono in preparazione”.
Mas para verificar (se e) como o leitor foi [Id., Ibid.] A lista das traduções realizadas
alertado sobre os diferentes significados até o momento comprovava um primeiro
de o homem cordial, dado que, além de dado: a especial atenção dos Irmãos Bocca
Ribeiro Couto e Buarque de Holanda, tam- Editores dedicada ao Brasil. Haveria uma es-
bém outros intelectuais, cada um de seu pecífica razão? Observemos.
ponto de vista, exprimiriam a respeito suas Se bem que poucas e anônimas, as in-
opiniões. formações da contracapa ofereciam um
outro dado significativo para se compreen-
2.1. Alle radici del Brasile: uma
der a escolha de publicar, entre títulos de
homenagem ao “Direttore obras literárias, um ensaio histórico, mesmo
dell’Istituto di Cultura que, como vimos, não apresentado como
Brasiliana in Roma” tal aos leitores. De fato, na orelha anterior,
Foi a conhecida editora Fratelli Bocca emoldurando uma fotografia do autor em
(Milano-Roma)9 que publicou Alle radici del realce no canto superior esquerdo, aparece
Brasile, volume de 212 páginas, com “Tra- a primeira informação: “Sergio Buarque de
duzione dal portoghese de Cesare Rivelli”, Holanda, attualmente Direttore dell’Istituto
em “aprile 1954” como registrado no có- di Cultura Brasiliana in Roma, è nato a San
lofon. Ao foliar a tradução, o leitor era Paulo [sic!] nel 1902.”
acolhido por umas informações presentes Após esta homenagem ao ilustre histo-
só nas orelhas da contracapa, pelas quais riador brasileiro enquanto está ocupando
aprendia que Alle radici del Brasile era parte cargo de prestígio em Roma, outros dados
integrante de biográficos são rapidamente sintetizados:
[…] una nuova, grandiosa Collezione, de-
nominata BIBLIOTECA MONDIALE BOCCA. 10 Além daquelas de “SCRITTORI GIAPPONESI” e

“SCRITTORI SVEDESI”, quanto aos dois países de língua


Essa si suddivide in numerosissime Collane,
portuguesa contemplados pela coleção, Brasil e Portu-
ciascuna delle quali si intitola ad un Paese gal, estão listadas as seguintes traduções. “SCRITTORI
BRASILIANI”: “Croce del Sud (Antologia di poeti del
MOTO-ORAC, pp. 1003-1011. Brasile). Graciliano Ramos: Angoscia, romanzo. M. A.
8 SANTORO, Marco. “Presentazione”, em SANTORO, de Almeida: Il Sergente delle Milizie, romanzo. S. Bu-
Marco; TAVONI, Maria Gioia (a cura di). I dintorni del arque de Holanda, Alle radici del Brasile. Machado de
testo Approcci alle periferie del libro. Atti del Convegno Assis: Dom Casmurro, romanzo. Gilberto Freyre: Inter-
Internazionale Roma, 15-17 novembre 2004 Bologna, pretazione del Brasile. J. Lins do Rego: Fuoco spento,
18-19 novembre 2004. Roma: Edizioni dell’Ateneo, romanzo. Ciro dos Anjos: Carnevale a Belo Horizonte,
2005, p. XI. romanzo. S. Lopes Neto: Storie di Gaúchos.” E quanto a
9 Para a história da editora, cf. DONDI, Giovanni. “Boc- Portugal, aparecem três volumes: “SCRITTORI PORTO-
ca” Dizionario biografico degli Italiani. Vol. 10, 1968. Em GHESI”: J. Paço d’Arcos: L’emigrante, romanzo. Aquili-
http://www.treccani.it/enciclopedia/bocca_(Dizionario- no Ribeiro: Volframio, romanzo. Antologia della poesia
-Biografico)/ [último acesso 10/3/2018] contemporanea portoghese. [Idem, Ibidem]
Da civilização cordial de R ibeiro C outo ao homem cordial de S érgio B uarque de H olanda   •  125

Già nell’adolescenza aveva raggiunto scrittore, oltre che di una solidissima prepara-
una certa notorietà, attraverso l’assidua zione, ha saputo animarla, renderla vivace ed
collaborazione a giornali e riviste che si avvincente, evitando con indiscutibile perizia il
rischio di riuscire arido o pesante per eccessiva
pubblicavano nella sua città natia. Trasferi-
erudizione. [Id., Ibid.]
tosi a Rio de Janeiro per concludervi gli studi
universitari, nel 1922 prese larga parte ad É razoável supor, enfim, que os tons en-
un movimento “modernista” che ebbe una tusiasmados da apresentação – pela qual,
notevole influenza riformatrice sull’arte e la no começo da década de 50, o “protago-
letteratura brasiliane. Qualche anno dopo, nista eccezionale” de “un romanzo, sia
si recò all’estero, incaricato di missioni cul- pure ‘sui generis’” é o próprio Brasil – não
turali che gli consentirono di visitare nume- derivariam somente de um intuito comercial
rosi paesi stranieri, tra i quali la Germania, visando dinamizar o setor editorial, inclusive
la Francia, l’Italia, la Svizzera, gli Stati Uniti, depois de os dois países terem atuado como
e di arricchire in tal modo la propria espe- inimigos durante o conflito há uns anos
rienza. [Id., Ibid.] acabado. Percebe-se, portanto, uma aber-
Seguem informações bibliográficas (que tura ao Brasil com importantes implicações
transcrevemos segundo a grafia originária): políticas confiando no futuro do “protago-
Fu durante un lungo soggiorno in Germa- nista eccezionale”. Pois quando Alle radici
nia che si destò in Sergio Buarque de Holan- del Brasile foi publicado, em abril de 1954
da il più acuto interesse per gli studi storici.
como vimos, a morte de Getúlio Vargas,
Ne nacquero Raizes do Brasil, pubblicato nel
que aconteceria em 24 de agosto de 1954,
1944 [sic!], e una Historia do Brasil scritta
nello stesso anno, in collaborazione con Oc- e a forte instabilidade política que se segui-
tavio Tarquinio de Souza. Successivamente, ria no contexto da guerra fria e que levaria,
Buarque de Holanda pubblicò altre opere: após uma década, à ditadura militar, ainda
Cobra de vidro; Fontes primarias para a his- estavam no porvir.
toria da expansâo paulista nos seculos XVI e Desta reduzida dimensão peritextual
XVII; e infine Indios e Mamelucos na expan- podem-se depreender, ao menos, dois da-
sâo paulista. [Id., Ibid.]
dos interessantes a respeito do viés analítico
O autor (anônimo) destas breves linhas da nossa pesquisa. O primeiro é que nada
acaba a sua apresentação rapidamente sin- há no cólofon sobre a edição do prototexto
tetizando: escolhida por Rivelli para a sua tradução. Já
Come si può desumere dal titolo, Raizes o segundo dado é que não há elemento al-
do Brasil (Alle radici del Brasile) che qui pre- gum acerca das controvérsias sobre as duas
sentiamo nella forbita traduzione di un gior- teorias, a do poeta e a do historiador, de
nalista italiano vissuto a lungo sotto la Croce homem cordial. E este silêncio é por si uma
del Sud, è uno studio sulla evoluzione della resposta à nossa pergunta sobre como,
società brasiliana, dall’epoca coloniale fino ai
no paratexto da primeira tradução (agora
nostri giorni. La materia, piuttosto inconsue-
ta per noi, si rivela subito oltremodo appas-
sabemos que não) foi colocada a questão
sionante. Quanto alla trattazione, non appa- de equívocos possivelmente veiculados, no
re certamente da meno. Sergio Buarque de contexto italiano, pela mera tradução literal
Holanda, fornito di considerevoli qualità di de o homem cordial para l’uomo cordiale.
126  •  Sandra Bagno

Um silêncio, dizíamos, que é por si expressi- “l’uomo cordiale” [nossos os grifos]. [Ho-
vo, especialmente se relacionado à história landa: 1954, 145] E, sempre pela nota, o
da receção do ensaio, como vimos, primei- leitor apreendia que “L’espressione è dello
ramente no Brasil. scrittore Ribeiro Couto, in una lettera di-
retta ad Alfonso Reyes e da questi inserita
2.2. A “felice espressione” nella sua pubblicazione Monterey. […]”
de Ribeiro Couto [Idem, Ibidem]
De fato, ao ler o “Indice” (no fim do Portanto, graças ao primeiro metatexto
volume) o leitor encontra a palavra cordiale italiano já integrado pelo paratexto de Buar­
seja no título do cap. V seja nos núcleos te- que de Holanda, o leitor italiano apreendia
máticos que o compõem, assim resumidos da existência dos significantes concebidos
(p. 212): pelo poeta (l’uomo cordiale) segundo a
Antigone e Creonte. – Pedagogia moder- acepção do adjetivo cordial em princípio
na e le virtù anti-familiari. – Patrimonialismo. – mais atestada no português (e no italiano)
L’uomo cordiale. – Avversione ai ritualismi; come da altura. Mas significantes em que o histo-
essa si manifesta nella vita sociale, nel linguag- riador reconheceria também – obeserve-se,
gio, negli affari. – La religione e l’esaltazione dei
não somente – outros bem menos confor-
valori cordiali [Nossos os grifos].
táveis significados. E significados diferentes
E é passando à leitura do cap. V que daqueles atribuídos por outro intelectual
(mesmo que não orientados pela já recorda- brasileiro, Cassiano Ricardo:
da epígrafe) podia-se de vários trechos infe- Non sarebbe necessario ripetere ciò che
rir a sequência de acepções intrinsecamente è già implicito nel testo, ossia che la parola
ambivalentes de cordiale a que Buarque de “cordiale” dev’essere presa, in questo caso,
Holanda se refere, com ambas as expressões nel senso esatto e strettamente etimologico,
se non fosse stata diversamente interpretata
“L’uomo cordiale” e “l’esaltazione dei valori
in un’opera recente, in cui si parla dell’uomo
cordiali”. Uma ambivalência semântica logo
cordiale degli aperitivi e dei “cordiali saluti”,
após explicada pelo próprio historiador. Pois che sono i “modi di chiudere le lettere tan-
a edição escolhida por Rivelli para a sua tra- to amabili quanto aggressivi”, e si antepone
dução já levava o importante esclarecimen- alla cordialità così intesa il “capitale senti-
to, introduzido em Raízes do Brasil desde mento” dei brasiliani, che sarà la bontà e
1948 [Bezerra, cit., 128], e aprofundado na addirittura una certa “tecnica della bontà”,
ampla nota ao pé da página: pelo qual o lei- una “bontà più avvolgente, più politica, più
assimilatrice”. Cfr. Cassiano Ricardo, Marcha
tor apreendia que, na realidade, fora o poe-
para Oeste, II, Rio de Janeiro, 1940, p. 211.
ta Ribeiro Couto, antes que o historiador
[Id., Ibid.]
valorizasse toda a potencial ambivalência
semântica da locução, a esboçar uma teoria Quem lesse Alle radici del Brasile seria
tão instigante como a do homem cordial. portanto informado de que Buarque de Ho-
Mas Buarque de Holanda se expressava nos landa, ao escolher o “senso esatto e stret-
seguintes termos: “Fu già detto”, con felice tamente etimológico” de cordiale, se dis-
espressione, che il contributo brasiliano alla tanciava dos posicionamentos também de
civiltà sarà di cordialità – daremo al mondo Cassiano Ricardo:
Da civilização cordial de R ibeiro C outo ao homem cordial de S érgio B uarque de H olanda   •  127

Fatto questo chiarimento e per meglio sot- Enfim, já na década de 50 o leitor italó-
tolineare la differenza, in verità fondamenta- fono fora informado do alerta de Buarque
le, tre le idee sostenute nella citata opera e de Holanda sobre teorias e slogans que
i suggerimenti proposti dal presente lavoro,
defendessem narrações potencialmente
occorre dire che, con l’espressione “cordiali-
incautas do ponto de vista político (“inten-
tà”, si eliminano qui, deliberatamente, i giudizi
etici e le intenzioni apologetiche verso le quali zioni apologetiche”). Assim favorecendo,
sembra inclinare il sig. Cassiano Ricardo quan- talvez, uma outra associação de ideias: pois
do preferisce parlare di “bontà” o di “uomo se uma (suposta) cordialità e/ou (supostas)
buono”. [Id., Ibid.] tecniche della bontà seriam … peculiares
dos brasileiros, o que dizer da conhecida
Procurando desambiguar, de maneira locução Italiani, brava gente que, depois
definitiva, afirmava ainda Buarque de Ho- da queda do fascismo, com certeza ainda
landa: circulava no contexto linguístico e cultural
Bisogna ancora aggiungere che tale cor- italiano da altura?12
dialità [nossos os grifos], estranea, da una Ora, não sabemos qual terá sido a re-
parte, ad ogni formalismo e convenziona- ceção deste alerta buarquiano, na fase
lismo sociale, non contiene, dall’altra solo
histórica de um pós-guerra em que ain-
ed obbligatoriamente, sentimenti positivi e
da bem clara devia ser a lembrança dos
di concordia. L’inimicizia può essere tanto
cordiale quanto l’amicizia, in quanto l’una militares brasileiros no território italiano.
e l’altra nascono dal cuore, provengono, Resta, porém, tomar nota de que, pelo
quindi, dalla sfera dell’intimo, del familiare, prisma das definições de cordiale do Pala-
del privato. Appartengono, effettivamente, zzi (1954), o leitor do metatexto italiano
per ricorrere ad un termine consacrato dalla poderia também ser legitimamente levado
moderna sociologia, al dominio dei “gruppi a propender, antes pelas interpretações de
primari” la cui unità, come osserva lo stes-
cordiale de Ribeiro Couto e/ou de Cassiano
so elaboratore del concetto, “non è soltanto
di armonia e di amore”. Cf. CHARLES HOR-
Ricardo, que pelas de Buarque de Holan-
TON COOLEY, Social organization, New York, da. Pois seria confirmado até pelo exemplo
1929, p. 23. [Id., 145-146]11 citado pelo Palazzi (1954), “saluti cordia-
li”, que se correspondia àquele citado por
Cassiano Ricardo, “cordiali saluti”, como
11 Portanto, também o leitor do texto italiano era in- mencionado (e contestado) por Buarque
formado de que Buarque de Holanda, confirmado que de Holanda. Quer dizer, é razoável supor
a aceção de cordialità a que aludia era outra, intro-
duzira uma outra oposição lexical e semântica, entre que enquanto, graças a Raízes do Brasil, ia
“amicizia”, “inimicizia” e “ostilità”: “L’amicizia, dal crescendo o debate que levaria à fixação,
momento in cui abbandona l’ambito circoscritto dai
sentimenti privati o intimi, diviene, a dir molto, bene- no contexto linguístico e cultural brasileiro,
volenza, dato che l’imprecisione del vocabolo ammet- de uma substancial divaricação semântica
ta una maggiore estensione del concetto. Così come
l’inimicizia, se pubblica o politica, non “cordiale”, si pela palavra cordial, uma verificação das
chiamerà più propriamente ostilità. Carl Schmitt ha definições de cordiale e cordialità em um
formulato in modo chiaro, ricorrendo al lessico latino,
la distinzione fra inimicizia e ostilità: “Hostis is est cum
quo publicae bellum habemus (…) in quo ab inimico 12Para o conceito de Italiani, brava gente, cf. DEL
differt, qui est is, quocum habemus privata odia…”. BOCA, Angelo. Italiani, brava gente? Un mito duro a
[Idem: 146]” morire. Vicenza: Neri Pozza, 2010.
128  •  Sandra Bagno

autorizado dicionário italiano poderia ain- por um clássico de nascença, segundo a de-
da confirmar no leitor de Radici del Brasile, finição de Raízes do Brasil de Antônio Cân-
ao invés de definitivamente desambiguar, dido13 – e debate que levaria a comunidade
umas dúvidas interpretativas acerca, antes linguística brasileira, como acreditamos, a
de mais, do adjetivo cordial, e por conse- compartilhar a estabilização, após mais de
guinte da locução l’uomo cordiale. Dúvi- oito décadas de análises, de uma divarica-
das que a “felice espressione”, segundo a ção semântica da locução – implica pelo
definiu Buarque de Holanda, resumiria de menos duas questões.
maneira paradigmática, mas que não dei- Primeiro, na hora de repropor uma
xariam de ser veiculadas, no contexto ita- nova tradução italiana de Raízes do Bra-
liano, também no caso da outra locução sil, como seria enfrentada a questão não
de Ribeiro Couto, “civiltà cordiale”: pois é mais de uma potencial ambivalência ou
lógico supor que este sintagma possa ter polissemia implícitas na denotação, mas
sido entendido também pelos italófonos sim de uma já arraigada divaricação se-
como soma das acepções das duas compo- mântica, na altura, para as palavras cor-
nentes, civiltà e cordiale, pela comunidade dial/cordialidade no português do Brasil?
linguística compartilhadas como conven- Segundo, em que medida as definições
cionalmente conotativas positivas. Assim de mais recentes autorizados dicionários
como é razoável supor que possa ter acon- monolíngues brasileiros procederiam, no
tecido no Brasil a quantos – também (ou verbete cordial, à transposição da divari-
principalmente?) porque lisonjeados pela cação semântica? Elas já permitem, por
teoria em si – tenham assumido que Ribei- exemplo, pragmaticamente, na fraseolo-
ro Couto lançara seja o homem cordial seja gia, a imediata decodificação intralingual
civilização cordial como soma, em cada lo- – e por conseguinte interlingual – de duas
cução, de duas componentes a serem ob- expressões em particular, civilização cor-
viamente interpretadas como conotativas dial e o homem cordial, que representam,
positivas. Como, aliás, no caso da locu- em perspetiva histórica, de um lado, a teo-
ção cordiali saluti lembrada por Cassiano ria de Ribeiro Couto, imprescindível para
Ricardo. se entender, do outro, aquela de Buarque
Entretanto, as ambiguidades depende- de Holanda? Ao averiguar estes dados
riam de aceções que é razoável supor terem partiremos do Novíssimo Aulete Dicioná-
sido as mais compartilháveis no português rio contemporâneo da Língua Portuguesa
da altura, mas que o Caldas Aulete (1948), [Caldas Aulete (2011)] e do Grande Dizio-
segundo uma correta metodologia lexico- nario Garzanti della Lingua Italiana 2009
gráfica como vimos, colocara por segundas. Garzanti Italiano [Garzanti 2009]; quer
Aspectos estes que, evidentemente, não fo- dizer, das definições, respetivamente, de
ram valorizados por quem não atentara às
13Cf. CÂNDIDO, Antônio. “O significado de Raízes do
várias potencialidades semânticas implícitas Brasil”, Apud HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do
na denotação, “do coração”. Brasil, cit., p. XL: “Livro curto, discreto, de poucas cita-
ções, atuaria menos sobre a imaginação dos moços. No
Ora, o animado debate sobre quem se- entanto, o seu êxito de qualidade foi imediato e ele se
ria, em verdade, o homem cordial, gerado tornou um clássico de nascença.”
Da civilização cordial de R ibeiro C outo ao homem cordial de S érgio B uarque de H olanda   •  129

cordial e cordialidade14 e de cordiale e seus sentimentos; tb.: que age movido mais
cordialità15. pelos sentimentos que pela razão”) [nossos
Posto que não há, na estrutura das de- os grifos], evoca potencialmente as acepções
finições do Caldas Aulete (2011), nenhuma conotativas negativas aludidas por Buarque
fraseologia, e que somente a aceção de de Holanda; vamos averiguar, então, se este
cordial3 (“Diz-se de quem não esconde padrão de definição se revela suficiente
para uma eficaz tradução intelingual, tendo
14 Cf. GEIGER, Paulo. Novíssimo Aulete dicionário con- em conta as aceções registradas pelo Gar-
temporâneo da língua portuguesa Caldas Aulete. Rio zanti 2009.
de Janeiro: Lexicon, 2011, p. 401:
cordial […] a2g. 1 Ref. Ao coração 2 fig. que vem do
coração, ou que expressa os sentimentos genuínos;
EFUSIVO; FRANCO; SINCERO: votos cordiais de paz e 3. A tradução italiana de
felicidade. 3 Diz-se de quem não esconde seus senti-
mentos; tb.: que age movido mais pelos sentimentos
Giunti Editore
que pela razão. 4 p. ext. Que tem, demonstra ou des-
perta bons sentimentos ou boa disposição em relação Desde seu articulado paratexto, como
aos outros; que é espontâneo e caloroso: Comoveu-se dizíamos, a edição de 2000, Radici del Bra-
com tantas manifestações cordiais de apoio. 5 Mar-
cado por demonstrações de cortesia, simpatia, bons sile – cuja capa propõe a célebre pintura
sentimentos, ou por ausência de tensão, conflito, ou Café (1934), de Cândido Portinari, e anun-
animosidade (negociação cordial; relações cordiais);
AFÁVEL; CORTÊZ; GENTIL: Recebeu tratamento cordial cia a “Introduzione e cura di Nello Avella”
mas sem efusividade. sm. 6 Preparação (bebida alcoó- – demonstra o abandono das lógicas implí-
lica, ou produto medicamentoso) que ativa a circulação
do sangue e dá ânimo, vigor: Deram-lhe um cordial que citas na anterior tradução. O leitor italiano
lhe ergueu o ânimo. 7 Medicamento que estimula ou é desta vez acolhido, além de por duas es-
tonifica o coração [Pl.: -ais.] [F.: Do lat. cordialis.]
critas de Avella, “Ringraziamenti” (p. 9) e
cordialidade […] sf. 1 Característica do que ou de
quem é cordial 2 Comportamento ou temperamen- “Il ritorno del ‘Maestro cordiale’” (pp. 11-28),
to de quem é cordial 3 tratamento afável, gentil, ou por uma “Prefazione” (traduzida para o
afetuoso: foram recebidos com toda a cordialidade [F.:
cordial + –(i)dade.] italiano por Rita Desti, pp. 5-8) da autoria
15 Cf. PATOTA, Giuseppe. Il Grande Dizionario Garzanti
de um ilustre intelectual e, na época, Presi-
della Lingua Italiana 2009. Novara: Garzanti Linguistica,
2008, p. 612: dente da República, o sociólogo Fernando
cordiale1 […] agg. m. e f. [pl. -i] 1 che viene dal cuo- Henrique Cardoso.
re, spontaneamente affettuoso: amicizia, accoglienza
c. |detto di persona gentile, affabile: è stato cordiale Se na orelha posterior da capa é rapi­
con tutti 2 che è radicato nel cuore: vivamente sentito: damente sintetizado um perfil biobibliográ-
una cordiale antipatia; cordiale nemico, nemico davve-
ro, profondamente 3 (non com.) che fa bene al cuore, fico de Buarque de Holanda, naquela an-
tonico, ristoratore: una medicina cordiale 4 (ant. Lett.) terior é adiantado, assinado por Henrique
del cuore palpitazione cordiale (D’Annunzio) ▪ cordial-
mente avv. […] Deriv dal lat. cŏor cŏrdis, cuore COR- Cardoso, o que retornará como primeiro
DIALI SALUTI n. formula di saluto usata nella corris- parágrafo de sua “Prefazione” (p. 5). E esta
pondenza […]
intervenção na posição de maior realce, em
cordiale2 […] bevanda specialmente alcolica che si ri-
tiene abbai affetto corroborante, tonificante […] termos paratextuais, é por si um sinal im-
cordialità […] n.f. invar. 1 l’essere cordiale; affabili- portante: por toda a relevância dada, ma-
tà: trattare qualcuno con cordialità 2 in formule usate
nella corrispondenza, saluto cordiale: tante cordialità
terialmente logo no começo, ao conceito
alla sua famiglia […] Dal lat. mediev. cordialitate(m), buarquiano (que, do ponto de vista históri-
deriv. di cordiālis. ▪ SIN. Affettuosità, affabilità, calore,
cortesia, espansività CONTR. freddezza, ostilità, indi-
co, sabemos ter aparecido por segundo) de
fferenza. homem cordial.
130  •  Sandra Bagno

3.1. As palavras cordiale e nel definire gli aspetti della nostra eredità cul-
cordialità na “Prefazione” turale che riteneva poco affini alla modernità,
e che avrebbero inibito l’affermazione di valori
de Radici del Brasile
democratici” [Id., Ibid.]. Entre tais valores ha-
Observemos os trechos em que Henri- via uma “[…] avversione per i principi astratti,
que Cardoso cita o adjetivo cordiale com o impersonali […]” contra uma “valorizzazione
alvo, obviamente, de ajudar o leitor italiano delle virtù del carattere unico e insostituibile
dell’esperienza individuale”; atitude compor-
a não equivocar a tese de Radici del Brasile.
tamental cujas implicações, analisadas por Bu-
Primeiro, ele contextualiza o ensaio na viva-
arque de Holanda, são por Henrique Cardoso
cidade do debate desencadeado por várias resumidas nos seguintes termos: “Sul piano
obras entre o final do século XIX e as pri- sociale, questo orrore per l’astrazione sarà il
meiras décadas do século XX (p. 5): punto nevralgico della critica contundente
Radici del Brasile fa parte di quella tradi- [de Buarque de Holanda] al personalismo, alla
zione saggistica che, nei decenni precedenti, “mentalità cordiale” [nossos os grifos], alla
aveva caratterizzato l’attività intellettuale nel prevalenza di modelli affettivi su norme gene-
Paese. Sérgio Buarque venne ad affiancar- rali, impersonali.” [Id., Ibid.]
si a nomi come Joaquim Nabuco, Euclides
da Cunha, Manoel do Bomfim, Paulo Prado, Condicionado por essa “mentalità cor-
Oliveira Viana, Alcântara Machado e Gilber- diale”, o País não poderia progredir:
to Freyre nell’impegno di rivelare il Brasile ai Niente di più consistente, in questo stato
brasiliani. Si devono a questi saggisti molti dei di cose, che l’immagine del brasiliano come
concetti, delle immagini, dei miti e dei poli “uomo cordiale”, guidato dal linguaggio
narrativi che ancora oggi sono usati per de- dell’“emozione”, che avrebbe attenuato le di-
finire il Paese, per spiegare la specificità brasi- fferenze, abolendo riti e creando un’ipotetica
liana. Ciascuno a suo modo, furono essi i veri “informalità democratica”. Si trattava di un
inventori del Brasile, una definizione attribuita modello sbagliato, denunciava l’autore. Non
in passato a Sérgio Buarque. si sarebbe mai costruito un ambiente de-
mocratico partendo da questa “cordialità”.
O ensaio delineia, escreve Henrique Car- [Id.,Ibid.]
doso,
[…] un ampio panorama della nostra socie- Pois, uma tal “cordialità” seria funcional
tà, lanciando uno sguardo penetrante su alcu- à preservação do atraso, segundo sintetiza
ne delle caratteristiche più peculiari della vita Henrique Cardoso:
sociale brasiliana, dal rapporto dell’individuo L’attenuarsi di regole avrebbe solo offer-
con il lavoro fino all’organizzazione dello spa- to spazio a coloro che erano capaci di usare
zio umano, dal rapporto fra il privato e il pub- la mancanza di ordine o il tedio per il proprio
blico fino ai riti di cortesia (o alla resistenza a personale profitto. I “meno uguali” si sareb-
essi). [Idem, Ibidem] bero trovati abbandonati dalla legge. Di qui
Mas, continua Henrique Cardoso, além de l’insistenza del saggista nel difendere il rispetto
interpretar os processos que levaram à “for- delle norme, senza il quale non vi sarebbe sta-
mazione nazionale”, Buarque de Holanda per- to modo di dare fondamento all’uguaglianza.
cebe “[…] nuove direzioni, sensibile com’era [Id., Ibid.]
agli indizi, per quanto sporadici fossero, di
trasformazione storica” [Idem, 6]. É nesta óti- Ora, é evidente que, sem estas prévias
ca que o historiador brasileiro “[…] era incisivo explicações, tampouco a outra locução
Da civilização cordial de R ibeiro C outo ao homem cordial de S érgio B uarque de H olanda   •  131

mencionada por Henrique Cardoso, “men- A ciò avrebbero contribuito alcuni attributi
talità cordiale”, poderia ser devidamente quali l’inconsistenza in Brasile dei preconcetti
interpretada em termos conotativos nega- di razza e di colore, il cosmopolitismo e il va-
lore attribuito all’autonomia dell’individuo. La
tivos. Pois, se por um lado a definição de
garanzia maggiore della democrazia, tuttavia,
cordial do Caldas Aulete (2011) não leva
sarebbe stato l’ingresso delle masse nel pro-
o leitor a interpretar as duas locuções em cesso politico. Il popolo sarebbe stato il prota-
termos claramente conotativos negativos gonista principale dei tempi nuovi. E avrebbe
(segundo a linha tida como óbvia e adian- agito non mediante l’epurazione, bensì amal-
tada por Henrique Cardoso); pelo outro gamando gli strati superiori in una “buona e
lado, o leitor italófono que se apoiar nas onesta rivoluzione”. [Id.,7-8]
definições de cordiale do Garzanti (2009)
Portanto, logo das páginas introdu-
pode ser legitimamente levado a entender
tórias desta segunda tradução italiana, o
o sintagma mentalità cordiale (como já
leitor é levado a atentar à peculiaridade se-
l’uomo cordiale) como soma de acepções
mântica de locuções compostas com o ad-
em que a segunda componente acaba por
jetivo cordiale (l’uomo cordiale, mentalità
necessariamente orientar a primeira em
cordiale) e, enfim, do próprio substantivo
sentido positivo.
cordialità, sendo ambos de fato apresenta-
dos como um núcleo semântico específico.
3.2. A “felice espressione” Mas “específico” somente no sentido bu-
de Ribeiro Couto arquiano, ou num sentido mais amplo e já
arraigado no contexto linguístico e cultural
Mas retornemos à “Prefazione” de Hen-
brasileiro como soma de uma estratifica-
rique Cardoso, pois ele não deixa de adian-
ção semântica historicamente complexa?
tar ao seu leitor que “[…] l’epilogo di Radici
Vamos ver.
del Brasile è ottimista”:
Sérgio Buarque parla delle sue aspetta­tive, Orientado de tal maneira, ao chegar
della rivoluzione che sarebbe stata in atto fin ao “Capitolo V L’uomo cordiale” (pp. 155-
dall’abolizione della schiavitù. La città sarebbe 168), bem menor que na anterior edição
stata in procinto di assumere il ruolo principa- italiana resulta o estranhamento do leitor
le nel processo storico, mettendo in scacco il ao ler uma outra locução, “valori cordia-
mondo rurale, l’eredità iberica, i suoi valori e li” [Hollanda: 2000, 155]. E neste capítulo
le sue prassi. Il saggista definisce il nuovo Bra-
o leitor encontra explicações, entre texto
sile “americano”, come tributo al continente.
e paratexto buarquianos, já presentes na
[Id.,7]
anterior edição [Holanda: 1954, 161-162]
E se bem que a transição não estivesse acerca de quem, primeiramente, esboça-
acontecendo “in modo lineare, ma dialetti- ra a teoria do homem cordial. Pois, logo
co”, pois o próprio “apparato politico” não após a afirmação “Già è stato detto, con
conseguira se renovar, a democracia iria un’espressione felice, che il contributo bra-
prevalecer “come sintesi finale”; segundo siliano alla civiltà sarà quello della cordiali-
escreve Henrique Cardoso preanunciando tà: daremo al mondo l’uomo cordiale”, de
as conclusões de Raízes do Brasil: novo, a nota 197 chama a atenção do leitor
132  •  Sandra Bagno

nos seguintes termos: “L’espressione è dello bilíngues português/italiano,16 o mesmo


scrittore Roberto [sic!] Couto, in una lette- esquema se daria em outros dicionários bi-
ra indirizzata ad Alfonso Reyes e da questo língues (português/inglês, português/fran-
inserita nella sua pubblicazione Monterey.” cês, português/espanhol etc.)? Mas, enfim,
[Hollanda: 2000, 161] E continua Buarque até que ponto é razoável esperar da lexico-
de Holanda: grafia bilíngue a tarefa interpretativa (tra-
La schiettezza del tratto, l’ospitalità, la ge- dução intralingual) que seria, em primeiro
nerosità, virtù tanto ammirate dagli stranieri lugar, de uma lexicografia monolíngue?
che ci visitano, rappresentano di fatto un Por enquanto resta o fato que a esco-
tratto peculiare del carattere brasiliano, nella
lha de alertar o leitor da tradução italiana
misura in cui almeno rimane attivo e fecondo
desambiguando, a priori, o significado tam-
l’influsso ancestrale dei modelli di convivenza
umana ispirati dall’ambiente rurale e patriar-
bém de mentalità cordiale é igualmente ex-
cale. [Idem, 161-162] pressiva em termos intralinguais, sendo as
ocorrências de mentalidade cordial no por-
Mas, segundo Buarque de Holanda tuguês brasileiro já frequentes, como sabe-
“Sarebbe errato supporre che queste virtù mos. Devido com certeza também ao fato
possano significare “buone maniere”, ur- de a locução ter sido usada por Antônio
banità. Sono anzitutto espressioni legittime Cândido no citado ensaio “O significado de
di un fondo emotivo estremamente ricco e Raízes do Brasil”, como veremos em breve.
traboccante.” [Id., 162]
Portanto, posto que sem estas explica- 4. “
 Il ritorno del “Maestro
ções prévias também no caso da locução cordiale”, de Nello Avella
mentalità cordiale o leitor italófono seria
De fato, a “Prefazione” de Radici del
possivelmente levado, pelas acepções de
Brasile, assim como o citado ensaio de
cordiale compartilhadas na sua comunida-
Antônio Cândido, demonstram que, em
de linguística, a averiguar (equivocando)
ambas as traduções interlingual e intralin-
seu possível significado num dicionário de gual, tornam-se indispensáveis uns esclare-
grande difusão como o Garzanti (2009); a cimentos semânticos para qualquer leitor
necessidade de um prefácio (ou algo pa- que não esteja a par do complexo debate
recido) que de antemão procure dissipar subjacente ao processo cultural que levou à
(como em Radici del Brasile) qualquer tipo
16 Cf. MEA, Giuseppe. Português-Italiano. Porto: Porto
de dúvida ou ambiguidade linguístico-
Editora, 2003, p. 290:
-semântica, antes de mais, das palavras cordial […] adj. 2 gén. Cordiale; uma pessoa aberta e
cordialità e cordiale (mas de fato, do por- cordial una persona aberta e cordial; relações cordiais
de amizade cordiali rapporti di amicizia; una cordia-
tuguês brasileiro cordial e cordialidade) le antipatia una cordiale antipatia; cordiais cumpri-
mentos cordiali saluti
implica umas perguntas. A mesma neces-
cordialità […] s.f. cordialità
sidade de previamente informar o leitor SPINELLI, Vincenzo; CASASANTA, Mario. Dizionario com-
pleto Portoghese (Brasiliano). Portoghese (Brasiliano)-
seria percebida no caso de se traduzir Raí-
-Italiano.Italino-Portoghese(Brasiliano). Milano: Hoepli,
zes do Brasil para qualquer outra língua? 2010, p. 301:
Cordial (l. COR-DIS) agg. Cordiale || affettuoso, a; sin-
Quer dizer, vista a falta de explicações a cero, a; che viene dal cuore || m. cordiale || corroborante
este respeito em mais recentes dicionários Cordialidade f. cordialità || affabilità, amorevolezza
Da civilização cordial de R ibeiro C outo ao homem cordial de S érgio B uarque de H olanda   •  133

estabilização, como supomos, na consciên- lógicas nacionalistas autocelebrativas, tam-


cia linguística e cultural brasileira no século bém a um claro alerta: era importante des-
XX, de uma divaricação semântica pela lo- confiar de ideias que pudessem se tornar
cução o homen cordial, ou, mais em geral, teorias e slogans sedutores. Pois, se usados
pelas palavras cordial e cordialidade. em termos instrumentais, poderiam desen-
Mas, no caso da tradução interlingual cadear desequilíbrios socioidentitários ad
Radici del Brasile os esclarecimentos se tor- usum de elites sem escrúpulos.
nam ainda mais indispensáveis, devido à dia- Portanto, retornando à materilità de
lética interna determinada pela específica “Il ritorno del ‘Maestro Cordiale’”, a quais
estrutura paratextual organizada por Avella significados (bem distantes daqueles buar-
como mediador cultural. Pois, enquanto o quianos e bastante próximos daqueles de
leitor, desde o metatexto cujo prototexto é Ribeiro Couto) obviamente alude Avella ao
de Henrique Cardoso, é por um lado guiado definir Buarque de Holanda Maestro cor-
a focalizar a específica acepção de cordiale diale, resulta claramente também da docu-
no “polo narrativo” Radici del Brasile (cujo mentação que, como organizador, recolhe
prototexto é de Buarque de Holanda); o no peritexto. Começando por aquela rela-
mesmo leitor italófono, por outro lado, não tiva à apreciada presença em Roma de um
pode deixar de interpretar a palavra cordiale intelectual brasileiro de grande cordialidade
que aparece logo após: mas desta vez não e qualidades humanas. E preciosas tam-
traduzida, portanto com suas acepções em bém do ponto de vista de uma distensão
italiano, conotativas positivas, como confir- político-diplomática no difícil pós-guerra.
madas pelo Garzanti (2009). Escolha inter- Como salientado por Avella no trecho “3.
pretativa que o leitor é naturalmente levado Il periodo romano: la riscoperta di un ‘mo-
a fazer na materialità do texto que Avella se mento decisivo’” (pp. 18-22), em que Buar-
compraz de intitular (p. 11) “Il ritorno del que de Holanda, entre 52 e 54, desempe-
‘Maestro cordiale’ [nossos os grifos]”. Quer nhou vários cargos despertando respeito e
dizer, desta vez é o próprio Avella a recorrer admiração também no contexto acadêmico
ao adjetivo cordiale mas implicitamente alu- romano.
dindo (como italófono e para o leitor italó-
fono) a aceções segundo as registradas pelo
Palazzi (1954) e confirmadas pelo Garzanti 5. Da tradução intralingual
(2009). E isso num contexto cultural que, à tradução interlingual: o
como sabemos, desde a década de 50 tem homen cordial, civilização
recebido (mas em que não houve) o deba- cordial e cordialidade na
te desencadeado, segundo a definição de
Buarque de Holanda, pela “felice espressio-
fraseologia brasileira
ne” do poeta Ribeiro Couto. Mas uma “fe- Retornemos a uma das perguntas acima
lice espressione” que não deixaria de levar colocadas: como a lexicografia monolíngue
Buar­que de Holanda, antes que a Segunda nacional – por ser a referência imprescindí-
Guerra Mundial demonstrasse toda a falta vel para a tradução interlingual, e portanto
de fundamento e desumanidade de certas intralingual – tem solucionado a questão
134  •  Sandra Bagno

daquela que, ao nosso ver, deveria ser hoje ambivalências semânticas, e, entre elas, as
reconhecida como uma divaricação semân- que levaram o historiador a teorizar, na dé-
tica estabilizada, no português brasileiro, cada de 30, o perfil de homem cordial que,
para as palavras cordial e cordialidade? em perspetiva histórica, prevaleceria. Mas
Uma clara resposta, em sentido negativo, que, pela própria vontade de Buarque de
pode ser encontrada no Dicionário Houaiss Holanda, não cancelaria o perfil de homem
da Língua Portuguesa, em que, coerente- cordial teorizado pelo poeta Ribeiro Couto.
mente com a linha teórica aplicada pelos Segundo dado: o grande debate desenca-
lexicógrafos, nada aparecia em 2001 a esse deado ao longo de décadas por Raízes do
respeito.17 Mas o fato de, hoje em dia, esta Brasil já levou, ao nosso ver, a implicitamen-
se revelar uma lacuna é demonstrado por te aceitar como convencionalmente parti-
um dado: após tantas décadas de debate lhada, no português do Brasil, a divaricação
no Brasil, as definições dos verbetes, cordial semântica entre o homem cordial de Ribeiro
/ cordialidade nos dicionários de português Couto e o de Buarque de Holanda. E, ter-
e cordiale / cordialità nos dicionários de ita- ceiro dado, seria também graças a Raízes
liano, continuam parecidas demais. Entre- do Brasil que não menos importante per-
tanto, elas deveriam divergir nos campos maneceria, numa perspetiva histórica, pelo
da fraseologia e da datação, devido àquilo menos uma outra locução de Ribeiro Cou-
que, desde 1931, tem acontecido no Brasil. to, civilização cordial, núcleo teórico sem
Frente a tais elementos, podem-se de- o qual não existiria o do homem cordial
preender os seguintes dados. Primeiro, a buarquiano.
denotação, “do coração”, já registrada na Portanto, por estas razões propomos
definição do Caldas Aulete (1948), permi- uma única resposta às várias questões que
tiu manter, obviamente implícitas in nuce, surgiram. Quer dizer, que a definição do
como sempre possíveis as polissemias e/ou verbete cordial seja enriquecida, nos cam-
17 Cf. HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles;
pos da fraseologia e da datação dos dicio-
FRANCO, Francisco Manuel de Mello. Dicionário Hou- nários de português brasileiro para o sécu-
aiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva,
lo XXI, por ambas as locuções: o homem
2001, respetivamente pp. XIV-XV e p. 836:
cordial adj, 2g. (sec. XV cf. IVPM) 1 que demostra afa- cordial (1936), com conotação negativa,
bilidade, sinceridade; caloroso, franco <abraço c.> <pa-
por ter-se tornado paradigmática da teoria
lavras c.> 2 que revela disposição favorável em relação
a outrem <um chefe c. mas rigoroso> 3 em que há boa de Buarque de Holanda; e civilização cor-
vontade ou convergência de pontos de vista <reunião
c.> <relações c.> 4 p.us. referente a ou próprio do co-
dial (1931), com conotação positiva, por ter
ração (´orgão’) ▪ adj. 2g. s.m. FARM. 5 diz-se de ou me- permanecido a mais paradigmática das lo-
dicamento ou porção que ativa a circulação sanguínea,
que restaura as forças, que robustece <elixir c.> <os c.
cuções da teoria de Ribeiro Couto.
eram muito empregados na terapêutica antiga> ▪ s.m. Mas uma vez integrado o verbete com
6 bebida alcoólica com as mesmas propriedades <o vi-
nho do Porto é considerado um excelente c.> ○ ETIM
ambas as locuções por já pertencerem ao
lat. medv. cordiālis ‘relativo ao coração’; ver cor(d) – ○ português brasileiro standard, como defini-
SIN/VAR como adj. s.m.: ver antonímia de malvado ○
HOM cordiais (pl.) / cordeais (f. cordear)
-las para pragmaticamente permitir uma
cordialidade s.f. (1836 cf. SC) 1 qualidade de cordial 2 decodificação i. e. uma imediata tradução
manifestação explícita de afeto e simpatia <recebeu-o
com viva c. > ○ ETIM cordial+ –i– + dade; ver cor(d) – ○
seja intralingual seja interlingual? Uns indí-
SIN/VAR ver sinonímia de familiaridade cios neste sentido podem ser depreendidos
Da civilização cordial de R ibeiro C outo ao homem cordial de S érgio B uarque de H olanda   •  135

das diferenças observadas entre a primeira Ora, vale lembrar que, sempre neste
e a segunda edição italiana do ensaio bu- mesmo ensaio, o próprio Antônio Cândido
arquiano. Quer dizer, pela evidente neces- afirmara pouco antes:
sidade, de acordo com a organização de O “homem cordial” não pressupõe bonda-
Nello Avella, de evitar logo do começo, de, mas somente o predomínio dos compor-
através de um rico paratexto em Radici del tamentos de aparência afetiva, inclusive suas
Brasile, aquelas que, em perspetiva histórica manifestações externas, não necessariamente
aparecem como ambiguidades ou mal-en- sinceras nem profundas, que se opõem aos
ritualismos da polidez. O “homem cordial” é
tendidos deixados sem solução na primeira
visceralmente inadequado às relações impes-
tradução, Alle Radici del Brasile. soais que decorrem da posição e da função
De fato, se a locução Maestro cordiale do indivíduo, e não da sua marca pessoal e
citada por Avella evoca conotações somen- familiar, das afinidades nascidas na intimidade
te positivas, inequivocamente reconhecíveis dos grupos primários. [Idem, Ibidem]
como tais (também) no contexto cultural
Portanto, numa ótica pragmática de
italiano (língua em que Avella escreveu seu
tradução intralingual, seja a primeira que
texto), já não é possível dizer a mesma coi-
a segunda frase poderiam eficazmente ser
sa, além de l’uomo cordiale, nem de men-
utilizadas como abonação da buarquiana
talità cordiale. Pois, traduzida do português
locução o homem cordial. E quanto àque-
mentalidade cordial e usada por Henrique
la de civilização cordial, poder-se-ia recor-
Cardoso no seu prefácio para explicar como
rer ao conceito tal como formulado pelo
raciocina, em verdade, a mente do uomo
próprio Ribeiro Couto. De fato, anterior
cordiale buarquiano, suas acepções devem
do ponto de vista cronológico se bem que
ser interpretadas como conotativas negati-
colocada na sombra pelo homem cordial
vas. Assim como fizera Antônio Cândido no
buarquiano, a ideia da civilização cordial
citado “O significado de Raízes do Brasil”,
como contribuição da América Latina ao
ensaio muito conhecido também por apare-
mundo permanece o outro ponto de par-
cer em várias edições de Raízes do Brasil, e
tida do processo que levaria à posterior di-
em que lemos:
Ao que se poderia chamar de “mentali- varicação semântica. Comprova, de resto, a
dade cordial” [nossos os grifos] estão ligados importância também do conceito ribeirino
vários traços importantes, como a sociabilida- de cordialidade a abonação registrada no
de apenas aparente, que na verdade não se Dicionário de usos do Português do Brasil
impõe ao indivíduo e não exerce efeito po- por Francisco S. Borba:
sitivo na estruturação de uma ordem coleti-
va. Decorre deste fato o individualismo, que cordialidade Nf [abstrato de estado] afa-
aparece aqui focalizado de outro ângulo e se bilidade; afeição: falamos com cordialidade
manifesta como relutância em face da lei que vulgar da hospitalidade sertaneja (ROM);
o contrarie. Ligada a ele, a falta de capacidade
para aplicar-se a um objetivo exterior. [Cândi- edições do ensaio, afirma Monteiro [2015, cap. 1, nota
do apud Holanda: 1987, XLVI]18 11]: “Escrito em dezembro de 1967, em São Paulo, o
prefácio foi incluído na quinta edição de Raízes do Bra-
sil, publicada no Rio de Janeiro, em 1969, pela editora
18 Acerca da importância de “Significado de Raízes José Olympio. Desde então, ele é parte inseparável do
do Brasil” de Antônio Cândido integrado em muitas livro de Sérgio Buarque.”
136  •  Sandra Bagno

Cordialidade do caráter nacional brasileiro AULETE, F. J. Caldas. Dicionário Contemporâneo da Língua


Portuguesa. Lisboa: Parceria António Maria Pereira,
tão decantado pelas elites (GUE) [nossos os 1948, Vol. I.
BAGNO, Sandra. Lessicografia e identità brasiliana: dov’è
grifos] [Borba: 2002, 407] “A nossa Vendéia”? De Alcácer-Quibir a Vendéia: você
del “tempo di lunga durata” della “civiltà nazionale”
Mas a abonação proposta por Borba brasiliana. Padova: CLEUP, 2009.
BEZERRA, Elvia. “Ribeiro Couto e o homem cordial”. Apud
evoca uma outra afirmação, segundo lem- Revista Brasileira. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de
bra Bezerra [cit., 123]: Letras, Fase VII, Julho-Agosto-Setembro 2005, Ano XI,
N. 44, pp. 123-130. Em http://www.academia.org.br/
Em 1946, quando fez o discurso de re- abl/media/prosa44c.pdf [última consulta 6/1/2018]
cepção a Peregrino Júnior na Academia Bra- BORBA, Francisco. Dicionário de usos do Português do Bra-
sil. São Paulo: Editora Ática, 2002.
sileira de Letras, Manuel Bandeira destacou, CÂNDIDO, Antônio. “O significado de Raízes do Brasil”, em
entre as virtudes do empossado, a cordiali- HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. Rio de Ja-
dade. Dizia ele: “Ribeiro Couto inventou de neiro: José Olympio Editora, 1987. 19.a ed. Prefácio de
Antônio Cândido. Conferência de Alexandre Eulálio.
uma feita a teoria do ‘homem cordial’. Se- Artigo de Leo Gilson Ribeiro. Pp. XXXIX-L.
gundo o nosso amigo, a cordialidade [nos- DONDI, Giovanni. “Bocca” Dizionario biografico degli Ita-
liani. Vol. 10, 1968. Em http://www.treccani.it/enci-
sos os grifos] seria a contribuição brasileira à clopedia/bocca(DizionarioBio­gra­fico)/ [última consulta
obra da civilização.” 10/3/2018]
GEIGER, Paulo. Novíssimo Aulete dicionário contemporâ-
neo da língua portuguesa Caldas Aulete. Rio de Janei-
Afirmação esta que, com sua conotação ro: Lexikon, 2011.
(obviamente positiva), poderia também en- HOLANDA, Sérgio Buarque de. Alle radici del Brasile. Roma-
-Milano: Fratelli Bocca Editori, 1954. Trad. di Cesare
trar como abonação, em um verbete cor- Rivelli.
dialidade, pela sua eficácia do ponto de IDEM. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio Editora,
1987. 19ª ed. Prefácio de Antônio Cândido. Conferên-
vista pragmático tradutório seja intralingual cia de Alexandre Eulálio. Artigo de Leo Gilson Ribeiro.
HOLLANDA, Sérgio Buarque de. Radici del Brasile. Firenze:
seja interlingual. Em um dicionário mono- Giunti 2000. Introduzione e cura di Nello Avella. Tra-
língue como síntese da identidade linguísti- duz. Luciano Arcella.
HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles; FRANCO,
ca e cultural brasileira [Bagno, cit.], as abo- Francisco Manoel de Mello; Dicionário Houaiss da Lín-
nações propostas, se relacionadas entre si gua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
JAKOBSON, Roman. Saggi di linguistica generale. Milano:
com as respetivas datações num sistema de Feltrinelli, 2002.
MEA, Giuseppe. Português-Italiano. Porto: Porto Editora,
coerente diálogo interno entre os verbetes, 2003.
orientariam qualquer consulente, também MONTEIRO, Pedro Meira. Sérgio Buarque de Holanda e a
imaginação do Brasil. São Paulo: Hucitec, 2015 (eBook).
em perspetiva histórica, sobre a evolução PALAZZI, Ferdinando. Novissimo Dizionario della Lingua Ita-
do debate que gerou um arquétipo antro- liana. Milano: Ceschina, 1954.
PATOTA, Giuseppe. Il Grande Dizionario Garzanti della Lin-
pológico e sociopolítico – o homem cordial gua Italiana 2009. Milano: Garzanti Linguistica, 2008.
SPINELLI, Vincenzo; CASASANTA, Mario. Dizionario completo
– que já pertence, consagrado por uma Portoghese (Brasiliano). Portoghese (Brasiliano)-Italiano.
consistente fortuna crítica, também à nossa Italino-Portoghese (Brasiliano). Milano: Hoepli, 2010.
VAINFAS, Ronaldo. “O imbróglio de Raízes: notas sobre a
história linguística nacional. fortuna crítica da obra de Sérgio Buarque de Holanda”.
Apud Revista Brasileira de História. São Paulo, 2016 Em
Referências bibliográficas http://dx.doi.org/10.1590/1806-93472016v36n73_003
[último acesso 4/4/2018]
ACADEMIA BRASILEIRA de LETRAS. Ribeiro Couto. Em http: Vocabolario Treccani, Istituto della Enciclopedia Italiana. Em
//www.academia.org.br/academicos/ribeiro-couto [úl- http://www.treccani.it/vocabolario/onore/ [última consulta
tima consulta 25/2/2018] 3/3/2018]
Língua e educação – uma relação
óbvia, uma interação mal compreendida

José Carlos de Azeredo


Professor associado de língua portuguesa da UERJ

C
omo qualquer educador, tenho usual, enraizada no senso comum, nos diz
procurado me inteirar da proposta que a língua é um recurso natural de comu-
de reforma do Ensino Médio, que nicação. Comparando as duas formulações,
me parece resgatar o espírito do modelo dei o desconto do tom eloquente da frase
dos anos 1960. Terminado o curso ginasial do meu professor e procurei incorporar o
– correspondente ao segundo segmento que nela me pareceu uma novidade.
do atual Ensino Fundamental –, o estudan­ Há algum tempo, gosto de remoer esse
te tinha três opções: um curso profissiona- lugar-comum. Vejo nisso uma boa estraté-
lizante, que o formava, por exemplo, em gia para ultrapassar o nível das aparências,
“técnico de contabilidade”; ”o curso cientí- como convém à finalidade formativa do
fico”, indispensável para os que pretendiam processo pedagógico. Estou convencido
ingressar nas faculdades de engenharia e de que, por mais que seja uma proprieda-
de medicina e no magistério dos domínios de óbvia e inquestionável, a utilidade como
conexos a estas especialidades; e o “curso meio de comunicação está longe de poder
clássico”, recomendado para as carreiras explicar em que sentido a posse da palavra
relacionadas com as ciências humanas em representa uma singularidade da espécie
geral – a sociologia, a filosofia, as letras e, humana.
naturalmente, o magistério de línguas es- O caminho que escolhi para explorar
trangeiras e de língua materna, bem como essa ideia parte da distinção entre corpo e
o direito e a diplomacia. mente. Como tema filosófico, a formula-
Foi por esta grande área das “humani- ção mais conhecida dessa dicotomia encon-
dades” que optei em 1963. Eu estudava no tra-se na obra de René Descartes, no século
Liceu Nilo Peçanha, de Niterói, onde conheci XVII. O “dualismo cartesiano” – como é
um professor de português que gostava de conhecida a tese – propunha uma indepen-
frases de efeito. Uma delas, repetida como dência radical entre as duas coisas. Esse di-
um refrão, era esta: “a palavra é uma chave vórcio foi sempre posto em xeque, mas só
que abre muitos tesouros”. A formulação a ciência cognitiva moderna foi capaz de
138  •  José Carlos de Azeredo

demonstrar que categorias, conceitos e ex- em cenário; transformou o chão em palco;


periências corporais são inseparáveis. do animal fez o personagem. E da fala fez
Feita a ressalva, adoto uma redução di- a escrita.
dática e, extraindo dessa dicotomia o par Os cinco sentidos nos prendem ao aqui
conceitual que me interessa agora, falo em e agora de nossa existência; o ser humano
matéria e pensamento. somou a eles a memória e a imaginação.
Sabemos todos que a matéria está su- Graças a ambas, ele deixa de ser presa do
jeita às leis da biologia, da física e da quí- seu espaço imediato, onde, assim como as
mica, as mesmas que regem a constituição demais espécies, estaria limitado a seguir a
e o desgaste, o crescimento e a morte dos orientação das pistas plantadas pela Natu-
seres em geral. Já o pensamento se reali- reza e pelos caprichos da sorte.
za como um misto de habilidades mentais Os sentidos nos lembram, o tempo todo,
fortemente ligadas à capacidade simbólica. que temos um corpo, que somos corpo, um
Essa capacidade, embora não seja exclusiva corpo situado num espaço. Corpo e espa-
da espécie humana, sobressai nela pela va- ço formam, assim, uma unidade conceitual
riedade de formas que assume e pela plura- que resume lições básicas de acolhimento
lidade de funções que desempenha. e de limitação. A memória e a imaginação,
De fato, aves, abelhas, baleias e macacos, por outro lado, também são espaços, mas
entre outros, também fazem uso de sinais são espaços que se comprimem ou se di-
reveladores de uma certa aptidão simbólica, latam conforme o potencial da engenharia
mas isso não confere a eles lugar equivalente simbólica do ser humano. É graças a essa
ao dos seres humanos nessa dimensão. Os engenharia que construímos ao longo da
sinais que um ganso ou um chimpanzé emi- história o mundo como significação, o mun-
tem são reações imediatas do corpo a um do que trazemos dentro de nós.
estímulo geralmente presente no espaço que Por serem um dom da natureza, os sen-
habitam: um alerta de perigo, uma senha tidos nos igualam e nos propiciam experiên-
para o acasalamento etc. Só o ser humano é cias análogas no mundo natural. Isso não im-
capaz de agir comunicativamente em função pede, porém, que eles atuem numa parceria
de um contexto que ele mesmo concebe, e cúmplice com a memória e a imaginação,
de criar, modificar, reinventar e expandir for- que os reorienta na dimensão simbólica de
mas de comunicação com seu semelhante. nossa existência. Desse modo, a imaginação
Certos atos comunicativos do homem e a memória nos singularizam e nos distin-
apresentam semelhanças com as reações guem, transformando as experiências dos
das outras espécies. Refiro-me a atos como sentidos em experiências com sentido.
os pigarros de reprovação e à maioria das in- Ou seja, o homem dispõe de um outro
terjeições com que se expressam dor, prazer, plano de atribuição de significado às coisas;
frustração, entusiasmo. Acontece que o ser nesse plano ele se move imune às limitações
humano se apropriou de elementos da natu- do espaço, imune às limitações do tempo e
reza para reinventá-los na dimensão simbóli- – por que não? – imune às limitações da
ca e cultural: do incêndio na floresta extraiu própria realidade. Essa aliança entre senti-
a tocha que ilumina; converteu a paisagem dos, memória e imaginação só é possível
L íngua e edu c aç ã o – u ma r e l a ç ã o ó bv i a , u ma i n t e r a ç ã o m a l c o m p r e e n d i da   •  139

porque o ser humano dispõe da capacidade que, mal cumprida e malfeita, compromete
simbólica, cuja expressão universal e, entre toda a educação.
todas, mais versátil é, justamente, a palavra, As autoridades da educação e seus agen-
a língua. tes, em especial os professores, precisam se
É fundamental ter claro que a língua conscientizar do papel transversal da língua
não é só o veículo, mas é a própria fonte na formação de um cidadão. Precisam se con-
dos múltiplos estilos de relacionamento que vencer de que a principal causa do fracasso
permeiam a vida cultural em toda a sua escolar é a pouca familiaridade do estudante
complexidade. Por meio dela e graças a ela com a diversidade de recursos de compreen-
conhecemos, revelamos e compartilhamos são e de expressão oferecidos pela palavra.
um mundo sem limites, que só existe para É lidando com as formas da língua e explo-
a espécie humana. Esse mundo tanto se re- rando alternativas para a expressão que des-
vela nos enunciados já produzidos e catalo- cobrimos novos sentidos, os sentidos que a
gáveis em um corpus, quanto se descortina mesmice das fórmulas repetidas não deixa
nos textos que, para usar a palavra do poe- perceber. Portanto, é tarefa de todos promo-
ta, ainda esperam ser escritos. ver o domínio da língua – não no sentido con-
Em função dessa reflexão, meu foco é o servadoramente clássico de adoração de relí-
papel decisivo da palavra no fazer pedagó- quias léxicas e gramaticais – mas no sentido
gico em geral. Não conheço um educador, de uma competência que habilita o estudante
um só professor que negue isso. Mas é raro a utilizar recursos cognitivos e instrumentos
que a importância da palavra seja reconhe- técnicos para ler e produzir uma variedade de
cida nos seus devidos termos. A mídia, fa- textos com autonomia. Tenhamos, portanto,
lada e impressa, dá o tom do que se pensa clareza de uma coisa: tendo em vista os bene-
fora do núcleo formado pelos especialistas. fícios transdisciplinares da competência verbal
Chega-se ao cúmulo de confundir compe- de uma pessoa, essa tarefa é grande demais,
tência ortográfica e competência linguísti- decisiva demais, envolvente demais para ser
ca, como se constata na popularidade de cobrada de uma só e única disciplina.
algumas gincanas televisivas. Muitos dirão que ajo como um Quixote,
O domínio da língua para o fim de ler mas a única profissão que exerci ao longo
e escrever com autonomia e desenvoltu- de 50 anos consolidou em mim esta cer-
ra inclui o domínio da norma gramatical teza: a qualidade da educação tem tudo a
e das convenções ortográficas, mas estes ganhar quando o professor, independen-
são apenas – digamos – os aspectos mais temente de sua área de conhecimento, lê
óbvios. O domínio da língua é muito mais e comenta textos com seus alunos. Não se
do que isso. Como uma soma de atividades está pedindo aos professores de história,
produtivas e autônomas, as habilidades da de biologia ou de matemática que ensinem
leitura e da escrita precisam ser reafirmadas sintaxe ou pontuação a seus alunos, mas
e tratadas como o objetivo maior do Ensino que pratiquem em aula o hábito saudável
Fundamental, e permanecer como um dos de usar textos, lendo-os e interpretando-os
principais objetivos do Ensino Médio. É uma com seus alunos, para incentivar a desco-
tarefa que requer conjugação de esforços e berta e a construção de conhecimento.
C O N TO

Doutora Isa

Juarez Barroso
Ficcionista, jornalista, escritor e ensaísta de música popular

J
uarez Barroso nasceu em Pernambu- 1972, crítico musical do Jornal do Brasil.
quinho, na serra de Baturité, Ceará, em Apaixonado por música popular brasileira,
1934. Seus primeiros trabalhos literá- fez inúmeras pesquisas sobre o assunto,
rios foram publicados na imprensa de For- produziu o último disco de Cartola e dei-
taleza, a partir de 1955. Em 1968, seu livro xou, em fase de impressão, um ensaio sobre
de contos Mundinha Panchico e o Resto do música popular, Estácio – Os professores do
Pessoal ganhou o almejado Prêmio Literário Samba.
José Lins do Rego, da Editora José Olympio, Seu falecimento prematuro, em 1976,
que o publicou no ano seguinte. coincidiu com o lançamento de seu segun-
Trabalhou como jornalista no Diário Ca- do livro, Joaquinho Gato, no Rio de Janei-
rioca, Correio da Manhã e na revista Fatos ro. Em 1978, o romance Doutora Isa foi
e Fotos, do Rio de Janeiro, sendo, desde publicado.
142  •  Juarez Barroso

D
outora lsa. Assim mesmo: doutora carrada de gente pra se receitar de doença
lsa. Foi com este nome, nome santo ou aflição do juízo. E ela dava o remédio,
na bondade e na delicadeza da cria- dava o conselho, dava de tudo, sem querer
tura, que a lembrança dela ficou nestas pa- um tostão de ninguém. E se muito cabra
ragens. Doutora Isa. E sabia de fato traba- está hoje aí, vivo e faceiro, bebendo cacha-
lhar no ofício de doutora, bem verdade que ça, dançando em samba, correndo atrás de
sem a ciência dos livros, ciência do povo de boi, só deve isto à doutora, embora nin-
anel, feito os senhores. Mas com a ciência guém não reconheça. O mesmo povo que,
do mundo, ciência de quem navegou pelo naquele tempo, chegou até a dizer que ela
luxo e pela pobreza, pelo direito e o torto, era santa, coisa que eu sei que ela não foi,
ciência estrumada na vontade e na precisão meus cidadãos, que eu nunca vi santa de
de servir, tudo com a graça de Deus, que lhe seis meses. Mas que trabalhou de santa,
guiou a mão e as palavras naqueles seis me- trabalhou. Curou doença de morte, casou
ses. Enquanto se chamou lsa, Deus Nosso gente amigada, fez pai de família largar
Senhor olhou por ela, podem me crer, que mão de xodó, fez mulher quente largar. de
de outra forma também não encontro expli- botar chifre no marido, como também fez
cação pra tanto acerto. Mostrava o remédio marido aguentar com paciência a sua sina e
ao vivente ou escrevia o nome no papel, e o peso na cabeça, pois quando chifre de ho-
ele, só de espiar pro vidro ou pra receita já mem enraiza muito não dá mais pra arran-
ia melhorando, dois, três dias mais tarde já car de jeito nenhum. Fez moça feia casar e
estava bonzinho. Diante de uma ferida, es- até mesmo devolveu as forças de homem a
tivesse ou não arruinada, fosse malina ou um cidadão, um pobre que estava na moda
fosse de estrepada, não havia diferença. de quem tem fome e não pode engolir, per-
A força maneira das mãos de princesa, fini- dida a sustança pra coisa melhor que Deus
nhas, alvinhas, segurando um algodão com botou nesta terra.
água, os dedos que ninguém sentia, só a Tudo em seis meses, sem tempo de cum-
presença deles, mimo e formusura guer- prir sua sina no sertão, tempo marcado por
reando a feiura da carne arruinada. Tenha seis acontecidos, que seis é o número que
medo não, isto num instante fica bom. E se governa esta história, como percebi mais
era no pé, como me aconteceu, o cristão já tarde, conforme o ensinamento do profe-
saía pisando aprumado, esquecido da dor, ta e advinhão Moisés do Lagedo. E outra
no ponto de correr atrás de um bicho numa coisa lhes digo, cidadãos. Se ela, na cidade,
capoeira ou de até jogar futebol. Mulher na pessoa de Margô, foi madame de puta,
nenhuma morreu de parto nas mãos dela, viveu no banquete e na safadeza, obrando
nenhuma precisou de doutor da cidade ou o mal e ensinando o pecado, aqui no ser-
perdeu o menino. tão, na pessoa da doutora Isa, foi o anjo da
Meus cidadãos, aqui o doutor meu com- salvação e só ensinou a nós todos a estrada
padre sabe que eu sou desmantelado mas do bem. Seis meses na exata, como deter-
não sou homem de mentira. Pois digo que minava a lei daquele encantamento. Depois
teve um tempo em que se fez até romaria do que ela retornou pra sua vida alegre, pra
lá em casa, caminhão vindo de longe, com sua riqueza ainda maior, pro seu vinho e
D o u to r a I s a   •  143

seu licor, pra orgia e a esculhambação, es- meninota, sem influência de namoro, ino-
quecido o tempo de doutora, à moda de cente das coisas. Se sabe nunca me falou
um sonho. Mas sonho não foi, eu garanto. ou cobrou nada. Estas coisas eu só conver-
E ainda lhes digo mais. Se existe hoje uma so aqui no alpendre do doutor, porque ele
Margô no inferno, existe igualmente uma puxa, na força desta cachaça que somente
Isa no céu, muito embora sejam elas uma só ele possui. Lá em casa não tem praça pra
pessoa. E ninguém me pergunte como isto tal assunto.
é possível, pois aí já se entra nos terrenos Tenho que principiar no começo, mas
de Deus Nosso Senhor, que sabe virar-se em o ano nem me perguntem que eu não me
três, sem deixar de ser um só e verdadeiro. lembro ao certo. Sei bem que eu já era rapaz
Como Margô, mulher da cidade, de erro, feito, embora nem sonhasse em me casar.
bebida e orgia, tirando seu sustento da fra- Como sei bem que principiou em setembro,
queza da carne, veio bater aqui encantada por causa da festa do ltapebuçu, que eu
em doutora e anjo dos pobres? Doutor, tem perdi naquele ano. Deu-se que no começo
coisa que eu nunca contei ao senhor, como daquele mês, eu botei a sela no meu bur-
nunca cheguei a contar nem ao meu irmão ro, aqui no sertão, e toquei-me pra Serra
Bonato ou ao Zezão. Estes seus convidados da Palmácia, onde a gente possuía uma
de hoje ainda não escutaram? Sem pabula- herançazinha de terra, coisa pouca, já mui-
gem, só lhes posso dizer que tudo sucedeu to dividida, mas que dava uma bananinha,
por via aqui deste criado dos senhores. Fui uma cana que garantia a nossa rapadura,
eu quem trouxe Margô pra cá, fui eu quem um feijão de arrancar, umas três saquinhas
assistiu a sua passagem de puta a douto- de café pro nosso gasto. Hoje tudo está em
ra. Margô ou doutora lsa, presenciei ela no poder do meu irmão, que comprou até as
sofrimento e na glória, suas horas de gran- partes de outros herdeiros, primo da gente,
deza ou de fraqueza, só eu presenciei as ho- fez daquilo um brinco. Mas como eu dizia,
ras que ela quis fraquejar, imaginando em madrugada botei a sela no burro, um burro
morrer, se sumir no oco do mundo, e eu, castanho que eu possuía naquela ocasião,
aguente firme, doutora, se sustente na sela, animal possante, galope macio, burro mes-
domine as rédeas da vida, que Deus toma mo de viagem, mas servindo também pra
conta do resto. E assim ela fez. E só aqui a campo, pois entendia de gado. Esse burro
este seu criado ela pediu e deveu favor, isto eu apanhei do Alfredim Estadual, irmão ca-
num tempo em que todo mundo pagava çula do meu camarada Zezão, em troca de
pra lhe servir. Se a minha mulher sabe des- uma bezerra, de um relógio de algibeira,
ses acontecirnentos? Olha, pra lhes dizer a Omega, bicho relógio, que não atrasava e
verdade, sei não. Nesse tempo ela ainda era nem adiantava, e mais cem mil-réis.
H O M E N A G E M A A lceu de A moroso L ima

A evolução do conto no Brasil*

Alceu de Amoroso Lima


Quarto ocupante da Cadeira 40 na Academia Brasileira de Letras

A
lceu Amoroso Lima (1893-1983) Ele é, sem dúvida alguma, um dos princi-
foi crítico literário, professor, pen- pais protagonistas da cena intelectual do sé-
sador, escritor e líder católico bra- culo XX. Caracterizou-se por um esforço per-
manente de compreensão da cultura e da vida,
sileiro. Foi Conde Romano, pela Santa Sé.
fundado num tripé cada vez mais abalado, ou
Adotou o pseudônimo de Tristão de Ataíde.
mais distante: a liberdade, a justiça e a ética.
Sua obra, no ano de 1965, foi indicada ao
prêmio Nobel de Literatura. É por isso que hoje e sempre devemos
O Acadêmico Eduardo Portella, em ses- rememorar e render o nosso tributo, o nos-
são de homenagem ao 20.º aniversário de so respeito e a nossa admiração a Alceu
falecimento de Alceu, registrou: Amoroso Lima.

* Em 28 de Junho de 1956.

Publicado no livro Curso de conto, Academia Brasileira de Letras, 1958.


146  •  Alceu de Amoroso Lima

I mas se conservava a mesma primazia do de-


terminismo estético, em novos moldes.
A natureza do gênero A esse determinismo é que veio suceder,
Há vários anos por proposta de Austre- especialmente a partir de Benedetto Croce
gésilo de Ataíde, vem a Academia realizan- no inicio do novo século, um indeterminis-
mo intrínseco, aliás muito mais de acordo
do séries de conferências dedicadas a de-
com a própria natureza do fenômeno estéti-
terminados aspectos de nossas letras. Já se
co. A ação dos elementos exteriores passou
falou sobre poesia, teatro, romance, critica,
a segundo plano e, pelo contrário, começou
e este ano durante o mês de julho, o objeto
a ser reconhecida a primazia da atividade
do curso será o Conto.
criadora. Tanto a natureza física ou social,
É bem de ver que a palavra “evolução
do mesologismo, como a natureza forma-
do conto” está aqui empregada em sentido lista do tipologismo, foram pouco a pouco
puramente histórico e não como era empre- destituídas de sua influência decisiva ou de-
gada pela crítica evolucionista dos “gêne- terminante e passaram a constituir, quando
ros literários”, no século XIX, que atribuía muito, um condicionamento marginal. Essa
a essas divisões uma organicidade e uma deslocação de influências, na explicação do
autonomia que por natureza lhes não per- fenômeno estético, vinha corresponder a
tencem. uma evolução semelhante no próprio terre-
Toda a tendência da crítica moderna, no da observação psicológica. A uma psico-
quaisquer que sejam as correntes em que logia marcada pela diferenciação rígida do
ela se divide, e não são poucas, é para ate- espírito em faculdades, como que separa-
nuar ou mesmo suprimir a rígida diferencia- das por compartimentos estanques, ou en-
ção genérica, em literatura, que no século tão dominada por um rígido determinismo
passado chegou a ser erigida por Brunetiè- sensorial ou hereditário, vinha suceder uma
re, em França e, de certo modo, por Sílvio nova psicologia gradativamente marcada,
a partir de Freud sobretudo, por uma con-
Romero, entre nós, em lei por assim dizer
sideração primacial do todo em relação às
intrínseca da arte literária. Os gêneros fo-
partes, da globalidade da natureza humana
ram considerados como realidades autôno-
como explicativa da ordem de funciona-
mas que, de certo modo, transcendiam e
mento da pessoa humana.
deixavam na sombra os autores e as obras.
O que ocorreu na evolução da psicolo-
O que fora, para Taine, a ação determinante
gia, sucedeu com a estética e com a critica.
da raça, do meio e do momento, passava O fenômeno literário, em particular, que
a ser, para seus sucessores, a ação de um aqui nos interessa, beneficiou grandemen-
determinado tipo de expressão literária. te dessas; novas tendências à psicologia do
Deslocava-se a ação exterior do terreno físi- conjunto humano, e a clássica diferenciação
co-natural ou histórico para o terreno psico- em gêneros, de tipo digamos assim parale-
lógico e estético, mas se mantinha o critério lístico, começou a ceder a uma concepção
da ação determinante de fatores exteriores. ao mesmo tempo mais unitária e mais com-
Passava-se do mesologismo ao tipologismo, plexa. Acentuava-se, como em psicologia, a
A e vo l u ç ã o d o c o n to n o B r a si l   •  147

noção do conjunto ou do complexo – ter- exemplo, aplicou ao teatro, na sua falsa e


mo que desde então ia adquirir uma enor- rígida aplicação das normas aristotélicas ao
me popularidade – mas ao mesmo tempo palco pós-renascentista.
se multiplicavam os caminhos estéticos O Conto, nisso tudo, não desaparece
individualizados pelos quais cada autor e na voragem da insurreição antigenérica,
mesmo cada obra vinha adquirir uma au- mas ganha uma elasticidade que só pode
tonomia, que a estética determinista, tanto redundar em seu benefício, quando bem
geobiossociológica como tipológica, não utilizada. Pois bem sabemos que no fundo
consentia que tivessem. E assim se chegou de todas as intermináveis e insolúveis dis-
à atual fenomenologia literária, em que a cussões e oposições entre escolas literárias
noção de gênero literário chega a ser radi- e filosofias estéticas, há sempre uma inva-
calmente negada, já que cada autor e cada riável marcada pelo imprevisto: o talento
obra constituem um caso à parte e em cada criador. Onde ele existe, sejam quais forem
um se combinam todos os tipos e se criam, as regras e as concepções, a obra será nova
sobretudo, tipos novos que não correspon- e duradoura. Se não existir, não serão elas
dem, de modo algum, já não digo à rígida jamais, em hipótese alguma, que provoca-
delimitação de fronteiras genéticas da criti- rão o aparecimento de uma obra de gênio.
ca tradicional, mas ainda mesmo a qualquer Todos os sistemas são bons, contanto que
tentativa de conservação dos tipos, sob ou- se coloquem a serviço da genialidade ou,
tros pontos de vista não mais intrínsecos, quando menos, do talento. Não há fór-
mas extrínsecos, não mais necessários, mas mulas de beleza nem fronteiras impostas
acidentais, não mais determinantes, mas à intrínseca liberdade de invenção, que é a
condicionantes. A uma solução extremada própria lei natural do espírito no plano da
sucedeu, como sempre, outra igual no ex- criação estética.
tremo oposto. E como a verdade é sempre O gênero literário é, pois, uma conven-
proporcional, acredito que a solução verda- ção, mas não de todo arbitrária. O Conto,
deira está não em repudiar pura e simples- por exemplo, é normalmente uma obra de
mente o conceito de gênero literário, mas ficção. Mas pode corresponder a uma rea-
em reduzi-lo às suas proporções relativas. lidade, sem por isso negar-se a si próprio.
A poesia, portanto, não será indiferencia- É uma obra de ficção em prosa, mas pode
da da prosa, mas terá os seus limites extre- acidentalmente ser escrita em verso, como
mamente alargados, de modo a compreen- o faria Artur Azevedo, sem por isso perder
der todo um mundo de novas variações do de todo a sua caracterização.
verso, com que a métrica clássica, romântica É, finalmente, uma obra curta de ficção
ou mesmo simbolista, nem sonhava. em prosa. O tamanho, portanto, represen-
A prosa, por sua vez, tem os seus do- ta um dos sinais característicos de sua di-
mínios tão alargados como os da poesia, e ferenciação. Podemos mesmo dizer que o
as suas províncias marcadas por um movi- elemento quantitativo é o mais objetivo dos
mento constante de interpenetração, que seus caracteres. O romance é uma narrati-
de modo algum se submete à rígida delimi- va longa. A novela é uma narrativa média.
tação fronteiriça, que o neoclassicismo, por O conto é uma narrativa curta. O critério
148  •  Alceu de Amoroso Lima

pode ser muito empírico, mas é muito, ver- pede a elasticidade do estilo. O conto, a sua
dadeiro. É o único realmente positivo. Não intensidade.
há, naturalmente, qualquer norma métrica Essas e outras são manifestações quali-
que determine a fronteira entre o conto e tativas que fazem do conto, dentro da reali-
a novela, e entre esta e o romance. É uma dade e da tenuidade do conceito, um gêne-
apreciação puramente relativa e impossível ro à parte, mais próximo da oratória ou do
de ser reduzida a qualquer medida rigorosa. teatro do que do próprio romance, como
Tanto assim que os povos de língua inglesa bem observou Josué Montelo em relação
empregam o termo novel para o romance, ao teatro, exatamente porque no palco e na
eliminando, pois, a distinção entre romance tribuna a lei que rege é a da ação, ao passo
e novela, que os latinos, entretanto, esta- que no romance é a da narração e, portan-
tuem com toda razão, desde que, com isso, to, da ação diluída na descrição. A caracte-
não pretendam restabelecer qualquer rigi- rização do conto foi, aliás, admiravelmente
dez na diferenciação dos gêneros ou qual- desenvolvida pelo sr. Herman Lima, nas suas
quer excesso de sutileza, sempre prejudicial Variações sobre o conto (1952), onde há
como quem corta cabelos em quatro ou uma síntese magnífica da história do conto
na América Latina e especialmente no Bra-
se perde nos arcanos dos “abstracteurs de
sil, às quais remeto o leitor para uma me-
quintessence”, de que falava Rabelais.
lhor informação sobre o assunto.
A diferenciação genérica do conto, por-
Eis aí, a meu ver, os limites dentro dos
tanto, é apenas quantitativa?
quais é sempre legítimo tratar do conto
Não creio. A meu ver, essa diferenciação
como um tipo literário à parte e objeto de
quantitativa, que é primacial, arrasta consi-
várias localizações, como será o caso neste
go, dentro de seus limites, uma diferencia-
programa estabelecido pela Academia Bra-
ção qualitativa. Embora mantendo o critério
sileira para o curso de 1956. Eis aí, também,
da máxima elasticidade, para que a forma
as notas que me parecem características do
não prejudique a forma, como na aurora da
gênero, ao qual pertencem as obras que
revolução modernista advertiu o precursor
serão oportunamente estudadas analitica-
Manuel Bandeira, acredito em um reflexo
mente e nesta introdução vamos considerar
qualitativo no conto proveniente de sua ca-
apenas em conjunto e com citações apenas
racterística de narrativa pouco extensa.
exemplificativas.
Esse reflexo qualitativo se traduz de vá-
rias maneiras. Enquanto no romance o tem-
po domina o espaço, no conto a primazia Período colonial
pertence ao espaço sobre o tempo. O conto Se o teatro, a poesia, a oratória, a histo-
é uma narrativa por natureza rápida. O ro- riografia e o próprio romance floresceram,
mance é naturalmente lento. No romance entre nós, embora modestamente, durante o
deve predominar o espírito analítico. No período colonial, não aparece o conto senão
conto, o espírito sintético. O romance se sob a forma anônima e popular. No gênero,
desenrola em extensão. O conto, em pro- a literatura oral antecipou-se à literatura es-
fundidade. O romance, por isso mesmo, crita, a obra anônima (quanto é possível o
A e vo l u ç ã o d o c o n to n o B r a si l   •  149

anonimato, mesmo na oralidade literária) à santista Alexandre de Gusmão – por pau-


obra pessoal, a produção popular à expres- pérrimo que fosse, é certo que houve ao
são culta. Podemos, pois, dizer que em nos- menos um romance escrito por brasileiro
sas letras, como em todas as literaturas do durante a era colonial. Ao passo que con-
mundo, as estórias precedem as histórias, já tos só o povo os ... contou. E precisamos
que o conto, afinal, é uma narrativa, por con- esperar pelo advento do Romantismo para
seguinte, uma história contada. O povo se o vermos surgir, escrito e assinado em nos-
exprime naturalmente, tanto em prosa como sas letras. Bem sabemos, aliás, pelo exem-
em verso. Mas enquanto o verso popular é plo do que fizeram na Europa os Irmãos.
naturalmente longo, a prosa é naturalmente Grimm, quanto o gênero novelesco popu-
curta. De modo que o conto é a forma es- lar influiu na evolução do classicismo para
pontânea da prosa popular, ao passo que o o romantismo.
romance vai ser uma consequência culta da No aparecimento do conto de origem
transformação dos longos poemas épicos. pessoal em nossas letras não houve, entre-
O conto é, portanto, uma forma literária tanto, a mesma influência da literatura oral.
da maior antiguidade, em todas as literatu- Foi com a novela Amância, de Domin-
ras, de modo que não admira que em nós gos Gonçalves de Magalhães, em 1841, e,
seja ele, sob a forma das estórias e dos mi- no mesmo ano, em As duas órfãs, de Joa­
tos populares, uma forma também primitiva quim Norberto, que o gênero se ensaiou
da nossa formação literária. Ao passo que a
pela primeira vez em nossa terra. Não eram
forma culta e individual do conto, essa falta
romance, nem a rigor conto. Mas eram mais
durante todo o período colonial só vai apare-
este que aquele. E, aliás, de uma absoluta
cer quando a nossa literatura se nacionaliza.
mediocridade literária, como o foram os Ro-
mances e Novelas, que Joaquim Norberto
de Sousa e Silva ia publicar em 1852. Se a
II essas acrescentarmos os contos e novelas,
O conto romântico e realista mais ou menos lendários, publicados por
Como se sabe, o romantismo é a ex- Bernarda Guimarães (Lendas e romances,
pressão do nosso nacionalismo literário. E de 1871; Histórias e tradições da província
é, também, a ocasião do aparecimento do de Minas Gerais, de 1872 e A ilha maldi-
gênero novela curta em nossa literatura. ta, de 1879), teremos o quadro sumário do
Por mais pobre, por paupérrimo mesmo, que o romantismo nos deu na gênero. O
que fosse o romance colonial – representa- sentimentalismo barato encontra aí terreno
do, a rigor, por uma só obra, as famosas fértil por onde se estender. E essas páginas
Aventuras de Diófanes, de 1752, do ciclo têm hoje valor puramente histórico.
da telemacomania europeia e, portanto, de Entretanto, um valor tiveram: começa-
espírito totalmente europeu, e cuja autoria, ram a vencer o preconceito colonial contra o
depois de ter sido, com motivos sérios, atri- romance, cuja entrada era vedada nas alfân-
buída à irmã de Matias Aires, parece vol- degas e cuja posse, nas escassas bibliotecas
tar hoje de novo ao seu legítimo autor, o do tempo, era clandestina e representada,
150  •  Alceu de Amoroso Lima

em sentido amplo, pelas “Metamorfoses” consagrado, na segunda metade do século,


de Ovídio ou pela “Diana” de Montemor. como o maior dos nossos contistas: Macha-
As historietas sentimentais ou lendárias do de Assis.
desses primeiros românticos, entretanto, Tanto no romance como no conto, Ma-
ajudaram a introduzir o gênero entre nós. E chado de Assis passou gradativamente do
o romance nasceu com o Romantismo. Nas- pior para o melhor. Seus contos mais anti-
ceu e floresceu. Ao contrário do conto, que gos são de 1861, e o primeiro volume deles
mal nasceu, definhou. E é de notar mesmo publicado, Contos Fluminenses, é de 1870,
que os dois maiores romancistas românti- do ano anterior ao em que oficialmente ter-
cos, José de Alencar e Macedo, nunca ten- mina o Romantismo com a morte de Castro
taram o conto, embora Viuvinha e cinco mi- Alves. Mas como uma escola literária nunca
nutos, a estreia de Alencar fossem novelas. morre em ano certo, toda essa década de
A peculiaridade natural do sentimentalismo 1870 a 1880 ainda é marcada pelo signo
romântico como que esbarrava diante das romântico. E quando, em 1873, o autor das
exigências intrínsecas do gênero, contrárias Crisálidas comparece com um novo livro de
a essas expansões fantasistas e ao estilo histórias curtas, a que dá o titulo bem ro-
derramado. Talvez seja esta a explicação da mântico de Histórias da meia-noite, ainda
extrema pobreza do conto romântico. é em pleno hoffmanismo que se manifes-
Houve, entretanto, uma exceção. E ex- ta o espírito dominante do novo contista,
ceção de grande classe: Alvares de Azeve- que em pouco se consagrará como até hoje
do. Esse gênio singular de nossas letras, por inex­cedido nessa arte do romance em mi-
onde passou deixou a marca do seu dedo niatura. E a miniatura, no caso, não é ape-
de gigante. E há um século, em 1855, apa- nas uma redução de tipo, como anterior-
recia esse pequeno grande livro póstumo mente já tivemos ocasião de anotar.
Noite na Taverna, que, embora calcado nos O romantismo, no conto brasileiro, se
contos fantásticos e tão tipicamente ro- não nos deixou senão um livro notável, com
mânticos que Hoffman e Heine mandavam Noite na Taverna, que é, por assim dizer,
da Alemanha, representa até hoje o que a síntese do nosso Romantismo em prosa,
de melhor se escreveu, entre nós, de con- prestou dois outros serviços às nossas letras:
to romântico, inspirado essencialmente no venceu o preconceito antirromanesco e re-
espírito de exuberância e de exaltação ao velou o maior dos nossos contistas.
mesmo tempo sensual e fantástica.
O exemplo do poeta genial e malfada-
do não ficaria isolado. Fagundes Varela, por
O conto realista
volta de 1860, imita em Ruínas da glória Machado de Assis não se enquadra em
o gênero do conto fantástico e no ano se- escola alguma. Mas se tomarmos o termo
guinte, no Recife, Franklin Távora publica a realismo em seu sentido lato, e particular-
Trindade maldita, contos inspirados no mes- mente se o distinguirmos do naturalismo
mo estilo. que Machado sempre repudiou, podemos
Mas o Romantismo ainda inspiraria as dizer que o autor de Memórias póstumas
primeiras tentativas daquele que iria ser de Brás Cubas ia, em 1880, não só dar novo
A e vo l u ç ã o d o c o n to n o B r a si l   •  151

rumo ao romance brasileiro, deslocado o encontramos ainda uma intensificação ima-


seu centro de gravidade da natureza para ginativa, pelos domínios do sádico, do alu-
o homem, mas igualmente orientar o conto cinante, do imprevisto, que mostram como
em outro sentido, radicalmente diverso da- o Romantismo de Hoffman, de Byron ou de
quele que o Romantismo lhe inspirara. Poe marcaram, para sempre, o espírito cria-
A realidade exterior passava a ter uma dor do autor do Alienista.
preeminência que no Romantismo cabia O conto ia ser, aliás, o próprio processo
à imaginação e o conto ia cada vez mais típico do espírito machadiano, naturalmen-
orientar-se no sentido do que Zola chamou te inimigo da prolixidade, da solenidade
“une tranche de vie”. literária, da exuberância expressiva e, por
É certo que, pela sua própria natureza isso mesmo, espontaneamente inclinado ao
de arte concentrada, também a vida ob- estilo parabólico nos próprios romances, em
servada, que era afinal o ponto de partida que cada capítulo como que possui autono-
tanto do Realismo como do Naturalismo, ia mia e a narrativa romanceada se desenrola
assumir no conto um tipo e um estilo dife- como um colar de contos. Em Machado de
rentes dos que prevaleciam no romance. A Assis a realidade e a fantasia se conjugam,
própria necessidade de concentração pro- cimentadas pelo “humour”, para converter
vocava uma deformação consciente e uma a sua obra como contista numa espécie de
seleção de pontos agudos da realidade, que encruzilhada de toda a história do gênero,
sempre tornaram o conto, mesmo realis- em nossas letras.
ta, uma reprodução muito intensificada da A essa encruzilhada é que vai ter o Ro-
realidade exterior e permitiram sempre, no mantismo de um Álvares de Azevedo, como
conto, a expansão mais franca da fantasia. dela vai partir o Realismo de um Lucio de
É o que vemos, de modo particular, Mendonça ou de um Artur de Azevedo a
nos contos de Machado de Assis. Nos seus partir de 1889, data em que ambos publi-
primeiros livros de 1870 a 1873, já nome- cam os seus primeiros livros de contos: Es-
ados, – bem como nos Contos recolhidos boços e perfís e Contos possíveis.
e nos Contos esquecidos, que Magalhães Já desde 1882, Garcia Redondo em Ar-
Júnior este ano (1956) retirou do justo es- minhos e Valentim Magalhães em Quadros
quecimento em que quase todos jaziam no e Contos, bem como Xavier Marques, na
Jornal das Famílias, na Estação ou na Gaze- Bahia (Histórias simples, 1886), marcam
ta Literária – o sentimentalismo romântico essa década de 1880 a 1890 como sendo
domina inteiramente. a que ia lançar a moda do conto realista,
Mas nos livros seguintes: Papéis avulsos mesclado de fantasia romântica, que en-
(1882), Histórias sem data (1884) ou Vá- contraria tanta aceitação no grande público
rias Histórias (1896), e nos subsequentes, e ia constituir, nas décadas seguintes, um
a observação da realidade humana não dos elementos fundamentais da nossa pro-
só se torna infinitamente mais aguda e o dução bibliográfica e da literatura ligeira do
sentimentalismo cede, completamente, ao grande público.
“sense of humour”, que é precisamente Nessa mesma década estreava a nossa
o oposto da exibição sentimental – mas primeira contista feminina, dona Júlia Lopes
152  •  Alceu de Amoroso Lima

de Almeida, com os Traços e lluminuras de


III
1887. E no último ano dessa década, inicia-
va a sua carreira o mais fecundo dos contis- O conto Regionalista e
tas nacionais, Coelho Neto, que iria dar, a Simbolista
partir de Rapsódia de 1891 e das Baladilhas
Cabe nesta resenha do conto brasilei-
de 1894, uma série considerável de histó-
ro registrar, à parte, uma corrente que, se
rias e fantasias, reunidas em livros sucessi- bem enquadrada dentro do que podemos
vos, cerca de trinta, até os Contos da Vida e chamar o conto realista, constitui realmente
da Morte de 1928, ou as novelas da Árvore um grupo diferente, dada a sua natureza
da Vida, já próximo do fim de sua prodigio- particular: o conto regionalista.
sa vida literária. Como a palavra está indicando, esse
Em Coelho Neto se fundiam, aliás de tipo de conto é caracterizado pela primazia
novo, como em Machado de Assis, embo- da paisagem, do homem do povo e da lin-
ra num clima literário completamente ou- guagem paradialetal.
tro, várias correntes estéticas. Se no autor Já no Romantismo, vamos encontrar pre-
de Histórias sem Data eram o Romantismo, núncios desse tipo de narrativa. Franklin Tá-
o Realismo e o “humour” que formavam vora, na A Casa de Palha de 1866, e Apoliná-
a sua encruzilhada – iam ser, no autor de rio Porto Alegre, em Paisagens (1874), bem
Treva (1906), o Realismo, o Regionalismo e como os irmãos Queiroga, com suas lendas
o Simbolismo. e cantatas populares, nos dão no Norte, no
O Realismo, aliás, ainda revelaria novos Centro e no Sul do Brasil, e ainda marcados
contistas, nesse fim do século XIX, como pelo gosto romântico, as primeiras notas des-
Medeiros e Albuquerque, que publica em se gênero particular de narrativa, que teria,
1898 Um homem prático, em 1900 Mãe depois do Realismo, tão numerosos cultores.
Tapuia e foi um dos típicos representantes Em 1886, na fase de transição do conto
do nosso conto mais estritamente liga- romântico para o realista, dá-nos José Verís-
do à lição zolista das “tranches de vie”. simo, nas Cenas da vida amazônica, as pri-
Aluízio Azevedo, aliás, que foi afinal o mais mícias de um regionalismo amazônico, tão
típico representante do naturalismo entre fecundo em obras do gênero, até hoje, pela
nós, dá-nos apenas dois livros de contos, própria peculiaridade da região descrita. Mas
Demônios, de 1893, e Pegadas, de 1897, foi Inglês de Sousa, em 1893, com mais vo-
ambos inferiores, de muito, à sua obra ro- cação ficcionista que o critico paraen­se, que,
manesca. nos Contos Amazônicos e dentro dos câno-
O conto realista, de influência simbo- nes do realismo, iria acentuar a importância
lista, iria, aliás, entrar pelo período pré- da corrente regionalista. E, em 1894, Coe-
-modernista adentro, especialmente com a lho Neto nos dava essa pequena obra-prima
obra de Tomás Lopes (Histórias da Vida e de conto regional que é Praga.
da Morte, 1907; Caras e corações, 1910) e Nessa última década do século XIX é
com a de Paulo Barreto (Dentro da noite, que se revelariam, em Minas e São Paulo, os
1910; A mulher e os espelhos, 1914) e ou- dois grandes contistas, até hoje considera-
tros menores. dos como os verdadeiros criadores do conto
A e vo l u ç ã o d o c o n to n o B r a si l   •  153

regionalista entre nós: Afonso Arinos e Valdo- Dois anos antes, estreara, ainda no Rio
miro Silveira. Este, só a partir de 1920, reuniria Grande, outro contista regional, que se
os seus escritos há muito já divulgados: Cabo- inspira ainda no seu ambiente local, Alci-
clos (1920); Nas Serras e nas furnas (1931); des Maia, com Ruínas vivas (1910); Tapera
Mixuangos (1937); Lereias, (1945), de modo (1911); e Alma bárbara (1922).
que só recentemente ficou seu nome consa- O gênero “pegou”, como se diz, do
grado junto ao de Afonso Arinos. Norte ao Sul. A busca da originalidade local,
Este último, porém, desde 1898, com tanto na paisagem como na linguagem, vai
o seu pequeno volume Pelo Sertão se con- constituir o elemento principal não só dos
sagrou como um exímio cultor do conto mestres do conto, mas ainda dos pequenos
sertanejo, de um regionalismo, aliás, muito imitadores, já que o público respondeu com
pouco realista e num estilo próprio, por ve- agrado ao gênero novo, misto também de
zes oratório mas em geral realizando uma realidade e fantasia, mas acentuando os as-
particular transposição da linguagem popu- pectos exteriores e verbais da expressão.
lar para o estilo clássico, que lhe é peculiar, Quando surge, portanto, Monteiro Loba-
sem perda da simplicidade e do pitoresco to, em 1918, depois do período de incubação
exigidos pelo gênero. local, só então revelado ao grande público, o
Já no início do século XX, como que es- conto regionalista já é um gênero absoluta-
timulado pelo êxito imenso dos Sertões, de mente vitorioso, em todas as zonas culturais
Euclides da Cunha, (1902) o Regionalismo do Brasil. De modo que os Urupés, ao conse-
toma vulto e nos dá alguns grandes con- guirem o êxito retumbante e merecido que
tistas novos, como Alberto Rangel, com os alcançaram, não vêm abrir novos horizontes,
seus novos contos amazônicos, retomando mas alimentar – com o talento próprio do
a tradição de Veríssimo e Inglês de Sousa: In- autor e o seu realismo romântico, inspirado
ferno Verde, 1908; Sombras n’água, 1914; em Camilo Castelo Branco, e, acima de tudo,
que mais tarde se desdobrariam em livros na sua vivência local do homem e da paisa-
menos regionais, mas sempre marcados por gem das margens do Paraíba – uma corrente
uma forte dose de nacionalismo literário. que já então se tornara nacional e constante.
Gustavo Barroso, em 1912, publica a sua E já se tornara, nesse período inicial do sécu-
lo XX, anterior ao advento do Modernismo,
Terra de Sol, um dos livros mais afamados
pode-se dizer que a nota dominante e mais
da época, todo ele imbuído da realidade
original de nossas letras, trazendo-nos a voz
cearense, seguido mais tarde de novas pá-
do extremo Oeste, pelos contos goianos das
ginas de análoga inspiração, como A Balata
Tropas e boiadas, de Hugo de Carvalho Ra-
(1913); Praias e várzeas (1915); Mula sem ca-
mos, ou de novo a voz do sertão mineiro de
beça (1922); Alma sertaneja (1923) etc.
Alberto Deodato, nos Canaviais, ambos de
Ao passo que no extremo Sul, e na mes-
1916, se não me engano.
ma data, estreia outro regionalista, Simões
Lopes Neto, que recolhe o conto popular
como seu instrumento de expressão literá- O conto simbolista
ria, com os Contos Gauchescos, de 1912, e O conto simbolista não ia ter, nem de
as Lendas do Sul, de 1913. longe, a repercussão e a fecundidade, tanto
154  •  Alceu de Amoroso Lima

do conto realista como do conto regionalis- – com a sua prosa do Missal e, no ano da
ta. O Simbolismo ia constituir uma corrente sua morte tão prematura, com a de Evoca-
marginal em nossas letras, dominadas, des- ções (1898), que deu ao conto um senti-
de o seu aparecimento, na última década mento lato, uma forma inédita, que o iria
do século XIX, pela nota típica do Realismo distinguir radicalmente do realismo domi-
e do Regionalismo. nante. Essa forma mista, de poesia e prosa,
De modo que não encontramos entre iria diluir os contornos próprios do conto e
os simbolistas a mesma messe relativamen- diferenciá-lo ainda da tradição romântica.
te abundante que os seus colegas das duas Não era apenas o primado da imaginação
outras tendências nos oferecem. Mas o e do sentimento, ou mesmo da imaginação
conto simbolista tem as suas particularida- lúgubre ou satânica, da tradição hoffmania-
des próprias. E acima de tudo a impregna- na. Era, realmente, uma diluição dos limites,
ção da prosa pela poesia, que lhe é absolu- uma abolição dos contornos da realidade
tamente típica e distingue esse gênero de e do estilo, e até o início do “monólogo”
conto, dos que o Realismo e o Regionalis- interior, como Eugênio Gomes e Andrade
mo inspiraram. Ao passo que o prosaísmo Murici apontaram com razão em Adeli-
era intencionalmente cultivado pelo conto no Magalhães (Casos e Impressões, 1916;
dominante naquela época, os simbolistas Visões, Cenas e Perfis, 1918; Tumulto da
reagiam e acentuavam, pelo contrário, o vida, 1920 etc.) – que o conto simbolista
ambiente poético, o estilo etéreo, a dilui- vinha trazer como contribuição nova à tra-
ção da realidade ao sonho. De modo que dição romântico-realista do nosso conto.
o conto simbolista – que apesar de escasso A messe foi pequena. Além das páginas
ainda domina de muito o romance simbolis- da Rocha Pombo e Cruz e Souza, como ini-
ta – representa de certo modo aquela fusão ciadores do novo tipo de conto, até as de
da poesia e da prosa, com que sonharam Adelino de Magalhães, já em pleno pré-
alguns românticos. E procuraram na som- -Modernismo, só encontramos algumas
bra o caminho para o conto mais moderno, cenas de Virgílio Várzea, o companheiro de
inspirado sobretudo em Tchecov, como o Cruz e Sousa mas tão inferior a ele (Mares e
conto realista se inspirara em Maupassant. campos, 1893; Contos de amor, 1895; Histó-
Desde 1892, Rocha Pombo, que afinal rias rústicas, 1904 etc.) e as páginas efême-
só ficou como historiador em nossas letras, ras de Gonzaga Duque (Horto de mágoas,
publica no Paraná, contos de tipo simbo- 1914) e Lima Campos (Confessor supremo,
lista, embora só em 1905 nos desse o seu 1004). As histórias do bem e do mal (1936)
estranho romance O hospício e em 1911 os de Tristão da Cunha, que de certo modo se
seus Contos e pontos de idêntica inspira- prendem a essa tradição simbolista, já se
ção, sem repercussão alguma no ambiente apresentam em outro momento de nossas
realista ou mundano daquele fim do bur- letras e talvez, por isso mesmo, igualmente
guesismo literário. abafadas pelo novo espírito dominante, de-
Foi Cruz e Sousa, entretanto, desde o pois da revolução modernista, como os seus
ano de sua estreia em 1893 – que ia marcar antecessores o tinham sido antes da revolu-
o advento do Simbolismo em nossas letras ção... Pouco antes de morrer, aliás, e com ele
A e vo l u ç ã o d o c o n to n o B r a si l   •  155

o simbolismo propriamente dito, Alphonsus O realismo social de um Lima Barreto


de Guimaraens publicava um pequeno livro contrasta radicalmente com outro mestre
de contos Mendigos (1921) que embora sem do conto urbano, de uma geração anterior,
aumentar a sua glória de poeta, completava Artur Azevedo, a quem já fizemos menção.
a pequena safra do conto simbolista. Seus Contos possíveis (1889) e seus Contos
Coelho Neto, dissemos, participa um efêmeros (1897), bem como os que publi-
pouco dessas duas modalidades de conto, cou em jornais e revistas do início do século e
em sua obra numerosa e desigual no gêne- foram mais tarde reunidos em volumes pós-
ro. Mas o que nele domina, afinal, é um re- tumos (Conto em verso, 1909; Contos cario-
alismo espiritualizado, descritivo e oscilante cas, 1929; Contos fora de moda, 1955) – são
entre o conto urbano e o conto rústico dos bem o reflexo da época em que foram escri-
regionalistas. tos. Não se pode dizer que fosse uma época
sem problemas, pois o princípio da República
O conto realista urbano foi agitado, e Artur Azevedo, longe de ser
E por falar no conto urbano, como con- um absenteista, foi um florianista ardente e
traponto ao conto rústico, convém, sob esse refletiu em seus versos e sua prosa, tipica-
titulo, destacar as figuras de Lima Barreto e de mente urbanista, os acontecimentos da épo-
Humberto de Campos, já quase no limiar da ca. Mas seu humorismo refletia um tempe-
nova fase de nossos letras, a partir do movi- ramento amável e de um bom humor, bem
mento modernista. Mas precisamente porque como um ambiente social sem complexidade
se mantiveram ambos, como Monteiro Loba- e sem sombra da dramaticidade que o mun-
to, apesar de modernos, contra o Modernis- do inteiro, inclusive o nosso Brasil, assumiu
mo, merecem uma rápida menção à parte. depois de 1914, seis anos após a morte do
Não deixaram messe abundante nesse espirituoso autor das famosas revistas do
terreno. Lima Barreto se imortalizou como ano, a que ligou para sempre o seu nome.
romancista, Humberto de Campos como O urbanismo humorístico dos contos es-
cronista. Ambos, porém, cultivaram tam- pirituosos mas superficiais de Artur Azeve-
bém o conto e a ele trouxeram, cada qual a do está no plano oposto ao do urbanismo
seu jeito, uma contribuição importante. trágico do “humour” de Lima Barreto, no
Lima Barreto (Histórias e sonhos, 1920; qual já se refletem as tremendas preocupa-
Clara dos Anjos e alguns contos, 1940), veio ções revolucionárias que o movimento so-
trazer ao conto urbano e especialmente ca- cialista e os acontecimentos mundiais mar-
rioca uma nota grave do impacto social, que cados pela guerra de 14 e pela revolução de
desde a última década do século começara 17 iam desencadear. São dois urbanismos
a delinear-se com a corrente socialista de traduzidos em contos literários do mes-
Curvelo de Mendonça, Elísio de Carvalho, mo período pré-modernista e inclusos no
Batista Cepelos, Fábio Luz etc., de um mar- mesmo clima realista, que dominava desde
ginalismo oposto ao do grupo simbolista, e 1880, mas de tipo completamente diverso.
tanto um como outro relegados a segundo Como ainda de outro tipo iam ser os
plano pelo Realismo, pelo Naturalismo, pelo outros contos urbanos de Humberto de
Regionalismo dominantes. Campos. Neste era o espírito do século XVIII
156  •  Alceu de Amoroso Lima

francês e a paixão “literária” que iriam de- o realismo com o simbolismo, tanto o con-
terminar o estilo dos seus primeiros contos, to urbano como o conto regionalista iriam
na fase do “Conselheiro XX”. O nome de prosseguir, pois representam modalidades
contos aplicados a essas anedotas mais ou de expressão, tanto individual como am-
menos picarescas, inspiradas no libertinis- biental, que se repetem indefinidamente.
mo e nas “marivaudages” de França e no Mas o clima do mundo ia mudar comple-
alexandrinismo helênico – pode ser con- tamente. E as mesmas correntes anteriores
testável, mas cabe também a esse tipo de já não seriam as mesmas depois da guerra.
prosa curta de ficção. E o espírito urbanista, Esta já aparecia, aliás, no título de um
representado pelos costumes cosmopolitas contista do Norte, que iria contribuir para o
de uma civilização requintada ou deca- gênero, com vários volumes. Era o contista
dente, é que neles domina. Bem diferente, e romancista pernambucano Mário Sette,
portanto, seja do urbanismo social de Lima que estreava em 1917, com o conto Ao
Barreto, seja do urbanismo galhofeiro de clarão dos obuzes, cujo título bem traduz
Artur Azevedo. Aliás, como se sabe, o estilo a tragédia universal que ia mudar o clima
de Humberto de Campos iria mudar radical- intelectual do mundo moderno.
mente depois de 1928 e particularmente da E com isso entramos em plena luta mo-
revolução de 30, e seus dois últimos livros dernista.
de contos propriamente ditos (O Monstro
e Outros contos, 1932, e A Sombra das Ta-
mareiras, 1934), já refletem um ambiente e
IV
um estado de espírito muito mais represen- O conto modernista
tativos do século XX agônico (o que não é o Na primeira geração modernista, os três
mesmo que agonizante), do que do século escritores que se impuseram logo como
XVIII libertino e despreocupado. contistas foram: Ribeiro Couto, Menoti-del-
E com isso se despedia o pré-Moder- -Picchia e Antônio de Alcântara Machado.
nismo com seus contistas regionalistas, ur- Os dois primeiros publicaram livros de
banistas ou historicistas (como um Viriato contos e novelas no próprio ano que marca
Correia, que fez da história do Brasil maté- a fronteira do modernismo – 1922; Ribei-
ria para tantos contos didáticos ou simples- ro Couto com os contos de A casa do gato
mente pitorescos), todos eles na linha do cinzento e de O crime do estudante Batis-
realismo ou do simbolismo, das duas cor- ta, aos quais se seguiram mais tarde outros
rentes, objetivista ou subjetivista, que desde que o classificariam como um dos clássicos
a última década do século XIX dominavam do conto moderno entre nós (Baianinha e
as nossas letras. Outras mulheres, 1927; Clube das esposas
A guerra de 14, como se sabe, ia ser o enganadas, 1933; Largo da Matriz, 1940)
grande divisor de águas, tanto sociais como – e Menotti-del-Picchia, com a novela A
literárias. O século XIX terminava e com ele mulher que pecou, sem a mesma sequência
as suas preferências estéticas. Ia abrir-se do anterior, mas sem abandonar o gênero e
um novo cenário. Não que o estilo anterior reunindo todos, em 1946, sob o título cole-
cessasse de todo. Bem pelo contrário, tanto tivo de Contos.
A e vo l u ç ã o d o c o n to n o B r a si l   •  157

Ribeiro Couto trazia ao gênero a sua sen- tradição realista do século XIX do que à re-
sibilidade de poeta. Mas coube a Antônio de novação estilística do modernismo, mas são
Alcântara Machado, com Brás, Bexiga e Barra dois contistas de pulso, que se incorporam,
Funda (1927) e com Laranja da China (1928), perfeitamente, dentro do seu próprio feitio,
trazer para o gênero um estilo novo, já ensaia- ao movimento modernista.
do em seu primeiro livro de crônicas de via- Ainda nesse mesmo ano de 1922 outro
gem “Pathé Baby” (1926) mas que adquiria prosador moderno se revela, escolhendo o
na “short story” uma mestria que consagrou conto como sua forma e expressão: José
o seu autor como o maior prosador da primei- Geraldo Vieira, com a Ronda do Deslum-
ra geração modernista. A frase curta, incisiva, bramento, mas seria mais tarde como ro-
original, fixava de modo inesquecível tanto os mancista, a partir de Mulher que Fugiu de
aspectos cômicos como os aspectos trágicos Sódoma, que se iria impor como autêntico
ou os aspectos indistintos da vida paulista, valor da nova escola.
e os seus contos constituíram realmente um Nessa mesma década e logo no ano se-
acontecimento novo e o anúncio real de uma guinte ao famoso 22, surge ao Norte um
nova fase para o gênero. contista que vinha alistar-se como uma nova
Mário de Andrade também não deixou voz da velha corrente regionalista, mas já com
de a cultivar, embora sem a originalidade certos toques do novo estilo, que a Revolução
de Antônio de Alcântara Machado, ora de 22 trouxera. Era o paraense Peregrino Jú-
reunindo em Primeiro andar (1929) páginas nior, com Vida fútil de 1923, ainda inexpres-
de sua própria fase pré-Modernista, ora já sivo, e que só em 1929, já no alvorecer da
com o seu estilo brasileiro inconfundível, segunda fase modernista, nos daria os contos
dando-nos alguns textos de forte estrutura fortes de Pussanga (1929), de Matupá (1933)
em Balazarte (1934) e outros reunidos de- e de Histórias do Amazonas (1939), que o
pois de sua morte, no volume Contos No- consagraram como o maior dos regionalistas
vos (1947). Dos grandes prosadores dessa do Modernismo, nessa tão expressiva confi-
primeira geração, só Oswald de Andrade guração amazônica, que Alberto Rangel tinha
nunca se inclinou para a história curta, pre- iniciado no século XX, como já vimos e ao
ferindo sempre o romance. qual Raimundo de Morais, entre outros me-
Dois outros contistas dessa primeira nores, trazia em 30 uma preciosa colaboração
geração modernista estrearam com gran- com o País das Pedras Verdes (1930) e as His-
de êxito nessa década dos 20: um no Rio, tórias Silvestres de 1939.
Gastão Cruls, com o livro Coivara (1920), Se tomarmos a década de 30 como re-
seguido de Ao embalo da rede (1923) e veladora da segunda geração modernista,
História puxa História (1938), e outro em como se deu tipicamente com a poesia e a
S. Paulo, Afonso Schmidt, com Brutalidade, prosa nordestina, dois nomes se destacam:
desse mesmo ano de 22 (que foi realmente Luís Jardim, com a sua Maria Perigosa, de
um dos mais fecundos e decisivos de nossa 1935, e Rodrigo Melo Franco de Andrade,
história literária) e outros posteriores, como com os Velórios, de 1936.
Os impuros (1923), Pirapora (1924), Curian- Ambos se consagraram logo como dois
go (1936) etc. Ambos se prendiam mais à contistas incisivos, bem dentro da natureza
158  •  Alceu de Amoroso Lima

teórica do gênero e de raro gosto literário, geração. Para verificar o acerto dessa afir-
como na era realista o tinha sido Mário de mação, basta percorrer as páginas da bi-
Alencar, com os seus Contos e Impressões de bliografia do conto brasileiro preparada pela
1920. Todos três, embora de gerações dife- professora Maria José de Trindade Negrão,
rentes, pertenciam a essa categoria requin- da Faculdade Nacional de Filosofia, as de
tada de escritores que pouco escrevem, por Hermam Lima, já citado, ou as da “Pequena
amor exagerado à perfeição e por uma auto- Bibliografia Crítica da Literatura Brasileira”
crítica tão exigente, que se arrisca a levar ao (2.a ed. 1955), incomparável contribuição à
anticoncepcionismo literário, segundo aque- nossa história literária, de Otto Maria Car-
la velha sentença do poeta Sully Prudhome: peaux, esse homem de cultura universal,
“Le gout de la perfection stérilize”. A esse que tudo leu e vem esmerilhando o nosso
grupo pertence Anibal Machado, contista de patrimônio literário com um carinho e uma
raras qualidades, que já na década seguin- minúcia bibliográfica que em geral faltaram
te nos daria com Vila Feliz (1944) outro dos aos nossos críticos e historiadores e a quem
nossos clássicos modernos no gênero. devem, portanto, às nossas letras, serviços
No início dessa década dos 30, surgia inestimáveis. Vemos aí, embora longe de ser
em São Paulo Galeão Coutinho, com os completa a resenha das obras publicadas
contos do Semeador de Pecados (1931), no gênero, como o conto vem sendo cada
nos quais um dos traços típicos da segunda vez mais cultivado, desde o advento do Mo-
geração modernista, a preocupação social, dernismo. Aqui não fazemos menção, pela
se fazia notar. própria natureza desta visão sumária e pa-
No mesmo ano, e portanto integrando norâmica, senão dos que parecem mais re-
essa segunda geração modernista que já sur- presentativos.
gia dentro do novo ambiente literário iniciado Um que o foi, na primeira linha dessa
em 22, outra revelação, tanto em quantidade nova “escola mineira”, surgiu com a se-
como em qualidade, era a de Marques Rebe- gunda geração modernista, foi sem dúvida
lo, como os contos de Oscarina (1931), se- João Alphonsus, um dos filhos do poeta e
guidos mais tarde por Três caminhos (1933) tão prematuramente falecido em 1944, que
e Stela me abriu a porta (1942), em que a nos deu, em 1931, essas pequenas joias da
finura psicológica se exprimia por um estilo Galinha cega, seguida em 1941 de A pes-
próprio e sutil. Ainda pela mesma época, e ca da baleia e, em 1943, do seu canto de
mesmo precedendo os anteriores, encontra- cisne Eis a noite. A morte o levou, como a
mos o excelente contista Origenes Lessa, que Antônio de Ancântara Machado, muito jo-
estreava em 1929 com O Escritor Proibido e vem. Mas ambos deixaram provavelmente
continuaria a cultivar o gênero, com engenho o melhor de sua obra, e com ela marcan-
e graça maliciosa, durante a década seguinte, do o Modernismo como sendo, de todas
nos seus livros: Garson, Garçonette, Garço- as nossas escolas literárias, salvo a exceção
nière (1930), A cidade que o diabo esqueceu de Machado de Assis, o eterno solitário,
(1931) e Passatrês (1936). aquela que nos revelou os nossos melho-
Já agora, com o Modernismo consagra- res contistas. Como que a forma curta do
do, vemos crescer consideravelmente o nú- gênero se adequava, de modo perfeito, ao
mero de contistas, tão escassos na primeira estilo conciso, penetrante e pitoresco, “en
A e vo l u ç ã o d o c o n to n o B r a si l   •  159

pointe”, como dizem os franceses, tão típi- Magalhães Júnior, Fran Martins, Joel Silveira,
co da nossa prosa a partir de 1922. Josué Montelo (cujo Fio da Meada é do ano
Já então nos chegam grupos de contis- passado). José Condé (cujas Histórias da cida-
tas dos Estados, durante essa década 30- de morta são de 1951 e Os dias antigos, de
40, como, por exemplo, do Rio Grande do 1955), Breno Accioly (cuja estreia, em 1944,
Sul, cuja literatura custou a destacar-se na com João Urso, tão típica, já foi seguida em
produção do resto do país – embora nela 1949 dos Cogumelos, e no ano passado, por
integrada, como demonstrou Guilhermino Maria Pudim), Braga Montenegro etc., esses e
César, na sua excelente História da Litera- outros representam a parte nórdica, se assim
tura do Rio Grande do Sul, até o limiar do podemos dizer, da abundante messe de con-
século XX, mas que ultimamente vem des- tos que tão fortemente caracterizam a prefe-
contando o tempo perdido e só nessa dé- rência do modernismo e do neomodernismo
cada revelava contistas diferentes e de va- por esse tipo de prosa.
lor, como Dionélio Machado, como Ernani
Fornari, como Reinaldo Moura, como Darci
V
Azambuja (que estreara com os contos re-
gionais de No Galpão, em 1925), como Au- O conto neomodernista
gusto Meyer (que além de agudo poeta e Já agora nos encontramos, para termi-
mestre da crítica humanista nos deu os seus nar, na década de 1950 e, por conseguin-
Segredos de infância, contos publicados em te, na fase atual de nossas letras. O critico
1949, já no fim do movimento Modernis- Heráclito Sales observou, com razão, a esse
ta), Ciro Martins, Telmo Vergara (que desde respeito, que a prosa neomodernista só ago-
o Seu Paulo convalesce, de 1934, nos deu ra está chegando àquela mutação profunda
mais de meia dúzia de livros de contos), Ivan que o Modernismo de 22 trouxera, de cho-
Pedro Martins, Vargas Neto etc. fre, à poesia. Sem entrar na análise das várias
Do Nordeste e do Norte, que apareceram correntes (três), que ele aponta nos contistas
como se sabe, depois de 30, com uma flora- do Neomodernismo – por destoar do méto-
da em que os nomes já hoje universalmente do panorâmico que adotamos, por força das
consagrados de Raquel de Queirós, de José circunstâncias e por inclinação pessoal, neste
Lins do Rêgo, de Jorge Amado ou de José estudo limitamo-nos a nos valer de sua aná-
Américo de Almeida preferiram sempre o ro- lise, para confirmar-nos na convicção de que
mance ao conto, para nos darem a réplica o conto vem sendo gradativamente o gênero
dos carrascais às coxilhas – de lá também nos preferido da maioria dos prosadores moder-
veio, para a ampla colheita do conto moder- nos, entre nós, salvo as exceções apontadas
nista, uma boa contribuição. e outras de marca, como Otávio de Faria,
Basta citar o nome do mais famoso dos Jorge Amado, Érico Verissimo, Gustavo Cor-
“nordestinos literários”, o já hoje clássico Gra- ção, grandes romancistas que até hoje des-
ciliano Ramos, que, além dos seus romances, denharam o conto.
nos deu, no mesmo inconfundível estilo, en- Já vimos, entretanto, que outros grandes
tre 1944 e 1947, os contos de Histórias de romancistas e poetas cultivaram também
Alexandre, Dois dedos, Histórias incomple- ou continuam a cultivar a “short story”. Em
tas, e Insônia, Jorge de Lima, Osvaldo Orico, Minas, cuja contribuição ao gênero, senão
160  •  Alceu de Amoroso Lima

tão abundante como no Sul e no Norte, é dois livros de contos, Saragana, de 1946, e
também considerável, podíamos logo citar Corpo de Baile, deste ano de 1956, cons-
o caso de Lúcio Cardoso. É certo que o au- tituem um dos conjuntos literários mais
tor de Luz no subsolo preferiu a novela ao típicos dessa renovação do Modernismo,
conto. Mas a novela é, afinal, a média en- posterior à morte de Mário de Andrade, em
tre os dois tipos opostos de prosa de ficção, 1945. Não é porventura, à toa, que a estreia
de modo que participa um pouco de cada de Guimarães Rosa se deu logo no ano se-
um: quantitativamente, do conto e, qualita­ guinte, e com um livro de contos, dez anos
tivamente, do romance. Mais próxima, por- depois continuado pela nova messe do Cor-
tanto, do romance que do conto. Por isso po de baile, o que mostra uma preferência
mesmo é que um romancista avesso ao con- significativa pelo gênero.
to, como Érico Verissimo, já nos deu uma Em ambos esses livros, Guimarães Rosa
novela, Noite (1954), e Lúcio Cardoso várias, se revelou uma personalidade singular, que
desde Mãos Vazias de 1938, até a Professora opera como que a ligação entre polos opos-
Hilda de 1946. Mas nesse mesmo ano, nos tos de nossas letras: o regionalismo e a uni-
dava os contos de O Anfiteatro, indo pois versidade, e entre as duas vertentes mais
além dos romancistas puros. Osvaldo Alves, diferenciadas dos nossos modernos ficcio-
outro romancista mineiro, nos dava, em 45, nistas, os formalistas e os socializantes.
os contos de Uma Luz na Enseada, na mes- No autor de Saragana como que concor-
ma sensibilidade social do seu romance. rem as duas tendências opostas. Os temas
Ainda de Minas, um poeta máximo, como de seus contos são regionais, tanto no ma-
Carlos Drummond de Andrade – que escreve terial humano típico, como na linguagem e
tão bem em verso como em prosa, na linha, na acentuação da paisagem. Mas o seu re-
aliás, da maioria dos nossos grandes poetas gionalismo é de um tipo muito diferente dos
modernos (Mário de Andrade, Jorge de Lima, regionalistas anteriores. E a sua diferença
Manuel Bandeira, Ribeiro Conto, Augusto está precisamente na acentuação do cará-
Frederico Schmidt, Augusto Meyer Menotti- ter universal das suas tendências profundas.
-del-Picchia, Tasso da Silveira) – publica, em O Regionalismo é, por natureza, particula-
1951, os seus deliciosos Contos de aprendiz, rista. Está para a ficção de ambiente largo,
ao passo que a nova geração nos dá alguns de tipo nacional ou para-nacional, como a
dos nossos melhores contistas neomoder- crônica está para a história. Em Guimarães
nos, como Murilo Rubião, com O ex-mágico; Rosa, entretanto, esse localismo é apenas
Fernando Sabino, já famoso como cronista, aparente. E o que surge, por baixo dos tra-
com Os grilos não cantam mais (1941) e A ços particulares e descritivos, é uma preocu-
vida real (1952); Oto Lara Resende, com O pação filosófica e, portanto, universal.
Lado Humano, de 1943; Valdomiro Autran Se isso ocorre com a forma interior dos
Dourado, que estreou como novelista, em seus contos, o mesmo se dá com a expres-
1947 (Teia), passando a romancista e a con- são estilística. O monólogo e o diálogo –
tista nas suas recentíssimas Três histórias na aquele de caráter introspectivo e este de
praia, do ano passado, e outros. caráter transitivo – se interpenetram de
Menção especial merece o nome de modo que o seu estilo, tão inconfundível
Guimarães Rosa, também mineiro, e cujos e que, aparentemente, se colocaria entre
A e vo l u ç ã o d o c o n to n o B r a si l   •  161

os formalistas puros, se forra a qualquer já hoje se acham tão próximas as nossas ve-
evasão lírica interiorizada para se manter lhas gerações.
dentro das fronteiras da prosa e da comu- O mais recente dos nossos contistas,
nicabilidade, naturalmente misteriosas ou aliás, o jovem e notável estreante Samuel
ambíguas. Seus contos representam, por Rawet, com seus já tão discutidos Contos
isso mesmo, o acontecimento até agora do imigrante (1956) se encontra nitidamen-
mais representativo do gênero, desde o te nessa linha. E o poeta e tradutor Osvaldi-
advento do Neomodernismo. E mostram no Marques, num penetrante estudo sobre
como a prosa sintética do conto é realmen- o livro, acentuou, com razão, a infiltração
te o gênero aparentemente preferido pela poética no domínio da prosa curta que esse
mais moderna geração, dentro da sua varie- livro representa como contribuição original.
dade e riqueza de tendências. Estas, entre- No extremo oposto e logo no primeiro
tanto, parecem marcadas bem nitidamente ano da década de 50, estreava Gasparino
por aquelas duas vertentes acima aponta- Damata, com a Queda em Ascenção e que
das: a vertente formalista e a vertente socia- nos contos subsequentes de A sombra no
lizante. A primeira de predomínio lírico e a mar e Caminhos da danação, do ano passa-
segunda de tendência extrovertida. do, trazia à vertente social uma contribuição
A década de 50 vem sendo, portanto, original e forte, nesse horizonte marinho e
muito rica em contistas dos dois tipos. praieiro, no qual Xavier Marques, desde as
Um dos primeiros, senão o primeiro, suas Histórias simples de 1886 até as Terras
que bem originalmente marcou a tendência Mortas de 1936, com o seu momento cul-
lírica, quero crer que foi o sr. Paulo Novais, minante dos Praieiros de 1902, bem como
com os contos da Noite em sete de 1953 e Virgílio Várzea, haviam sido como que os
Burgo de 1954. Não foi à toa que estreara bandeirantes, no mesmo tipo de história
como poeta (Fios, 1950). A corrente lírica curta. Mas que distância entre a simplicida-
vem penetrando até hoje a sua obra e dan- de desses contistas e a complexibilidade dos
do ao seu estilo aquela marca inconfundível de hoje! Mesmo os que não se aventuram
que veio dar à prosa neomodernista, espe- pelos domínios da gramaticalidade metaló-
cialmente no domínio do conto, o sabor re- gica – que os filólogos de amanhã terão de
volucionário que teve a poesia de 1922 em acrescentar às clássicas divisões da gramá-
diante. A prosa neomodernista é que está tica, como os matemáticos de hoje tiveram
hoje, porventura, concorrendo de modo de acrescentar os domínios não euclidianos
mais original, para dar ao atual momento ou não arquimedianos às regiões clássicas da
literário uma feição não apenas de pós-Mo- geometria – mesmo esses são infinitamente
dernismo, mas realmente de começo de al- mais complexos que os seus predecessores.
guma coisa nova no curso de nossa história A literatura e as artes, em geral, não
literária, com “crise” ou sem crise, segundo podiam escapar ao enriquecimento, e às
as opiniões, como sempre divergentes ou extralimitações da ciência contemporânea,
antagônicas, dos próprios autores. O futu- especialmente das ciências físicas e da psico-
ro se encarregará de os reconciliar, mesmo logia. De modo que o novo estilo do conto
antes daquela “pontualidade” especial de neomodernista está perfeitamente na linha
que nos falava o velho Machado e de que não só dos novos rumos da poesia e da prosa
162  •  Alceu de Amoroso Lima

moderna, de Rimbaud a Dylan Thomas ou publicados depois de 1946, isto é, do apa-


Ezra Pound e de Lautréamont a Joyce ou Kaf­ recimento de Saragana (que foi de certo
ka, bem como dos novos horizontes abertos modo o indicador dos novos rumos) e sem
pelo mundo subconsciente, pelo mundo pre- a pretensão de lista rigorosa e completa.
ternatural e pelo mundo sobrenatural, e ain- 1946 – Guimarães Rosa, Sagarana
da pelas revoluções sociais contemporâneas, – Graciliano Ramos, Histórias
à tradição, digamos assim, horizontal do re- incompletas
alismo ou mesmo do simbolismo do século – L ucio Cardoso, A professora Hilda
XIX até a guerra de 14. (Novela) O anfiteatro
E com isso, aparece um novo estilo, com – Xavier Placer, Doze histórias curtas
indefinidas variações individuais, sem dúvi- – Eduardo Campos, A face iluminada
da, mas ao qual os linguistas norte-america- – Fran Martins, Noite feliz
nos dão o nome global de idioleto e Matoso – Menotti-del-Picchia, Contos
Câmara define como sendo: “a língua usada (ed. completa)
por um indivíduo com fatos gramaticais que 1947 – Graciliano Ramos, Insônia
divergem da norma” (“Dicionário dos Fatos – Almeida Fischer, Horizontes
Gramaticais”, 1956, p. 119). noturnos
Entre nós, o movimento modernista e –M  ário de Andrade, Contos novos
particularmente o neomodernista, não só (ed. póstuma).
refundiram completamente o estilo da poe- 1948 – Helena Silveira, Contos a esmo
sia e da prosa, mas nesta última deram à 1948 – L ígia Fagundes Teles, O cacto
vermelho
narrativa curta uma preferência e uma ori-
1949 – Breno Accioly, Cogumelos
ginalidade de expressão – especialmente
– Augusto Meyer, Segredos da infância
o Neomodernismo – que fazem do conto
– Afonso Schmidt, O retrato de
atual, como do teatro, os dois gêneros por-
Valentina
ventura mais no espírito da nova geração.
1950 – D inah Silveira de Queirós, As noites
E em ambos os momentos, Modernismo e
no Morro do Encantado
Neomodernismo provocaram a interpene-
– Francisco Brasileiro, O urubu
tração de prosa e poesia: no Modernismo,
– Almeida Fischer, O homem de duas
a poesia se fez prosa; no Neomodernismo a cabeças
prosa se faz poesia. – Lúcia Benedetti, Vesperal com chuva
Se quisessemos apenas enumerar os li- 1951 – C arlos Drumond de Andrade,
vros de contos de estreantes, quase todos, Contos de aprendiz
durante a meia década de 50 a 55, equiva- –G  asparino Damata, Queda em
leriam quase ao número de livros do gênero ascenção
publicados na primeira metade do século XX. – J osé Condé, Histórias da Cidade
A titulo apenas de documentação do Morta
asserto acima, seja-me permitido mencio- – José Saldanha Coelho, Mural
nar alguns dos autores e títulos que vieram 1952 – Clarice Lispector, Alguns contos
tornar a messe Neomodernista do contos a – Fernando, Sabino, A vida real
mais abundante de toda a nossa história li- –C  arlos Castelo Branco, Continhos
terária. Refiro-me apenas a livros de contos brasileiros
A e vo l u ç ã o d o c o n to n o B r a si l   •  163

1953 – José Saldanha Coelho, O Pátio Poderia acrescentar vários outros de que
– Otto Lara Resende, O lado humano tenho nota, durante o decênio. Mas o que
– Mauricio Caminha de Lacerda, ali fica já basta para o que pretendo. Essa
Contos provincianos enumeração seca, sucinta, incompleta, em
– Helena Silveira, Mulheres, que obras de valor desigual e de tendências
frequentemente... opostas se aproximam pelo denominador
– Miguel Salim, Alguma gente cronológico comum, vem apenas documen-
– S. Gomes de Matos, Contos da tar, como ficou dito, a afirmação de que o
grã-cidade
conto, como o teatro, é porventura a nota
– Almeida Filho, A Ilha
distintiva da prosa neomodernista.
1954 – Paulo Novais, Burgo
O que Daniel Rops, em artigo recente,
– Constantina Paleólogo,
refere do conto em França, aplica-se, perfei-
Os condenados
– Renard Perez, Os Sinos tamente, ao Brasil de nossos dias:
– Ricardo Ramos, Tempo de espera O lugar bizarro que o conto ocupa no gosto
do público francês é um motivo de constante
– Antônio Accioly Neto, A vida não
espanto. Não há semanário que não publique
é nossa
um, todos os números e os chefes de redação
– Luíz Canabrava, Sangue de Rosaura
passam uma boa parte do seu tempo à pro-
1955 – Breno Acioli, Maria Pudim
cura de bons contos. Realmente, o leitor tem
– Carlos David, O Diário de Segismundo
uma predileção especial por essas narrativas de
– Jones Rocha, Décima praga
uma página (in “Jornal do Brasil”, 17-VI-1956).
– Assis Brasil, Conto do cotidiano triste
O mesmo se poderia dizer dos Estados Unidos.
– Maurício Caminha de Lacerda,
Quatro histórias Mas, enquanto Rops informa que os
– Hélcio Alves de Araújo, Vida alegre editores franceses, ao contrário dos jornais
– Joaquim Gonçalo do Amarante, e revistas, publicam poucos livros de contos,
Pedrinho Tanoeiro vemos que aqui se passa o contrário, e tanto
– Valdomiro Autran Dourado, Três os suplementos como os editores da década
histórias na praia de 50 mostram como o gênero está em ple-
– Dilermando Duarte Cox, Massagana no fastígio e corresponde, provavelmente,
– Vasconcelos Maia, O cavalo e a rosa às inclinações da geração neomodernista e
–M  aria Vanderlei Meneses,
ao seu estilo de vida e de linguagem mais
O pecado de Maria Quitéria
direto, mais complexo, mais “idiolético”,
– F. Magalhães Martins, O açude
mais adequado tanto ao Lirismo como ao
– Beatriz Rocha, o Parque de diversões
Realismo, tanto à angustia como ao cinismo
– Ivan Pedro Martins, Do campo
e da cidade da vida moderna.
– Josué Montelo, Fio da meada Eis porque, nesse panorama sumário e
– Gasparino Damata, A sombra do tão cheio de lacunas, da evolução do conto
mar caminhos da danação no Brasil, podemos dizer, concluindo, que
– José Condé, Os dias antigos em nenhum momento de sua história al-
1956 – Guimarães Rosa, Corpo de baile cançou ele o prestígio, a fecundidade e, sal-
(2 vols.) vo pontos culminantes como o de Machado
– Samuel Rawet, Contos de imigrante de Assis, a qualidade dos nossos dias.
Petit Trianon – Doado pelo governo francês em 1923.
Sede da Academia Brasileira de Letras,
Av. Presidente Wilson, 203
Castelo – Rio de Janeiro – RJ
PATRONOS, FUNDADORES E MEMBROS EFETIVOS
DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS
(Fundada em 20 de julho de 1897)
As sessões preparatórias para a criação da Academia Brasileira de Letras realizaram-se na sala de redação da
Revista Brasileira, fase III (1895-1899), sob a direção de José Veríssimo. Na primeira sessão, em 15 de dezembro
de 1896, foi aclamado presidente Machado de Assis. Outras sessões realizaram-se na redação da Revista, na
Travessa do Ouvidor, n.o 31, Rio de Janeiro. A primeira sessão plenária da Instituição realizou-se numa sala do
Pedagogium, na Rua do Passeio, em 20 de julho de 1897.

C a d e i r a P at r o n o s Fundadores Membros Efetivos


01 Adelino Fontoura Luís Murat Ana Maria Machado
02 Álvares de Azevedo Coelho Neto Tarcísio Padilha
03 Artur de Oliveira Filinto de Almeida Joaquim Falcão
04 Basílio da Gama Aluísio Azevedo Carlos Nejar
05 Bernardo Guimarães Raimundo Correia José Murilo de Carvalho
06 Casimiro de Abreu Teixeira de Melo Cicero Sandroni
07 Castro Alves Valentim Magalhães Cacá Diegues
08 Cláudio Manuel da Costa Alberto de Oliveira Cleonice Serôa da Motta Berardinelli
09 Domingos Gonçalves de Magalhães Magalhães de Azeredo Alberto da Costa e Silva
10 Evaristo da Veiga Rui Barbosa Rosiska Darcy de Oliveira
11 Fagundes Varela Lúcio de Mendonça Helio Jaguaribe
12 França Júnior Urbano Duarte Alfredo Bosi
13 Francisco Otaviano Visconde de Taunay Sergio Paulo Rouanet
14 Franklin Távora Clóvis Beviláqua Celso Lafer
15 Gonçalves Dias Olavo Bilac Marco Lucchesi
16 Gregório de Matos Araripe Júnior Lygia Fagundes Telles
17 Hipólito da Costa Sílvio Romero Affonso Arinos de Mello Franco
18 João Francisco Lisboa José Veríssimo Arnaldo Niskier
19 Joaquim Caetano Alcindo Guanabara Antonio Carlos Secchin
20 Joaquim Manuel de Macedo Salvador de Mendonça Murilo Melo Filho
21 Joaquim Serra José do Patrocínio Paulo Coelho
22 José Bonifácio, o Moço Medeiros e Albuquerque João Almino
23 José de Alencar Machado de Assis Antônio Torres
24 Júlio Ribeiro Garcia Redondo Geraldo Carneiro
25 Junqueira Freire Barão de Loreto Alberto Venancio Filho
26 Laurindo Rabelo Guimarães Passos Marcos Vinicios Vilaça
27 Maciel Monteiro Joaquim Nabuco Antonio Cicero
28 Manuel Antônio de Almeida Inglês de Sousa Domício Proença Filho
29 Martins Pena Artur Azevedo Geraldo Holanda Cavalcanti
30 Pardal Mallet Pedro Rabelo Nélida Piñon
31 Pedro Luís Luís Guimarães Júnior Merval Pereira
32 Araújo Porto-Alegre Carlos de Laet Zuenir Ventura
33 Raul Pompeia Domício da Gama Evanildo Bechara
34 Sousa Caldas J.M. Pereira da Silva Evaldo Cabral de Mello
35 Tavares Bastos Rodrigo Octavio Candido Mendes de Almeida
36 Teófilo Dias Afonso Celso Fernando Henrique Cardoso
37 Tomás Antônio Gonzaga Silva Ramos Arno Wehling
38 Tobias Barreto Graça Aranha José Sarney
39 F.A. de Varnhagen Oliveira Lima Marco Maciel
40 Visconde do Rio Branco Eduardo Prado Edmar Lisboa Bacha
C o mp o s t o em Frutiger Light 9,5/13,5 pt; C i ta ç õ e s , 9 / 1 2 pt

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