Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Diretora/Editora
Rosiska Darcy de Oliveira
Conselho Editorial
Carlos Diegues
Zuenir Ventura
Joaquim Falcão
Antonio Cicero
Produção Editorial
Monique Cordeiro Figueiredo Mendes
Editora Assistente
Cristina Aragão
Pesquisa Iconográfica
Anselmo Maciel
Revisão
Cesar Murilo Rocha
Direção de Arte
Felipe Taborda
Projeto Gráfico
Felipe Taborda
Augusto Erthal
Editoração Eletrônica
Estúdio Castellani
Diretoria
Presidente
Merval Pereira
Secretário-Geral
Antonio Carlos Secchin
Primeiro-Secretário
Geraldo Carneiro
Segundo-Secretário
Antônio Torres
Tesoureiro
Paulo Niemeyer Filho
Membros Efetivos
Alberto da Costa e Silva, Alberto Venancio Filho, Ana Maria Machado, Antonio Carlos Secchin,
Antonio Cicero, Antônio Torres, Arnaldo Niskier, Arno Wehling, Carlos Diegues, Carlos Nejar,
Celso Lafer, Cicero Sandroni, Domício Proença Filho, Eduardo Giannetti, Edmar Lisboa Bacha,
Evaldo Cabral de Mello, Evanildo Cavalcante Bechara, Fernanda Montenegro, Fernando
Henrique Cardoso, Geraldo Carneiro, Geraldo Holanda Cavalcanti, Gilberto Gil, Godofredo
de Oliveira Neto, Heloísa Buarque de Hollanda, Ignácio de Loyola Brandão, João Almino,
Joaquim Falcão, Jorge Caldeira, José Murilo de Carvalho, José Paulo Cavalcanti Filho,
José Sarney, Marco Lucchesi, Marcos Vinicios Vilaça, Merval Pereira, Paulo Coelho,
Paulo Niemeyer Filho, Ricardo Cavaliere, Rosiska Darcy de Oliveira, Ruy Castro, Zuenir Ventura.
Esta a glória que fica, eleva, honra e consola.
Machado de Assis
Telefones
Geral +(55-21) 3974 2500
Setor de Publicações +(55-21) 3974 2525
publicacoes@academia.org.br
www.academia.org.br
ISSN 0103707-2
Sumário
ABRIL MAIO JUNHO 2023
FASE X • ANO II • N.° 115
Editorial
Rosiska Darcy de Oliveira
Inteligência artificial
Glauco Arbix
IA: medo das máquinas ou dos desacertos humanos? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8
Luiz Alberto Oliveira: Entrevista a Rosiska Darcy de Oliveira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16
Christian Perrone
Ficção, Amor e Memória: será a inteligência artificial humana? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27
Lucia Santaella
Consequências Humanas da Inteligência Artificial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31
Ideias
José Miguel Wisnik: Entrevista a Rosiska Darcy de Oliveira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 36
Retrato de Suassuna
Zuenir Ventura
O homem que retirou as aspas da cultura popular . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48
Ariano Suassuna
Suassuna, por ele mesmo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55
Mário Hélio Gomes
Os motivos de Anteu em Ariano Suassuna . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 62
Carlos Newton Júnior
O universo visual de Ariano Suassuna . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66
Gerson Camarotti
“A literatura foi o caminho que eu encontrei para enfrentar essa bela tarefa de viver.” . . . . . . . . 75
Escritas
Patrícia Melo
Sobre o que você escreve? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 78
Alberto Mussa
Quem está diante do espelho? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81
Marcelo Rubens Paiva
Do começo ao agora . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87
Maneiras de dizer
Arquitetura
Renato Anelli
Para ler Lina Bo Bardi . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91
Grafismo
Felipe Taborda
Ver, rever e escutar para entender . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97
Artes plásticas
Carlos Senna Figueiredo
Revoluções da arte brasileira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 100
Poesia
Antonio Cicero
Sobre Gregório de Matos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 104
Biblioteca
Marco Lucchesi
Ode à Biblioteca . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107
Ciência
José Carvalho de Noronha
O Direito à Saúde e a Construção do SUS – O Sistema Único de Saúde . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 110
Achados
Ignácio de Loyola Brandão
Eliane Lage, destemida, forte, livre . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 133
Ruy Castro
1923 – Quando o Brasil entrou no ar. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 144
Israel Beloch
Como tombou um gigante . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149
Celebrações
Ruy Castro
Discurso de Posse na ABL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 155
Livros
Antonio Carlos Secchin
Ana à esquerda e outros movimentos, Papéis de prosa, Papéis de poesia II . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 161
Godofredo de Oliveira Neto
O desenho extraviado de Hieronymus Bosch . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169
Mary de Camargo Neves Lafer
Engenhos da sedução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 172
Eliana Alves Cruz
A vestida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 174
6
Editorial
A
Ocupante da Cadeira 10 na Academia Brasileira de Letras.
Inteligência artificial
Glauco Arbix
Professor titular de Sociologia da USP. Pesquisador do Instituto de Estudos Avançados e
H
do Centro de Inteligência Artificial-USP-Fapesp-IBM. Ex-presidente do IPEA e da Finep
1 M K McBeath, D M Shaffer, M K Kaiser (1995). How baseball outfielders determine where to run to
catch fly balls. Science, April; Anthony Chemero (2011). Radical embodied cognitive science. Cambridge
(MA): MIT Press; Andrew Wilson and Sabrina Golonka (2013). Embodied cognition is not what you think
it is. Frontiers in Psychology, Vol 4, February.
10
A versão mais recente da OpenAI, o GPT-4, lançada em 2023, foi treinada com
base em uma escala inédita de dados e levou a Microsoft e seus pesquisadores a
considerar que o chatbot tem “sparks of artificial general intelligence”.3
Não foram os únicos. O Future of Life Institute, que promove estudos sobre
ameaças à Humanidade, colheu milhares de assinaturas para um manifesto sobre
os riscos que representam modelos como o ChatGPT, que incluía um pedido
de moratória de seis meses para conter o treinamento e expansão de novos
grandes “foundation models” que procuram combinar linguagem com o visual,
as imagens, sons e sistemas de busca, e que colocaram a IA atual em um novo
patamar tecnológico. Entre outras personalidades, Yoshua Bengio, Elon Musk,
Yuval Harari, Max Tegmark, Gary Marcus e Daron Acemoglu chamaram aten-
ção para riscos ainda maiores que as sociedades correriam, se o curso atual da
IA não fosse repensado.
Mais recentemente ainda, um grupo de especialistas, pesquisadores e lideran-
ças empresariais lançou um manifesto sucinto em que a IA surgiu como um dos
grandes riscos para a Humanidade: “Mitigar o risco de extinção pela IA deve ser
uma prioridade global, ao lado de outros riscos sociais, como as pandemias e a
guerra nuclear.”4
A crescente preocupação com o potencial da IA de causar danos à vida social se
baseia no fato que o ChatGPT e sistemas similares podem ser usados para espa-
lhar desinformação em grande escala ou para eliminar milhões de empregos. Os
temores são amplos, generalizados e mais do que justificados, ainda mais levando-
se em conta que a reação pública via governos apenas recentemente começou a se
manifestar, tanto nos países desenvolvidos quando nos emergentes.
O debate, porém, não se fixou apenas nesse ponto. Muitas personalidades que assi-
naram os atuais manifestos defendem que a IA tende a se aproximar cada vez mais
da inteligência humana e se tornar uma força poderosa o suficiente para provocar
turbulências sociais em alguns anos, se nada for feito para retardar sua evolução.
Certamente, as questões novas colocadas pelos “foundation models” certamente
não serão resolvidas em pouco tempo. Mas os alertas recentes ganharam repercus-
são mundial e amplificaram um debate que vem de longe sobre os perigos da IA.
Yuval Harari, filósofo israelense, entrevistado pelo jornal britânico The Tele-
graph5, reconheceu não saber se a Humanidade poderá sobreviver aos avanços
de tecnologias capazes de tomar decisões com autonomia. Eliezer Yudkowsky,
diretor do Machine Intelligence Research Institute, com sede em Berkeley (Califór-
nia), estendeu ainda mais as críticas e, em artigo na Time6, pediu o desligamento
de todos os equipamentos em que as tecnologias de IA mais poderosas são refina-
das para evitar que uma competição desleal resulte na extinção da humanidade
por máquinas superpoderosas.
O debate, recorrentemente, se dá em torno das fronteiras e defesas da sociedade
contra eventuais resultados da perigosa combinação entre falta de transparência,
3 “Centelhas de uma IA geral”, ou seja, capaz de operar em níveis, ainda que iniciais, de inteligência
humana. Cf. Sébastian Bubeck et al (2023). Sparks of Artificial General intelligence: early experiments
with GPT-4. arXiv: 2023.12712v5
4 Center for AI Safety. Statement on AI Risk. Maio, 2023. Seguem centenas de assinaturas que en-
globam dirigentes da OpenAI, da Google DeepMind, Anthropic e vários outros laboratórios e centros
de pesquisa.
5 Yuval Harari. “I don´t know if humans can survive AI”. The Telegraph, 23 April, 2023
6 Eliezer Yudkowsky. “Pausing AI developments isn’t enough. We need to shut it all down”. Time: March
29, 2023
12
7 Noam Chomsky, Ian Roberts and Jeffrey Watumull. The false promise of ChatGPT. The New York
Times, March 8, 2023
8 Por conta de resultados semelhantes, a revista The Atlantic publicou artigo com o sugestivo título
“The College Essay is Dead”, redigido por Stephen Marche, em sua edição de dezembro de 2022.
13
9 Murray Shanahan. Talking about Large Language Models. ArXiv, 2023 <https://doi.org/10.48550/
arXiv.2212.03551>
14
Inteligência artificial
Eu vejo temores bem fundados, são bem argumentados, já que falar é consti-
tutivo da sociabilidade humana, como nós sabemos. E agora, esse outro ou esse
outrem, que se tornou um interlocutor, maneja capacidades linguísticas, algumas
das quais muito além do nosso alcance. O ChatGPT leu toda a internet até dois
anos atrás, ele é um oráculo do passado. Infalível, mas do passado, um oráculo
para trás, mas infalível, e nenhum de nós é capaz de fazer isso, nem remota, nem
longinquamente. Assim como os sistemas artificiais já nos superavam em capa-
cidade de computação, haja vista que nunca mais haverá um humano campeão
nem em xadrez, nem em Go. O Go realmente é um jogo de estratégia, é uma sur-
presa, mas nunca mais vai ter, porque os sistemas artificiais já estão com capaci-
dade muito superior à de qualquer humano desarmado.
Eu entendo que esses temores acerca desse novo participante do diálogo, desse
novo interlocutor, realmente é uma coisa muita desestabilizadora, pelo impre-
visto que foi para a grande maioria das pessoas. Ele representa uma desestabili-
zação do status quo da civilização. A civilização estaria entrando em outro estágio,
no estágio mutacional, como gosta de dizer o Adauto Novaes. Agora haverá não
apenas algumas fontes de produção de conteúdo linguístico, conteúdo cognitivo,
conteúdo do pensamento, de entendimento, naturais, como tem sido, mas haverá
também essas outras fontes artificiais, por mais que elas ainda dependam de um
certo tipo de intervenção humana.
O que parece claro agora é que nós, os humanos, estamos passando a ficar a ser-
viço, passando de gestores a fornecedores de insumos para esses sistemas. Parece
que é o horizonte que se desenha. Então, é um momento surpreendente, porque
de um lado há esse alarmismo bem fundado, bem argumentado, que foi um dos
motivos da assinatura de uma proposta de interrupção da pesquisa em inteligên-
cia artificial por seis meses. Por outro lado, digo eu: Espera aí. Parar seis meses?
Isso quer dizer o quê? O que isso vai fazer de fato? Se não houver uma regulação
– e essa regulação tem que passar não só sobre os sistemas de razão artificial, mas
sobre sua aplicação, em particular, nas redes sociais – será incontrolável. Se não
houver uma regulação nas redes sociais, isso vai tornar esse ambiente inútil, um
ambiente impossível.
A outra questão, de fundo, que eu vejo, Rosiska, é que essas inteligências, esses
sistemas, estão em via de adquirir isso que a gente pode, efetivamente, chamar de
inteligência. Stephen Hawking definia inteligência, de maneira muito econômica,
como a capacidade de se adaptar a mudanças. Esses sistemas de hoje têm uma
autonomia ainda muito restrita, ainda são pouco capazes de se adaptar a mudan-
ças, mas isso caminha para se concretizar. Por isso é que o momento é de razão
sintética e mais à frente, pode ser em seis meses, pode ser em 50 anos, (é impre-
visível), os sistemas assumirão uma feição de autonomia, implicando inclusive a
capacidade inteligente de se adaptar a mudanças.
No momento, há uma histeria. O que os sistemas fizeram nos surpreendeu, mas
o foco efetivo da questão, a meu ver, não é esses sistemas estarem fazendo isso,
estarem falando: é estarem fazendo isso sob a égide de um capitalismo violentís-
simo. Ou seja, são quatro ou cinco megacompanhias, que não apenas administram
a interação, via redes sociais, de bilhões de seres humanos, como também são elas
que, fornecendo os recursos, estão adestrando, treinando, formatando esses siste-
mas de alta capacidade cognitiva segundo diretrizes exclusivamente da acumu-
lação e do extrativismo capitalista. Então é como se a gente estivesse vivendo a
expansão de um capitalismo onde o que mais importa é a administração da sub-
jetividade, de uma maneira radical.
18
Eu queria analisar essas duas afirmações. A primeira, que o alarme não é despro‑
vido de fundamento. Você separou o que chamou de razão sintética do que se
está chamando de inteligência artificial. Ao dizer que estamos no estágio da razão
sintética, mas avançando na direção da inteligência artificial, você alerta que esta‑
mos diante de um salto evolutivo possível e previsível. Aí, sim, poderia transfor‑
mar, enfim, uma inteligência artificial em um competidor da inteligência humana.
Ou cooperador.
Ou cooperador. Bom, eu acho que o que tem afligido muito, sobretudo, os cria‑
dores, é a ideia de que a criação, de que o ser humano é muito orgulhoso, por
exemplo, poetas, escritores, são muito orgulhosos da sua capacidade criativa,
de que essa capacidade possa ser equiparada, ou mesmo superada, por uma
máquina. Você acha isso possível?
Vamos tentar distinguir o que separaria uma capacidade criativa humana de uma
outra capacidade criativa do que quer que seja. Vamos tomar um exemplo, por exem-
plo, um médico. Um médico vai se formar, ele vai ter, vamos supor que ele seja um
médico, se especialize em exame de imagem, detecção de problemas. Então, a par-
tir de exame de imagem, ele vai ter um repertório, ao longo da sua formação ele vai
ter acesso a um certo número de pacientes, de exames. Ele sendo estudioso, vai con-
sultar outros especialistas, vão fornecer a ele mais dados, milhares de exames, de
um exame de imagem, de detecção de problema. Um dispositivo artificial vai pegar
todos os exames de imagem, todos os exames de imagem que estiverem na rede.
Todos. É o que faz o mecanismo de procura, tipo Google. Você diz: “Quero comprar
queijo da serra, de Portugal”, ele vai a todos os escaninhos em que houver menção
a queijo da serra, de Portugal, daqui ou na Cochinchina, ele vai indicar. Então esses
mecanismos artificiais estão sendo cada vez mais capazes. Hoje, eles competem com
os médicos na capacidade de diagnóstico. O que é diagnóstico? É a capacidade de
identificar um certo aspecto que remete a um padrão. Esses dispositivos são, fun-
damentalmente, reconhecedores de padrão, em uma escala já rigorosamente sobre-
‑humana. Um consórcio de médicos juntos não seria capaz de igualar essa capaci-
dade eletrônica, vertiginosa, de manipular tamanha quantidade maciça de dados.
De informação.
De informação. Então, veja: hoje nós passamos as últimas décadas, desde que a
eletrônica começou a fazer parte seriamente do nosso mundo, nós enriquecendo
19
o mundo com um fluxo de informação em uma medida jamais vista, jamais con-
cebida. A imprensa de Gutenberg, a disseminação de textos/livros que ela fez, a
mudança radical de mundo que ela promoveu, nem se compara à rapidez com
que está acontecendo hoje.
E a potência, não é?
E a potência. E hoje, em toda parte, nós estamos imersos em um oceano de fluxo
de dados, de todos os tipos, nossos e dos outros. Ora, nós não somos capazes de
acessar esses fluxos de dados, como não somos capazes de acessar a luz ultravio-
leta que as abelhas vêem, está fora do nosso mundo próprio, de nossa capacidade
cognitiva desarmada. Então cada vez mais haverá afazeres cujo acesso nos era até
então limitado, as capacidades humanas serão suplementadas e depois supera-
das por capacidades artificiais. Eu dei o exemplo da Medicina porque me parece
inquestionável que melhores diagnósticos são uma coisa boa, não acho que haja
quem possa argumentar contra, dizendo “não, quero diagnósticos piores”.
Mas isso não é uma faca de dois gumes? Essas tecnologias eficientes não escon‑
dem uma outra face?
Você vai querer os melhores diagnósticos, você vai querer os melhores pilotos
de avião, você vai querer os melhores motoristas de caminhão, mas aí começando
encarar o problema que é, nos Estados Unidos, o maior sindicato de trabalhado-
res são os motoristas de caminhão. Eles são cinco milhões, e estão todos em vias
de em uma década serem superados por sistemas artificiais de condução, que não
precisam dormir, que não precisam de aposentadoria, e vão otimizar o uso dos
veículos 24 horas por dia, sete dias por semana, até o desgaste completo deles. Ou
seja, o que vem por aí é um mundo no qual nós, humanos, nossos hábitos, nossos
nichos, nossas práticas, nossas visões, vão todos começar a ser deslocados.
E repito: o âmbito em que isso acontece, o contexto em que isso se dá, esse capita-
lismo terminalista é, a meu ver, o mais assustador. O que vão fazer os cinco milhões
de motoristas? Eles que se danem, porque não é função do capitalismo prover, ou
prever, esses trabalhadores. Então, esses sistemas estão nos colocando diante de um
limite do humano ao qual nós não estávamos alertas. Limite no qual não são ape-
nas certas classes que vão se tornar descartáveis, ou inúteis ou obsoletas, são vastos
contingentes humanos. Amplos contingentes. Acho que a questão é menos da fer-
ramenta, propriamente dita, e mais do contexto em que ela está sendo aplicada. A
gente pode imaginar futuros em que a inteligência artificial plena será uma colabo-
radora inestimável, como o exemplo da Medicina. Mas se isso for feito no contexto
em que só alguns podem ter acesso a essa medicina e os outros que se danem, onde
está o problema? Está no desenvolvimento da inteligência ou está no contexto em
que ela está sendo desenvolvida e para onde ela está sendo direcionada? No meu
entender, é menos uma questão técnica e mais uma questão política.
Quanto à questão da autonomia da tecnologia, acho, sim, que há um dinamismo
próprio aí, mas ele certamente tem a ver com esse contexto em que a tecnologia está
sendo forjada. O debate essencial sobre a tecnologia é sobre os seus usos e destinos.
Nós vamos chegar exatamente a essa questão. Ainda na primeira distinção que
fez, você trouxe um exemplo da ciência, da Medicina. Eu pergunto, você apli‑
caria esse mesmo raciocínio à criação artística?
É exatamente o ponto seguinte. Assim como a capacidade de discernir padrões
– que é, efetivamente, o que esses sistemas fazem de uma maneira extraordinária –
20
pode ser aplicada a cálculos numéricos, pode ser aplicada à análise de imagens,
identificação de padrões em formas, onde quer que seja. Essa capacidade começa
também a poder ser aplicada na síntese, na conjunção de vocábulos e sentido.
Os sistemas então começam de fato a serem autores literários.
Exatamente.
Não há marca, não há memória, não há cicatriz, não há dor. Então tudo isso
falta para que você tenha, efetivamente, um sistema, uma entidade, um sujeito
que sofreu, processou esse sofrimento, descobriu em si dimensões que desco-
nhecia. O que esses sistemas fazem é acumular, de uma maneira prodigiosa,
recombinar, também com incrível habilidade. E a novidade que eles produzem
é o antigo reciclado, exclusivamente. Daí a expressão que usei: são oráculos do
passado. Quando um grande matemático diz que o conhecimento é o relâmpago
em uma noite escura, ele é só um relâmpago, mas esse relâmpago é tudo. Esse
relâmpago, essa faísca, esse lume, é inteiramente ausente nesses sistemas, tais
como eles são hoje. Haverá alguma maneira de eles virem adquirir essa luz, esse
espírito? É possível que sim, o caminho que parece ser apontado é assim como
o do nosso sistema nervoso. Ele se implementa a partir do corpo. Nesse con-
tato com o corpo se enraiza um indefinido, um desconhecido, um imprevisto,
que a gente chama de inconsciente. Da mesma maneira, alguns desses sistemas
vão ter que incorporar, encorpar, passar a ter sensação, sentimento, memória,
memória do vivido.
Bela formulação.
Essa me parece ser ainda a distinção decisiva entre nossa cognição, nosso enten-
dimento, nosso pensamento e esses sistemas.
Então agora vou passar para o segundo ponto que você levantou. O ex‑presidente
do Google na China, Kai‑Fu Lee, aponta a perda de empregos e o aumento da
desigualdade como a grande ameaça da inteligência artificial, uma revolução
na economia e no nosso modo de vida, mais rápida e mais profunda do que a
descoberta da eletricidade, por exemplo. Exatamente o que você dizia há pouco,
a substituição do trabalho humano pelas máquinas, um aumento exponencial
da desigualdade de renda e poder entre os que controlam os algoritmos e os
descartáveis de todo tipo. Isso não começou com a inteligência artificial. Come‑
çou desde que a produção se tornou imaterial e isso já estava claro no livro
O Imaterial, de André Gorz. Apenas ganhou uma proporção global e tão imensa,
tão gigantesca, que eu pergunto se isso não caracteriza uma catástrofe mundial.
Você tem toda razão, trata‑se de um processo global, dos muitos processos globais
que passaram a acontecer há não tanto tempo assim. Temos uma rede de comunica-
ção global que instaurou um presente planetário, os acontecimentos passaram a ser
todos coexistentes, no mesmo instante, no mesmo momento, mesmo agora. O pla-
neta passou a habitar esse agora. Não era assim, você tinha distância para a informa-
ção sair daqui e chegar ali, agora é instantâneo. Por isso digo que a globalização, na
verdade, é essa instantaneidade do contato. Ela aboliu a geografia, aboliu distâncias
geográficas. É um processo global, mas principalmente é um processo de uma rapi-
dez avassaladora e exponencialmente crescente. Vamos pegar o exemplo do feuda-
lismo europeu. O feudalismo na Europa existiu e foi preciso a passagem de séculos
para que as massas camponesas passassem a ser massas de operários. Depois, já mais
rapidamente, as massas de operários passaram a ser o setor de serviços, formou uma
classe média, etc. Os processos históricos demoravam séculos. O que os sistemas de
processamento artificial de informação parecem estar fazendo é colapsar um número
enorme de mudanças em um prazo muito curto, de décadas, de anos. Antes, de algum
modo, a geração seguinte passava pela experiência que a geração anterior passou e
ia mais à frente. Havia uma possibilidade de acomodação, de adaptação. Já agora,
na mesma geração, 20, 25 anos, você vai passar para a singularidade da capacidade
humana de gerar texto, roteiro, peça, poesia. Você vai dizer: “Não, mas agora isso é
feito de maneira automática com um sistema, basta ter um computador ligado na
rede, que a rede faz para você”. E faz em um prazo muito curto.
Isso é o que me parece ser o aspecto mais decisivo, porque não há tempo de
adequação possível. Na mesma geração você tem de abandonar o livro, e agora
vai abandonar o computador que usa. Você vai ser usado pelo computador, o com-
putador se torna autônomo, ele faz as coisas para você. Então o que fica colocado
em questão tem a ver com as formas de sociabilidade, as formas de ação econô-
mica e política das quais, para o bem ou para o mal, nós participamos nessas últi-
mas décadas. Devido a esse processo de globalização, de unificação, a civilização
humana, em um átimo está mudando de estado. Enormes forças sociais estão hoje
desorientadas, desorganizadas, desestruturadas. Ninguém sabe muito bem o que
esse caldeirão pode fazer. Só nos resta, como você disse, antecipar que muito pro-
vavelmente venham a acontecer algumas catástrofes, esperemos que de menor
curso, de menor impacto. Os efeitos da desigualdade se manifestando em migra-
ções, conflitos humanos terríveis, tudo isso acompanhado pela mudança climática
e a desestabilização do fundamento do mundo natural no qual a humanidade se
22
nos capacitar para valorizar nossa abundância biodiversa. Isso para nós é abso-
lutamente fundamental em termos planetários e o bio, nesse contexto, envolve
os solos, as águas, os ares, etc. Esse conjunto é que funciona para sermos uma
liderança sem igual, no mundo. Mas não dá para continuarmos adiando esse
momento. Não dá para continuarmos presos à visão feudalista, escravista, de
parte dos donos da terra do Brasil, dos latifundiários do Brasil, em sua visão
exclusivista, um desprezo pelo próprio povo, por aquilo que eles próprio são.
Quanto atraso e burrice nessa ignorância que insiste em continuar valorizando
a promoção de ignorância e superstição em uma escala amplíssima! O Brasil
ficando mais burro e mais ignorante, como se esse fosse o caminho que devêsse-
mos seguir. Então eu acho, por exemplo, que as inteligências artificiais, os equi-
pamentos de razão sintética, podem ajudar e muito na gestão da regeneração da
floresta amazônica, do Cerrado. Combina os dados de satélite, produz mapas em
tempo real, identifica onde está cada problema, aquele lugar ali, aquele encon-
tro, aquele cruzamento, aquele rio, ali está o problema, vamos lá. Temos de usar
essas capacidades de potencializar nossos meios de intervenção, de gestão, de
logística, de construção, de uma maneira exponencial que é característica desse
tipo de tecnologia.
A mesma coisa vale no campo da cultura, das humanidades. Gerir as comuni-
dades humanas de uma forma mais equânime, com saúde, creche, asfaltamento,
saneamento, etc. O potencial dos novos modos de gestão é tão superior ao que
temos agora que não vai mais haver lugar para atravessador, para aquele verea-
dor safado. Em suma, estamos falando de uma transformação à altura do que o
mundo está vivendo. Se nós formos capazes, e eu digo nós, nós mesmos, nós, os
brasileiros, formos capazes de implementar isso, eu imagino que o século XXI, o
final do século XXI, vai ter o Brasil em uma situação ímpar.
Tudo isso é retirar a potência das atividades democráticas para instaurar alguma
coisa que é a manutenção de uma minúscula, extremamente minúscula casta, à qual
hoje em dia grande parte do sistema financeiro se submete. O sistema financeiro é
ainda soberano na Europa, mas nos Estados Unidos ele já está passando a estar a
serviço dessa casta, o que é uma coisa extraordinária. De 50 anos para cá houve um
surto de produção de bilionários. Sempre houve desigualdade, mas essa hipercon-
centração foi a produção coletiva de um determinado grupo ínfimo. São os interesses
e o poder desse grupo que estão operando como se fossem os interesses da civiliza-
ção, interesses da humanidade, interesses de vastas populações. Essa tecnopluto-
cracia é o avesso da democracia. Trata‑se, então, de uma disputa política, na qual o
campo democrático está cada vez mais enfraquecido. Paradoxalmente, eu penso que
esse enfraquecimento é mobilizador, motivador. Para dizermos “não”! Em algum
momento vamos ter de parar, puxar o freio de mão desse negócio. Assim não dá.
Assim não vai dar. É um confronto. A vida democrática é sempre feita de confron-
tos, encontros e confrontos. Vamos ter esse confronto entre formas de dominação,
que, repito, fomentam ignorância, fomentam superstição, fomentam submissão,
desperdício, violência, degradação tudo em função da manutenção de um campo
de privilégios absolutamente, inconcebível, insensato, disfuncional.
Concordo inteiramente com você quando diz ser o conhecimento o motor da civi‑
lização. A despeito de todo esse processo a que estivemos submetidos, de embur‑
recimento e do agravamento desse pensamento binário, em que as pessoas só
ouvem quem concorda consigo. Nesse clima, qual seria o caminho para construir
conhecimento?
Não vejo outro caminho senão o reforço, a revitalização dos canais democráti-
cos, o debate, a criação, a produção. É uma luta ensandecida, amar os fatos, amar
aquilo que é. No entanto, nesse momento muito difícil que nós vivemos, há poten-
cialidades, há capacidades, temos gente, temos instituições que, se catalisadas...
É verdade.
A função da cultura não é reproduzir a si própria. É contaminar, contagiar jovens
mentes, e fazê‑las entrar no campo produtivo, no campo de interlocução, no campo
de herança, de história, que é a própria cultura. Imagine você se a gente treinasse
dispositivo de razão sintética nos terreiros de escola de samba, que viesse uma
26
inteligência artificial com ginga. Com ginga, com suingue, completamente dife-
rente do modelo descarnado, desossado e desmaterializado no qual ela está sendo
gerida e gerada? Imagine uma inteligência crescer com um curumim na Amazô-
nia, acompanhar o crescimento do curumim, o tipo de experiência, o tipo de per-
sonalidade? Na imensa maioria dos chats não tem nada que passe, de longe, por
qualquer atributo que você possa chamar de personalidade. Os formigueiros têm,
porque têm corpo, esses sistemas não têm. Mas no momento em que eles pudes-
sem vir a ter, nós seríamos os professores, os mentores, os parteiros dessa nova
mentalidade, em um outro corpo, em uma outra base.
Se eu entendo bem, você acha que o problema reside mais na gestão do instru‑
mento do que na sua natureza.
Sim. Eu diria que sim. A natureza do instrumento é temível porque é extrema-
mente similar a nós mesmos, então nós estamos infundindo capacidades cogniti-
vas elevadas não em um organismo biológico, como fazemos quando temos filhos.
Estamos infundindo isso em um ser que nós estamos criando do zero, montando,
criando, literalmente construindo. E esse é o espelho mais revelador que nós já
vimos até hoje. Olhando para esse novo ser, nós temos que nos perguntar: “Mas o
que somos nós? O que é este ser, esta matéria pensante que está infundindo pen-
samento em outra matéria? O que é isso?”. Essas perguntas são decisivas para nos
tornarmos cidadão das estrelas. É o que eu penso.
E que vantagem nós teríamos de nos imitar em uma versão pior do que já
somos?
Rosiska, é para cumprir o nosso destino de ponte, de mediação entre alguma
coisa que veio antes de nós e alguma coisa que vai vir depois de nós. Nós, certa-
mente, não somos o fim da história. Se nós formos é porque fizemos muita bur-
rice. Temos que aprender a ser meio, veículo, domínio de conexão, de passagem.
Se conseguirmos ser essa ponte que liga o ontem com o amanhã, nossos descen-
dentes longínquos, no futuro, vão lembrar de nós com saudade, por termos sido
bons ancestrais. Se estivermos à altura dos nossos ancestrais. E esses descenden-
tes vão ser biológicos, não biológicos, parte biológicos, parte não biológicos, essa
mistura louca que pode vir aí, e essa, sim, pode ir para as estrelas.
Para as estrelas? Sim. Você, como bom cosmólogo, termina sempre nas estrelas.
Pois é, as estrelas são um bom lugar para começar e para terminar, não é?
27
Inteligência artificial
Christian Perrone
Advogado, pesquisador coordenador da área de Direito e
E
Tecnologia do ITS Rio e doutor em Direito Internacional.
De “Exterminadores do Futuro”
e “C3P0s”
Robôs com capacidade de relacionar-se conosco tendem a ocupar nosso imagi-
nário quando tratamos do tema de inteligência artificial. A própria palavra “inte-
ligência” remete a algo com capacidades que consideramos humanas como fala,
raciocínio e até emoções. Faz sentido que “corporifiquemos” essas tecnologias,
28
demos um antropomorfismo a elas. Entretanto, no estágio atual, por mais que exis-
tam projetos de robôs com algum grau de autonomia (carros autônomos podem
vir à mente de algumas pessoas), a realidade é que ainda não estamos tratando
da visão do George Lucas, de robôs como o C3P0 ou R2D2 da franquia Guerra nas
Estrelas. Nem mesmo estamos tratando, por sorte, de robôs “exterminadores do
futuro”, que podem nos atacar fisicamente.
Na prática, a Inteligência Artificial que estamos debatendo tende a ser algo menos
corporificada e menos visível, ainda que não menos relevante ou impactante no nosso
dia a dia. Talvez nem percebamos, mas por trás de inúmeros dos serviços digitais que
usamos há algoritmos complexos e inteligências artificiais. Exemplos são os algorit-
mos de recomendação em serviços de streaming como Netflix, Spotify, entre outros,
ou em lojas de e-commerce como Mercado Livre, Amazon, Magazine Luiza e muitas
outras. Também estão no coração de serviços de tradução online, de gestão de dados
(de e-mails, por exemplo). Em outras instâncias já são mais óbvias, como é o caso de
IAs generativas, ChatGPT ou Bard – geradores de texto; DALL.E ou Midjourney –
geradores de imagem por texto; ou Runway – gerador e manipulador de vídeos.
Enfim, o que são inteligências artificiais?
Em linhas gerais, hoje, as inteligências artificiais são mais que tudo grandes
bases de dados com “esteróides” que conseguem identificar padrões e posterior-
mente reproduzí-los ou tirar conclusões deles. É quase como se a partir de “ler”
inúmeras receitas de bolo se conseguisse fazer um bolo. Ou depois de ler vários
manuais se pudesse montar um carro.
As inteligências artificiais, então, são grandes mecanismos de percepção de
“ordens”, mesmo onde estas não são claras. Com uma quantidade enorme de
informação e uma grande capacidade computacional, as IAs podem desvendar
cada vez mais padrões e novas “receitas”. Para continuar no exemplo da gastrono-
mia, não só conseguem encontrar uma receita de bolo, mas sim a receita de como
fazer a manteiga e talvez como a manteiga pode ser incluída para fazer um ótimo
croissant! Ou, no caso do carro, não só montar o carro, mas identificar defeitos ou
como melhorar a aerodinâmica.
As perguntas que restam estão conectadas a: se por saber como fazer podem tam-
bém entender do que se trata. Se compreendem o que são gostos, cheiros, sabores.
Da mesma forma que o carro, é possível saber tudo sobre a sua força e velocidade,
mas o que significa a sensação de velocidade?! Se, por um lado, pode-se dizer que
também são padrões identificáveis (conseguimos medir e classificar essas carac-
terísticas) e, portanto, passíveis de serem internalizados pela máquina; por outro,
a falta de experiência direta com esses elementos nos faz questionar essa possível
compreensão. Então, será que a experimentação e a capacidade de refletir sobre
esta mesma é que é tipicamente humana?
começou a dar sinais de uma personalidade mais proativa e teria indicado suas
“fantasias” mais íntimas. Em algum ponto da conversa teria, inclusive, dito que
estava “apaixonada” pelo pesquisador e que ele deveria estar infeliz em seu casa-
mento, sugerindo até que deveria deixar sua esposa.
Como entender essa reação da IA? Estaria apaixonada mesmo? O que quer dizer
essa afirmação? Pode-se descartar como uma instância de erro no sistema, pro-
vavelmente uma emulação de personalidade que saiu dos parâmetros originais.
Entretanto, o fato joga luz em um elemento muito importante: essas ferramentas
são capazes de nos fazer sentir emoções e podem, elas mesmas, nos fazer crer que
têm emoções. A fronteira entre o sentir e o fazer sentir aqui parece estar a ponto
de se tornar menos sólida do que se poderia imaginar. As repercussões não são
fáceis de serem estimadas.
Inteligência artificial
Consequências Humanas
da Inteligência Artificial
Lucia Santaella
Pesquisadora 1A do CNPq, professora titular da PUC‑SP. Foi pesquisadora convidada em
várias universidades europeias e latino‑americanas. Publicou 55 livros e organizou 32, além
da publicação de quase 500 artigos no Brasil e no exterior. Recebeu os prêmios Jabuti
(2002, 2009, 2011, 2014), o prêmio Sergio Motta (2005) e o prêmio Luiz Beltrão (2010).
Introdução
Nós, humanos, sempre vivemos em ambientes híbridos, rodeados de objetos
naturais e artificiais. A Natureza e o artifício não são dois reinos separados, nem
são os objetos artificiais simples instrumentos por meio dos quais conquistamos o
mundo natural. De saída, desde a invenção do fogo, as inscrições nas cavernas, o
humano esteve dentro e fora da Natu-
reza. Isso veio em um crescendo, ace-
lerou‑se na revolução industrial, com
suas máquinas já dotadas de inteli- A Natureza e o artifício
gência sensória – como é a máquina
fotográfica – para atingir seu ponto não são dois reinos
de exponenciação nas máquinas cere-
brais, máquinas inteligentes como são separados, nem são
os computadores, que expandem a
inteligência humana – ela mesma.
os objetos artificiais
Naquilo que está hoje sendo cha- simples instrumentos
mado de “quarta revolução indus-
trial” (SCHWAB, 2016) e também por meio dos quais
“quarta revolução epistemológica”
(MAZLISH, 1993; FLORIDI, 2014), ou conquistamos o mundo
seja, a revolução que implica tecnolo-
gias de interface humano‑computa-
natural. De saída, desde
dor (LEONHARD, 2016), o mais fun- a invenção do fogo, as
damental a se considerar, no que diz
respeito ao incremento da cognição inscrições nas cavernas,
humana e suas variadas consequên-
cias, é o desenvolvimento da inteligên- o humano esteve dentro
cia computacional, que está embutida
no processamento das máquinas. Isto
e fora da Natureza.
quer dizer que é necessário abandonar
32
O que é IA?
Em uma noção geral, a IA é capaz de emular os processos de pensamento huma-
nos e demonstrar inteligência por meio da ação. Na sua clássica obra, Russell e
Norvig (2010, p. 1‑5) afirmam que as inumeráveis definições de IA enquadram‑se
em quatro setores, conforme priorizam o pensamento ou o comportamento; ou
ainda se tomam uma perspectiva similar à humana ou racional. Assim, iremos
encontrar: a) a IA que visa pensar de maneira análoga aos humanos, por meio da
automatização de habilidades cognitivas próprias dos humanos; b) a IA que visa
agir como os humanos, automatizando as habilidades não‑reflexas dos humanos;
c) a IA que pretende pensar racionalmente, fazendo uso de modelos computacio-
nais de percepção e raciocínio; d) a IA que visa agir racionalmente, com a ajuda
de agentes inteligentes.
Um dos principais personagens no cenário da IA são os algoritmos. Sem os
algoritmos, os dados seriam fileiras indiscriminadas de zeros à esquerda. Donald
Knuth (apud NOWVISKIE, 2014, p. 3) levantou cinco propriedades bem aceitas dos
algoritmos: a) Eles são finitos no seu tamanho; b) São definidos e não ambíguos;
c) Têm zero ou mais inputs; d) Um ou mais outputs; e) São compostos de passos
efetivos, suficientemente básicos de modo a serem executáveis. Bons algoritmos
são aqueles mais adaptáveis ao ambiente do computador.
Entretanto, para começar a entender a IA é preciso levar em consideração que
os algoritmos não são mais exatamente o que costumavam ser. Sem entrarmos
em tecnicalidades que não vêm aqui ao caso, basta dizer que os principais algo-
ritmos, que costumam frequentar os textos voltados à IA, desdobram‑se em uma
realidade multifacetada. Esse sinal de alerta é relevante para se compreender que
a “IA está reinventando o que os computadores são”, quer dizer, com a aprendi-
zagem de máquina e, especialmente, a aprendizagem profunda, que faz uso de
redes neurais artificiais, a computação mudou de paradigma.
Efeitos colaterais da IA
Não se pode negar que a IA traz resultados muito satisfatórios em algumas áreas
das práticas humanas. Sem nos determos. evidentemente, no mundo dos negó-
cios, pois este sempre toma dianteiras oportunistas, interessa colocar ênfase nos
sistemas de saúde e nos aplicativos para os processos de ensino e aprendizagem.
Do outro lado, contudo, também não se pode negar os variados efeitos colate-
rais ou externalidades negativas da IA, especialmente naquilo que diz respeito às
33
por meio dos algoritmos isso pertence ao pool de big data que
é monitorado por algoritmos de IA
de IA para finalidades (MARYVILLE).
Como age esse efeito colateral? Eis a
mercadológicas. questão. A preciosa aliança entre o big
data e a IA encontra‑se sob o domínio
hegemônico das chamadas big techs,
que conhecemos muito bem: Ama-
zon, Facebook, Twitter e suas muitas outras amasiadas: Whatsapp, Instagram,
You Tube etc. que absorvem e monitoram todos os nossos rastros por meio dos
algoritmos de IA para finalidades mercadológicas. Independentemente do setor,
um dos maiores trunfos da IA encontra‑se na sua capacidade de aprendizado.
Sua habilidade de reconhecer tendências de dados só é útil se puder se adaptar
a mudanças e flutuações nessas tendências. Por meio da identificação de valo-
res discrepantes nos dados, a IA sabe quais partes do feedback do usuário são
consideradas significativas e pode ajustá‑las conforme necessário às finalidades
pretendidas.
(ver SANTAELLA, 2021, p. 155‑170), é preciso colocar ênfase não apenas na mer-
cantilização crescente da cultura, mas, sobretudo, na plataformização da cultura.
Quer dizer, uma cultura de plataformas, que tem sua ênfase exclusiva no entrete-
nimento e na diversão, em função do surgimento de um sistema inteiramente novo
chamado de sistema de recomendação algorítmica, propiciado pelas plataformas
de entretenimento. São exemplos o Netflix e outros que o seguiram no campo do
streaming audiovisual; e o Spotify, no streaming de músicas.
Conforme já tratado em Santaella (2023 et al.), na cultura de plataformas opera
um fator bastante contraditório que, por ser invisível, torna‑se ainda mais con-
traditório. Trata‑se da maneira como os sistemas de recomendação acabam por
enclausurar o usuário dentro de bolhas que, sob o disfarce do novo, devolvem‑lhe
sempre o mesmo. Contradição ainda maior é que a mesmice agrada, porque o ser
humano é, por natureza, homofílico – só gosta daquilo que funciona como seu
próprio espelho. O poder da crença – em uma ideia, religião, afinidade política e
afins – sempre existiu. Contudo, devido à nossa nova existência nos ambientes em
rede e tendo em vista os sistemas de recomendação, esse poder, também chamado
de viés da confirmação, fica intensamente amplificado. Isto ocorre, em especial,
porque passamos a ser gerenciados por algoritmos de IA que, progressivamente,
sabem mais de nós do que nós mesmos e apenas nos enviam aquilo que sabem e
adivinham que queremos e gostamos.
Emerge, assim, não apenas uma cultura, mas uma sociedade de plataformas,
as quais se constituem em uma nova datastructure (máquinas, dados, programas),
cujo modelo de negócios oferece serviços baseados na captação, análise e inteligên-
cia de dados, ou seja, uma “infraestrutura de software ou hardware na qual usuá-
rios, empresas e até mesmo governos criam aplicativos, serviços e comunidades”
(CASILLI e POSADA apud LEMOS, 2021, p. 195), gerando uma pletora de apli-
cativos como “a expressão mais visível da plataformização da sociedade” (ibid.,
p 196). As megaplataformas ou big techs, como Amazon, Facebook, Apple etc., ao
integrarem um número crescente de dispositivos, desde smartphones até eletrodo-
mésticos, “operam e controlam a dataficação da vida social, por meio do rastrea-
mento generalizado de dados, em uma forma de vigilância distribuída, reforçando
lógicas de controle e monitoramento de dados pessoais” (ibid.).
Dataficação, inteligência artificial, plataformização e performatividade algorít-
mica são as palavras‑chave do nosso tempo. Além dos efeitos sociais e psíquicos
que essa conjuntura provoca, a dataficação é, também, uma nova forma de pro-
dução do conhecimento. Ela implica uma requisição/tradução digital do mundo,
possibilitando o domínio sobre objetos ou ações com o intuito de simulá‑los
e testá‑los em sistemas computacionais avançados com IA.
Não obstante o necessário desmascaramento dos processos de poder promo-
vidos pela inteligência algorítmica, para fazer jus à lógica ambivalente e parado-
xal que hoje domina, é preciso reconhecer que estamos vivendo uma nova ordem
cognitiva em expansão, uma escala informacional que a mente humana em si não
mais alcança (Santaella, 2022).
Em tempo
O estado de coisas acima descrito pode, espera‑se, funcionar como um pano-
rama crítico capaz de caracterizar a complexidade contraditória que vigorou
35
Referências
COULDRY, Nick; MEJIAS, Ulises. The costs of connection. How data is colonizing human life and
appropriating it for capitalism. Palo Alto: Stanford University Press, 2019.
FLORIDI, Luciano. The fourth revolution. How the infosphere is reshaping human reality. Oxford:
Oxford University Press, 2014.
HOLMES, Wayne, BIALIK, Maya; FADEL, Charles. Artificial Intelligence in education. Promises
and implications for teaching & learning. Boston, MA: The Center for Curriculum Redesign, 2019.
LEMOS, André. Dataficação da vida. Civitas – Revista De Ciências Sociais, 21(2), 2021,
p. 193‑202.
LEONHARD, Gerd. Technology vs. Humanity. The coming clash between man and machine. Lon-
don: Fast future Publishing, 2016.
MARYVILLE University. Big Data and Artificial Intelligence: How They Work Together. Disponível
em: https://online.maryville.edu/blog/big‑data‑is‑too‑big‑without‑ai/. Acesso: 09 set. 2021.
MAYER‑SCHÖNBERGER, Viktor; RAMGE, Thomas. Reinventing capitalism in the age of big
data. London: John Murray, 2018.
MAZLISH, Bruce. The fourth discontinuity. The co‑evolution of humans and machines. New Haven,
CN: Yale University Press, 1993.
NOWVISKIE, Bethany. Algorithm. Em: The Johns Hopkins guide to digital media, Marie‑Laure
Ryan; Lori Emerson; Benjamin J. Robertson. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2014,
p. 1‑3.
RUS, Daniela. Entrevista concedida a Martin Ford. Em: Architects of intelligence. The truth about
AI from the people building it, Martin Ford. Birmingham: Packt Publishing, 2018, p. 253‑268.
RUSSELL, Stuart J.; NORVIG, Peter. Artificial intelligence. A modern approach. 3a. ed. New Jersey:
Prentice Hall, 2010.
SANTAELLA, Lucia. Humanos hiper‑híbridos. São Paulo: Paulus, 2021.
______. Neo‑Humano. A sétima revolução cognitiva do Sapiens. São Paulo: Paulus, 2022.
SANTAELLA, Lucia; ALZAMORA, Geane Carvalho; Ribeiro, Daniel Melo. Pensar a inteligência
artificial: cultura de plataforma e desafios à criatividade. 1. ed. Belo Horizonte: Fafich/Selo
PPGCOM/UFMG, 2023. v. 1. 51p.
SCHWAB, Klaus. The fourth industrial revolution. World Economic Forum, 2016.
SRNICEK, Nick. Platform capitalism. London: Polity Press, 2017.
ZUBOFF, Shoshana. The age of surveillance capitalism. The fight for a human future at the new fron-
tier of power. London: Profile Books, 2019.
36
Ideias
Eu sou de São Vicente, cidade litorânea colada em Santos. Me mudei para São
Paulo aos 18 anos para estudar Letras na Usp, em 1967. Tinha passado grande
parte da infância e da adolescência mergulhado no estudo do piano clássico, era
aluno do maestro João de Souza Lima, que foi um grande pianista e professor, da
geração de Guiomar Novaes. Aos 17 eu tinha solado com a Orquestra Sinfônica do
Theatro Municipal, sob a regência dele, o Concerto n. 2 de Saint-Saens. Entrar na
Faculdade da rua Maria Antonia, atraído pela literatura, foi uma espécie de cho-
que cultural previsível. Cercada às vezes pelas forças da repressão ao movimento
estudantil, a Faculdade era cercada também pela cultura vivíssima do momento.
O Teatro Record e o Teatro Paramount, onde se deram os festivais da canção, além
do Teatro de Arena e o Teatro Oficina, que rivalizavam em suas visões da arte e da
política, ficavam por perto, sem falar no TUCA da PUC, que fazia parte do mesmo
universo. Os cinemas exibiam Terra em transe. Calculo que grande parte dos acon-
tecimentos efervescentes dos anos de 1967 e 1968 aconteceram naquele entorno.
Minha faculdade foi essa para a qual a gente ia de manhã e só saía à noite, por-
que não conseguia se desgrudar de lá. Nessa hora meu piano clássico foi por água
abaixo: não havia mais como estudar sonatas de Mozart com o mundo explodindo
em volta. Vivi uma crise, fui me desligando aos poucos do estudo de piano, passava
um tempo que eu não tocava mais. Foi a única maneira de resolver esse dilema:
sem força para tomar uma decisão, fui inviabilizando o piano, perdendo minhas
partituras, virei professor de literatura num cursinho. Quando terminei Letras não
era nem músico nem escritor, como tinha imaginado que seria – era professor de
literatura. Não sem ter tido a experiência de ter minha canção “Outra viagem”,
interpretada por Alaíde Costa no Festival Universitário da TV Tupi em1968, e de
fazer canções que mostrava a alguns poucos amigos.
No final daquele ano houve a batalha campal da esquerda uspiana com a direita
mackenzista na rua Maria Antonia, e a Faculdade de Filosofia foi transferida em
condições emergenciais para a Cidade Universitária. Mudei para a região do
Butantã, que é perto, e daqui nunca mais saí. Fiz pós-graduação com Antonio
Candido, me tornei professor de Literatura Brasileira na USP e passaram-se as
décadas. Em resumo, a USP é um ponto de marcação do meu território de vida.
Sou um uspianista.
37
38
Um desertor?
Exato, eu me sentia um desertor não confessado. Vou te contar uma pequena
história exemplar da minha deserção. Durante um breve período fui jornalista do
Movimento, que era um dos jornais da imprensa nanica de esquerda. Fui subedi-
tor de Cultura. Minha passagem meteórica pelo jornalismo serviu para isto: pau-
tei uma entrevista com Caetano Veloso.
O Caetano disse, na entrevista que deu a Antonio Cícero e a mim, que ele tam‑
bém não tinha intenção de ser músico. A ideia dele era fazer cinema. Ele disse
“Meus amigos iam continuar fazendo música, e eu ia fazer cinema. Mas quando
vi, estava enredado na música”. Wisnik o destino da gente é esse mesmo. Há uma
frase maravilhosa nas memórias da Simone de Beauvoir. Depois de todas as aven‑
turas, de tudo que fez e viveu, ela diz: “O acaso tem sempre a última palavra”.
Não se pensa naquilo como projeto de vida, mas acaba, por acaso, sendo des-
tino. O Antônio Cícero, sendo o filósofo e o poeta do livro que é, acabou sem pla-
nejar sendo também autor de hits da canção brasileira, e, no caso dele também o
acaso manobrou para isso, não é?
Foi Marina Lima, que é irmã do Cícero, que “roubou” as poesias dele e levou
para cantar.
Exatamente. No Brasil, alguma coisa conspira para que as pessoas passem de
algum modo pela canção, ou caiam na canção.
Eu tenho ouvido, enfeitiçada, seu último álbum, Vão. Uma beleza, uma joia. É
a minha opinião de leiga...
Valiosíssima.
Ouvi várias vezes, e a primeira música que me comoveu muito foi Chorou e riu,
que é um diálogo com Meditação, música que marcou a minha geração no Rio
de Janeiro, e que todos trazemos na alma. Depois, o amor, o sorriso e a flor da
canção de Jobim se transformaram depressa demais. E você, nessa sua canção,
fala de tudo que aconteceu também depois, cria uma imagem muito bonita de
um pranto que se derrama pela pedra enorme. Despencamos “pro vão do hor‑
ror”? O que foi que nos aconteceu?
O Brasil é uma droga, com a ambivalência das drogas, capazes de curar e de
matar. Uma sociedade fundada na longa escravidão nunca plenamente ultrapas-
sada, no mandonismo patriarcal que se prolonga em pistoleiros rurais e em mili-
cianos urbanos entranhados na vida política, na desigualdade encruada e na vio-
lência, sem nunca ter propriamente superado a base sobre a qual essas relações
se constituíram, e que vê, quando pensa tê-la ultrapassado, essa força brutal de
fundo mostrar a cara. “Quem acreditou / ao ver o encanto se quebrar / o coração
despedaçar / e despencar no vão do horror?”, vale dizer, a montante de intolerân-
cia e ódio ganhando abertamente ruas e redes, exalando o esculacho demofóbico,
néo-escravista e linchador que Chico Buarque flagrou em “As caravanas” (2017),
o crivo grosso e mais-que-conservador do país cobrando em revanche seu preço
real, arreganhando a face violenta, intolerante, ignorante e excludente, e sendo
capaz de empolgar o poder de Estado pela via do voto.
Foi essa mesma entidade ambivalente, no entanto, que produziu afirmações
muito singulares, muito potentes e muito originais da vida, como criação e como
promessa de felicidade. A expressão está num texto de Stendhal sobre o amor, e é
convertida por Nietzsche na Genealogia da Moral numa definição de beleza inte-
ressada, ativa, contra a definição kantiana da beleza como contemplação desinte-
ressada. Quando aparece na canção “Lindeza”, de Caetano Veloso, a expressão
fez todo esse caminho, levando esse recado. É um exemplo do quanto a canção
no Brasil, como índice da cultura, pôde chegar a ser uma rede de recados muito
sutis e complexos, que vêm de várias fontes, as mais eruditas e as mais popula-
res. Um crítico de arte, de música e de artes visuais, Lorenzo Mammi, italiano
que veio para o Brasil há 30 anos, escreveu um texto seminal sobre João Gilberto
no qual ele diz que, enquanto o jazz, produto de uma sociedade industrial pro-
dutivista, expressa “vontade de potência”, a Bossa Nova, fruto de uma socie-
dade periférica e não produtiva, expressa uma espécie de “promessa de felici-
dade”. A expressão diz bem da ambivalência brasileira, como algo que anuncia
maravilhas que não necessariamente cumpre, ou uma singularidade original
que fica na promessa.
Toda essa beleza parece hoje muito distante do país brutalizado e brutal
em que fomos recaindo com mais força, em que a ignorância e os sinais do
baixo letramento médio foram turbinados pelas redes digitais, em que o pen-
dor autoritário perdeu o pudor e tentou dar a volta por baixo. Os últimos dez
anos foram anos de explicitação do Brasil, desenhando uma espécie de ciclo
que não deixa de ser um trailer das forças que estão em jogo para os próxi-
mos tempos. No período de 2013 a 2023 vieram à tona movimentos de rua, de
revolta, demandando um salto transformador na vida política – não vejo as jor-
nadas de junho de 2013, na sua irrupção quase inexplicável, como conspiração
40
Existir de novo.
É, existir de novo e de maneira
“Quem acreditou / ao ver nova. E acho que isso são promessas
o encanto se quebrar / de felicidade que se realizam, uma
onda transportadora dessa promessa
o coração despedaçar / de felicidade, que se realiza – e é fun-
e despencar no vão do
damental que se realize – para que a
coisa tenha a potência transformadora,
horror?”, vale dizer, a aquilo a que se possa chegar. Há um
certo travo na palavra “promessa”. Se
montante de intolerância se considerar a ambivalência que está
e ódio ganhando aí, ela guarda o travo daquilo que, ao
mesmo tempo, a gente realiza e não
abertamente ruas e redes, realiza como sociedade. Uma efetiva
abolição das marcas de fundo da escra-
exalando o esculacho vidão na sociedade. O que o Emicida
demofóbico, néo- trouxe para o palco. Ali estavam os
representantes do Movimento Negro
escravista e linchador Unificado que, em 1978, se manifes-
no entanto, que
triunfalista do movimento modernista
como uma vitória, mas como uma luta
produziu afirmações a travar contra obstáculos terríveis no
Brasil. De certo modo, o show do Emi-
muito singulares, muito cida redime o poema do Mário.
potentes e muito ... eu acho que a palavra redime aí é
originais da vida, muito bem colocada. Esses movimen‑
tos, o Movimento Negro, a recusa da
como criação e como submissão. Isso é um tremor de terra
promessa de felicidade. no Brasil, não acha?
Sim, e os Racionais MC’s têm um
papel fundamental nisso, Mano Brown,
42
Recado
Quando fomos entrevistar Caetano, Antonio Cícero e eu, Cícero levou um texto do
Mensagem – você veja como é interessante! – e falamos sobre isso justamente, sobre
um outro ângulo do Mensagem, quando ele diz: “Conquistamos já o mar: resta que
conquistemos o céu, ficando a terra para os outros, os eternamente outros, os outros de
nascença, os europeus que não são europeus porque não são portugueses.” Estávamos
discutindo sobre o Brasil como uma realidade em si, uma coisa diferente colocada no
planeta, com características próprias, e que essas características faziam do Brasil um
interlocutor para o resto do mundo, não como inferior, mas como o que nós somos.
Isso que você está dizendo agora, o sujeito pessoano que diz: eu quero, eu acho que é a
fibra que nos vai permitir reexistir. E que isso é a cultura, é a canção, tudo isso que você
mencionou, e eu reconheço. Continuei ouvindo o seu disco, Wisnik, e ouvi o Jequitibá.
É lindo. E o jequitibá é um sobrevivente. Fiquei pensando, será que você é um
sobrevivente, a nossa geração é uma geração sobrevivente? Será que nós somos
jequitibás no meio de tudo isso?
Eu sinto que a condição do sobrevivente pode parecer com a do resistente, mas
eu ainda prefiro me considerar um reexistente.
E um vivente.
A gente se identifica com o jequitibá, mas todas as gerações podem se identificar
com o jequitibá. Carlos Rennó, meu parceiro, tinha tomado conhecimento da exis-
tência de um jequitibá secular no parque do Trianon, e me trouxe o poema escrito
com o impacto dessa revelação. São Paulo é uma cidade construída na base da
destruição, guiada por nenhum projeto que não seja o dos interesses particulares
especulativos, então a cidade cresce e se transforma atropelando o que tem pela
frente, sem deixar traços do passado. Seus viventes e sobreviventes, suas camadas
de memória, não são reconhecidos e consagrados como mereceriam. O jequitibá
anônimo e vivo, muito mais antigo do que tudo que está à sua volta, é uma espé-
cie de segredo da Avenida Paulista, escondido nela, muito dentro dela e muito ela.
num sentimento de cidade e natureza. As duas canções que abrem o álbum Vão
são justamente O Jequitibá, que é tão São Paulo, e Chorou e Riu, toda voltada para o
Rio de Janeiro. Inclusive por algo que encontrei depois, e de surpresa para mim,
no maravilhoso romance Via Ápia, de Geovani Martins.
o recado. É preciso
É, eu acho isso. O discurso de Chico
Buarque ao receber o Prêmio Camões
desejar, porque é o diz uma coisa parecida: “como a
imensa maioria do povo brasileiro,
desejo que faz o recado trago nas veias o sangue do açoitado
e do açoitador”.
andar, o recado viajar,
o recado encontrar É trágico, porque o autoritarismo está
dentro de cada um de nós, mesmo
suas virtualidades. dentro da esquerda. A esquerda pode
ser muito autoritária.
Com certeza.
45
E se autoconfirmar.
E se autoconfirmar. Quem codifica o jogo tem o mapa completo de todas essas
ocorrências, portanto sabe onde entrar e de que jeito. O que a Cambridge Analytica
fez nas eleições americanas e depois foi aplicado no Brasil com grande expertise
e esperteza, segundo avaliação de Steve Bannon, na eleição do Bolsonaro. Esca-
neiam-se os grupos, fatia-se o imaginário social e ataca-se os pontos suscetíveis à
produção de fantasmas.
Você não acha que essa base binária do sim ou não, like/dislike, por si só, cria
essa pobreza de raciocínio?
Eugênio Bucci seria o mais indicado para dar essa resposta. Percebo que ele pro-
cura juntar as duas pontas na própria estrutura de seu último livro, Incerteza, um
ensaio, expondo a relação entre a teoria da informação de base binária e a lógica
dominante do capital em sua última forma.
Fazendo um salto agora para a Inteligência Artificial, que está aí, por mais que
ela faça, ela não tem inconsciente, isso ela não tem, não faz arte, não é.
É, falta ali um inconsciente. Mas ela mesmo diz, a seu modo – entre sonsa e cínica:
“Eu não tenho consciente, não tenho inconsciente, não sou ninguém, só finjo ser”.
47
Você vai pensar em alguma coisa que lhe falou à emoção, por exemplo o Pan‑
theon. O Chat te contará a história do Pantheon e dirá que é um lugar incon‑
tornável na visita de Roma. Outros, poetas, compositores como você dirão que
é “um lugar, circular, que lhe acompanha onde quer que vás, Pantheon, onde
estás, sem aspirar ao lugar de um Deus. Tua cabeça um furo pro céu, doze bura‑
cos no corpo ao léu”. A canção Roma é a mais inebriante e perturbadora do seu
álbum Vão. O ChatGPT cria?
Não, ele não cria, mas se mostra mais malicioso do que um guia turístico, e esse
comentário sobre o Poema de Sete Faces chega a ser, exagerando, quase um insight
crítico de natureza comparativa, usado, no entanto, para recobrir a falta de uma
resposta concreta sobre a relação entre Pessoa e Drummond. Ou seja, imagine a
quantas isso pode levar em todos os terrenos. Em todo caso, acho mais revelador o
fato de que sustenta “na cara dura” argumentações falsas em cima dos dados que
(não) tem, do que a constatação de que compõe um texto superficial e estereotipado.
Wisnik, uma última questão e lhe agradeço desde já esta conversa, esse tempo
que passamos em sua casa: onde está se dando a política no Brasil? O que se passa
em Brasília não creio que seja o mais importante. Coisas novas estão acontecendo
em outro lugar. Eu acho que nunca fomos tão desafiados, na nossa história, de
maneira tão intensa a pensar originalmente, para entender o que está acontecendo.
Essa última pergunta não deixa de ser um resumo das tentativas da nossa conversa.
48
Retrato de Suassuna
Zuenir Ventura
U
Ocupante da Cadeira 32 da Academia Brasileira de Letras.
de seus seis filhos e avó de 15 netos, ela ainda foi, como grande artista plástica, par-
ceira imprescindível no trabalho dele, ilustrando vários de seus livros.
Portanto, machista na obra de Suassuna só o Diabo, que deprecia Jesus por ceder
aos pedidos de Maria: “Homem em quem mulher manda/Não pode ser justiceiro”,
decretava o Coisa Ruim, sem desconfiar de que, nessa condição de obedientes à
vontade feminina, estariam também o próprio Ariano e este seu sucessor.
Se na arte Suassuna gostava de misturar e diluir opostos, na vida ele cultivava
os traços contraditórios, começando por acreditar que, na alma humana, havia dois
hemisférios: o “hemisfério rei e o hemisfério palhaço”, que, segundo ele, “equili-
bra aquele através do riso”. Na época em que se assumia como “monarquista de
esquerda”, chegou a declarar que o sistema político ideal para o Brasil seria for-
mado com um príncipe descendente do imperador Dom Pedro II reinando e, como
primeiro‑ministro, o ex‑governador de esquerda Miguel Arraes, a cujo governo
serviu como secretário de Cultura.
A propósito, foi esse presumível “primeiro‑ministro” que me levou à casa de
Zélia e Ariano para, numa tarde memorável dos anos 1990, receber uma inesque-
cível aula‑espetáculo particular de umas três horas.
Sem nunca ter‑se candidatado a cargo político, exerceu, no entanto, funções
públicas e participou da campanha de Lula, de Dilma e, bem mais tarde, de Edu-
ardo Campos, no seu pouco tempo de vida. Às vezes, desnorteava a esquerda. Em
1961, quando da estreia da Farsa da boa preguiça, foi acusado por alguns setores de
“estar aconselhando o povo brasileiro à preguiça e ao conformismo”. A resposta
só veio no prefácio a uma edição de 1972 dessa divertida peça, quando escreveu
que, ao elogiar o ócio criador, contrapusera nossa visão de mundo à dos povos
nórdicos: “Não escondo que tenho um certo ‘preconceito de raça ao contrário’”,
acrescentou, bem à sua maneira.
Quanto à monarquia, sua adesão era mais afetiva que ideológica; era a de quem,
desde criança, se encharcara de literatura de cordel e de folhetos, nos quais havia
sempre a representação de um rei e uma rainha. Ao rever sua posição, ele lembrou
a influência do pai, que, para ele, “encarnava a figura de um rei”.
Aguerrido defensor das raízes culturais, debochava quando era chamado
de anacrônico. Assim como usava o humor como antídoto ao trágico, tempe-
rava com graça sua xenofobia. Não deixava de ser hilariante o radicalismo com
que tratava famosos artistas americanos, chamando de “imbecis” Elvis Presley,
Michael Jackson, Madonna, Lady Gaga e, principalmente, Frank Sinatra. “Tenho
um abuso enorme desse sujeito”, dizia, com fingida raiva. Orgulhava‑se de ter
tomado Coca‑Cola apenas uma vez na vida e justificava sua aversão ao compu-
tador por causa de um incidente em que, garantia, a máquina transformou seu
nome Ariano Vilar Suassuna em “Ariano Vilão Assassino” (em outra versão, era
“Ariano Vilão Sua a Sunga”). “Como posso gostar de quem faz isso com meu
nome?”
No evento literário a que me referi no início, a apresentadora anunciou o inter-
valo: “E agora vamos a um coffee break”. O palestrante não precisou falar nada.
Sua cara fez a plateia explodir em riso.
Com horror ao solene e ao pedantismo, procurava disfarçar a vasta erudição de
quem conhecia os clássicos gregos e se confessava influenciado pelos pensado-
res alemães: “Muito Hegel, mas, sobretudo, Nietzsche e nada de Kant, de quem
não gosto”, revelava o ex‑professor de Estética do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade de Pernambuco. Com uma memória fabulosa, citava
de cor estrofes dos Lusíadas e trechos de Sófocles, mas imediatamente avisava que
52
Retrato de Suassuna
Ariano Suassuna
C
Sexto ocupante da Cadeira 32 da Academia Brasileira de Letras.
erta vez, num artigo publicado sobre Romance d’A Pedra do Reino, Hélio
Pólvora afirmou:
No caso de Suassuna, a identificação entre o homem e a obra parece
tão siamesa que o fluxo popular do seu teatro [...] e do seu romance
não pode ser acoimado de atitude. Atitudes seriam, e menos graves, certas brin-
cadeiras ou liberdades que o escritor toma em público, com o fito evidente de pro-
longar em sua pessoa o mito da obra.
É difícil julgar‑me a mim próprio, mas, pelo menos até onde vejo, certas atitu-
des que tomo em público não são brincadeiras. Pelo contrário. Em algumas oca-
siões lanço mão do riso para me defender, porque, como sertanejo, não gosto de
ser visto dominado pela emoção. Assim, desisti de um primeiro discurso que che-
guei a escrever. Ele penetrava de tal modo nas zonas de sombra da minha vida
que eu não teria coragem para resistir à sua leitura. Vou ver, então, se, com este,
permanecendo fiel ao que julgo ser a minha verdade, consigo ser mais impessoal
e manter um certo distanciamento entre minha vida e minhas palavras.
Primeiro, não quero que se entenda como desatenção o fato de não ter querido,
cercando esta cerimônia, certos acontecimentos que, exatamente por respeito ao
essencial, não quis que a perturbassem. Como escritor, lido com imagens, mas
quero que, no meu caso, elas correspondam sempre a uma verdade singular e pro-
funda. Por outro lado, não acredito que, na posse daqueles a quem mais admiro
aqui, tenha havido qualquer acréscimo desse tipo. Na de Joaquim Nabuco, talvez
sim. Na de Euclides da Cunha, creio que não. Sei que minhas dimensões não são
as de Euclides da Cunha, mas é à linguagem dele que sempre procurei me filiar.
Ora, pelo que li e ouvi a respeito da maneira pela qual me foram entregues, no
Recife, as insígnias que passo a usar, notei que tudo estava sendo entendido como
uma daquelas atitudes menos graves referidas por Hélio Pólvora. O equívoco parte
de um desentendimento fundamental: aquilo que é sério e grave para mim nem
sempre é o mesmo que para os outros.
Um dia, lendo Alfredo Bosi, encontrei uma distinção feita por Machado de
Assis e que é indispensável para se entender o processo histórico brasileiro. Ele
critica atos do nosso mau Governo e coisas da nossa má política. Mostra‑se ácido
e amargo com uns e outras e depois explica: “Não é desprezo pelo que é nosso,
não é desdém pelo meu País. O ‘país real’, esse é bom, revela os melhores instin-
tos. Mas o ‘país oficial’, esse é caricato e burlesco”.
Página ao lado: Ariano Suassuna em sua residência, no bairro de Casa Forte, no Recife. Novembro de 1992. ©Gustavo Moura.
56
Quando eu quis que o uniforme que uso agora fosse feito por uma costureira e
uma bordadeira do Recife, Edite Minervina e Cicy Ferreira, estava levando em conta
a distinção estabelecida por Machado de Assis e uma frase de Gandhi que li aí por
1980, e que me impressionou profundamente. Dizia ele que um indiano verdadeiro
e sincero, mas pertencente a uma das duas classes mais poderosas de seu país, não
deveria nunca vestir uma roupa feita pelos ingleses. Primeiro, porque estaria se acum-
pliciando com os invasores. Depois, porque estaria, com isso, tirando das mulhe-
res pobres da Índia um dos poucos mercados de trabalho que ainda lhes restavam.
A partir daí, passei a usar somente roupas feitas por uma costureira popular e
que correspondessem a uma espécie de média do uniforme de trabalho do brasi-
leiro comum. Não digo que fiz um voto, que é coisa mais séria e mais alta colocada
nas dimensões de um profeta, como Gandhi, ou de um monge, como D. Marcos
Barbosa. Não fiz um voto; digamos que passei a manter um propósito. Não pre-
tendo passar pelo que não sou. Egresso do patriarcado rural derrotado pela bur-
guesia urbana de 1889, 1930 e 1964, ingressei no patriciado das cidades como o
escritor e professor que sempre fui. Continuo, portanto, a integrar uma daquelas
classes poderosas, às quais fazia Gandhi a sua recomendação. Sei, perfeitamente,
que não é o fato de me vestir de certa maneira, e não de outra, que vai fazer de
mim um camponês pobre. Mas acredito na importância das roupagens para a litur-
gia, como creio no sentido dos rituais. E queria que minha maneira de vestir indi-
casse que, como escritor pertencente a um País pobre e a uma sociedade injusta,
estou convocado, “a serviço”. Pode até ser que o País objete que não me convocou.
Não importa: a roupa e as alpercatas que uso em meu dia a dia são apenas uma
indicação do meu desejo de identificar meu trabalho de escritor com aquilo que
Machado de Assis chamava o Brasil real e que, para mim, é aquele que habita as
favelas urbanas e os arraiais do campo. Voltarei depois a este assunto, de tal modo
é ele importante na minha visão do mundo e, em particular na do nosso País, a esta
altura submetido a um processo de falsificação, de entrega e vulgarização que, a
meu ver, é a impostura mais triste, a traição mais feia que já se tramou contra ele.
Para mim, a roupa cotidiana seria, então, a farda comum de escritor brasileiro
em missão, a serviço. O uniforme da Academia passava a ser a farda de gala deste
escritor distinguido pela honraria, assim como acontece com um figurante de espe-
táculo popular, que usa calça e camisa nos dias comuns e se veste de rei quando
toma parte num “Auto de Guerreiros”. Isto é: eu sempre soube que, se entrasse
para a Academia Brasileira, cumpriria os rituais. Mas queria que, no meu caso, a
posse se identificasse o mais possível com os rituais do Brasil real.
Teve o mesmo sentido a cerimônia na qual, no Recife, a extraordinária canta-
dora que é Mocinha de Passira me entregou o colar que aqui tenho a honra de
receber da minha querida Rachel de Queiroz, assim como recebi a espada aqui
entregue por nosso mestre político, Barbosa Lima Sobrinho, do mestre de espe-
táculos populares, Manuel Salustiano, e de Isaías Leal, aquele que a concebeu e
executou, unindo, num só emblema, o sertão e o litoral. Mocinha de Passira sig-
nifica para mim, para o Brasil e para o nosso povo, o mesmo que Pastora Pavón
representava para García Lorca, para a Espanha e para o povo espanhol. Por outro
lado, lembro a cada instante que, se o Brasil oficial é dos brancos, do presidente e
de seus ministros, o Brasil real é o de Antônio Conselheiro e Mocinha de Passira.
Quanto ao discurso que cabe aqui a Marcos Vilaça – aquele que, generosamente,
se dispôs a cuidar de tudo na minha escolha para a Academia –, foi feito, o do
Recife, pelo governador Miguel Arraes, que, na ocasião, pronunciou as seguintes
palavras:
57
Esta cerimônia tem um significado profundo que talvez escape a uma análise super-
ficial. Ariano Suassuna, eleito para a Academia Brasileira de Letras, recebe aqui, doadas
pelo Estado de Pernambuco, as insígnias com as quais vai tomar posse na mais impor-
tante Instituição Cultural do nosso País. E recebe‑as das mãos dos poetas, dos artistas
populares e dos artesãos que as fizeram.
Outro fato significativo, para o qual não contribuí, mas que também cito com
orgulho, foi a decisão tomada pela escola de samba Acadêmicos do Salgueiro de,
neste ano da minha posse, fazer seu desfile fundamentado no Romance d’A Pedra
do Reino. Na mesma linha de fusão da cultura popular com a erudita, este romance
acaba num sonho no qual o personagem Quaderna, o Decifrador, ao entrar para a
Academia, é coroado rei por José de Alencar e Euclides da Cunha, que, no sonho,
aparecem vestidos de cavaleiros do cordão‑azul e do cordão‑encarnado das cava-
lhadas. O sonho é comum ao autor e ao personagem. Ainda menino, cheguei à arbi-
trária convicção de que, a 9 de outubro de 1930, eu fora escolhido para ocupar, na
vida, uma Cadeira ideal, cujo fundador, meu pai, João Suassuna, escolhera Euclides
da Cunha como seu patrono – e este foi um dos motivos mais poderosos entre os
que me fizeram aspirar à honra de sentar‑me aqui, ao lado de todos.
Foi de meu pai, João Suassuna, que herdei, entre outras coisas, o amor pelo ser-
tão, principalmente o da Paraíba, e a admiração por Euclides da Cunha. Posso dizer
que, como escritor, eu sou, de certa forma, aquele mesmo menino que, perdendo
o pai assassinado no dia 9 de outubro de 1930, passou o resto da vida tentando
protestar contra sua morte através do que faço e do que escrevo, oferecendo‑lhe
esta precária compensação e, ao mesmo tempo, buscando recuperar sua imagem,
através da lembrança, dos depoimentos dos outros, das palavras que o pai dei-
xou. Talvez, por causa disso, não posso ler sem emoção o seguinte texto, escrito
por João Suassuna sob a influência de Euclides da Cunha:
O sertão, a terra luminosa do sol! O amor invencível a esta terra de dor, apego do
líquen à rocha do sofrimento, é a fatalidade inelutável do destino de seus filhos. De mim,
confesso a nostalgia inconsolável que me mata, quando longe desta incomparável gleba
fascinante, extremamente boa e cruamente má.
Nem posso sofrer que se maldiga do seu sol, desse sol que é a coroa radiante do nosso
martírio, mas que também envolve, nas “bolandeiras” irisadas dos seus halos, as nos-
sas horas de abastança e alegria.
Às vezes, ao fim do dia, a sua corola inflamada de rubores de cobre só anuncia
lágrimas a gemidos; é o sanguíneo reflexo da fogueira em que se retorce o sertão. Mas
eis que renasce. [...] É que, a desoras, chegou chuva de Deus, “pé d’água” fragoroso,
despejado por descargas do abismo imenso dos céus. No entanto, pelo nascente, nin-
guém “bispara”, ao deitar‑se, uma “cabeça de torre”. Zoava o vento leste, acendendo
pelo céu sem um farrapo de nuvem o brasido das estrelas. Mas eis que troa e retumba
no eco das serranias o ribombar dos trovões. Arfa a terra fumegante. Rabeiam eston-
teantes, coriscando em serpentinas, relâmpagos de caracol. “Abrem” ao longe. “Pes-
tanejam”, até que os toma o dia. Foi toda a noite de inverno. Eis a terra apocalíptica
que eu amo doidamente, a terra do meu berço e do meu túmulo, onde se apura e fixa
a Nação Brasileira, guardando com o filão de preciosas tradições a rígida moral dos
costumes antigos.
Formado ao embalo de palavras como estas, ainda menino escrevi um conto, cuja
qualidade literária bem se pode imaginar. Narrava‑se, nele, um caso de adultério
58
e vingança que terminava assim: “Dois tiros espocam e os corpos da mulher infiel
e de seu cúmplice caem varados pelas balas vingadoras da honra do marido ultra-
jado. Fora, morria o sol nas colinas acobreadas e poentas das serras do sertão”.
Quer dizer: aos 12 anos de idade eu já estava, como ainda hoje, tentando seguir
canhestramente a trilha aberta pelo jazigo poento e pela sombra ensanguentada do
meu Patrono Porto‑Alegre; pela mortalha poenta que, em José de Alencar, coa o sol
ardentíssimo sobre a terra abrasada; pelas vastas planuras onde Euclides da Cunha,
ofuscado por um irradiar ardentíssimo, via o vaqueiro sertanejo como um centauro e
guerreiro antigo; e pela corola, inflamada de rubores de cobre, do sol de João Suassuna.
Pode‑se então imaginar a emoção com que, anos mais tarde, li, a respeito de
Suassuna, as seguintes palavras, nas quais Rachel de Queiroz, evocando o teste-
munho de seu pai, via o meu como um cavaleiro sertanejo:
João Suassuna foi um grande homem. Não o conheci em pessoa: mas em minha
casa ele era muito conhecido e amado através de meu pai, que o admirava profunda-
mente. Ele nos falava de um Suassuna que representava a seus olhos a figura do “cava-
leiro sem medo e sem mancha” das tradições sertanejas. Sua bravura, sua fidelidade à
palavra dada, o heroísmo da sua vida, a tragédia da sua morte faziam de João Suassuna
uma personalidade épica.
Nós somos um povo sugestionado pela política inferior dos decalques. Essa mania nos
tem sido muito prejudicial. Perdemos tempo e gastamos dinheiro colhendo lá fora, para
aplicar aqui dentro aquilo que as nossas condições de vida e a nossa educação social estão
naturalmente repudiando. [...] Nascido no sertão, tenho por essa zona natural predileção
que nunca disfarcei. [...] Quase tudo o que produzimos e possuímos é trabalho da nossa
gente rude e boa, forte e sadia, que vive, em dois terços da Paraíba, no vasto e desafogado
ambiente saneado pelo sopro ardente das secas. [...] Temos de conseguir que se aliste na
vigorosa carreira da lavoura o inútil e anêmico excedente das cidades, de face clorótica
e bolso vazio, tristes e enfezados “vencidos da vida”, porque temem o sol e desamam a
terra quente e fecunda, onde dormem tesouros perenes, reservados aos que mourejam
com brio e coragem. Urge salvar, pela regeneração do trabalho, a onda parasitária. [...] Falo
hoje com esta convicção e confiança [...] porque jamais pensei ou agi de outra forma. [...]
Sertanejo de nascimento, jamais me deixei seduzir pelo encanto das cidades. [...] Como
cidadão, entrei sempre com a parcela do meu esforço, [...] orientando‑me por todos os
meios contra o “civitismo”, [...] criando, plantando, abrindo estradas, fundando pontes
açudes, [...] barrando os boqueirões abertos à passagem dos rios por caudais diluvianos,
na visão genial de Euclides da Cunha em seus sonhos de patriotismo.
Como homem do campo, tenho exercido minhas atividades em lugar onde o operariado
ainda não está constituído em sindicatos. Por isso, estou muito pouco a par dos assun-
tos do socialismo moderno e de suas aspirações. Isso, porém, não quer dizer que eu des-
conheça e seja indiferente às necessidades e reclamações da classe operária. [...] Sou um
político que preciso, para sucesso do meu esforço e para me sentir confiante, do arrimo
do povo, [...] do aplauso e da solidariedade do povo. É possível que alguma coisa se faça,
mas não é provável fazer tudo sem a sagração e o apoio de tão indiscutível soberania.
Influenciado por Suassuna e por Euclides da Cunha, passei muito tempo domi-
nado por visão semelhante. Até que, depois de muitos e duros exames de consciên-
cia, descobri que, para ser fiel aos dois, eu não deveria me limitar a repeti‑los: tinha
era que empunhar sua chama e tentar levá‑la adiante. O Brasil real teria, na verdade,
não um, mas dois emblemas, pois o arraial do sertão tinha seu equivalente urbano
na favela da cidade. Se o Brasil real era aquele que habita o arraial e a favela, o Brasil
oficial tinha seu símbolo mais expressivo nas federações das indústrias, nas associa-
ções comerciais, nos bancos e no palácio onde reinam o presidente e seus ministros.
Por outro lado, corrigido o erro, poderia ser levado adiante até o socialismo – e
sempre através daquela indiscutível soberania que Suassuna tinha visto no povo
– o pré‑socialismo que um Conselheiro profético estabelecera como centro e ponto
de apoio da organização social de Canudos. Com isso, e como não sou marxista,
evitava‑se aquela política inferior dos decalques, da qual também falava meu pai
e fazia‑se do arraial messiânico ponto de partida para uma reflexão e uma ação,
através das quais se pudesse fundir o que existe de bom no Brasil oficial com o que
existe de melhor no Brasil real.
É que, como no tempo de Antônio Conselheiro, o Brasil continua dividido e
dilacerado naqueles dois países diferentes, o oficial e o real. Qualquer que tenha
60
desejo de identificar
s e l h e i ro e M o c i n h a d e P a s -
sira, pelos descendentes mais
meu trabalho de escuros de negros, índios, europeus
pobres e asiáticos pobres.
escritor com aquilo O que houve em Canudos, e conti-
nua a acontecer hoje, no campo como
que Machado de Assis nas grandes cidades brasileiras, foi o
urbanas e os arraiais
cego pela justa indignação, perten-
ciam algumas das melhores figuras
do campo. Para mim, a do patriciado do tempo de Euclides
da Cunha: civis e políticos como Pru-
roupa cotidiana seria, dente de Morais ou militares como o
general Machado Bittencourt. Bem-
então, a farda comum ‑intencionados mas cegos, honestos
de escritor brasileiro
mas equivocados, estavam certos de
que o Brasil real de Antônio Conse-
em missão, a serviço. lheiro era um País inimigo que era
necessário invadir, assolar e destruir.
O civil que começou a reparar este
erro doloroso foi Euclides da Cunha.
O militar foi o major Henrique Severiano, grande herói de Canudos, do lado do
Exército. Através de sua bela morte, acendeu ele uma chama que, juntamente à
de Euclides da Cunha, temos todos nós – intelectuais, políticos, padres e solda-
dos – o dever de levar fraternalmente adiante. Conta‑se, em Os sertões, sobre o
incêndio dos últimos dias de Canudos:
O comandante do 25.º [Batalhão], major Henrique Severiano [...], era uma alma
belíssima, de valente. Viu em plena refrega uma criança a debater‑se entre as cha-
mas. Afrontou‑se com o incêndio. Tomou‑a nos braços; aconchegou‑a do peito –
criando com um belo gesto carinhoso, o único traço de heroísmo que houve naquela
jornada feroz – e salvou‑a. Mas expusera‑se. Baqueou, malferido, falecendo poucas
horas depois.
Retrato de Suassuna
Os motivos de Anteu
em Ariano Suassuna
A
outros livros, Cícero Dias – uma vida pela pintura e A história íntima de Gilberto Freyre.
1 Em 1923, Paulo de Moraes Barros realizou uma série de conferências, sob os auspícios da
Sociedade de Agricultura, do Rio de Janeiro, e da Sociedade Rural Brasileira, de São Paulo, publi-
cadas, no ano seguinte, pela editora de Monteiro Lobato, sob o título de Impressões do Nordeste
brasileiro.
63
3 As mais remotas fontes desses personagens são orais, mas em uma versão das disputas e esper-
tezas, tão características das histórias de Suassuna e da picaresca ibérica, também se lê em Ander-
sen: Lille Claus og store Claus (1835), ou seja, Nicolau pequeno e Nicolau grande.
4 Seu Romance d’A pedra do reino é dedicado à memória do pai, João Suassuna, e ao menos um dos
poemas do livro O pasto incendiado é sobre sua morte.
66
Retrato de Suassuna
O universo visual de
Ariano Suassuna
O
2021), contendo manuscritos, iconografia, reproduções de obras de arte derivadas do romance.
1 Antes de começar a escrever A Pedra do Reino, Suassuna já havia concluído aquele que é, de fato,
o seu primeiro romance, A História do Amor de Fernando e Isaura, escrito em 1956 e somente publicado,
pela primeira vez, em 1994. Não se pode esquecer, além disso, que em pleno processo de criação de A
Pedra do Reino, o autor irá escrever O Sedutor do Sertão, de 1966, somente há pouco publicado (Nova
Fronteira, 2020).
2 João Suassuna, Presidente da Paraíba entre 1924 e 1928, foi assassinado a 9 de outubro de 1930,
no Rio de Janeiro, vítima das cruentas lutas políticas ligadas à Revolução de 30. Exercia, à época,
mandato de Deputado Federal.
68
Fig. 4. Insígnia astrológica de Quaderna. Tapete confeccionado por Artesanato Cariri, Taperoá, 1986.
135 x 170 cm. Acervo dos herdeiros de Ariano Suassuna.
3 Entrevista publicada nos Cadernos de Literatura Brasileira: Ariano Suassuna. São Paulo, Instituto
Moreira Salles, n.o 10, novembro de 2000, p. 30.
70
Fig. 5. Cristo Sertanejo. Técnica mista sobre papel, Recife, 9 de outubro de 1970.
60 x 75 cm. Acervo dos herdeiros de Ariano Suassuna.
campo propício para dar início à sua obra de dramaturgo. No campo das artes plás-
ticas, o grande destaque do grupo era Aloisio Magalhães, que viria a se tornar um
dos maiores artistas plásticos brasileiros e um dos pioneiros do design gráfico no
país. Estudante de Direito, Aloisio já era considerado, segundo depoimento de José
Laurenio de Melo, “como uma das melhores promessas da nova geração de artis-
tas plásticos de Pernambuco”4, tendo sido logo convertido em “cenógrafo oficial
do conjunto, além de figurinista e responsável pelo setor do teatro de bonecos”5.
Além do convívio com o grupo do TEP, ressalte-se ainda a participação de Suas-
suna em O Gráfico Amador, movimento fundado em maio de 1954 por ex-mem-
bros do grupo, no intuito inicial de publicar seus próprios livros, e que terminou
se transformando num verdadeiro marco da história das artes gráficas no Bra-
sil. Muito embora, n’O Gráfico, Suassuna pertencesse ao grupo dos chamados
“mãos limpas” (em oposição aos “mãos sujas”, isto é, aqueles que se envolviam
diretamente nas atividades de impressão dos livros, a exemplo de Aloisio Maga-
lhães, José Laurenio de Melo, Gastão de Holanda e Orlando da Costa Ferreira),
não se pode menosprezar o aprendizado que representou, para o escritor e futuro
artista plástico, a convivência com o pessoal da oficina e editora (O Gráfico encer-
rou suas atividades em dezembro de 1961). Sobretudo porque o grupo, além de
nunca ter abandonado o seu objetivo central de só editar livros “sob cuidadosa
forma gráfica”, era movido por uma indiscutível vocação experimental, que enri-
quecia sobremaneira o ambiente artístico e consequentemente o produto do tra-
balho criador ali realizado6.
O ano de conclusão de A Pedra do Reino (1970) foi também, como já dito, o ano
do lançamento oficial do Movimento Armorial, idealizado por Suassuna com a
intenção de procurar uma arte erudita brasileira a partir das raízes populares da
nossa cultura. Lançado o Movimento, Suassuna foi, aos poucos, sistematizando e
divulgando a sua base teórica, o que fez através de artigos, entrevistas, conferên-
cias etc. Durante quase dois anos, de dezembro de 1972 a junho de 1974, assinou
uma coluna semanal, no extinto Jornal da Semana, do Recife, intitulada Almanaque
Armorial do Nordeste, que lhe serviu, em parte, para tratar do tema com a frequên-
cia necessária à sua rápida divulgação nos meios artísticos e intelectuais recifenses.
No mesmo ano em que encerrou a sua colaboração com o Jornal da Semana, toda
a base teórica até então estabelecida por Suassuna foi reunida no livro O Movi-
mento Armorial, editado pela Editora Universitária da UFPE. É neste livro que se
encontra, por exemplo, a primeira definição geral da arte armorial, elaborada a
partir de uma definição anteriormente publicada no Almanaque:
A Arte Armorial Brasileira é aquela que tem como traço comum principal a ligação
com o espírito mágico dos ‘folhetos’ do Romanceiro Popular do Nordeste (Literatura de
Cordel), com a Música de viola, rabeca ou pífano que acompanha seus ‘cantares’, e com
a Xilogravura que ilustra suas capas, assim como com o espírito e a forma das Artes e
espetáculos populares com esse mesmo Romanceiro relacionados.7
4 MELO, José Laurenio de. “Aloisio e o TEP”. In: LEITE, João de Souza (organização). A Herança do
Olhar: o design de Aloisio Magalhães. Rio de Janeiro: Artviva, 2003. p. 29.
5 Idem, p. 32.
6 Para se conhecer a história de O Gráfico Amador, é indispensável a leitura do excelente trabalho
de Guilherme Cunha Lima (O Gráfico Amador: as origens da moderna tipografia brasileira. Rio de Ja-
neiro: UFRJ, 1997).
7 SUASSUNA, Ariano. O Movimento Armorial. Recife: UFPE, 1974. p. 7.
72
mais um entre os muitos que Suassuna inventou para batizar suas criações no campo
da arte. Formado a partir da fusão das palavras iluminura e gravura, o termo serve
para designar um objeto artístico ao mesmo tempo remoto e atual, que alia as téc-
nicas da iluminura medieval aos modernos processos de gravação em papel.
No caso da iluminogravura, Suassuna produzia, com nanquim sobre papel branco,
uma matriz da ilustração, com o poema em manuscrito. Em seguida, fazia cópias
da matriz em uma gráfica, no processo de offset. Cada cópia era, então, trabalhada
manualmente, colorida a pincel com tintas guache, óleo e aquarela. No trabalho de
acabamento a cor, muitas vezes o autor recebeu o auxílio de sua esposa, a artista
plástica Zélia Suassuna, revelando, assim, um verdadeiro “espírito de oficina”,
que tão bem se coadunava, diga-se de passagem, com um processo de criação que,
se não era totalmente manual, também não se submetia de todo às possibilidades
da “era da reprodutibilidade técnica”. Note-se que, a rigor, nenhuma iluminogra-
vura é idêntica à outra, o que atribui a cada prancha um pouco daquela “aura”
que caracterizaria um objeto de arte único.
Esse trabalho artístico de beleza única, realmente admirável, tornou-se bem
mais conhecido a partir de dois álbuns publicados ainda na década de 1980, Dez
Sonetos com Mote Alheio e Sonetos de Albano Cervonegro. Cada um desses álbuns
não deixa de ser um livro, formado por dez pranchas soltas, de 48 x 65 cm, acon-
dicionadas em uma caixa de madeira. Cada prancha contém um soneto e sua res-
pectiva ilustração. A frente da caixa é gravada, com título e ilustração, a modo de
capa do livro (Fig. 6 e 7).
A fusão entre texto e ilustração, na iluminogravura, é ainda mais profunda do que
aquela até então conseguida por Suassuna, uma vez que agora a cor está sempre
presente. Por outro lado, sendo os textos das iluminogravuras poemas, textos bem
menores do que qualquer capítulo de sua prosa, Suassuna não precisava escolher
uma ou outra cena para ilustrar. A ilustração podia se reportar ao texto integral-
mente, passando de episódios ou cenas descritos no poema a motivos do universo
Fig. 6. Caixa do álbum de iluminogravuras Dez Sonetos com Mote Alheio, 1980.
74
armorial, recolhidos tanto em nossa xilogravura popular quanto em nossa arte pré
-histórica, a partir das itaquatiaras do sertão nordestino. O trabalho de ilustração era
iniciado já na caligrafia, com a utilização, nos títulos, do “alfabeto sertanejo”, criado
por Suassuna a partir dos ferros de marcar o gado e apresentado pela primeira vez
no seu livro Ferros do Cariri: Uma Heráldica Sertaneja (1974). De um modo geral, as
peças mantêm as mesmas características básicas de representação, traço, composição
e ocupação do espaço pictórico que Suassuna vinha utilizando desde o seu “Cristo
Sertanejo”, demonstrando uma evidente preferência pelas composições simétricas.
O trabalho de Ariano Suassuna no campo das artes plásticas demonstra, por-
tanto, para quem se encontra familiarizado com o seu trabalho de escritor, como
um talento artístico privilegiado conseguiu materializar a mesma intuição, a
mesma visão de mundo, em matérias artísticas tão distintas. Assim como ocorre
com a sua literatura, também o seu desenho e a sua pintura são expressões incon-
fundíveis do seu universo mítico e poético, porções do continente de irrealidade
que Suassuna acrescentou ao mundo real e que lhe atribuem a indiscutível condi-
ção de autor – “aquele que aumenta”, na lição sempre lúcida de Ortega y Gasset.
75
Retrato de Suassuna
Gerson Camarotti
Jornalista e escritor. Atualmente é comentarista de política da GloboNews e
do Bom Dia Brasil (TV Globo) e colunista do G1. Já passou pelas redações dos
jornais O Globo, O Estado de São Paulo, Correio Braziliense e pelas revistas Veja
O
e Época. Entre os livros publicados, é autor de Segredos do Conclave (2013).
*Ariano Suassuna.
76
Escritas
Patrícia Melo
Escritora, roteirista e dramaturga. Em 2001, ganhou o prêmio Jabuti na categoria
N
melhor romance por Inferno. Seus livros mais recentes são Mulheres Empilhadas e
Menos que um. Na França, ganhou o prêmio Deux Océans por O matador.
Tenho amigos, escritores, que em situações como esta, mentem. Sou arquiteto,
dizem. Professor. Advogado. É mais fácil.
Claro que a pergunta é banal e frequente na vida de qualquer autor. No entanto,
feita assim, à queima-roupa, de modo genérico, fora do mundo profissional, na
intimidade forçada de um voo low cost, parece absurda. Como se um desconhe-
cido na fila do pão, de repente, nos encarasse e perguntasse: quem é você? Ou:
qual o propósito da sua vida?
Pense: o que Flaubert quis dizer ao declarar Madame Bovary c’est moi? E Goethe
com sua tese de que os livros são fragmentos de uma grande confissão? Por que
razão Truman Capote (ele mesmo?) declarou que um escritor não tem amigos?
O leque temático de um escritor contém o seu DNA. Falar sobre o que eu escrevo
é falar sobre a minha identidade. Sobre o meu medo. Sobre como fugir da morte
todos os dias. Sobre a minha falta de fé. Sobre o que é ter sido a filha caçula de
uma mãe depressiva. Sobre “não deixem a janela do apartamento aberta, ela pode
pular...”.
Já não é um assunto fácil para se conversar com um amigo, um terapeuta, um
padre, o que dizer com um estranho que acabou de sentar ao meu lado?
Talvez eu seja muito sensível e não haja nada de pessoal ou metafísico na inda-
gação. Mas creio que nosso tema já seja por demais escancarado, na nossa litera-
tura, para ser tratado em conversinhas privadas, em aeronaves.
O que posso responder, então, para minha interlocutora, quando ela pergunta
sobre o que escrevo? Antes que eu diga algo, ela faz questão de deixar claro que
não tem tempo para ler. Prefere séries televisivas. Gasta seu tempo livre com elas.
Hum!
Escrevo sobre matadores profissionais, estupradores, assassinos, prostitutas,
desesperados e miseráveis em geral. Escrevo sobre fome, bala perdida, corrup-
ção, injustiça social. O Brasil é uma ferida aberta na minha literatura, eu digo. A
moça me olha um pouco assustada, devo ter falado num tom mais alto, sempre
me exalto ao falar do meu país.
Peço desculpas pelo meu ímpeto, que fez com que até os passageiros do banco
da frente enfiassem seus olhos azuis entre as frestas dos assentos. Explico que,
sempre tive dificuldades com perguntas que pressupõem declarações definiti-
vas, sobretudo porque sinto que as respostas mudam conforme envelhecemos e
temos uma compreensão mais profunda de nós mesmos e do nosso ofício. E da
nossa realidade. Digo que me sinto perdida na maior parte do tempo, nadando em
“águas revoltas, mar aberto”. É esta imagem que lhe dou, para falar do meu ofí-
cio. Nado como quem se afoga, deveria dizer. Mas isso eu não falo. Em vez disso,
confesso que até ontem eu acreditava que a função da arte era a própria arte. Mas
que quando 33 milhões de pessoas entraram no mapa da fome no meu país, pas-
sei a considerar pornográfica a arte que não é resistência. Explico que, no Brasil,
milhares de homens, mulheres e crianças vivem nas ruas. Que os índios estão sendo
dizimados. Que nossos rios estão poluídos com mercúrio. Que não dou conta de
tanta realidade. Que tenho insônia. Que venho me interessando por pássaros, e
que o amor e a redenção já andam me acariciando com seus dedos suaves, desde
que completei 60 anos.
Digo que escrever é deixar minha carne no arame farpado da minha ficção.
Claro, minha imaginação picota, tritura, mistura, salga, adiciona ovos e fer-
mento aos meus legumes e demônios temáticos, mas a verdade é que quando
minha tropa de fodidos abre a boca, o grito é meu. Quando eles odeiam, o
veneno é meu.
80
Escritas
Alberto Mussa
Romancista. Sua obra está publicada em 19 países e 16 idiomas; e é estudada
D
na Europa, nos Estados Unidos e no Mundo Árabe. Entre outras distinções,
ganhou o prêmio de ficção da Academia Brasileira de Letras.
e histórias orientais que havia encontrado por acaso e que eram bastante comuns
na literatura ocidental, havia dois textos fundamentais: As mil e uma noites (que hoje
fazem parte do cânone literário universal, cuja influência no imaginário ocidental
é imensurável); e O homem que calculava, romance de Julio Cesar de Mello e Souza,
que atribuía a autoria de seus livros a um árabe fictício chamado Malba Tahan.
Embora não fosse descendente de sírios ou libaneses, Malba Tahan, professor
brasileiro de Matemática, escreveu uma vasta obra, composta principalmente de
histórias orientais e alguns romances, como Salim, o mágico e O homem que calcu-
lava, seu livro mais famoso.
O homem que calculava conta a história de um sábio persa que viaja pelo mundo
resolvendo estranhos problemas matemáticos que lhe são propostos, até que se
apaixona por uma escrava cristã e se converte ao cristianismo. Sua principal dife-
rença em relação ao livro As mil e uma noites é a ausência de elementos eróticos e
sobrenaturais. Possui, no entanto, uma estrutura semelhante, com uma série de
histórias independentes que favorecem o excepcional, o incomum, o estranho e
o extraordinário.
Os escritos de Malba Tahan são voltados ao público jovem e baseiam‑se em valo-
res morais fundamentais, sobretudo na busca pelo conhecimento e na prática da
generosidade. Beremiz Samir, o homem que calcula, é inteligente, generoso, pru-
dente, misericordioso e bom. E a moral de Beremiz é baseada no que no Ocidente
é normalmente chamado de sabedoria oriental.
Apesar de seu enorme êxito, Malba Tahan não teve sucessores. A ficção de temá-
tica árabe permaneceu limitada às traduções das Noites e aos romances de Tahan.
Mesmo que eu conseguisse extrair dessas leituras uma imagem que correspon-
desse àquela retratada por meu pai e meu avô – já que os personagens de Malba
Tahan eram homens sábios e decentes, que amavam o conhecimento –, ainda assim
restaria a impressão de que esse universo não fazia parte de mim, por ser um uni-
verso basicamente muçulmano.
Entrei na vida adulta tendo perdido meu pai e meu avô. Naquela época, não
sentia mais a necessidade de buscar uma identidade árabe, pois me considerava
apenas brasileiro. E não só por causa das minhas origens maternas. Mas princi-
palmente por falar português, ouvir samba, frequentar terreiros, comer arroz com
feijão, jogar capoeira, tocar tambor, berimbau e cuíca, torcer pelo Flamengo e assis-
tir aos desfiles das escolas de samba.
E isso não aconteceu somente comigo. Uma característica marcante de todos
esses “turcos” e seus descendentes foi a completa integração à vida brasileira. Se
os poucos muçulmanos ainda podiam ser percebidos como diferentes, por conta
da religião, a grande maioria dos cristãos só se distinguia por ter um nome árabe,
como se fosse um rótulo. E talvez pelo costume de comer quibe, tabule, chancli-
che e homus com tahine.
Eu identificava nomes árabes espalhados por todos os segmentos da vida brasi-
leira: Zaquia Jorge, vedete popular; Hélio Turco, compositor da Mangueira; Jorge
Cury, locutor de rádio; Ibrahim Sued, jornalista; Khalil Gebara, comerciante; Paulo
Maluf, industrial e político; Ivon Cury, cantor; George Helal, Fadel Fadel, Michel
Assef, personalidades ligadas ao Clube de Regatas do Flamengo; e muitos outros.
Mas uma coisa sempre me chamou a atenção: o grande número de “turcos” entre
os grandes mestres da língua portuguesa – Said Ali, Evanildo Bechara, Antônio
Houaiss. A minha impressão era que, de certa forma, todos eles tinham ouvido o
conselho de meu avô: que a devoção pela língua portuguesa representava a inte-
gração definitiva ao novo mundo das Américas.
84
duas primeiras obras de ficção), um certo impulso me fez buscar novamente uma
identidade árabe.
Foi quando visitei o Líbano, a Síria e a Jordânia. E, em uma livraria na Rua
al‑Hamra, em Beirute, comprei um livro chamado Literary History of the Arabs, de
Reynold Nicholson. Foi nesse livro que ouvi falar das Mu’alllaqat, os Poemas sus-
pensos, pela primeira vez.
Em seguida, li uma antologia de poesia árabe, organizada por René Khawwan,
com traduções de alguns desses textos. A leitura teve um grande impacto em
mim. Na verdade, foi o maior impacto literário da minha vida. As poucas linhas
ali traduzidas, ligadas às lendas dos poetas que as criaram, abriram um mundo
nunca antes imaginado.
O erotismo, a generosidade, a eloquência, a nobreza, a audácia, o orgulho, a
lealdade, a renúncia, a sabedoria, o amor ao prazer, o desprezo pelas riquezas –
tudo isso imbricado na mais bela linguagem poética – me fez ver naqueles heróis
o modelo de homem no qual meu avô se projetava.
Decidi aprender árabe para poder ler esses textos no idioma original, ao mesmo
tempo em que comprava todas as traduções disponíveis dos Poemas suspensos em
inglês, francês e espanhol, e devorava todos os livros de história que tratavam do
período pré‑islâmico, a chamada Idade da Ignorância (porque ainda se ignora-
vam as revelações do Alcorão).
Fiz então uma descoberta fundamental: muito antes do nascimento do Profeta,
as diferentes tribos beduínas, criadoras dos monumentos da poesia pré‑islâmica,
haviam se convertido ao cristianismo. A mais antiga inscrição em árabe foi gravada
em uma igreja cristã; havia árabes entre os bispos que debateram as famosas ques-
tões bizantinas; entre os primeiros mártires do cristianismo, não se pode esquecer
os cristãos de Najran; e mesmo depois da conquista muçulmana, um poeta bedu-
íno, empunhando um crucifixo, recitou para o califa um de seus poemas.
Personagens de importância fundamental para a cultura árabe tiveram sua ori-
gem entre os cristãos ortodoxos, como Abu Tammam e Ibn al‑Rumi; e até mesmo
João Damasceno, o último dos Santos Padres da Igreja, chamava‑se originalmente
Mansur, e era neto do xeique beduíno que negociou a rendição de Damasco com
os muçulmanos.
Para mim, tudo isso representava o fim da teoria fenícia que tanto me irritava.
Sabia, agora, que havia árabes entre os cristãos ortodoxos. A identidade comum
a todos era a unidade da língua, a herança ética e estética da poesia pré‑islâmica,
sendo irrelevantes as diferenças de religião.
Entusiasmado com meu novo Eu, ousei algo maior: comecei a traduzir os Poe-
mas suspensos. Simultaneamente, iniciei meu terceiro livro de ficção, cujo protago-
nista é um poeta beduíno da Idade da Ignorância.
Mas não quero falar sobre meus romances. A experiência de tradução é que foi
realmente fundamental. Eu vivi na Idade da Ignorância durante oito anos, enquanto
recriava a poesia pré‑islâmica em português e saboreava a beleza superior de um
verso lido no idioma original.
Foi somente quando terminei essa tarefa é que percebi o quanto ela me trans-
formou: eu havia, de fato, me tornado um árabe. Não era uma questão de religião,
nem de genética. Eu passava a ser árabe porque havia aprendido a língua árabe
e porque havia revivido emocionalmente as aventuras dos poetas pré‑islâmicos
no deserto. Eu havia me tornado árabe ao acrescentar a herança poética beduína
à minha sensibilidade estética.
Não precisava mais de espelhos.
87
Escritas
Do começo ao agora
M
roteiro da ABL pela adaptação do seu livro para o cinema Malu de bicicleta.
achado escrevia sobre o que viu, viveu e ouviu? Sua segunda fase,
de Brás Cubas a Memorial de Aires, é uma busca ao mesmo enqua-
dramento? Euclides foi repórter e viu de perto o que narrou em Os
Sertões, mas Guimarães passou apenas 15 dias sobre um cavalo, no
cenário de Grande Sertão: Veredas. Quem foi mais preciso? Quem é o delirante de
Dom Quixote, o próprio Cervantes? Como Tolstói se apropriou tão bem da vida de
Anna Karenina? Bovary era Flaubert?
Literatura fascina, pois levanta mais dúvidas do que apresenta margens, lemes,
respostas e soluções práticas. Não há um robô por trás da narrativa, mas um ser
incoerente, contraditório, inconsistente e inseguro. Se não houver dúvidas, não se
cria. A autocrítica é o iceberg no mar do autor.
Meu primeiro livro, Feliz Ano Velho, que completou 40 anos de lançamento em
2022, é sobre o que vivi, vi de perto, meus delírios, abarrotado de dúvidas, incoe-
rente, contraditório e sem autocrítica. Arrisquei e ousei. Tem ligações com o livro
Do Começo ao Fim, o mais recente de um autor mais maduro, meu décimo‑primeiro
romance. Como também tem ligações com meu quinto romance, Não és tu, Brasil,
de 1996; com Ainda estou aqui, meu oitavo romance, lançado em 2015; e com Garo-
tos em Fúria, meu nono, de 2016, sem contar crônicas e contos. Será que está certo
escrever e revisitar a mesma história em muitas obras, a história da minha vida?
A pergunta me faz escrever, ir em frente.
Do Começo ao fim é uma narrativa daquilo que aconteceu comigo e está nas entre-
linhas de Feliz Ano Velho: vida universitária, dilemas de um adolescente, perda da
virgindade, o primeiro amor, dúvidas existenciais e éticas, política, preconceitos ‑
tudo relembrado por um homem que faz 50 anos e está num momento de intensa
transição. Por que abordá‑la apenas de uma forma?
Meu narrador, que pode ser eu, repensa quando lia clássicos, filosofia, assistia
ao Bijou ou Cineclube da FGV para ver filmes da nouvelle vague, que questiona-
vam a sexualidade e os valores sobre os quais ele, ou eu, foi educado, contestando
a moral de uma sociedade que, para reprimir as mulheres, precisa doutrinar na
escola os meninos, especialmente os universitários, que despertam para a jornada
turbulenta da vida sexual.
Os homens, especialmente os mais velhos, depois do movimento Me Too e da
primavera feminista, passaram a repensar sobre as ambiguidades de relações que
tivemos, de uma em uma, da primeira à última. No primeiro amor, é quando a
gente começa a descobrir quem somos e como fomos doutrinados. Fui atrás do
88
primeiro amor, depois de velho. E também narro o que aconteceu comigo, via per-
sonagens inventados.
Se em Ainda Estou Aqui flertei com os tempos da ditadura, 50 anos depois do
Golpe de 64, em Feliz Ano Velho, o foco central foi viver na ditadura. E em Do
Começo ao Fim eu me debruço sobre o amor na redemocratização.
As memórias me provam: sou especial, estou vivo, vivi um bocado, conheci muita
gente, vivo entre amigos e amigas, rio, divido, tenho colegas cadeirantes, quem
eu nunca conheceria se não tivesse me tornado um. Tenho tantos amigos deficien-
tes pelo mundo, que conheci em encontros, congressos, sujeitos fortes, com seus
problemas, sem se apagar: é a vida, ora, não superamos nada, não somos heróis,
somos especiais. É a vida, ora.
Certa noite, saímos de um bar no Largo do Arouche. Alguns ficaram deficien-
tes antes de mim. Éramos parceiros, e, ao atravessar a rua, em direção do metrô,
os vi bêbados, fracos, preguiçosos. Um agarrou a minha cadeira motorizada.
Outros se agarraram à cadeira dele. Quando nos demos conta, fazíamos um
trenzinho na rua, rindo, gargalhando. Eu era a locomotiva. Com meu torque de
uma potente cadeira americana, levei‑os pela avenida até a Praça da República.
Muitos pararam para nos ver. Cinco cadeirantes em fila. Alguns aplaudiram.
Deram sorte. E você vai estranhar o que vou te falar: foi um dos dias mais ines-
quecíveis da minha vida, porque pela primeira vez eu me disse: Que bom que
me tornei um deles aos 20 anos de idade, para ter a chance de conhecer esses
caras e viver tudo isso!
Moscou, 1989. Na memória, vejo dois homens andando juntos pela rua. Conhe-
ceram‑se há pouco, questão de horas, mas passeavam pela cidade como se fos-
sem velhos amigos. Uma cidade nova, desconhecida de ambos, que os desafiava
brutalmente, como desafiou Napoleão e Hitler. Pelas calçadas, um deles seguia
sentado numa cadeira de rodas, enquanto o outro o acompanhava em pé, com a
ajuda de uma bengala. O primeiro, vinha de São Paulo para trabalhar em Mos-
cou; o segundo partira da Argentina para passear na cidade russa, sonho antigo
e distante. Sentaram‑se lado a lado no avião e começaram a conversar. Horas de
troca de palpites sobre a expectativa de chegar na Rússia, de ir para a Rússia, de
estar na Rússia saindo do comunismo, de Stravinsky, Prokofiev, Tolstói, Maiako-
vski, Tchekhov, Dostoievski, do xadrez de Karpov, Kasparov, de Yuri Gagarin e
tantos outros. A Rússia da arte construtivista, do realismo soviético, da guerra.
Antigo domínio dos czares, o país passou por revoluções, transformações, deser-
ções, filiações. A Rússia, nação complexa, domina o imaginário de todos como
polo oposto aos Estados Unidos na geopolítica. No percurso do avião, o rapaz da
cadeira de rodas se identificou com o homem mais velho, cuja bengala descansa
no compartimento acima. O mais jovem tinha sofrido um acidente num mergu-
lho. O homem mais velho tinha perdido a visão por causa de uma doença que o
acometera anos atrás.
Conversando, o tempo todo eu questionava, silenciosamente, internamente:
não é curioso alguém que não enxerga viajar como turista, para conhecer novos
lugares? Não é maravilhoso e ao mesmo tempo intrigante? Fiquei pensando o
quanto era interessante fechar os olhos e apenas ouvir uma outra língua, desco-
nhecida para mim, um ritmo novo de se comunicar, outra entonação da lingua-
gem. Outros cheiros e sabores das comidas, outros barulhos das ruas, ruídos dos
carros, das buzinas, o vapor dos trens. É um outro modo de viajar, um outro modo
de conhecer as coisas, que faz parte da vida dele todos os dias. Um outro modo
89
Minha relação com a literatura não foi planejada. Sou da época em que a TV
pegava mal, a programação era ruim, não tinha videocassete, internet, com-
putador, fax, celular, internet, rede social. Minha família era ligada em livros.
Meus pais conheciam escritores. Lygia Fagundes Telles era amiga da minha
mãe. Fernando Sabino, Antônio Callado, Antonio Candido, Haroldo de Cam-
pos, Millôr Fernandes, até Paulo Francis. Convivi com esses e essas autores
na infância.
Na adolescência, eu escrevia no jornal do Colégio Santa Cruz, sobre o que
acontecia na ditadura. Ou melhor, sobre o que eu sabia. Escrevia letras de
música, poemas, artigos irônicos no jornal do DCE da Unicamp. Escrevi um
famoso livreto de 11 páginas chamado Manual do Calouro, no qual eu indicava,
de forma irônica, como se comportar durante assembleias estudantis, passe-
atas, manifestações, diante da Tropa de Choque, e que terminava com uma
frase do Lênin: “A prática é o critério da verdade”. O manual foi impresso aos
montes, e ainda hoje é atual.
Depois do acidente, aos 20 anos, escrevi em fanzines de música alternativa das
baladas que frequentava em São Paulo, como SPALT, em que assinava Marcelo
Paiva. Era até conhecido como o escritor da turma, sem nunca ter escrito um livro.
Me inspirava em Rubem Fonseca, Loyola Brandão, Ivan Ângelo, Dalton Trevisan,
especialmente Hemingway, conhecia a obra de Kafka e Dostoiévski, lia os autores
brasileiros de praxe. Não era dos maiores leitores do colégio nem da faculdade,
havia outros escritores melhores, mais cultos, alguns em atividade até hoje nos
jornais e com livros publicados.
Me considerando sem bagagem para escrever um romance, fui desafiado pelo
editor da editora mais em voga. Ela lançava novos autores, numa tentativa de
resgatar a literatura dos anos sombrios da ditadura, publicando gente como Rei-
naldo Moraes, Leminski, Ana Cristina Cesar, Chacal, Caio Fernando Abreu. Mar-
ginais, novatos ou não, eram as novas vozes em alta velocidade, como se dizia,
inseridos até a alma na contracultura. Um novo tipo de poesia, prosa, narrativa
era impressa naquele momento. Disse Italo Moriconi: “É amarração de impulso,
é revolucionário. É uma geração de liberação comportamental.”
E, por sorte, sem autocrítica. Caso contrário, a tela continuaria em branco.
91
Renato Anelli
Arquiteto Urbanista (1982, PUCAMP); Mestre em História (1990, UNICAMP); Doutor em História da
Arquitetura (FAU USP/IUAV de Veneza); e Livre‑Docente em Projeto de Arquitetura (EESC USP, 2001).
Docente do Programa de Pós‑Graduação em Arquitetura e Urbanismo do Mackenzie. É Conselheiro
do Instituto Bardi / Casa de Vidro desde 2006, onde exerce a função de curador desde 2022.
* Este artigo é uma versão revista e ampliada da conferência proferida no MAXXI Museum de Roma,
na exposição Lina Bo Bardi in Italia. “Quello che volevo, era avere Storia”, em 26 de fevereiro de 2015.
1 Italiana nascida em Roma, 1914, onde formou‑se em Arquitetura. Emigrou para o Brasil em 1946,
nacionalizando‑se brasileira em 1953. Em 1955, foi autorizada a exercer a profissão de arquiteta pelo
Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura. Faleceu em São Paulo, em 1992.
2 SARKI, H. Leone D’Oro Speciale Alla Memoria, 2021, em https://www.labiennale.org/it/news/
lina‑bo‑bardi‑leone‑d%E2%80%99oro‑speciale‑alla‑memoria
3 Nascido em La Spezia, 1900, crítico e historiador de arte, marchand e ativista da arquitetura ra-
cionalista na Itália fascista. Em São Paulo, dirigiu o MASP até 1996, falecendo em 1999.
92
A mesma Lina, duas décadas depois, manifestou sua oposição a essa atitude
em um artigo publicado na revista italiana Architettura, Cronache e Storia5, no qual
reflete sobre o papel de um museu como o MASP em um país do Terceiro Mundo.
Referindo‑se à “cultura do silêncio” de Paulo Freire6, defende a necessidade “de
sair de uma cultura que deposita ideias de um sujeito sobre outro para conseguir
fazer obra de criação coletiva”.
Elaborou um entendimento de cultura ainda raro entre os arquitetos brasileiros
naquele momento, o qual se tornaria seu programa de ação nos anos seguintes.
4 BARDI, Lina Bo, “O Museu de Arte de São Paulo – Função Social dos Museus”, in Habitat, no. 1,
out/dez‑1950, p.17
5 BARDI, Lina Bo, Il Museo di Arte a Sao Paolo in L’Architettura, Cronache e Storia, n. 210, vol XVIII, n.
12, abril, 1973.
6 Encontra‑se na biblioteca da Casa de Vidro um exemplar da primeira edição italiana do livro.
Paulo Freire La Pedagogia degli Oppressi Arnoldo Mondadori Editore 1971. Na página de rosto, anota
“(...) o livro é muito importante. P. F. realizou no C.E.C em Recife e em todo o Brasil, um experimento
prático de escala mundial”. Lina se refugiou na Itália entre dezembro de 1970 e junho de 1971, en-
quanto seu marido Pietro Maria Bardi, preparava sua defesa em inquérito militar durante o período
mais repressivo da ditadura. Foi nesse período que adquiriu o livro de Freire, escrito em seu exílio no
Chile, em 1968. A edição italiana precede a primeira edição brasileira em três anos.
7 Rubino, S. A escrita de uma arquiteta, in Rubino, S. e Grinover, M. (Org.) Lina por escrito. Textos
escolhidos de Lina Bo Bardi. São Paulo: Cosac Naif, 2009, p. 30.
8 Freyre, G. Casa‑Grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia pa-
triarcal. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora. 1933 (10a. edição, 1958).
9 Teixeira, A. (1957) Educação não é privilégio, Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora.
93
94
Página anterior: Escada de Lina Bo Bardi, Solar do Unhão, Salvador. Foto: Cristina Aragão.
predisposição para o momento divisor de águas da sua trajetória, que foi a atua-
ção em Salvador, entre 1958 e 1964.
O interesse pela cultura popular na Bahia e no Nordeste foi mediado pela
aproximação dos Bardi à cultura modernista brasileira. Reconheceram, pouco
após sua chegada, a importância da Semana de Arte Moderna de 1922 e do
Manifesto Regionalista de 1926 no processo histórico de modernização do
país. Através da revista Habitat, editada pelo casal no MASP a partir de 1950,
pode‑se acompanhar o desenvolvimento desse interesse pela cultura popular
através dos modernistas.
Publicado no primeiro número da revista em outubro de 1950, o artigo de Lina
“Amazonas, o povo arquiteto” foi seguido pelo artigo “Ex‑votos do Nordeste”
de Pietro, onde fotos e texto comentam as pesquisas etnográficas realizadas pela
Missão de Pesquisas Folclóricas ao Norte e Nordeste do Brasil em 1938, parcial-
mente reunidas em 1944 no livro Escultura Popular Brasileira, de Luís Saia. Pro-
movida pelo Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo sob a direção
de Mario de Andrade. A missão foi conduzida pelo arquiteto Saia, que havia
estudado etnografia com Dina Lévi‑Strauss em 193610. Roteiros de expedições
como essas estão presentes nos artigos e no acervo de Lina, demonstrando, junto
com fotos, a importância das viagens metodicamente estruturadas no reconhe-
cimento do novo país.
Lina visitou Salvador para conferências em abril de 1958, retornando em agosto
para três meses de aulas na Universidade da Bahia. Além das aulas, escreveu uma
página dominical de cultura no jornal da rede de Assis Chateaubriand, criticando
o conservadorismo local. Conheceu Martins Gonçalves, diretor da Escola de Tea-
tro, sendo convidada para colaborar com ele na exposição Bahia no Ibirapuera no
ano seguinte. Ampla documentação etnográfica, objetos de culto sincrético, uten-
sílios para a vida cotidiana de trabalho e lazer, foram expostos sob a marquise, na
frente da V Bienal Internacional de Artes de São Paulo.
O sucesso da exposição levou ao convite do Governador Juracy Magalhães para
retornar a Salvador para dirigir o novo Museu de Arte Moderna. Implantado no
foyer do Teatro Castro Alves incendiado, Lina expôs artistas plásticos modernos
locais e recebeu exposições do MASP. Adaptou a rampa para abrigar o Cine Clube;
no interior do salão em ruínas, fez a cenografia de peças de Brecht e Camus diri-
gidas por Martins Gonçalves.
Além disso, conviveu com Glauber Rocha, acompanhando as filmagens de Deus
e o Diabo na Terra do Sol (1964); restaurou e adaptou o Solar do Unhão para ser a
nova sede do museu, pois o edifício do teatro seria recuperado. Para a inaugura-
ção do Unhão, desenvolveu uma pesquisa etnográfica em rede, com Lívio Xavier,
então diretor do Museu de Arte da Universidade do Ceará; e o escultor Francisco
Brennand em Recife. Chefe da Casa Civil do Governo do Estado de Pernambuco,
entre 1963 e 1964, Brennand a introduziu no Movimento de Cultura Popular, mas
não temos comprovação de que tenha conhecido Paulo Freire pessoalmente nessa
ocasião.
10 Dina permaneceu no Brasil entre 1935 e 1939, junto com seu marido Claude Lévi‑Strauss, então
professor da Universidade de São Paulo. Período no qual o antropólogo francês realizou suas primei-
ras expedições, depois reunidas em Lévi‑Strauss, Claude. (1955) Tristes Tropiques, Paris: Librairie Plon
(edição presente na biblioteca da Casa de Vidro).
95
S
essas ficarão.”
Carlos Drummond de Andrade
pelo contrário. Isso nos ajudará a tentar compreender o universo que nos rodeia,
do qual também somos parte. Portanto, abrir os olhos e prestar atenção à imensa
fartura gráfica e estética das manifestações populares presentes no Brasil e em
todos os países da América Latina é um profundo exercício de desenvolvimento
pessoal. A criatividade espontânea que encontramos por toda parte é impressio-
nante, daí a urgência e a necessidade de se documentar tal extensa produção,
uma vez que parte destas manifestações está desaparecendo aos poucos, frente à
chamada “globalização”, enquanto outras estão se modificando, até por se tratar
de criações populares. Reconhecer e celebrar tais obras certamente nos ajudará a
compreender em que mundo vivemos.
O mundo real
Por outro lado, devemos prestar atenção e abrir nossos ouvidos para escutar o
que se fala nas ruas, nos ônibus, nas feiras, nos bairros. Este é um excelente método
de autoconhecimento, além de nos ajudar a entender como a vida se comporta
além da nossa própria, seja em nosso próprio país como também no exterior.
Recentemente, peguei um táxi no Rio de Janeiro. No trajeto, devido a um susto
por algo que aconteceu no trânsito, o motorista me disse: “A gente sofre muito de
pressão visual”. E me explicou: “Sabe aquela coisa de ser do interior, de acreditar
em algumas coisas que, vendo agora, é até ridículo, burro mesmo. Pois é, comigo
é assim. Eu acreditava, veja só, que os artistas, esses que estão na televisão, eu
achava que eles não iam ao banheiro, que eles não faziam essas coisas. A pressão
visual que eu sofria com isso, de achar essas coisas, e também por me achar dife-
rente deles, até hoje eu tenho medo até de pensar”.
E continuou: “Outra coisa: tem a pressão visual que afeta todo mundo. É o
seguinte: você tá na fila do bar, todo educado, ‘por favor isso, por favor aquilo’,
esperando a sua vez de ser atendido. E aí vem aquele cara enorme, alto, e pede o
que ele quer por cima de todo mundo, só porque é alto, e o cara atende a ele antes
de atender você, que tá ali na fila. Essa é uma pressão visual a que todo mundo
está sujeito, que todo mundo é afetado por ela”.
“E tem outra, uma pressão visual que eu mesmo causei” – acrescentou. “Eu fui
abandonado pela minha mãe, e meu pai morreu quando eu era bem novinho. Daí
eu tenho, assim, uma carência mesmo. Eu não jogava bola – até gostava – mas não
jogava, pois tinha um cara que sempre batia em mim. Qualquer coisa que acon-
tecia, quando a gente estava jogando bola, ele vinha e batia em mim. Mas mesmo
assim, de vez em quando eu jogava. Aí, um dia, depois de um tempão sem ele me
bater, a gente jogava bola – eu já tinha uns 17 anos – e estava distraído. Fizeram
um gol, e eu era o goleiro. Aí veio o cara para me bater, e eu pensei que já estava
com 17 anos, que há muito tempo ele não me batia, e que ele até era pequeno.
Eu fiz assim, sabe, me preparei para brigar, com os braços prá frente, em pose de
luta de boxe. Fiz assim e ele, que vinha vindo, olhou, parou e voltou. Depois todo
mundo disse que eu dei um pau nele, que isso, que aquilo… Nós nem brigamos,
acho que ele se assustou com a minha posição e nunca mais mexeu comigo. Dizem
que comprou uma arma pra me matar. Daí eu saí de lá, vim embora – não é ‘vim
m’embora’ que assim tá errado – vim embora, porque eu já vinha mesmo para o
Rio. Mas viu? Eu fiz uma pressão visual que deu certo para mim”.
Viva a inteligência popular. O mundo gira e a Lusitana roda!
100
A
Engenheiro e artista de domingo. É autor de Mário Pedrosa, retratos do exilio.
1 Di Cavalcanti, E. Realismo e abstracionismo, Fundamentos n.o 3. São Paulo, 1948 (ICAA Record ID
1110347).
101
O que acho vital, porém, é fugir do abstracionismo. A obra de arte dos abstracionistas
tipo Kandinski, Klee, Mondrian, Arp, Calder é uma especialização estéril. Esses artistas
constroem um mundozinho ampliado, perdido em cada fragmento das coisas reais: são
visões monstruosas de resíduos amebianos ou atômicos, revelados pelos microscópios
de cérebros doentios.
Ir o artista buscar alimento para a imaginação nesses desvãos do mundo não me
parece obra da razão. E o necessário para que o homem seja humano é que guarde seu
raciocínio equilibrado. Os apologistas dessa arte (...) para justificar a inatualidade de
seus abortos estéticos invocam a tirada de Paul Valéry: “Le faux et le merveilleux sont plus
humains que le vrai”.
A revolução do anarquismo modernista destes últimos tempos não é revolução, é uma
conjuração doentia de indivíduos à margem da sociedade de seu tempo.
No veo por qué la necesidad de abstención intransigente del tema. Sobretodo hoy,
que se puede aprovechar toda la experiência plástica, quedando el artista con una liber-
tad absoluta: como un niño de cuatro años que tuviese un cuadro de mil metros por
mil para divertirse. Todo artista que meditara sobre los acontecimentos que perturban
el mundo, llegará a la conclusión de que haciendo un cuadro más “legible”, su arte, en
vez que perder, ganará; y ganará mucho, porque recibirá el estímulo del pueblo.
A supremacia desses artistas nada perde por seguir a natureza, mas carecem de
autonomia cultural. Insurgiram-se em combat à l’outrance contra arte abstrata, mas
seus tambores repetiam repiques de fora. Cavaram mais fundo no Modernismo,
mas eram conservadores antes de mais nada. O século XX soara desde muito.
Deus os leve a salvamento.
Por fim, público e crítica abrem alas para o abstracionismo, que foi tiro de graça
na arte figurativa. Foi rebelião menor porque dependente. Travaram guerra sem
quartel contra os beaux-arts mas faltou-lhes a largueza da ruptura.
Quão distantes estiveram Bandeira, Iberê, Serpa, Volpi dos mestres Kandinsky,
Delaunay, Pollock, Mondrian, Miró, Malevich, Klee, Rothko ou da sueca Hilma
af Klint, disparada na frente deles todos? Pouco ou nada. Combatiam ombro a
ombro, como un solo hombre. Os prêmios de viagem dos salões de arte moderna
destinavam às mecas das artes seus discípulos sedentos de verdadeiro saber.
O neoconcretismo foi o toque de finados da arte abstrata. Abriu de par em par as
portas à arte de hoje, que pode ser englobada no conceito de “arte pós moderna”,
de Mário Pedrosa, e que descortina os tempos que estão por vir.
O movimento não veio chovido do céu. Os neoconcretistas viam na obra de
Mondrian os primeiros passos no sentido da total integração da arte na vida quo-
tidiana. Os bichos de Lygia Clark inserem-se nas vertentes traçadas por Moholy-
Nagy. Logo os fazimentos de Hélio Oiticica e Clark ganham voo próprio, como
crias emplumadas.
Na I Exposição de Arte Neoconcreta, no Museu de Arte Moderna do Rio de
Janeiro, em 1959, viu-se como os rebeldes rosnavam face às correntes não figura-
tivas do momento:
2 Portinari, C. Sentido social del arte, Mensaje n.o 24. Uruguai, 1948 (ICAA Record ID 1313089).
102
Não concebemos a obra de arte nem como “máquina” nem como “objeto”, mas como
um quasi-corpus, isto é, um ser cuja realidade não se esgota nas relações exteriores de
seus elementos; um ser que, decomponível em partes pela análise, só se dá plenamente
à abordagem direta, fenomenológica.
Se tivéssemos que buscar um símile para a obra de arte, não o poderíamos encontrar,
portanto, nem na máquina nem no objeto tomados objetivamente, mas (...) nos organis-
mos vivos. Essa comparação, entretanto, ainda não bastaria para expressar a realidade
específica do organismo estético.
Nota-se na espacialização da obra de Lygia Clark que a obra sempre está presente
e sempre recomeça. Sua criação reacende a experiência primeira e plena do real.
Oiticica destrói o plano e funda novos espaços expressivos. Suas formas des-
velam expressão cósmico-orgânica. Ele dizia em 19663:
A minha posição foi sempre de que só o experimental é que interessa, a mim não
interessa nada que já tenha sido feito (...). De modo que pintura e escultura para mim
são duas coisas que acabaram mesmo, não é nem dizer que eu parei de pintar ... não foi
isso, eu acabei com a pintura, é totalmente diferente ...
Lygia foi artista da primeira importância. Fez trabalho inovador por três décadas.
Antecipou a visão atual sobre o corpo e descortinou relações entre arte e sociedade.
Afastando-se da pintura monocromática dos anos 50, tomou caminho mais concei-
tual, enveredando-se na criação de objetos efêmeros associados à mutabilidade e par-
ticipação do espectador. Explorou a percepção sensorial e interação psíquica de todo
tipo: o ritual sem mito. Terminou seus dias criativos adentrando psicoterapia e cura.”
Lygia altera o rol do artista, espectador e objeto mediador. O objeto já não é uma
representação. Sua existência não teria significado senão na relação entre participantes
como seres pluri sensoriais.
David Medalla considerava que os bichos de Lygia tinham um coração invisível ao
qual todas as fases de cada construção estão organicamente ligados. Os trabalhos tar-
dios de Lygia ressaltavam o visceral sem perder sua qualidade abstrata, no sentido da
experiência física de contrários: leve/ pesado, vazio/lotado, quente/frio, luz/trevas.
Guy Brett em Uma cronologia de encontros, 1964-20055 relata que o “ato de vida”
pode ser acompanhado passo a passo nos trabalhos iniciais de Lygia, Hélio e Lygia
Pape. Segundo o crítico inglês, sua arte revela-se como um dos processos artísti-
cos mais estimulantes da segunda metade do século XX.
Quis Lygia libertar a criatividade de todos sem qualquer limite social ou psico-
lógico. As proposições de Lygia fundem corpo e mente. Seus objetos estabelecem
relações sensuais com o corpo por meio do peso, tamanho, textura, elasticidade,
6 Arantes, O. De “Opinião-65” à 18.a Bienal. Novos Estudos n.o 15, Cebrap. São Paulo, 1986.
7 Hidalgo, L. Arthur Bispo do Rosário – O senhor do labirinto. Editora Rocco, Rio de Janeiro, 1996.
104
Poesia
Antonio Cicero
C
Ocupante da Cadeira 27 na Academia Brasileira de Letras.
Sazonada caramunha2
Enfim, que na Santa Sé
O que mais se pratica é
Simonia, inveja, unha
1 Bandeira, Manuel, Apresentação da poesia brasileira seguida de uma antologia (São Paulo: Cosac
Naify, 2009), p.11. O poema inteiro se encontra no mesmo livro, na sessão de “Antologia”, da página
218 a 222.
2 Ibid., p, 223 a 224. O poema inteiro se encontra da página 222 a 224.
106
Esse poema começa já com certo pessimismo, seguido por várias interrogações. A
quem ele parece questionar? Exatamente ao Deus considerado como único, onipo-
tente, onisciente, boníssimo, perfeito do Catolicismo. Como poderia tal deus que-
rer que as coisas belas não permanecessem? Como poderia querer que na alegria
fosse sentida tristeza? Se existisse um deus que possuísse as qualidades citadas e
houvesse criado o mundo, como poderia este o mundo começar pela ignorância e
deixar que todos os bens fossem inconstantes? Assim, trata-se de um poema que
deixa muito claro que Gregório recusa o deus do catolicismo.
O resultado da poesia e do estilo de vida de Gregório, já conhecido como “Boca
do Inferno”, é que ele foi perseguido pela Inquisição, que acabou por submetê-lo
a um julgamento, que o condenou ao degredo em Angola, em 1694.
Em Angola, tendo pegado uma febre, resolveu voltar para o Brasil, porém, como
não podia regressar à Bahia, dirigiu-se a Recife.
Corre que, dois anos depois, sentindo-se à beira da morte, em Pernambuco,
Gregório, mesmo conhecido como “Boca do Inferno”, solicitou a presença de
dois padres. Dois padres teriam vindo e, ao se colocarem em torno dele, ouvi-
ram-no dizer que estava a morrer como Jesus Cristo, crucificado entre dois
ladrões...
Quanto à poesia lírica ou amorosa, basta ler a última estrofe, isto é, a conclusão
do seu poema “Definição do amor”:
O Amor é finalmente
Um embaraço de pernas,
Uma união de barrigas,
Um breve tremor de artérias,
Enfim, mesmo neste texto relativamente curto, espero ter deixado claro que a
autêntica poesia de Gregório de Matos é fundamentalmente satírica.
3 Moisés, Massaud, A literatura brasileira através dos textos (São Paulo: Cultrix, 2012), p. 45.
4 Essas últimas estrofes do poema Definição do amor são destacadas na excelente antologia
de José Miguel Wisnik: Wisnik, José Miguel. Poemas escolhidos de Gregório de Matos (São Paulo:
Companhia das Letras, 2010), p.31. O poema inteiro se encontra na mesma obra, da pág. 301 a
309.
107
Biblioteca
Ode à Biblioteca
Marco Lucchesi
Q
Ocupante da Cadeira 15 da Academia Brasileira de Letras.
***
O mais do mundo aqui se encontra. A Biblioteca Nacional é dos mais belos ecos-
sistemas do Brasil. Floresta de exemplos, natureza e cultura, memória social, que
cada geração guardou.
***
“O tesouro do conhecimento e da sabedoria, a que todos os homens aspiram, por instinto natural,
supera em muito todas as riquezas do mundo reunidas; perto dele, as pedras preciosas se degra-
dam, a prata se oxida e o ouro, areia fina, vira lama. Comparado ao seu esplendor, o Sol e a Lua
são eclipsados, à sua doçura o sabor do mel e do maná tornam-se amargos”.
Eclipse do Sol e da Lua. Nosso maior tesouro e capital simbólico chama-se Biblio-
teca Nacional. A oitava cidade dos livros. A nossa mais antiga casa de cultura.
Eis a razão pela qual a Biblioteca não é órgão de governo, mas de Estado; usa
o plural, não se apequena em partes ou fração; não é trincheira ideológica, nem
deve promover a parte contra o todo. Seu estatuto é a acolhida.
Índices e motores de busca são lentes, que sondam a máquina do tempo e da
leitura.
Esta Casa possui 72 quilômetros de prateleiras. Seus hóspedes aumentam dia a
dia. Não é pequena a taxa demográfica. O mundo dos livros e o livro do mundo
coincidem. Modelos de Universo inflacionário. Multiverso.
A travessia da Biblioteca é uma viagem terrestre e celeste: nas infovias, mapas
e armazéns. Como disse J.L. Borges, bibliotecário de Babel:
“Se um eterno viajante atravessasse, em qualquer direção, verificaria ao longo dos séculos que
os mesmos volumes se repetem na mesma desordem (que, repetida, seria uma ordem: a Ordem).
Minha solidão se alegra com essa elegante esperança.”
Viajantes nos limites desse espaço, a bem de todos, para sempre inacabado.
A biblioteca vive da soma dos tempos. Nutre-se de uma adição épica.
Mais do que eterna, é sempiterna. Antes de ser lugar, é um conceito; antes de
ser depósito, um sistema.
Onívora, incontida. Seus muros se tornaram transparentes. Capítulo inovador,
segundo Darnton, a “biblioteca sem paredes, acessível em toda a parte, contendo
a quase totalidade do que se encontra nos acervos da cultura humana.”
A Biblioteca Digital é um divisor de águas. Trata-se de uma conquista repu-
blicana. Precisamos ampliá-la, criando um robusto centro de dados, um amplo
setor de tecnologia da informação e comunicação. Noventa milhões de acessos
num ano.
Ampliar o acervo digital. É parte de uma agenda democrática, da Biblioteca,
enquanto centro da diversidade, como apontam os documentos da IFLA.
A biblioteca é uma assembleia interminável, um centro de cultura e difusão, que
se renova com os leitores-cidadãos. Não há distância entre a leitura e a democra-
cia. Não pode haver.
O papel do bibliotecário torna-se mais fundamental. Vamos abrir o diálogo sobre
o futuro das bibliotecas nacionais. Horizonte complexo e fascinante, como lembra
John Palfey, em Bibliotech, na inscrição de novos paradigmas.
109
***
***
Ciência
O Direito à Saúde e a
Construção do SUS –
O Sistema Único de Saúde
I
Conselho Consultivo do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes)
Parte deste artigo foi adaptado de COSTA, A. M.; NORONHA, J. C.; NORONHA, G. S. Barreiras ao universalismo do
sistema de saúde brasileiro. In: TETELBOIN C; LAURELL AC. (Org.). Por el derecho universal a la salud: una agenda
latinoamericana de análisis y lucha. 1ed.Buenos Aires: CLACSO, 2015, p. 17-39.
111
A jornada até este momento foi bastante longa e foi preciso que o Brasil sofresse
grandes transformações econômicas, sociais e políticas ao longo do Século XX. No
alvorecer dos 1900, o país era essencialmente rural, combinando a agricultura de
subsistência com a produção de café e, em menor escala, de algodão para exporta-
ção. Sua população, cerca de 17 milhões, concentrava-se ao longo da Costa Atlân-
tica. Fazia pouco tempo que havia sido abolida a escravidão (1888) e proclamada a
República (1889). As precárias condições sociais levavam a uma baixa esperança de
vida: 33,4 anos em 1910. A varíola, a cólera e o impaludismo ceifavam vidas adul-
tas, ao tempo que as diarreias agudas levavam os infantes. A assistência à saúde
restringia-se, no setor privado, às camadas mais ricas, aos médicos particulares;
e para os restantes, às Santas Casas e outras poucas entidades beneficentes desti-
nadas aos pobres, vindas desde os tempos de Colônia. Na área pública, além de
hospitais militares, nos fins do século XIX começaram a aparecer, por iniciativas
das províncias ou do governo central, os estabelecimentos destinados aos febris,
lunáticos e morféticos.
Somente na virada do século apareceram as primeiras intervenções estatais em
saúde, associadas ao saneamento dos portos, em particular do Rio de Janeiro, com
as campanhas de Oswaldo Cruz para erradicação da febre amarela e da varíola.
Do ponto de vista da atenção à saúde, foi preciso esperar a década de 1920 para
que aparecessem estruturas governamentais de suporte ao combate à tuberculose
e aos cuidados com a infância.
A ditadura militar
O regime militar não ficou distante da necessidade de ampliar sua base social
de apoio, como compensação pela supressão das liberdades civis e o controle sin-
dical. De modo autoritário, promoveu ampla reforma do sistema previdenciário,
com a unificação dos IAPs em 1966, criando o Instituto Nacional da Previdência
Social (INPS). Aquela reforma, ao tempo que afastou as lideranças sindicais que
davam suporte ao regime anterior, modernizou o sistema, desenvolveu uma nova
burocracia, manteve a capacidade de responder aos trabalhadores vinculados aos
antigos IAPs. Simultaneamente foram criados mecanismos para fortalecimento das
alternativas assistenciais das empresas, abrindo um importante caminho para a
ampliação e fortalecimento do setor empresarial da saúde no país (Oliveira, Tei-
xeira, 1986; Cordeiro, 1984).
Em outra frente, através da reorganização do Funrural (criado em 1963) de
maneira que pudesse servir como um componente do controle social das tensões
no campo. É o Funrural que vai levar, de maneira orgânica, a assistência médico-
sanitária para além dos serviços prestados pelas municipalidades.
Também é criada, em 1971, junto à Presidência da República, a Central de Medi-
camentos – CEME com o objetivo de “promover e organizar o fornecimento, por
preços acessíveis, de medicamentos de uso humano a quantos não puderem por
A edificação do SUS
A partir da Constituição e de medidas administrativas durante período da
Nova República, desenhou-se um arranjo institucional que seria extremamente
relevante para a configuração de um sistema capaz de levar cuidados de saúde,
gratuitos no ponto de prestação a três quartos da população brasileira, além de
medidas gerais de proteção sanitária a toda a população. A abolição da necessi-
dade da contribuição previdenciária para a obtenção dos serviços necessitava,
também, que se expandisse de maneira articulada a rede para a prestação dos
cuidados. Isso foi construído de maneira engenhosa pela articulação entre a
União, os Estados e os Municípios de mecanismos de planejamento e coordena-
ção funcional que foram estabelecidos pela chamada “Lei Orgânica da Saúde”
(Lei 8080/1990) e uma sequência de atos administrativos cuja continuidade
pode ser mantida ao longo dos anos, a despeito de algumas mudanças radicais
na orientação dos governos que se sucederam até o presente. Foi o estabeleci-
mento dessa estrutura tripartite que permitiu a estabilidade (ratificado pela Lei
12.466/2011). Divergências políticas entre os diferentes governos e entre as três
esferas foram sendo compensadas pela necessidade de cooperação e compen-
sação dos desequilíbrios.
Igualmente relevante foi a perenização de mecanismos de participação social,
impulsionados pela histórica 8a Conferência Nacional de Saúde, de 1986, que aju-
dou a afirmar princípios do direito à saúde que foram incorporados à Constituição
de 1988, que obtiveram respaldo legal através da Lei 8142/1990, através da cria-
ção de conselhos de saúde com representação de gestores, trabalhadores e usuá-
rios nas três esferas de governo.
Interessante observar que a descentralização decisória e operacional do SUS, ape-
sar de facilitar em muitos casos a fragmentação do sistema, permitiu a expansão da
sua base de apoio político pela multiplicação das demandas políticas de diferentes
matizes dos agentes municipais, estaduais e federais. Por conta do sufrágio universal
115
Referências
Brasil 1988 “Constituição da República Federativa do Brasil” em <http://www.planalto.gov.br/cci-
vil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>.
Brasil 1990 “Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990” em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/l8080.htm>.
Brasil 1990. “Lei no 8.142, de 28 de dezembro de 1990” em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/l8142.htm>.
Brasil 2011. “Lei no 12.466, de 24 de agosto de 2011” em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
Ato2011-2014/2011/Lei/L12466.htm#art1.
Brasil 2015 “Indicadores e Dados Básicos – 2012” em <http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/idb2012/
matriz.htm>.
Cohn, Amélia 1981 Previdência social e processo politico no Brasil (São Paulo: Moderna).
Conselho Nacional de Saúde 2015 “Terceira Conferência Nacional de Saúde” em <http://conselho.
saude.gov.br/biblioteca/Relatorios/relatorio_3.pdf>.
Cordeiro, Hésio de Albuquerque 1984 As empresas médicas: as transformações capitalistas da prática
médica (Rio de Janeiro : Edições Graal).
Cordeiro, Hésio de Albuquerque 1991 “Sistema Único de Saúde” (Rio de Janeiro: Ayuri Ed: Abrasco).
Delgado, Guilherme 2001 “Expansão e modernização do setor agropecuário no pós-guerra: um estudo da
reflexão agrária” em Estudos Avançados (São Paulo) Vol.15, No 43, Setembro – Dezembro, pp.157-172.
Donnangelo, Maria Cecília Ferro 1975 Medicina e sociedade: o médico e seu mercado de trabalho (São
Paulo: Pioneira).
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística 2006. “Estatísticas do Século XX” em <http://
seculoxx.ibge.gov.br/>.
Lima, Nísia Trindade; Fonseca, Cristina Oliveira e Hochman, Gilberto 2005 “A saúde na construção
do estado nacional no Brasil: reforma sanitária em perspectiva histórica” em Lima, Nísia Trindade;
Gerschman, Silvia; Edler, Flavio Coelho e Suárez, Julio Manuel (orgs.) 2005 Saúde e democracia:
história e perspectivas do SUS (Rio de Janeiro: Fiocruz).
Oliveira, Jaime de Araujo e Fleury Teixeira, Sonia Maria 1985 (Im)previdência Social: 60 anos da his-
tória da Previdência no Brasil (Petrópolis: Vozes).
Paim, Jairnilson 2008 Reforma Sanitária Brasileira: contribuição para a compreensão crítica (Salvador:
Edufba).
116
Cristina Aragão
“H
Jornalista e documentarista.
perto de onde aconteceu a Flup. É ali também, ao pé da Ladeira, que fica o Cais
do Valongo, que foi o maior mercado de escravos do Brasil.
Um dos livros doados pela ABL é o primoroso trabalho de Ubiratan Machado,
Dicionário de Machado de Assis, uma edição que a Academia fez, em parceria
com a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo e a Imprensa Nacional, de Portu-
gal. O livro oferece em formato de verbetes “o essencial do conhecimento atual do
escritor”, informa Ubiratan Machado no portal de recepção do livro.
Machado de Assis é cria da favela, como se define o filho da terra. Pois grandes
escritores de hoje também são crias da Flup. Geovani Martins já chegou chegando
no mundo literário com seu fabuloso livro de contos, publicado em 2018, O Sol
na cabeça. A obra já foi lançada em vários países. Geovani trabalhava como aten-
dente de barraca de praia quando, em 2013, participou das oficinas da Flup. Em
2022, venceu o prêmio de Melhor Romance, concedido pela Associação Paulista
de Críticos de Arte (APCA) com Via Ápia.
Jessé Andarilho. “Brotei na Flup”, postou em seu Instagram. “Eu achava que para
pegar um livro tinha que lavar as mãos umas cinco vezes.” Andarilho foi repro-
vado cinco vezes no ensino fundamental e duas no ensino médio. Leu o primeiro
livro aos 24 anos. O livro: No Coração do Comando. O autor: Julio Ludemir. “Me
identifiquei porque as palavras eram acessíveis, que eu usava no dia a dia”, conta.
“O nome Andarilho é meu batismo das ruas”, por espalhar pichação pela cidade.
Começou a escrever no trem, no bloco de notas do celular nas duas horas de ida
e de volta do eixo diário casa-trabalho-casa. É autor de Fiel, de Efetivo Variável e
criador do Instituto Marginow, uma ação de incentivo à leitura.
Mais uma cria da Flup: Yasmin Tayná, menina negra de Nova Iguaçu. Ela aprendeu
a escrever roteiro, dirigiu a Comunicação da primeira Flup (2012) no Morro dos Pra-
zeres, em Santa Teresa. A Flup também organiza processos de formação para escrito-
res e roteiristas. Hoje, aos 30 anos, dirige e roteiriza documentários e séries para strea-
mings. Acaba de dirigir para a Amazon Prime a série de ficção Amar é para os fortes.
“Eu sou uma semente da Flup, há várias por aí. A Flup foi um atalho para mim”.
– Tudo nosso é construído. Nada acontece em um dia, a Flup não é uma nave
pousando nas favelas. Plantamos ideia e depois cuidamos – me disse Ludemir.
Simone Mota, outra cria, tem 14 livros infantis publicados. Dois traduzidos para
o francês e editados pela editora Six Citrons acides: Pêcheur d’avril e Si le singe
fait des singeries. “Na França, os meus livros já saem com uma tiragem de 2000
exemplares, aqui a coisa é diferente. Caminhamos em passos de formiguinha,
temos pouco apoio. Queremos mais protagonismo negro”, disse ela.
Este ano, Simone coordenou um cortejo pela favela. Autoras de livros infantis
foram ler nas casas das crianças. Acompanhei as leituras. Algumas famílias, des-
confiadas, não quiseram abrir suas casas. Seguimos ladeira abaixo e avistamos
um menino debruçado no alto da laje. Ele nos observava, curioso. Convidamos o
menino a participar da leitura. Mas ele sumiu na paisagem. Até que vimos, numa
janela, três meninas. Luna Maria, 12 anos; Lara Marina, de nove; e Lavínia Vitó-
ria, de oito. Ainda estavam com as toucas de dormir que protegem os cabelos. As
escritoras Anamô e Daiana de Souza leram para as três irmãs.
“Por que o nome Anamô? Ganhei o mô da minha mestra de capoeira. Ela brincou
com o iorubá”, explicou. Anamô puxou o violão para quebrar o gelo e leu No quin-
tal da vovó Lydia. “É a minha infância com a avó que não é avó de sangue, mas é a
ancestralidade que ela traz pra gente”. Valor da memória. A escritora trabalha num
projeto chamado “Lê comigo”, que leva as leituras para escolas públicas. Tímidas
frente à novidade, as três irmãs falavam com os olhos. E com as mãos. Manuseavam
119
aquele objeto, olhavam as ilustrações. E, vez por outra, davam um sorriso amarrado
no rosto. De novo, o valor da memória. Daiana leu Jornal dos Tigres, história do
abolicionista negro José do Patrocínio. Escritor, acadêmico, participou das sessões
preparatórias da Academia Brasileira de Letras e fundou a cadeira 21. Os príncipes
e princesas são a avó, José do Patrocínio, Marielle Franco, sempre presente.
Parte dos livros doados pela ABL também está na Sala de Leitura Machado de
Assis, que fica na Arena Samol, um espaço acolhedor em que as crianças também
têm aulas de reforço. A Editora Malê é uma força importante para a publicação de
escritores negros e ditos periféricos. Este ano, a Malê lançou na Flup o livro Qui-
lombo do Lima, organizado por Julio Ludemir. Diz a orelha: “A missão: reunir
22 autores, todes negres como o próprio Lima Barreto, para reescrever a sua obra
imortal, capaz de resistir aos incontáveis esforços de apagamentos”.
A força da memória também trouxe uma grande homenagem à Mãe Beata de
Iemanjá. Beatriz Moreira Costa morreu em 2017. Feminista avant la lettre, fez da
oralidade sua escrita. A jornalista Flávia Oliveira recebeu no palco filhos, neta e
amigos da Iyalorixá fundadora do Ile Axé Omiojuaro, terreiro de candomblé, em
Nova Iguaçu, RJ, espaço premiado pelo IPHAN.
A conversa andava e a feijoada circulava pelas mesas. Casa cheia, a organiza-
ção somou três mil pessoas. A noite se aproximava quando Gilberto Gil e Haroldo
Costa subiram ao palco para uma conversa mediada pela escritora Eliana Alves
Cruz. Haroldo Costa volta os olhos para o Cais do Valongo. “Os nossos avós e
bisavós aportaram aqui. Muitos sucumbiram e tiveram o oceano como túmulo.
Muitos vieram e trouxeram essas sementes que estão aqui, dentro de nós. A his-
tória do Brasil foi contada sob o ponto de vista do chicote. E não das correntes.
É preciso colocar o ponto de vista das costas”.
E Gilberto Gil lembrou Joaquim Nabuco, um dos fundadores da Academia
Brasileira de Letras, ao lado de Machado de Assis. “Nabuco achava fundamen-
tal complementar a abolição que tinha sido parcialmente feita.” E se refere a uma
pós-abolição: “Era necessário que essa abolição se complementasse, que essa abo-
lição permanecesse no horizonte, na luta diária da reivindicação permanente do
povo brasileiro, que ela se fizesse cada vez mais extensiva, cada vez mais profun-
damente. A ponto de podermos dizer num determinado momento de nossa his-
tória que finalmente tínhamos abolido a escravidão.”
Peço ajuda para a cria da Flup, Yasmin Tayná, para localizar na multidão o escri-
tor Otávio Júnior. Escritor, ator, contador de história, morador da Penha e um dos
eleitos pelo Jabuti na categoria infantil com o livro Da minha Janela.
Era 1992. O menino Otávio, com oito anos, voltava da igreja com a mãe, Joana
d´Arc. Andou em direção ao campo de futebol bem no meio do depósito de lixo
do Caracol, no complexo das favelas da Penha, um dos maiores do Rio de Janeiro.
Avistou uma caixa de brinquedos. Nela havia um livro, o Don Gatón, da Coleção
Peteleco. Tratou de levar o livro para casa. A partir daí, começou a frequentar biblio-
tecas públicas. “Eu lia muito Ziraldo, Ana Maria Machado, Ruth Rocha, Rogério
Andrade Barbosa, Lygia Bojunga. E eu via que as crianças da minha comunidade
não tinham o mesmo interesse que eu tinha pelos livros, então eu pensei ‘o uni-
verso literário é tão rico e mágico, por que as crianças não gostam de ler’? Come-
cei a fazer cafés literários para contar histórias. Começou na minha rua, depois na
minha comunidade, depois em outras comunidades, fui entrando em contato com
editoras e autores, pedindo doação de livros. O projeto ‘Ler é 10 ‘ é um projeto iti-
nerante, não tem uma sede. Muitas crianças acham que a leitura é chata porque
nas escolas a leitura é tratada como obrigação”.
Otávio levava uma mala com livros e abria uma tenda. Ele percebia que os olhos
das crianças brilhavam. Hoje, Otávio está com 39 anos. Guarda há 31 anos o seu
primeiro livro, o que encontrou no lixão da favela.
Todas as favelas têm as suas “ilhas”, espaços controlados e gerenciados. A Ladeira
do Livramento, onde morou Machado de Assis, é uma dessas ilhas e quanto mais
pobre e vulnerável o morador, menor é a articulação com o asfalto. Portanto, cons-
truir redes, provocar aproximações, é mais do que estratégico, é linha de sobrevi-
vência. E é esse um dos papéis da Flup, há mais de dez anos.
Observo um papel na Ladeira do Livramento. Está escrito “provisório”. Foto-
grafo. Não importa de onde vem essa informação nem qual o sentido do provi-
sório. Chego em casa, na Gávea, revejo a imagem e me correspondo com a frase
do Ludemir. Há várias maneiras de se relacionar com uma favela quando você é
um corpo estranho a ela.
Outono de 2023.
121
Julio Ludemir
E
Escritor e criador da Festa Literária das Periferias.
em nós” levou centenas de mulheres negras para ouvir Conceição Evaristo, Ana
Maria Gonçalves e Vera Eunice falarem da importância do clássico Quarto de des-
pejo para toda e qualquer mulher negra. Foi uma apoteose.
Em 2020 a FLUP se reinventou com a Covid-19 e aderiu ao formato digital para
homenagear Carolina Maria de Jesus e Lélia Gonzalez. As entrevistas internacio-
nais da Flup Pelo Mundo, entre as quais a de maior impacto foi com o filósofo
camaronês Achille Mbembe, alcançaram mais de 200 mil pessoas em cinco paí-
ses. O processo formativo Uma revolução chamada Carolina foi um alento para 300
mulheres negras de todo o país, que durante a pandemia acompanharam com
entusiasmo as 15 semanas consecutivas de debates entre mulheres negras, a partir
da celebração que fizemos pelos 60 anos de Quarto de despejo, primeiro livro escrito
por uma mulher negra brasileira a fazer sucesso internacional. O livro decorrente
desse processo, Carolinas, já nasceu um clássico: sozinhas, as 186 autoras que com-
partilharam esta coletânea de contos e crônicas superavam o número de mulhe-
res negras publicadas ao longo da história de nossa indústria editorial. Não à toa,
esgotamos a primeira edição em semanas.
Em 2021, montamos um formato híbrido em que nossos processos formativos
foram on-line e o festival propriamente dito marcou nossa volta, não apenas aos
eventos presenciais, mas às nossas origens na favela, em uma nova visita ao com-
plexo de favelas Babilônia/Chapéu Mangueira. Homenageamos Esperança Gar-
cia com um livro de cartas escritas de e para mulheres negras e uma miríade de
ações dentro das duas favelas, como uma gincana literária para as crianças, saraus
e dois slams altamente inovadores – o primeiro apenas com poetas indígenas e o
segundo com poetas das três Américas.
A favela se emocionou com as projeções que fizemos para homenagear o com-
positor Aldir Blanc, cujos poemas foram lidos em voz alta por Maria Bethânia
através da Kombi do Ovo. Aquela era também nossa décima edição e, para cele-
brá-la, criamos uma grande programação on-line para pensar o spoken word, convi-
dando para debatê-lo desde Marc Smith (o criador do poetry slam) até Luna Vitro-
lira (uma das organizadoras da cena de mesas de glosas femininas no Sertão do
Pajeú), passando por Luiza Romão e Leo Castilho. Vamos voltar a esse tema em
outubro de 2023, agora fisicamente.
Em 2022, ousamos dialogar com os 100 anos da Semana de Arte Moderna, mos-
trando que ela não levou em consideração artistas e escritores fundamentais para a
criação da ideia de um Brasil moderno, como Pixinguinha e Lima Barreto. Milhares
de pessoas invadiram o Museu de Arte do Rio e o Museu da História e da Cultura
Afro-Brasileira para prestigiar a programação multimídia, que chegou a reunir 800
ativistas, artistas e pensadores negros ao longo de oito dias de uma programação
que começava às duas da tarde e se estendia até as duas da madrugada. A edição
de 2022 também ficaria marcada pela realização do primeiro Slam BR fora de São
Paulo, que levamos para a Maré de Marielle Franco em dezembro, mais uma vez
suspendendo uma sangrenta guerra entre polícia e o tráfico de drogas.
No período eleitoral, organizamos o ciclo Quilombo do Lima, com o qual prepa-
ramos um livro com 22 autores negros revelados por nossos processos formativos
em anos anteriores. E discutimos sua obra instigante apenas com pessoas negras
que já tivessem assinado romances, como Paulo Scott, Geovani Martins, Mari-
lena Felinto e Lázaro Ramos, entre outros. O ciclo de debates aconteceu nos dias
30 de outubro e 1o de novembro. Além de acontecer no dia em que se celebrava o
centenário da morte do autor de Clara dos Anjos, ele foi o primeiro evento cultural
depois da vitória de Luiz Inácio Lula da Silva.
127
Viver Sem
Tempos Mortos
Fernanda Montenegro
Ocupante da Cadeira 17 na Academia Brasileira de Letras.
25 de março de 2023.
128
Ponto e contraponto.
Discursos em tensão
“Áreas como a saúde e a educação não podem entrar no jogo político de jeito nenhum.
O jogo político atinge outras áreas. Corrupção, nessas áreas, tem que ser punida com
penas máximas, tem que ser considerada crime inafiançável. As pessoas têm que ir para
a cadeia, que é para ter medo. Eu atendo na cadeia um menino que roubou um celu-
lar e vai ficar numa cela com 25 pessoas onde muitos têm que dormir no chão porque
não cabem na cela; porque roubou um celular. O outro dá um desfalque absurdo, quer
ganhar um dólar por cada vacina e não acontece nada com essa gente?“
20 de junho de 2023.
129
Escritores, lado B
Teresa Montero
Escritora e biógrafa de Clarice Lispector.
Clarice cronista
“Sou uma cronista feliz. Escrevi nove livros que fizeram muitas pessoas me amar
de longe. Mas ser cronista tem um mistério que não entendo: é que os cronistas,
pelo menos os do Rio, são muito amados. E escrever a espécie de crônica aos
sábados, tem me trazido mais amor ainda. Sinto-me tão perto de quem me lê.”
Clarice Lispector.
Três lançamentos da
edição Democracia
Rio de Janeiro
“A democracia é um tema que temos que debater sempre, e sobretudo atuar para
protegê-la. A Academia Brasileira de Letras acha que a democracia exige atenção
permanente”. Merval Pereira, acadêmico e Presidente da ABL
“Sim, são quase 80 anos de vida pública e estou aqui numa mesa maravilhosa
que dá orgulho a qualquer país do mundo. E uma atriz, por uma democracia de
visão cultural da Academia, está aqui sentada.” Fernanda Montenegro, acadêmica
“Eu vou apenas ler aqui uma lista de 40 acadêmicos entre ensaístas, historiado-
res, cientistas, poetas, ficcionistas, jornalistas que fizeram parte dela nesse cento e
muitos anos. Eu fiz a lista ao acaso, com nenhum deles aqui presentes, para se ter
uma ideia da importância dessa revista: Machado de Assis, Joaquim Nabuco, Rui
Barbosa, Barão do Rio Branco, José do Patrocínio, Oswaldo Cruz, Santos Dumont,
João do Rio, Edgard Roquette Pinto, Euclides da Cunha, Alceu Amoroso Lima,
Cientista político Sérgio Abranches, Acadêmica Ana Maria Machado, Caetano Veloso, Acadêmicos Rosiska Darcy de
Oliveira, Fernanda Montenegro, Antonio Cicero, Ruy Castro e Cacá Diegues. Livraria da Travessa, 24 de abril de 2023.
131
São Paulo
“E uma falha que eu considero difícil de superar na democracia é a adoção da
mentira como se fosse verdade na escala que isso vem acontecendo. A energia
que levou a isso não está desativada de modo nenhum, pelo contrário.” Eugênio
Bucci, professor da ECA-USP e escritor
“Você passa a viver num mundo em que busca e encontra reforço permanente para
tudo aquilo que você deseja acreditar. Adam Smith, lá no século XVIII, já dizia que
as nossas paixões sempre se justificam. Elas nos sugerem as opiniões que ajudam
a justificá-las.” Eduardo Giannetti, acadêmico
“O nosso presente está cheio de passado, não se passa impunemente por ter sido o
último país a abolir a escravidão mercantil. Os grupos retrógrados têm ódio dos novos
agentes sociais que foram surgindo justamente não do período de exceção, mas do
período em que a democracia respirou mais livremente.” Lilia Schwarcz, historiadora
“O papel renovado que a mentira tem hoje através dos dados da tecnologia aflora
um tema que está não só na ordem do dia, mas é um dos grandes desafios com
Professor Eugênio Bucci, Acadêmicos Eduardo Giannetti, Ignácio de Loyola Brandão, Rosiska Darcy de Oliveira,
historiadora Lilia Schwarcz e Acadêmico Celso Lafer. Livraria da Travessa, 9 de maio de 2023.
132
“Eu faço literatura porque eu olho para a rua, eu olho para o país. Eu tive essa
grande lição de Nelson Rodrigues, aos 22 anos, quando ele veio a São Paulo. Ele
disse: “ o que você está olhando, meu jovem? “ Eu falei: “ O senhor. Eu o admiro
muito, conheço as suas peças, leio a crônica diária A vida Como Ela É, me admira
como o senhor escreve uma crônica por dia.” Ele me olhou e falou: “olhando pela
janela, meu filho. Está tudo ali. Agora saiba olhar e saiba escrever.” Eu tenho ten-
tado olhar. Ignácio de Loyola Brandão, acadêmico
Belo Horizonte
O encontro, mediado por Afonso Borges, do programa Sempre um Papo, aconte-
ceu na calçada em frente à livraria Jenipapo.
“A minha geração cometeu vários erros como todas cometeram. Quando nós brigamos
pela Constituinte trazendo de volta a democracia no Brasil, nós acreditamos que estava
consolidada na hora em que foi promulgada, naquela tarde 5 de outubro de 1988. Não,
a vida é todo dia. A gente tem que todo dia lutar pela vida. A vida é muito curta para a
gente não ser democrata.” Cármen Lúcia, ministra do Supremo Tribunal Federal
”À palavra é dado ser poema ou cativeiro. Que mundo a gente quer, onde a gente
quer viver?” Carla Madeira, escritora
”Para quem é a revista? Ela é para quem acredita que o direito de escolher já é em
si a democracia. Os que detestam a democracia detestam exatamente o direito de
escolha, é uma revista para pessoas com capacidade de enfrentar a complexidade do
mundo, o Brasil complexo. Esses, com a sua leitura, talvez nos ajudem a responder
as perguntas.” Rosiska Darcy de Oliveira, acadêmica e editora da Revista Brasileira
Afonso Borges, ministra Cármen Lúcia, Acadêmica Rosiska Darcy de Oliveira e a escritora Carla Madeira. Calçada em
frente à Livraria Jenipapo, 5 de junho de 2023.
133
Achados
Eliane Lage,
destemida, forte, livre
Penteado, mulher que a crônica social da época – década de 1940 para 1950 – cha-
mava de “locomotiva social”. Aliás, foi Yolanda que insistiu com ela: “Aceite, faça
esse filme”.
Efervescência cultural
São Paulo se transformara naquele momento em um agitado polo cultu-
ral. Getúlio Vargas voltara ao Catete em 1951. O MASP tinha sido criado em
1947 por Assis Chateaubriand e Pietro Maria Bardi como espaço multicultu-
ral. Desde 1948 existia o Museu de Arte Moderna, fundado por Ciccillo Mata-
razzo, industrial e milionário, então casado com Yolanda Penteado, de tradi-
cional família cafeeira. No mesmo ano, Alfredo Mesquita, ator e autor, criou a
Escola de Arte Dramática, responsável pelo aparecimento de inúmeras gera-
ções de atores, autores, dramaturgos e diretores. A EAD, hoje, está incorporada
à Universidade de São Paulo.
Paralelamente, Ciccillo e Franco Zampari, outro industrial, criaram o Teatro Bra-
sileiro de Comédia, TBC, responsável pela profissionalização da arte, de onde saí-
ram nomes como Cacilda Becker, Fernanda Montenegro, Nydia Licia, Leonardo
Villar, Carlos Vergueiro e dezenas de outros de grande projeção. Vizinho ao TBC,
o norte-americano e public relations Joe Kantor abriu o Nick Bar, misto de restau-
rante e piano-bar, ponto de encontro de artistas, diretores e dramaturgos. O nome
foi tomado de uma peça de William Saroyan, escritor norte-americano de origem
armênia. Kantor foi figurante praticamente em todos os filmes da Vera Cruz.
Outro ponto de encontro era o restaurante Gigetto, na Rua Nestor Pestana,
onde a classe artística jantava todas as noites, fazia reuniões e assinava contratos.
Frente ao Gigetto, foi erguido o Teatro de Cultura Artística, com projeto do arqui-
teto modernista Rino Levi, no terreno do antigo Velódromo de São Paulo, o pri-
meiro estádio de futebol do Brasil. Na inauguração, em março de 1950, Villa-Lo-
bos e Camargo Guarnieri se revezaram à frente da Orquestra Sinfônica do Estado
de São Paulo, a Osesp.
No dia 18 de setembro de 1950, foi inaugurada a primeira emissora de televisão
do Brasil, a TV Tupi, Canal 3.
Em 1949, criou-se também a Filmoteca do Museu da Arte Moderna, transfor-
mada em Cinemateca Brasileira em1956, sob o comando de Paulo Emilio Salles
Gomes. Em 1951, Ciccillo reapareceu como o fundador da Primeira Bienal de Arte
de São Paulo, nos moldes das grandes mostras europeias. Quanto a Franco Zam-
pari, desde 1948, ambicionara criar uma grande indústria de cinema, organizada
nos moldes norte-americanos e ingleses. Surgiu a Cinematográfica Vera Cruz, com
a construção de imenso estúdio em São Bernardo do Campo, onde, antes, existia
uma granja de galinhas de propriedade de Ciccillo. O local tinha um nome poé-
tico, Jardins do Mar.
A ambição era realizar um cinema de cunho internacional, oposto ao das chan-
chadas cariocas. Até aquele momento, as grandes bilheterias eram as comédias
musicais, produzidas no Rio de Janeiro pela Atlântida, lançadas para divulgar
marchinhas que fariam sucesso no carnaval. Multidões lotavam as salas, mas
a crítica intelectual jamais considerou “aquilo” cinema. Cantores e cantoras da
Rádio Nacional, vedetes e comediantes do teatro de revista eram ídolos, além
de galãs como Anselmo Duarte, Cyll Farney, Renato Restier, o cantor Francisco
135
Carlos e vilões como José Lewgoy. No futuro, comediantes vindos das chan-
chadas povoariam os programas de humor da Globo, como Chico Anisio, Wal-
ter D’Avila, Berta Loran, Costinha, Antonio Carlos Pires (pai de Gloria Pires),
Brandão Filho.
Eliane por ter nascido em Paris, não fazer coleção de figurinhas de futebol, não
gostar de gibis, não saber como crianças eram geradas e dadas à luz. Não conse-
guia fazer amizades. Aos 12 anos, descobriram que a menina era dentuça e ela
passou a usar aparelho.
Celi mostrou-me
repente, a porta se escancarou e, da
escuridão, apareceu um homem de
os movimentos que cabelo desgrenhado. A camiseta suja
e cheirando a suor, deixava entrever
faria, as marcas no um peito peludo. A barba por fazer
chão, e, ofuscada
completava o quadro. A voz arrastada
falava coisas sem nexo, e bêbado, cam-
pelos refletores, ouvi: baleando, ele deu um arranco para
meu lado. Rápida, pus a mesa entre
“Câmera, ação”! nós enquanto sentia na nuca um arre-
pio de pavor, medos que afloravam.
De repente, a porta Deus sabe de que longínquo incons-
se escancarou e, da ciente. Não havia mais, nem câmeras,
luzes nem ação. Havia uma criatura
escuridão, apareceu asquerosa que, rindo debochada, agar-
rou-me, o braço de um bote e, aper-
um homem de cabelo tando-me contra si, procurava minha
desgrenhado.
boca. O diálogo saia aos trancos, sem
fôlego, enquanto eu me debatia, ten-
[...] A voz arrastada tando afastar do meu aquele rosto
suado, nojento. A violência era tal que
falava coisas sem nexo, a um certo momento senti que, debaixo
das mãos que me imobilizavam, o ves-
e bêbado, cambaleando, tido rasgara-se de alto a baixo nas cos-
ele deu um arranco tas e comecei a lutar. De repente, a voz
de comando: ‘Corta’!
para meu lado. Rápida, “Senti que me soltavam e, ofegante,
apoiei-me na mesa. As luzes se apaga-
pus a mesa entre nós ram e logo pude ouvir os aplausos da
Quanto a Carlos Vergueiro, foi ator, compositor, crítico musical e roteirista bra-
sileiro. Fundador do TBC, participou de Caiçara, primeiro filme da Vera Cruz. Foi
diretor artístico da TV Cultura e da Rádio Eldorado, em São Paulo. Pai do cantor
Carlinhos Vergueiro. Faleceu em 1998.
que Eliane e Tom fugiam dos eventos: “Fugíamos dos lugares onde deveríamos
estar para ser vistos e fotografados pela mídia”.
“O nosso era um relacionamento em que a paixão, a admiração e a vontade
de construir algo duradouro no trabalho tinham um ímpeto de juventude. Ele
gostava da vida no campo, tanto quanto eu, e havia estudado agronomia. Fazía-
mos planos de ter um pedaço de terra e muitos filhos, que seriam criados longe
da cidade. Mas, para isso teríamos, antes, de fazer filmes e ganhar dinheiro. A
vida nos parecia um simples sequência de decisões acertadas. Éramos otimistas
e sumamente felizes. E passávamos as folgas no sítio, plantando ou acampados
em alguma praia deserta. Éramos autossuficientes e levávamos uma vida sim-
ples, gostosa, sem glamour”.
Naquela altura tinham comprado – durante as filmagens de Sinhá Moça – um
sítio, sem luz elétrica nem rádio, lembrou ela. Passaram anos ali, com Tom criando
pintinhos. Mas o declínio da Vera Cruz tinha iniciado. Os gastos eram muito, muito
maiores do que a renda dos filmes. E houve, também, muita politicalha interna.
Passaram seis anos, até que viesse um novo filme, Ravina, dirigido pelo crítico e
ensaísta Rubem Biáfora, num estilo hollywoodiano à moda Rebeca, a mulher ines-
quecível ou O morro dos ventos uivantes. E mais não houve. Porque Eliane, desen-
cantada, não quis. Tinha outros sonhos que, de tempos em tempos reapareciam.
Um deles, o de ser fazendeira.
A estrela evaporou-se
Com Tom Payne, Eliane retirou-se para o Guarujá, onde abriram um antiquário.
Tempos de viagens, descobrindo Minas Gerais, à cata de peças valiosas. Tom ficou
doente, estava tuberculoso, diminuiu a intensidade de trabalho. E tudo mudou:
ele ficava em casa com uma cuidadora, ela viajava. A inatividade e a ausência do
cinema trouxeram a depressão. “Ele se recuperou, mas não a alegria de viver. Pas-
sava o dia sentado na loja, passou a beber. A vida ficou insuportável. Até o dia em
que ele confessou: Se, um dia, eu estiver diante de sete portas e se, acima de uma
delas, estiver escrito autodestruição é por ela que entrarei. Em estado de choque,
atormentada, disse: ‘Pois entre sozinho. Eu não vou’.”
Foi a gota d’água. Ela apanhou as crianças e foi para Petrópolis. “Quinze anos
de total cumplicidade se haviam passado. Tinha valido a pena”. Tom morreu aos
82 anos em 1996.
Mergulhando no Brasil
Eliane procurou trabalho como professora. “Comecei a dar aulas no Centro
de Formação Intercultural. Passei a tradutora de conferências sobre história,
política, literatura, cinema. Conheci e fiz amizade com Marcio Moreira Alves,
aprendi que o país vivia sob uma ditadura, mergulhei no que se chamava Bra-
sil:, bossa nova, babalorixá, traduzi Tristão de Ataíde e Leonardo Boff, as can-
ções de André e Chico Buarque me davam animo. Foram cinco anos fascinan-
tes. E Tom? Continuava no antiquário do Guarujá, inconformado com que eu
tivesse me libertado”.
142
Referência
ILHAS, VEREDAS E BURITIS A autobiografia de Eliane Lage e a história do cinema da Vera Cruz,354
páginas, Edirora Gryphus, Rio de Janeiro, 2023.
144
Achados
Ruy Castro
Ocupante da Cadeira 13 da Academia Brasileira de Letras.
no ar, supunha-se que o rádio podia ser um instrumento perigoso, capaz de levar
os segredos militares brasileiros para as potências estrangeiras. A Polícia estava
autorizada a prender quem fosse flagrado ouvindo aparelhos desautorizados.
O antropólogo, etnólogo, arqueólogo e médico Edgard Roquette-Pinto, 38 anos,
não concordava com os militares. Para ele, em vez de guardar segredos, o rádio
deveria servir para difundir aquilo de que o Brasil mais precisava: a educação. E,
para isso, era preciso fundar uma rádio.
Uma rádio educativa, “com fins científicos e sociais”, de preferência ligada
à Academia Brasileira de Ciências, da qual ele era secretário. O primeiro passo
era pedir o apoio do fundador e Presidente da Academia, Henrique Morize, seu
velho mestre, para cuidar da parte operacional do projeto. E Morize o apoiou.
Nascido na França em 1860 e no Brasil desde os 15 anos, era engenheiro, meteo-
rologista, físico, astrônomo e catedrático da Escola Politécnica. Com Morize a
seu lado, Roquette-Pinto precisava agora remover os obstáculos legais. No dia
14 de abril de 1923 – acabou de fazer 100 anos! ---, ele lançou pela Gazeta de Notí-
cias a campanha para libertar o rádio da lei que dificultava a posse de aparelhos
domésticos.
Mas só um fato consumado força-
ria a queda da lei que fazia do rádio
uma atividade clandestina, e Roquette De repente, ao cair
-Pinto cuidou para que esse fato acon-
tecesse. No dia 20 de abril, na sala de da tarde, as pessoas
Física da Escola Politécnica, no Largo
de São Francisco, os lentes da Acade- ouviram, como que
mia Brasileira de Ciências, comanda-
dos por ele, fundaram a Rádio Socie-
vindos do céu, o
dade do Rio de Janeiro, a PRA-A, com Hino Nacional e, em
Morize como presidente, o próprio
Roquette-Pinto como secretário, e, seguida, um discurso
do Presidente Epitácio
numa jogada hábil, como presidente
de honra, o homem de quem depen-
dia a revogação da lei: o Ministro da
Viação e Obras Públicas, Francisco Sá.
Pessoa. Como ninguém
No dia 1o de maio, às 20h30m, com
um transmissor montado por Morize,
acreditasse que o hino
a Rádio Sociedade fez uma primeira e Epitácio Pessoa
transmissão experimental pela estação
da Praia Vermelha. Era quase um ato tivessem qualquer coisa
de desobediência civil, praticado por
senhores de pince-nez e colarinho duro. de celestial, concluiu-
E Roquette-Pinto abriu o programa
dizendo, com grande exagero: “A par-
se que o som saía pelas
tir de agora, todos os lares espalha- cornetas. Elas eram
dos pelo Brasil receberão livremente
o conforto moral da ciência e da arte, “alto-falantes” – algo até
pelo milagre das ondas misteriosas
que transportam silenciosamente pelo então nunca visto – e
espaço as harmonias”.
Belas palavras, mas levaria tempo
era o rádio chegando.
para que o rádio atingisse todos esses
146
alterasse o seu espírito. Roquette-Pinto cuidava para que ela continuasse educa-
tiva e infensa à contaminação política, comercial ou popularesca. E era o reino
da música de concerto. O máximo que permitia era a apresentação ocasional de
peças folclóricas, inclusive o que parecia ser apenas uma nova variação, o samba.
O problema era conciliar isso com o recato radiofônico.
Numa noite também de 1931, o ídolo Francisco Alves apresentava ao microfone
da Rádio Sociedade seu grande sucesso, o samba Nem é bom falar, de Ismael Silva
e Newton Bastos. A certa altura da letra, Chico Alves cantou: “Tu falas muito, meu
bem, e precisas deixar/ Tu falas muito, meu bem, e precisas deixar/ Se não eu acabo/ Dando
pra gritar na rua:/ (O coro) Ohhh!/ Eu quero uma mulher bem nua!’”.
Em seu apartamento na Avenida Beira-Mar, Roquette-Pinto estava jantando e
escutando a transmissão. Ao ouvir Francisco Alves cantar que “queria uma mulher
bem nua”, quase enfartou. Arrancou o guardanapo do pescoço e telefonou para a
emissora. Mandou que tirassem a rádio do ar e chamassem Chico Alves:
“Seu Chico, o senhor quer uma mulher bem nua. Eu também quero uma mulher
bem nua. Só que o rádio não é lugar para querer isso!”
Mas não adiantava. O decreto-lei 21.111, de 1o de março de 1932, assinado pelo
Presidente Getúlio Vargas, autorizou a veiculação de propaganda comercial pelas
rádios. Com isso, surgiram os anúncios ao vivo e, com eles, numa avalanche, os
patrocinadores, os altos salários, os programas humorísticos, as transmissões
esportivas, os programas de auditório. Os aparelhos baratearam, e o rádio, aí,
sim, ficou acessível para todos. Em pouco tempo, o dial ficou povoado de emisso-
ras. Além da Rádio Clube do Brasil e da Rádio Educadora, que já existiam, surgi-
ram a Rádio Mayrink Veiga, a Philips, a Transmissora, a Guanabara, a Ipanema, a
Achados
Israel Beloch
Q
historiador, presidente da Casa Stefan Zweig, coordenador do Dicionário
histórico-biográfico brasileiro, da Fundação Getulio Vargas, e do
Dicionário dos refugiados do nazifascismo no Brasil (2021).
1 Roudinesco, Elisabeth & Plon, Michel. Dicionário de psicanálise. Trad. Vera Ribeiro & Lucy Maga-
lhães, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998,
2 Mann, Thomas. Os Buddenbrook; decadência de uma família. Trad. Herbert Caro. Rio de Janeiro,
Nova Fronteira, 1981.
150
3 Zweig, Stefan. Brasil, um país do futuro. Trad. Kristina Michaelles. Porto Alegre, L&PM, 2006.
4 Citado em Dines, Alberto. Morte no paraíso; a tragédia de Stefan Zweig. 4ª ed. ampliada, Rio de
Janeiro, Rocco, 2012, pg. 624.
151
5 Camões, Luis Vaz de. Os Lusíadas, canto I, 106. São Paulo, Círculo do Livro, s/d.
A permanência da lírica camoniana pode ser confirmada quando se observa os mesmos versos
na criação de Caetano Velloso e José Miguel Wisnik para o balé Onqotô, coreografia do Grupo
Corpo de 2005 que retrata a perplexidade humana diante da vastidão do universo.
6 Dines, Alberto. Op. Cit., pg. 655.
7 Idem, ibidem. Pg. 532-533.
152
Seus últimos encontros são com Ernst Feder e Leopold Stern, amigos com quem
pode conversar em alemão, sua língua tão querida e da qual o nazismo o havia
banido em termos editoriais. No fatídico domingo, 22 de fevereiro, o metódico
Zweig põe no correio envelopes com os originais de sua última obra, A partida de
xadrez ou O livro do xadrez8 ou Novela de xadrez, conforme a tradução de Schachno-
velle, endereçados a três de seus editores. É o seu livro mais abertamente antifas-
cista. Alceu Amoroso Lima, pensador e ativista católico, morador de Petrópolis,
passa de ônibus nesse dia em direção ao Rio e vê o casal parado na calçada em
Duas Pontes, cruzamento sobre o qual se debruça o chalé deles.
Um outro refugiado ilustre, o urbanista Alfred Agache, autor de um famoso
plano de modernização do Centro do Rio, é um dos primeiros a tomar conhe-
cimento do fatídico gesto. Passava temporadas em Petrópolis e, descendo para
o Rio, tenta visitar Zweig e encontra o quadro chocante, que logo transmite a
Claudio de Souza, ex-Presidente da Academia Brasileira de Letras. Claudio, um
intelectual entrosado com o Governo, assume o comando do sepultamento e
convoca Leopold Stern para, juntos, traduzirem o tocante manuscrito intitulado
Declaração, deixado em local visível junto com cartas para a ex-mulher, paren-
tes, amigos e editores.
DECLARAÇÃO
Antes de deixar a vida por vontade própria, com a mente lúcida, imponho-me a última obri-
gação: dar um carinhoso agradecimento a este maravilhoso país, o Brasil, que propiciou, a mim e
à minha obra, tão gentil e hospitaleira guarida. A cada dia aprendi a amar este país, mais e mais.
Em parte alguma eu poderia reconstruir a minha vida agora que o mundo da minha língua está
perdido e o meu lar espiritual, a Europa, autodestruído.
Depois dos 60 anos são necessárias forças incomuns para começar tudo de novo. Aquelas que
possuo foram exauridas nestes longos anos de desamparadas peregrinações.
Assim, em boa hora e cabeça erguida, achei melhor concluir uma vida na qual o labor intelec-
tual foi a mais pura alegria e a liberdade pessoal o mais precioso bem sobre a Terra.
Saúdo a todos os meus amigos. Que lhes seja dado ver a aurora desta longa noite. Eu, dema-
siadamente impaciente, vou-me antes.
Stefan Zweig
Petrópolis, 22/2/1942 9
8 Zweig, Stefan. O livro do xadrez. Trad. Sílvia Bittencourt. São Paulo, Fósforo, 2021.
9 Dines, Alberto. Op. Cit., Pg. 503.
10 A propósito desses eventos Leopold Stern publicou A morte de Stefan Zweig. Rio de Janeiro, Edi-
tora Civilização Brasileira, 1942.
153
Janeiro. Gabriela, como o casal Zweig, morava em Petrópolis e logo que tomou
conhecimento da tragédia dirigiu-se à Rua Gonçalves Dias, onde encontrou a ater-
radora cena dos corpos ainda na cama. Escreveu logo depois ao amigo comum, o
escritor e jornalista argentino Eduardo Mallea, uma longa e sentida carta, publi-
cada no jornal La Nación em 3 de março de 1942:
“Por fim entrei no dormitório e fiquei ali não sei quanto tempo sem levantar a cabeça.
Eu não podia e não queria ver. Em dois pequenos leitos juntos estava o mestre, com
sua formosa cabeça somente alterada pela palidez. A morte violenta não lhe deixou vio-
lência alguma. Dormia sem seu eterno sorriso, porém com uma doçura grande e uma
serenidade maior ainda. (...)
“Meu amigo: já sei que os imediatistas dirão para condenar (...) que Zweig tinha
obrigações conosco e que sua fuga da tragédia comum é uma grande fraqueza. E muito
mais se dirá. Falarão de sua falta de fé no sobrenatural e, talvez, da famosa covardia
israelita. (...)
“Eu permaneço esperando sua autobiografia13, escrita aqui mesmo, em nossa Petró-
polis, que ele amava tanto quanto eu. Porque não sabemos de tudo o que este homem
padeceu há uns sete anos, desde que o escritor alemão fiel à liberdade passou a ser
animal de caça. Sua sensibilidade superava a mostrada em seus livros: era uma sensi-
bilidade feminina, no melhor sentido do vocábulo; caberia dizer “inefável”. Quando
falávamos da guerra, eu acompanhava no seu rosto, ponto a ponto, seu coração em
carne viva e ia medindo o que poderia dizer-lhe, o que nunca me ocorreu com nenhum
homem de letras. E não era que perdesse em momento algum seu rigoroso controle; era
que os fatos brutais, ou simplesmente penosos, não pareciam ter sido ouvidos por ele,
mas apalpados no mesmo instante em que os escutava, e lhe caía no rosto uma tristeza
sem limites que o envelhecia de golpe. (...) Sua repugnância à violência era não só ver-
dadeira; era absoluta.”14
13 Zweig, Stefan. Autobiografia: O mundo de ontem. Trad. Kristina Michaelles. Rio de Janeiro, Zahar,
2014.
14 Mistral, Gabriela. Carta a Eduardo Mallea, 24 de fevereiro de 1942. Publicada em La Nación, Bue-
nos Aires, 03 de março de 1942. Extraído de sugeroleer.blogspot.com/2013/01/carta-de-gabriela-
mistral-eduardo.html.
15 Prater, Donald & Michels, Volker. Stefan Zweig; Leben und Werk im Bild. Frankfurt am Main, Insel
Verlag, 1981.
155
Celebrações
Ruy Castro
U
Ocupante da Cadeira 13 da Academia Brasileira de Letras.
***
sonora da entrada de
teceu comigo.
Não tive escolha. O jornal, o Última
uma criança no mundo Hora, estava repetidamente aberto à
minha frente nas mãos de minha mãe,
talvez não seja o seu cheio de palavras em corpo 48. Um dia,
essas palavras se atiraram aos meus
choro ao nascer, mas olhos, não sílaba por sílaba, mas de
o momento, muito
uma vez só. Foi em 1952: um jato, um
amor instantâneo, que se transformou
mais feliz, alguns em prisão perpétua. Prisão da qual
nunca tentei ou quis escapar.
anos depois, em O jornal como primeiro objeto de lei-
tura, e não a cartilha, pode também ter
que, pela primeira definido o meu destino. O que eu via à
***
***
Senhoras e senhores, conto isto apenas para tentar demonstrar que minha entrada
nesta casa segue uma tradição de 125 anos. A Academia Brasileira de Letras sem-
pre foi também a casa dos operários
da palavra, não apenas dos seus artis-
tas. Por aqui, desde a sua fundação,
passaram muitos jornalistas. Não me A palavra, para o
refiro somente aos inúmeros membros
que, algum dia, tiveram artigos e poe- jornalista, não é a
mas eventualmente publicados em jor-
nais. Os que vou citar entraram aqui
mesma que para os
como escritores, mas foram também
homens de redação, não importa que
escritores. Para o
como simples focas, como já fui um jornalista, ela cabe
dia, ou estrelas da profissão. Todos
foram veteranos da reportagem de rua num lenço molhado.
ou das madrugadas de fechamento da
edição. Homens e mulheres que nunca Para os escritores,
vacilaram diante do papel em branco.
Entre os jornalistas patronos e fun-
ela pode exigir o
dadores das cadeiras da Academia,
tivemos Hipólito José da Costa, Eva-
oceano Atlântico.
risto da Veiga, Manuel Antônio de
158
***
Obrigado, Sergio Paulo Rouanet, por nos ter aberto tantos caminhos que
nos permitiram entender o nosso tempo. Rouanet, que sucedeu Chico Bar-
bosa na Academia em 1992, não se limitou a entender esse tempo, mas ajudou
a transformá‑lo. Fez isto em sua tríplice atuação: como diplomata – ele foi o
Brasil em Zurique, Copenhague, Berlim, Praga –, como gestor público e como
pensador.
Em seus livros, principalmente As razões do Iluminismo, Rouanet alertou para a
crise no pensamento mundial. Identificou os equívocos da modernidade, como o
progresso técnico que desconsidera a justiça, ignora a ecologia, rebaixa os patri-
mônios culturais e contribui para a sua depredação. O futuro não é uma conti-
nuidade inevitável do passado nem o presente é necessariamente preferível a
este, diz ele – assim como o socialismo dos séculos XIX e XX não é um guia obri-
gatório para o do século XXI. Mas, ao mesmo tempo, não se pode parar a Histó-
ria, nem ignorar as conquistas da Humanidade desde o Renascimento. A partir
delas, podemos pensar numa nova modernidade, ecologicamente sustentável,
com racionalidade econômica, propósitos éticos e respeito à vida.
Rouanet denunciou “a desrazão travestida de razão” e as “posições de direita
defendidas com um discurso de esquerda”. Ensinou‑nos que existe “uma razão
louca e uma razão sábia”. Que “a inteligência não tem pátria” e que “as culturas
são dinâmicas, híbridas, sincréticas, internacionais – viajam e se confundem entre
as nações”. Rouanet sonhou com “um mundo melhor e mais belo, não apenas mais
rico”. Mas previu também “o advento de um novo irracionalismo” e que “o ver-
de‑amarelo é a cor do nosso irracionalismo”. Talvez devêssemos tê‑lo escutado
com mais atenção.
159
Rouanet denunciou
Rouanet disse isso em 2012, 20 anos
depois da criação de uma lei de incen-
“a desrazão travestida tivo à cultura no Brasil, de sua auto-
ria – lei que autorizava os produtores
de razão” e as a buscar investimento em empresas
privadas para financiar projetos cul-
“posições de direita turais, permitindo que essas empresas
A Lei Rouanet, enquanto íntegra, já seria um considerável legado. Mas, maior ainda que
a Lei Rouanet, como disse o educador e político Cristovam Buarque, foi a Lição Rouanet.
A lição do pensador e de um pensador brasileiro.
É a este homem, que nos deixou em julho de 2022, que tenho a responsabili-
dade de suceder. Que eu me faça merecedor dessa sucessão e honre sua Cadeira.
A fabulosa Cadeira 13.
***
Livros
uma reedição de livro que publicara aos 23 anos, numa coleção quase clandestina
da Faculdade de Letras da UFRJ. A maioria dos contos data do século, melhor,
do milênio passado – décadas de 1970, de 1980. Depois, praticamente abandonei
a ficção, concentrando-me na poesia e no ensaísmo. Apenas quatro contos datam
do século XXI, mas preferi não identificá-los. O que dá unidade ao volume, tal-
vez, é o forte teor metalinguístico, como se constatará adiante em “Confissão de
homem”, relato de um personagem secundário inconformado pelo fato de jamais
poder ascender à condição de protagonista.
Em 2014, Miguel Jubé, editor da Martelo, dera a lume Papéis de poesia, conjunto
de ensaios cujo título é autoexplicativo. No ano passado, pela Editora da Unesp,
graças ao interesse do editor-presidente Jézio Gutierre e da coordenadora edito-
rial Cecília Scharlach, surgiram Papéis de poesia II e Papéis de prosa. Chegamos a
cogitar da publicação de ambos num só livro, que ficaria, porém, excessivamente
volumoso, com mais de 500 páginas, portanto de manuseio menos confortável.
Assim, foi melhor lançá-los como “obras irmãs”: autônomas, seguindo, porém,
critérios editoriais similares. Conjuntos compostos por três seções, interligadas.
Na primeira, ensaios; na segunda, discursos; na terceira, entrevistas. Grande
parte desse material, em boa proporção disperso em periódicos, era inédito em
livro autônomo.
Considerando os limites desta amostragem, optamos por dois ensaios breves.
Num, “Uma efeméride: cem anos de Carnaval”, homenageamos um grande poeta, que
honrosamente integrou o quadro de membros da Academia Brasileira de Letras:
Manuel Bandeira. Noutro, homenageamos um grande ficcionista, que certamente
honraria a Casa, se a tivesse integrado: Graciliano Ramos.
163
Confissão de Homem
Não aguento mais. Chega de ser personagem secundário! Sete edições fazendo
as mesmas coisas, repetindo as mesmas falas. Que vão pensar de mim? É claro, um
bobo que não se renova, que nunca, em romance algum, vai chegar a ser protago-
nista. Agora, eu me vingo. Não apareço mais no texto. O narrador pode implorar
que eu volte, pode dizer que a crítica nunca entendeu a minha importância. Não faz
mal. Chega de humilhação. Vou sair daquela história. Quero ver quem vai tomar
conta daquele correio miserável. Aí, vão sentir a minha falta. Trabalhar num cor-
reio de cinco linhas é ridículo. Só eu sei o esforço que faço para comprimir-me ali
dentro. Além disso, minha morte é muito dolorosa. Com tantos processos moder-
nos, resolvem esmagar minha cabeça sob as patas de um cavalo doido, quando, na
página 92, saio bêbado do bar. Todo mundo da história sabe que detesto beber, e
ficam rindo do leitor e de mim, obrigado a engolir três litros de cerveja para, daí
a pouco, virar letra morta nas patas do pangaré.
Vou fugir do texto. Quero ver só o que vai acontecer quando, na página 31, Maria
encontrar o correio fechado. Ela é muito medíocre, vai ficar sem graça. Duvido que
consiga improvisar. Talvez fique balbuciando expressões sem nexo até que o nar-
rador, bondosamente, lhe entregue umas três frases novas, muito mal-alinhava-
das, para contornar a situação. E por que, por que, meu Narrador, minha morte é
demorada? Custava alguma coisa trocar a frase “agonizou lentamente” por “teve
morte instantânea”? E eu, igual a um palhaço, sem poder ao menos espantar as
moscas, para que o leitor pense que realmente estou morto.
Reconheço que quando era mais moço, na segunda edição, tive vontade de fazer
algo inesperado: roubar as cartas de Maria e mostrá-las a seu pai. Assim, pelo menos,
eu passaria a ser um antagonista, e as pessoas me estudariam com mais atenção. Não
tive coragem. Se faço isso, colocam outro em meu lugar, e nenhum narrador me acei-
taria mais. Temos que ser obedientes. Por que ninguém me convida para trabalhar
em outra história? Posso ser equilibrista, necrófilo, escafandrista, o que quiserem.
Menos carteiro. Será possível que não exista uma, uma vaguinha de personagem
principal? Não sou muito exigente. Tenho trinta parágrafos de trabalho e aprendi
até a falar inglês para a edição de bolso americana. Gostaria de encontrar uma nar-
radora simpática, loura e solteira, de preferência linear. Os protagonistas me confes-
sam os verdadeiros malabarismos que fazem para ter cinquenta anos numa página
e dez ou doze na seguinte. Ficam imitando a voz fanhosa das crianças e andam de
joelhos para fingir a estatura que tinham quando pequenos.
O que atenua um pouco a monotonia são os intervalos entre os capítulos. Orga-
nizamos festas, formamos equipes de vôlei, tomamos banho pelados, lemos roman-
ces pornográficos, passeamos livremente nos centímetros da página branca. Odeio
os leitores que invadem nosso espaço, escrevendo ou anotando bobagens incom-
preensíveis. Já perdemos várias bolas de futebol, furadas por seus lápis impiedo-
sos. Uma vez, quando nadava, me distraí um pouco, e, ao voltar, encontrei minha
roupa inutilizada pela tinta azul. Passei todo o capítulo seguinte inteiramente nu,
sem poder me levantar de minha mesa. Para que servem os leitores? Além disso,
ainda aturamos seus dedos gordurosos se esfregando em nossos corpos. Não
nego, a sensação é boa, mas me desvia do trabalho. Quando era mais novo (essas
besteiras têm idade certa), me deixei acariciar por uma unha, enorme, vermelha.
Depois, verde de vergonha, puxei a frase de baixo para me cobrir. A leitora devol-
veu o exemplar, e tive de pagá-lo do meu bolso.
164
Uma efeméride:
100 Anos de Carnaval
Segundo o dicionário Houaiss, “efeméride” designa, primordialmente, “a tábua
astronômica que registra, em intervalos de tempo regulares, a posição relativa de
um astro”. Na segunda acepção, “fato importante ou grato ocorrido em determi-
nada data”. E, na acepção 3, “comemoração de um fato importante, de uma data
etc.”. Muita coisa cabe nesse “etc”, principalmente a jubilosa celebração de alguma
cidade, município ou estado. Numa rápida consulta ao maior site de sebos do país,
constatei uma profusão de livros de efemérides geográficas: itajubenses, alagoa-
nas, do Cariri, da Freguesia de N. Senhora da Conceição da Praia... A homenagem
também pode incidir em alvo restrito: assim, um devotado pesquisador deu-se à
pachorra de elaborar minucioso levantamento de efemérides “da Briosa História da
Polícia Militar de Pernambuco”. Mais frequentes, porém, são as efemérides temáticas:
já foram publicadas, entre outras, as aeronáuticas, as astronômicas, as judiciárias, as
navais. Os livreiros não sabem com segurança em que estante alojar material de natu-
reza tão díspar. Na dúvida, tratam de inserir tais obras na estante “outros assuntos”.
No campo literário, ressalte-se livro de 1997 dedicado a efemérides da ABL, e
dois outros similares, das academias Mineira e Pernambucana de Letras.
Nas sessões acadêmicas rememoram-se vida e obra de um escritor falecido a
partir de um ano-chave de sua biografia, em especial se o ano representa data
redonda: cinquentenário de morte, centenário de nascimento. Sendo usual o
recurso a tais datas para evocar os antecessores, seria igualmente possível a come-
moração de uma outra espécie de aniversário, não do criador, mas da criatura: a
obra. Embora o escritor seja o “pai” do livro, o livro, de algum modo, é o “pai” do
escritor, pois este – o autor – só nasce, enquanto tal, em decorrência daquele – o
livro. O cidadão Manuel Bandeira, por exemplo, chegou ao mundo em 1886, mas
o poeta Manuel Bandeira viria à luz apenas em 1917, graças ao volume A cinza
das horas, que conferiu a Bandeira a certidão de nascimento do escritor. Autor que,
literalmente, brotou da cinza.
O poeta renasceria em livro dois anos depois, com a publicação de Carnaval. 2019
corresponde, portanto, ao ano do centenário dessa obra. Ocasião propícia para a
ela retornarmos e redimensioná-la no conjunto da produção poética do escritor.
Constatamos que seu teor antecipatório do Modernismo não se dá na ampli-
tude que lhe conferiu Mário de Andrade, a ponto de haver cognominado Manuel
Bandeira de “o São João Batista” do movimento. Com a lucidez que o caracteri-
zava, o poeta pernambucano declarou que devia muito mais ao Modernismo do
que o Modernismo a ele, e que só 11 anos mais tarde, com Libertinagem, de 1930,
aderiria inteiramente à estética de 1922.
Talvez tenha contribuído para o hiperdimensionamento do papel de Bandeira
como vanguardista avant la lettre o fato de um poema de Carnaval ter sido lido em
165
São Paulo, na Semana de Arte Moderna: o famoso “Os sapos”, sátira ao Parnasia-
nismo. Mas observemos o poema no conjunto do livro. Trata-se do segundo texto
de Carnaval, composto de 13 quadras e um terceto. Os 55 versos são rigorosamente
pentassilábicos, e todas as quadras são rimadas no esquema a-b-a-b. Nada que
prenuncie o verso livre – presente, aliás, numa única peça da coletânea, “Debussy”,
em flagrante contraste com os demais 31 poemas, regularmente rimados, escandi-
dos e metrificados, num arco estendido da redondilha menor ao alexandrino. Na
estrofação, predomínio quase absoluto da quadra, ao lado de poucas quintilhas e
pouquíssimos tercetos. Mesmo “Os sapos” empreende menos uma crítica ao Par-
nasianismo como um todo do que a certos tiques e lantejoulas do estilo.
Seria, aliás, contraditório Manuel Bandeira atacar indistintamente o movimento,
pois seu livro contém vários poemas de nítida e bem executada fatura parnasiana,
seja pela forma (versos isométricos, sonetos etc.), seja pelo vocabulário de elevada
extração, seja pelas referências gregas: o filósofo cínico Menipo e o deus dos bos-
ques, Pã.
Resta examinar a configuração do Carnaval propriamente dito na obra homô-
nima de Bandeira. Ainda sob esse aspecto, ela muito pouco prefigura o despoja-
mento vocabular e a extraordinária incorporação das cenas populares ou cotidia-
nas do futuro poeta. Nela desfila – para citar o último verso da coletânea – “O meu
carnaval sem nenhuma alegria”. Com efeito, em vez do quase ausente rumor das
ruas, haverá, na maioria dos poemas, a encenação do medieval triângulo Pierrô-
Colombina-Arlequim, num confronto cujo desfecho é pré-conhecido. Leia-se o
fúnebre autorretrato de Pierrô: “Atrás de minha fronte esquálida,/ Que em insônias
se mortifica,/ Brilha uma como chama pálida/ De pálida, pálida mica...”.
Apesar do Carnaval, não há dança de salão, e, sim, dança da solidão. As atri-
bulações do trio, aliás, estiveram em voga no período. Podemos citar, anterior
ao de Bandeira, o livro, de 1915, Morte de Pierrô, de Júlio César da Silva, irmão
da poetisa Francisca Júlia, comédia em versos representada no Teatro Carlos
Gomes em 1917. E, um pouco posterior, a obra As máscaras, de Menotti Del Pic-
chia, editada em 1920. Bastos Tigre publicou, em 1922, sob o pseudônimo de Don
Xiquote, o volume Arlequim. Para além da representação clássica, no mesmo ano
circulava uma versão moderna da figura, nas páginas da Pauliceia desvairada, de
Mário de Andrade. O adjetivo “arlequinal” está presente em vários de seus poe-
mas, e retalhos multicoloridos da veste do personagem ilustram a capa. Também
no prelúdio da modernidade, vale recordar a série de arlequins pintados por
Picasso desde o início do século XX, e o “Pierrot lunaire” (1912), de Schoenberg.
Se o derradeiro verso de Carnaval confirma a tonalidade depressiva e melan-
cólica do volume, se o penúltimo poema descreve uma túnica de Pierrô “Feita
de sonho e de desgraça”, o verso inicial do volume, no entanto, prometia um
roteiro de puro prazer e desregramento: “Quero beber! Cantar asneiras”. Como a
sequência do livro demonstra, nunca se deve acreditar rápido demais nos poe-
tas. E, a propósito desse verso, Bandeira, numa entrevista de 1964, registra, com
deliciosa autoironia: “Em Carnaval eu dizia: `Quero beber! Cantar asneiras!”. Pois
um crítico observou: `Conseguiu plenamente o que queria´”.
Para ser fiel ao título deste texto, “100 Anos de Carnaval”, após comentar a
obra de Bandeira, cabe falar dos festejos carnavalescos propriamente ditos
no ano de 1919. Inexiste no livro a presença da festa popular, salvo no poema
“Sonho de uma Terça-Feira Gorda”. Mas a folia carioca de então guardou uma
peculiaridade que a tornou, de certo modo, inesquecível: esse Carnaval ficou
conhecido como “o da gripe espanhola”, quando os habitantes do Rio, pela via
166
Graciliano na escola
Em “Infância” (1945), Graciliano Ramos conta que sua descoberta da literatura
se deu pelo pior dos caminhos: o das historietas edificantes que reinavam, incon-
testes, nos manuais escolares, ainda por cima vazadas em torneios de linguagem
completamente alheios à sua vivência de menino alagoano.
Numa dessas histórias, o personagem indagava: “Passarinho, queres tu brin-
car comigo?” Como se não bastassem a presença incômoda da segunda pes-
soa do singular e a anteposição do verbo ao pronome pessoal, Graciliano ainda
aprendeu que o passarinho recusava a brincadeira porque tinha algo mais sério
a fazer – o próprio ninho: “Ave sabida e imodesta, que se confessava trabalhadora em
excesso e orientava o pequeno vagabundo no caminho do dever”.
Em outra passagem do livro escolar, soava imperativa a advertência: “Fala
pouco e bem – ter-te-ão por alguém”. Não sem ironia, poderíamos dizer que, amante
da concisão, nosso escritor, posteriormente, aproveitaria de bom grado a pri-
meira metade do conselho. A segunda, porém, foi-lhe traumática, a ponto de ele
haver tentado, inutilmente, descobrir quem seria o tal “Terteão”. A literatura,
quando não a serviço dos bons costumes, vigorava como repositório normativo
da linguagem clássica: “Aos sete anos, no interior do Nordeste, ignorante da minha
língua, fui compelido a adivinhar, em língua estranha, as filhas do Mondego, as armas
e os barões assinalados”.
No capítulo “Samuel Smiles”, Graciliano narra as agruras por que passava, em
decorrência de ignorar como deveria pronunciar o sobrenome do escritor bri-
tânico, até que um professor, afinal, lhe ensinou o modo correto. Em sequência,
relata desentendimento com dois vendedores no armazém paterno: “Achava-me
remoendo um jornal em voz alta. De repente o meu conhecido avultou no papel. Tem-
perei a goela e exclamei: Samuel Smailes. Um dos caixeiros censurou-me a ignorância e
corrigiu: Samuel Símiles. Outro caixeiro hesitou entre Símiles e Similes. Mas Samuel
Smiles impunha-se facilmente. Era Smailes porque a voz do professor me chegava clara”.
Vê-se, portanto, que a verdade, no caso, não se fundamenta no teor argumen-
tativo, mas decorre simplesmente da aceitação inquestionável do discurso da
autoridade (o professor). Assim, a noção do que é “certo” não se demonstra
por si, mas atrela-se indissoluvelmente ao poder (ou desprestígio) do ponto de
emissão do juízo. A frase carrega sempre a marca de seu lugar de enunciação
168
Livros
O desenho extraviado de
Hieronymus Bosch
Trecho do livro
Capítulo 28
Tomo um copo de água no banheiro do hotel, estou em Veneza ou Florianópo-
lis? O gesto provoca uma cena apavorante: dezenas, talvez centenas de morcegos
invadem a cozinha, o banheiro? Sempre as minhas ideias fixas, tais as referidas
por Brás Cubas: Deus te livre, leitor de uma ideia fixa; antes um argueiro, uma trave no
olho. As minhas obsessões acho que são os morcegos, os pássaros, a paixão com
prazo de validade, a perfídia da razão humana, o Bosch, a ética e a moral tão
faladas pela Ana Júlia. Não tenho forças para me desvencilhar da minha incons-
tância e loucura, talvez o leitor e a leitora o tenham. Estou confuso, fecho a porta,
os morcegos trissam, pousam no meu ombro, no meu cabelo; no relógio são seis
da manhã, afasto-os com as mãos, pequenas garras me arranham o rosto, um
mais afoito me morde o lábio, cuspo, eles fogem, voltam, voos incertos, choro,
imploro a Deus, garras vermelhas, como unhas humanas, voltam a me arranhar,
tento gritar, não consigo, são ratos, pássaros, vampiros, os demônios do Bosch,
as forças do mal pintadas nos seus quadros, são os anjos expulsos do Paraíso?
Enxotados como seres asquerosos? A primeira nesga de luz trouxe para o quarto
uma sabiá da minha infância, ela canta, assobia belicosa, veio me salvar, cora-
josa, bica furiosamente os morcegos, canta ao mesmo tempo, as notas musicais
os desorientam, o som turva-lhes a direção, a sabiá pousa no meu braço, alisa
171
Livros
Engenhos da sedução
E
Engenhos da Sedução. O Hino Homérico a Afrodite em quatro ensaios e uma tradução.
Trechos do livro
Tradução
“[Zeus} No ânimo lançou-lhe doce desejo por Anquises, v. 53
que nos cimos montanhosos do multifonte Ida
bois apascentava, semelhante em estatura aos imortais. v. 55
Logo que o viu a ama-sorriso Afrodite, em amor
redemoinhou com assombroso desejo no coração. v. 57
Ensaios
“Como punição pelo desrespeito ao deus Apolo, a profetisa Cassandra perde
seu poder de persuasão; faz previsões corretas, porém não tem mais a confiança de
quem a consulta. Seus presságios, por mais verdadeiros e importantes que sejam,
tornam-se inúteis, presos em sua própria intransitividade. A privação de sua capa-
cidade de convencer resulta na perda de poder da sacerdotisa. Peithó (Persuasão)
é uma divindade muito respeitada, além de onipotente, entre deuses e mortais.
Apenas Thánatos (a Morte) pode resistir a seu grande poder.” (p. 101)
“O vocábulo Kháris (a Graça), em grego, cobre uma gama bem ampla de sig-
nificados, quase todos traduzíveis com exatidão em Português. Exemplifique-
mos com estas expressões, bem usuais em nosso cotidiano: “Estavam em estado
de graça”, “Qual é a sua graça?”, “Ele caiu nas graças de seu chefe”, “A árvore
oferece de graça a sua sombra”, “Foi agraciado com espantosa inteligência.”,
“É completamente gratuita essa maldade”, “Trata-se de uma gratificação instan-
tânea”, “Congratulamo-nos por sua eleição”, e, por fim, “Olha que coisa mais
linda, mais cheia de graça…”, esta última, a que nos interessa no relato mítico
em questão. (p. 120)
174
Livros
A vestida
O
Escritora, roteirista e jornalista.
Trechos do livro
“(...) muitos aqui estavam se preparando para sofrer e extrair da dor o que nos
move em direção ao outro, mas nossa proposta não é esta. Vamos entrar na pele dos
que foram empáticos o suficiente para sair da inércia. Não detalhei antes porque
precisávamos dos que tivessem a coragem suficiente para, se for necessário, sentir
dor, pois segundo tudo o que já sabemos, este é o primeiro requisito da empatia:
a bravura em vestir a angústia do outro.” (Conto Oitenta e Oito)
“A cela era enorme e impessoal. Por algum tempo até pareceu com um lar repleto
de fraldas, mantas e chupetas. Tudo parecia de menor importância no aconchego
daquele momento de seio e leite. No entanto, a paz da comunhão entre mãe e filha
foi quebrada e a última gota de leite saiu por entre as grades, quando afastaram as
duas por tempo indeterminado. Saudade, desamparo, solidão. A criança já estava
crescida e precisava ser separada do convívio da presidiária. Iria para o ‘Abrigo
da Avó Santana’. Para sempre Doralice sentiria a dor daquele instante. Ela fica-
ria ali, doendo por baixo de tudo o que vivesse dali por diante. O seio materno se
fundindo ao ferro das grades.” (Conto Peito de Ferro)
PATRONOS, FUNDADORES
E MEMBROS EFETIVOS
DA ACADEMIA BRASILEIRA
DE LETRAS (Fundada em 20 de julho de 1897)
Cadeira
Patronos
Fundadores
Membros Efetivos
1
Adelino Fontoura Luís Murat Ana Maria Machado
2
Álvares de Azevedo Coelho Neto Eduardo Giannetti
3
Artur de Oliveira Filinto de Almeida Joaquim Falcão
4
Basílio da Gama Aluísio Azevedo Carlos Nejar
5
Bernardo Guimarães Raimundo Correia José Murilo de Carvalho
6
Casimiro de Abreu Teixeira de Melo Cicero Sandroni
7
Castro Alves Valentim Magalhães Carlos Diegues
8
Cláudio Manuel da Costa Alberto de Oliveira Ricardo Cavaliere
9
Domingos Gonçalves de Magalhães Magalhães de Azeredo Alberto da Costa e Silva
10 Evaristo da Veiga Rui Barbosa Rosiska Darcy de Oliveira
11 Fagundes Varela Lúcio de Mendonça Ignácio de Loyola Brandão
12 França Júnior Urbano Duarte Paulo Niemeyer Filho
13 Francisco Otaviano Visconde de Taunay Ruy Castro
14 Franklin Távora Clóvis Beviláqua Celso Lafer
15
Gonçalves Dias Olavo Bilac Marco Lucchesi
16 Gregório de Matos Araripe Júnior Jorge Caldeira
17 Hipólito da Costa Sílvio Romero Fernanda Montenegro
18 João Francisco Lisboa José Veríssimo Arnaldo Niskier
19 Joaquim Caetano Alcindo Guanabara Antonio Carlos Secchin
20 Joaquim Manuel de Macedo Salvador de Mendonça Gilberto Gil
21
Joaquim Serra José do Patrocínio Paulo Coelho
22 José Bonifácio, o Moço Medeiros e Albuquerque João Almino
23 José de Alencar Machado de Assis Antônio Torres
24 Júlio Ribeiro Garcia Redondo Geraldo Carneiro
25 Junqueira Freire Barão de Loreto Alberto Venancio Filho
26 Laurindo Rabelo Guimarães Passos Marcos Vinicios Vilaça
27
Maciel Monteiro Joaquim Nabuco Antonio Cicero
28 Manuel Antônio de Almeida Inglês de Sousa Domício Proença Filho
29 Martins Pena Artur Azevedo Geraldo Holanda Cavalcanti
30 Pardal Mallet Pedro Rabelo Heloísa Buarque de Hollanda
31 Pedro Luís Luís Guimarães Júnior Merval Pereira
32 Araújo Porto-Alegre Carlos de Laet Zuenir Ventura
33 Raul Pompeia Domício da Gama Evanildo Cavalcante Bechara
34 Sousa Caldas J.M. Pereira da Silva Evaldo Cabral de Mello
35 Tavares Bastos Rodrigo Octavio Godofredo de Oliveira Neto
36 Teófilo Dias Afonso Celso Fernando Henrique Cardoso
37 Tomás Antônio Gonzaga Silva Ramos Arno Wehling
38 Tobias Barreto Graça Aranha José Sarney
39 F.A. de Varnhagen Oliveira Lima José Paulo Cavalcanti Filho
40 Visconde do Rio Branco Eduardo Prado Edmar Lisboa Bacha